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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

José Feldman (Café Literário)

Era uma tarde chuvosa, com muitos relâmpagos, quando três escritoras se encontraram em um pequeno café localizado dentro de uma biblioteca antiga, além da imaginação. O ambiente era acolhedor, com estantes repletas de livros ao fundo e o aroma do café fresco pairando no ar. 

Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz e Clarice Lispector já estavam sentadas em uma mesa rústica, cercadas por cadernos, canetas e uma xícara fumegante.

Lygia (sorrindo): Que delícia poder estar aqui com vocês! Às vezes, sinto que as bibliotecas têm um modo especial de nos inspirar, não acham?

Raquel (balançando a cabeça): Com certeza. É como se cada livro aqui tivesse algo a nos contar. E eu adoro a ideia de que todos nós, de alguma forma, estamos conectadas por essas histórias.

Clarice (olhando pela janela): É verdade. Mas, falando em histórias, como andam os enredos de vocês? Estou curiosa para saber em que estão trabalhando.

Lygia (pegando um caderno): Estou explorando a vida de uma mulher que descobre um diário antigo em uma casa de família. Ela começa a desvendar segredos que mudam sua perspectiva sobre o passado. É uma viagem entre o real e o imaginário.

Raquel (entusiasmada): Isso me lembra um pouco da história que estou escrevendo. Minha protagonista é uma mulher do sertão que luta para manter sua identidade em meio às adversidades. A conexão com suas raízes é fundamental.

Clarice (pensativa): Como isso é profundo. Eu estou mergulhando na mente de uma mulher que se sente perdida em sua própria vida. É uma exploração da solidão e da busca por pertencimento. Acredito que, no fundo, todas nós lidamos com essas questões de alguma forma.

Lygia (inclinando-se para frente): Eu adoro como você aborda a solidão, Clarice. É um tema tão universal. Você consegue transmitir essa sensação de forma tão intensa.

Raquel (sorrindo): E, ao mesmo tempo, nos mostra a força das mulheres. A luta é uma parte intrínseca da nossa narrativa, não é?

Clarice (concordando): Exatamente. E, curiosamente, muitas vezes encontramos força nas fragilidades. Na minha história, a protagonista descobre que a vulnerabilidade pode ser uma fonte de poder.

Lygia (pensativa): Isso me faz refletir sobre como as experiências de vida moldam nossas personagens. Cada uma de nós traz um pedaço de si nas histórias que contamos.

Raquel (entusiasmada): E o que vocês acham sobre a influência do ambiente em nossos enredos? Para mim, o sertão é quase um personagem. Ele tem vida própria, e suas características influenciam profundamente a trajetória da minha protagonista.

Clarice (sorrindo): Eu sinto o mesmo. No meu caso, o espaço urbano, com suas contradições, é fundamental. O caos da cidade reflete a confusão interna da minha personagem.

Lygia (abrindo os braços): E quanto aos sentimentos? A literatura, para mim, é uma forma de explorar o que muitas vezes não conseguimos expressar. Através da escrita, conseguimos dar voz a emoções complexas.

Raquel (com um brilho nos olhos): Sim! E isso é especialmente importante para nós, mulheres. Muitas vezes, nossas vozes foram silenciadas, e agora temos a oportunidade de contar nossas histórias.

Clarice (pensativa): Isso me lembra da forma como a sociedade vê as mulheres. Nossas histórias desafiam estereótipos, não é? Cada uma de nós, de nossa maneira, traz à tona questões que precisam ser discutidas.

Lygia (concordando): E é essa diversidade de experiências que enriquece a literatura. Precisamos continuar a abrir espaços para novas vozes e narrativas.

Raquel (erguendo a xícara): Um brinde a isso! À força da mulher na literatura e a todas as histórias que ainda estão por vir.

Clarice (levantando a xícara também): E que possamos inspirar outras mulheres a encontrar suas vozes e contar suas histórias.

As três escritoras brindaram, sentindo a energia daquela manhã, ricas em ideias e reflexões. O café na biblioteca se tornara um espaço de criação, onde palavras se entrelaçavam como as vidas de suas protagonistas, cada uma em busca de seu próprio caminho e significado. 

E assim, entre livros, risos e diálogos profundos, a manhã se desenrolou, repleta de promessas e sonhos literários, enquanto o mundo lá fora continuava a girar, alheio à magia que acontecia naquele pequeno refúgio de histórias e inspiração.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sábado, 25 de outubro de 2025

José Feldman (Maya)


Foste uma amiga, uma irmã,
foste uma luz… o calor.
No despertar da manhã
foste simplesmente… amor.


 Há lembranças que se enraízam como árvores antigas: elas crescem, fazem sombra e, quando o vento passa, deixam cair uma folha cuja textura a gente reconhece sem precisar olhar. Maya é uma dessas árvores na minha memória — uma presença que ocupou quintais, ruas, abraços e um pedaço enorme do nosso coração. Nasceu em São Paulo, capital, em 1997. Veio da mão de uma amiga, entregue como quem confia a chave de casa a alguém que sabe cuidar. E cuidar, com ela, foi aprender a grande lição de que os animais chegam para ensinar a amar.

No começo éramos ruins em cuidar de cachorros; confessar isso hoje é confessar uma ingenuidade que me envergonha e encanta ao mesmo tempo. Eu cheguei a fazer um cartaz numa venda perto de casa: doava-se a cadela, tomada numa mistura de desespero e de inexperiência. Coloquei-o ali como se arrancar o problema resolvesse também o afeto que já começava a crescer. Na manhã em que um senhor apareceu interessado, Maya chorou como quem pede para não ser trocada por um ponto final. Chamou a manhã inteira — um choro que parecia questionar a nossa lógica.

Quando um senhor tentou se aproximar, ela adotou uma postura defensiva e quase atacou; ele, visivelmente assustado, desistiu. Foi nesse instante que entendemos: ela não era de dar, era de ficar. E ficamos. Mais tarde encontramos o senhor novamente — nas ruas do bairro — e, Maya, que na manhã anterior parecera pronta a atacar, lambeu a mão dele com a mesma simplicidade com que dá à vida um sopro de perdão. A natureza dela tinha essa contradição doce: firmeza e ternura, proteção e entrega.

Maya era grande, uma mistura nobre entre Akita e Pastora Belga Albina. Eu brincava que ela era uma “Akitora” — um nome que juntava o porte imponente com a pelagem clara que lembrava neve. Majestade era, aliás, uma palavra que lhe caía bem. Caminhava como quem foi feita para ocupar espaço: passos largos, cabeça erguida, olhar que media situações. E ao mesmo tempo que era imponente, era dócil como poucas criaturas que já conheci. As crianças do bairro a adoravam. Entravam no quintal para brincar, deitavam-se ao lado dela, corriam e riam, e Maya aceitava tudo com paciência de rainha misericordiosa.

Havia, porém, um ódio irrefreável por bêbados que passavam em frente ao portão. Não tolerava esse tipo de presença; o latido que soltava nessas ocasiões não era infantil, era uma reprimenda, quase uma convocação à ordem. Quando havia algazarra de cachorros na rua, era Maya quem impunha silêncio: bastava um latido seu que as vozes mais altas pareciam se dissolver. Em todas as casas por onde vivemos — Taboão da Serra, Curitiba, Ubiratã e finalmente Maringá — ela se tornou referência para os cães da região: Maya latia, e o bairro escutava.

Em Curitiba, teve um episódio que virou lenda entre os vizinhos. Numa época em que estávamos viajando, houve uma invasão: um ladrão subiu o muro da casa para roubar. Maya pegou esse ladrão no muro mesmo. Simples assim. Haviam rastos de sangue do ladrão no muro, com certeza no desespero de tentar se salvar. Não foi uma cena de filme; foi a realidade exemplar de uma cachorra que assumiu seu posto de guardiã com firmeza. O nome dela correu as ruas: “a Maya pegou o ladrão” — e a sensação foi de uma vitória coletiva. O mesmo ladrão, sabíamos depois, havia roubado outras casas naquela sequência de dias. Mas quando encontrou a Maya na frente, a história mudou. Ela era destemida quando necessário.

Era também uma mãe dedicada. Cruzou com um Border Collie em Curitiba e teve sete filhotes. A casa encheu de patas, de olhos curiosos e de filhotes que tinham fila para adotá-los. Ficamos com um deles; os outros foram-se rápido, porque quem a conhecia sabia que ter um filhote dela seria um privilégio. Ser mãe foi mais um dos papéis que ela desempenhou com naturalidade: havia nela uma mistura de disciplina e afeto, um código que os filhotes aprenderam rápido.

As caminhadas com ela eram, na verdade, passeios em que ela nos levava. Entre risos, sempre digo isso: era ela quem ditava o ritmo, quem escolhia o caminho, quem parava para cheirar a vida. Numa dessas ocasiões lembro de um dia em que ela disparou, e mesmo presa ao enforcador — que eu segurava firme — arrastei-me até colidir com uma árvore. Saí daquele encontro com o joelho raspado e o riso envergonhado, enquanto Maya, impassível, já queria seguir adiante. Era fiel: fazia o que queria, mas fazia junto.

Inteligente ao extremo, ela aceitava uma trapaça uma vez — talvez duas — mas não mais. Eu podia enganá-la uma vez, e ela ficaria olhando com curiosidade; na segunda vez, o olhar era de reprovação quase cômica, como se dissesse: “Qual é? Acha que sou tonta e caio outra vez?” Tinha um senso de justiça fantástico. Essa inteligência fazia dela não só uma companhia, mas uma interlocutora silenciosa: seus olhos avaliavam, ponderavam, perdoavam ou censuravam de modo claro.

O tempo foi passando e, por anos, Maya foi nossa sombra, nossa mesa redonda, nossa segurança. Em 2012 sua saúde começou a declinar. Ela ficou, aos poucos, mais quieta; os passeios diminuíram, as corridas tornaram-se raras, e ela passou a deitar mais tempo do que antes. Os sinais da velhice vinham com a mesma dignidade com que vivera: sem grande dramatização, apenas um corpo pedindo repouso. No dia 19 de abril de 2013, em Maringá, ela partiu: 16 anos que pareciam ter passado tão depressa e, no entanto, deixavam uma lenta bagagem de saudade.

Maya morreu de falência dos órgãos. Foi um fim que doeu, não apenas pela violência do corpo que se entrega, mas pela concretude da despedida depois de tantos anos de presença constante. Ela deixou descendentes: Fluffy, um Border Collie que morreu aos 10 anos em Ubiratã por doença desconhecida, e Mel, que viveu até 2019 e partiu aos 16 anos em Maringá. A linhagem dela seguiu, em parte, como quem carrega a tocha adiante.

Ainda hoje, quando fecho os olhos, a lembrança de Maya vem com cheiro de grama, de poeira da estrada e de pelo macio. Vejo sua cabeça grande encostada na minha perna, o olhar que pedia nada e dava tudo, as crianças correndo ao redor, e lembro do cartaz que pus na venda, uma prova da nossa inexperiência, e da lição que isso nos deu: não se dá alguém como Maya, ela se conquista e te conquista de volta.

Sinto falta das pequenas coisas: o jeito que ela levantava o olhar para pedir um pedaço do comida, como acompanhava cada passo quando estávamos no quintal, como deitava de lado para que as crianças subissem e se aninhassem. Sinto falta de vê-la chupando manga que pegava de nossa árvore onde moravamos, e não é que a danada pegava sempre as melhores mangas. Sinto falta das tardes que os nossos gatos brincavam com ela no quintal de casa, fazendo-a de boba. Geralmente vinha pra mim, chorosa, com um arranhado no corpo, de algum gato provavelmente. Sinto falta da segurança que a presença dela trazia nas noites, quando a casa parecia menor por fora mas completa por dentro. Sinto falta do respeito que impunha e do conforto que oferecia.

Em dias de vento forte, eu imaginava Maya no portão, vendo os bêbados passarem e decidindo, com um latido seco, que aquilo não ficaria ali. Em dias de sol, a via sendo acariciada pela luz, um corpo branco que brilhava como se tivesse pegado o próprio verão. E quando me lembro da sua inteligência e do seu humor — da soberania com que assumia as manhas e o humor com que aceitava as regras — percebo a sorte que tivemos em tê-la por perto.

Há uma saudade que é como um caminho conhecido: a gente passa por ele sempre que quer encontrar uma presença. Para mim, essa estrada leva direto a Maya. Às vezes, preso num dia comum, me surpreendo sorrindo ao lembrar da cena em que ela lambeu a mão do senhor que antes despertara seu instinto de defesa, ou do dia em que mordeu o ladrão ou ainda da vez em que a casa inteira ficou em silêncio por causa de um único latido. Essas memórias são pequenas vitórias contra o esquecimento.

Maya era muito mais do que a soma de suas ações; ela era um personagem que alterou nossa narrativa familiar. Nos ensinou a cuidar, nos policiou, fez-nos rir e, sobretudo, foi um porto. Depois que se foi, aprendemos a medir espaços: um banco na sala que parece maior, um canto do quintal que ecoa as patas, uma coleira que agora é só lembrança. A vida, com sua dureza e sua ternura, seguiu — mas com a marca dela cravada em cada gesto de cuidado que depois demos.

Escrever sobre Maya é trazer à tona não só a história de uma cadela exemplar, mas a própria história de quem aprendeu com ela. É confessar que já fomos melhores e piores, e que, diante de um animal assim, o melhor de nós e também a nossa impotência frente às vicissitudes da vida aparece. É também uma forma de agradecer: por ela ter escolhido ficar quando nossas mãos hesitaram, por ter sido dócil com as crianças, implacável com ladrões, e por ter ensinado que a lealdade é prática diária e silêncio cúmplice.

Hoje, quando falo dela, lembro-me da akitora, a raça que lhe denominei. Em seu nome, há reverência. Em qualquer lembrança, há saudade. Mas há também consolo: ela viveu muito, viveu bem, e deixou herança material e espiritual. Fluffy e Mel foram pedaços do legado; as histórias que lembramos continuam a circular; e dentro de nós, o modo de amar transformado por ela segue ativo.

Maya era majestade e afeto, cidade e quintal, guarda e companhia. Era o tipo de presença que nos ensina por imitação: você olha para ela e entende como se cuida, como se espera e como se protege. Sua vida foi um mapa de gestos que inaugurou muitos de nossos modos de agir com os animais. E a saudade — ah, a saudade — é essa árvore que inclino a cabeça para lembrar e, geralmente, chorar, um choro triste e um choro alegre. É também um carinho antigo que me aquece inesperadamente em dias frios.

Se penso em algo final que ela me deixou, é a convicção de que cuidar transforma. Fomos péssimos no início, aprendemos no caminho, e Maya foi sempre generosa com nossas falhas. Quando morreu, restou o aprendizado e o espaço que nunca mais seria igual. Hoje, aqui sentado, escrevo e vejo o sol atravessando a cortina, e, por um segundo, o brilho parece o mesmo do pelo dela. Sorrio, deixo a saudade me dominar — porque saudade, no final das contas, é prova de que houve amor, e que esse amor valeu cada passo que ela nos fez a dar ao seu lado.

Oh, minha querida Maya. Que saudade!!!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

Fonte:
José Feldman. Minhas irmãs de quatro patas. Floresta/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul (em construção)
Fotos e montagem por JFeldman

domingo, 19 de outubro de 2025

José Feldman (Tudo que sobe, desce)

Ivan tinha 47 anos e um histórico invejável de evitar aventuras. Sua vida era previsível, organizada e, principalmente, segura. Ele não andava de patinete, não pedalava bicicletas, não corria riscos desnecessários. Sua maior ousadia, talvez, tivesse sido trocar o café por chá de camomila na tentativa de combater a gastrite. Mas, naquela manhã ensolarada, o destino – ou talvez uma casca de banana – decidiu que Ivan precisava de um pouco de emoção.

Era uma terça-feira comum, e Ivan ia pela ladeira em direção à quitanda do bairro. Ele havia decidido que queria maçãs. Caminhava com sua típica postura ereta, carregando uma sacola de pano dobrada sob o braço e resmungando mentalmente sobre a quantidade de patinetes espalhados pelas calçadas. Era o tipo de homem que acreditava firmemente que a cidade estava em decadência.

Foi então que aconteceu.

No meio da ladeira, uma casca de banana – que parecia ter sido estrategicamente colocada ali por um gênio do caos – brilhou sob o sol como um aviso divino. Ivan, distraído, nem teve tempo de reagir. O pé direito encontrou a casca, e o mundo virou de cabeça para baixo. Ele escorregou com tamanha elegância que poderia até ser confundido com um número de balé, se não fosse o grito desesperado que ele soltou enquanto seus braços agitavam-se como hélices descontroladas.

— AAAAAAAHHHH!!

Ele foi projetado para cima, mas a queda, porém, não foi o fim. Foi apenas o começo.

Ivan despencou de costas, mas, em vez de encontrar o chão duro e impiedoso, encontrou algo ainda mais improvável: um carrinho de mercado. O carrinho estava parado ali, aparentemente abandonado, carregando apenas um saco de batatas e alguns tomates já levemente amassados. A sorte, se é que podemos chamar assim, fez com que Ivan caísse diretamente dentro dele, encaixando-se como uma peça de Tetris em uma jogada perfeita.

O impacto fez o carrinho ganhar vida. Ele começou a descer a ladeira com uma velocidade assustadora, impulsionado pelo peso de Ivan e pela força da gravidade que parecia decidida a não lhe dar trégua.

— PAREM ESSE NEGÓCIO!! — berrou Ivan, agarrando-se às laterais do carrinho como se fosse um piloto de Fórmula 1 em uma curva perigosa.

Mas o carrinho não parou. Pelo contrário: ele parecia ganhar velocidade a cada metro. A primeira vítima foi uma bicicleta estacionada no meio-fio. O carrinho colidiu com ela, arremessando-a contra uma árvore e fazendo soar um "tinhóin" metálico que ecoou pela rua.

— FOI SEM QUERER! — gritou Ivan para ninguém em particular.

Em seguida, vieram as latas de lixo. Cinco delas, enfileiradas como se estivessem participando de uma competição de queda sincronizada. O carrinho as atingiu em cheio, espalhando sacos de lixo, cascas de frutas e algo que parecia ser um peixe malcheiroso por toda a calçada.

— Isso não está acontecendo... — Ivan murmurou enquanto o caos se desenrolava ao seu redor.

Mais abaixo, um grupo de crianças brincava com patinetes. Quando viram o carrinho descendo como um meteoro descontrolado, fugiram gritando, abandonando as patinetes no caminho. O carrinho passou por cima de duas delas, que voaram como projéteis, atingindo uma barraca de pastel na esquina. O pasteleiro deu um salto para trás, derrubando uma bandeja cheia de pastéis quentinhos no chão.

— ME DESCULPA, PASTEL! — gritou Ivan, já sem qualquer esperança de controlar a situação.

A ladeira parecia interminável. Cada metro trazia uma nova catástrofe. Ivan passou por um cachorro que, assustado, começou a persegui-lo, latindo como se o carrinho fosse um invasor de outro planeta. Logo atrás vinham duas senhoras segurando sombrinhas, gritando:

— SOCORRO! TEM UM LOUCO DESCENDO A LADEIRA!

E então, como se o destino tivesse preparado um grand finale, Ivan viu o fim da ladeira: uma construção. Uma obra em andamento, cheia de andaimes, sacos de cimento e, claro, uma poça de lama imensa bem no centro. Ele tentou gritar novamente, mas só conseguiu soltar um som abafado, como um suspiro de derrota.

— Não... na lama, não...

O carrinho atingiu um pedaço de madeira, saltou no ar como se fosse um carro de ação em um filme de Hollywood e aterrissou exatamente na poça de lama. O impacto foi glorioso. Lama voou para todos os lados, cobrindo Ivan da cabeça aos pés e criando uma espécie de coroa marrom em sua careca reluzente.

Por alguns segundos, houve silêncio. O cachorro parou de latir. As senhoras com sombrinhas chegaram, arfando, e olharam para Ivan com uma mistura de horror e pena. Uma das crianças apontou e começou a rir.

Ivan, ainda deitado no carrinho, coberto de lama, levantou uma mão trêmula e disse, com a voz mais digna que conseguiu reunir:

— Alguém pode me trazer uma toalha?

E foi assim que Ivan, o homem que evitava aventuras, tornou-se a lenda da ladeira. O carrinho de feira foi recuperado por seu dono (que nunca explicou por que o havia deixado ali), e a história foi contada por semanas no bairro. Ivan, por sua vez, decidiu que talvez fosse melhor começar a fazer compras em outra quitanda.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR (desde 2011). Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural/SP, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores/PR, Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG, Academia Formiguense de Letras/MG, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas de todos os tempos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

José Feldman (Passarinho na gaiola)

 
Privado da liberdade
lindo pássaro cantador,
na gaiola, de saudade,
canta triste a sua dor…
Maria Helena Ururahy C. Fonseca
(Angra dos Reis/RJ)

Oprimido na gaiola,
lamentando a escravidão,
o sabiá cantarola
para o algoz sem coração.
Ruth Farah Lutterback +
(Cantagalo/RJ)

Paulo era um homem solitário que encontrava alegria em um pequeno passarinho que mantinha em uma gaiola. O passarinho, um canário de penas amarelas brilhantes, era sua companhia mais fiel. Paulo gostava de ouvir seu canto suave e melodioso, especialmente nas manhãs ensolaradas, quando a luz do dia filtrava-se pela janela, iluminando sua pequena casa.

Todos os dias, ao acordar, se aproximava da gaiola e falava com o passarinho, que respondia com seu canto. Para Paulo, aquele som era como um alívio à solidão que o cercava. Ele acreditava que, mantendo o passarinho preso, estava garantindo sua segurança e, assim, poderia desfrutar de sua música sempre que quisesse.

Certa tarde, Ricardo, um amigo de Paulo, decidiu visitá-lo. Eles conversaram sobre a vida, sobre as lembranças de antigamente e, é claro, sobre o passarinho. 

– Você tem um passarinho lindo, Paulo. Deve ser maravilhoso ouvir seu canto. - comentou Ricardo, tomando um gole de café.

– É verdade! - respondeu Paulo, com um sorriso. – Ele é minha companhia. Eu gosto de ouvi-lo cantar.

Ricardo franziu a testa, surpreso. 

– Mas por que deixá-lo preso? Para ouvi-lo cantar? Isso não parece certo. Ele tem asas, Paulo. As aves devem voar livremente.

Paulo hesitou. 

– Mas se eu soltar, ele pode fugir. E eu ficaria sozinho novamente.

– Mas você já percebeu que o canto dele não é de alegria, mas de tristeza? Ele está preso, e seu canto reflete isso. Assim como nós, humanos, temos pés para andar, as aves têm asas para voar. Ninguém gosta de estar preso. E se fosse você preso em uma gaiola, sem poder sair para andar? Como se sentiria?

As palavras de Ricardo ecoaram na mente de Paulo. Ele nunca havia pensado dessa forma. Naquela noite, enquanto o passarinho cantava, ele começou a prestar atenção ao tom de sua música. Era verdade: havia uma melancolia em seu canto que antes não percebera. O coração de Paulo apertou-se com a dor de compreender que, mesmo cuidando do passarinho, estava privando-o de sua liberdade.

Paulo ficou em um dilema. Ele amava o passarinho e queria que ele fosse feliz, mas o medo da solidão o impedia de agir. No entanto, a consciência pesada começou a se tornar insuportável. Com um suspiro profundo, decidiu que precisava fazer o que era certo. 

Com tremor nas mãos, abriu a gaiola.

O passarinho hesitou por um momento, mas assim que viu a porta aberta, voou para fora em um esplêndido bater de asas. Seu canto mudou imediatamente, não era mais triste, mas alegre e vibrante. 

Paulo olhou enquanto o pequeno ser alado disparava para o céu, sentindo uma mistura de alívio e dor. Ele havia feito o que era certo, mas agora sentia-se mais sozinho do que nunca.

Nos dias que se seguiram, Paulo se fechou em seu mundo. Olhava pela janela, desejando que o passarinho voltasse, mas sua casa parecia mais silenciosa do que nunca. A ausência do canário o envolveu em uma profunda tristeza. Ele se afastou dos amigos, deixou de sair, mergulhando em um torpor.

Porém, algo inesperado aconteceu. Um dia, enquanto Paulo olhava para a janela, ouviu um canto familiar. Seu coração disparou quando viu o passarinho pousando na borda da janela, cantando alegremente como nunca antes. Era como se o sol tivesse surgido novamente em sua vida.

"Você voltou!", exclamou Paulo, surpreso e emocionado. Ele se aproximou da janela e, com lágrimas nos olhos, disse: "Desculpe-me por ter te prendido. Eu não queria que você se sentisse triste."

O passarinho parecia entender. Ele cantou ainda mais alto, e Paulo sentiu que aquelas notas eram uma resposta ao seu arrependimento. O canto do passarinho ressoava como uma melodia de perdão e amizade. 

A cada manhã e cada final de tarde, o passarinho voltava, enchendo o ar com sua música.

Paulo começou a sair de casa, encontrando um novo propósito. Ele cuidava do jardim, plantava flores e desfrutava da natureza ao seu redor. O passarinho voava pelo quintal, pousando nas árvores e cantando, e Paulo sempre o esperava na janela.

A liberdade do passarinho trouxe vida nova a Paulo. Ele entendia, finalmente, que a verdadeira amizade é baseada na liberdade e no respeito. E assim, o passarinho e Paulo formaram um laço que transcendeu as paredes da casa, celebrando a beleza da liberdade e a alegria da companhia.


A liberdade e o respeito pela vida dos outros sempre são recompensados. A verdadeira amizade não se baseia na possessão, mas na capacidade de permitir que o outro seja livre e feliz.

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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Formiguense de Letras, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sábado, 11 de outubro de 2025

José Feldman (Fábulas) O Pinguim Destemido

Na Antártica, havia um jovem pinguim chamado Leandro que sonhava em voar. Enquanto seus amigos se contentavam em deslizar sobre o gelo e mergulhar nas águas geladas, ele olhava para os pássaros que voavam acima dele. Sempre se perguntava como seria sentir o vento em suas penas.

Um dia, enquanto explorava uma nova parte da costa, ele encontrou um velho pinguim chamado Gonçalo. Gonçalo era conhecido por suas histórias de aventuras. 

"Você já pensou em como seria voar, meu jovem?", perguntou Gonçalo, notando o olhar sonhador de Leandro.

"Sim, mas sou apenas um pinguim. Nunca poderei voar", respondeu, desanimado.

"Voar pode não ser a única maneira de sentir liberdade. Às vezes, a aventura está em explorar o que está ao seu redor", disse Gonçalo. 

Inspirado, Leandro decidiu que, em vez de lamentar sua condição, ele iria se aventurar em explorar a costa.

Nos dias seguintes, começou a escalar as rochas mais altas e a mergulhar nas águas profundas. Conheceu outros animais marinhos, aprendeu a pescar e até se tornou um ótimo nadador. 

Um dia, durante uma de suas expedições, se deparou com um grupo de aves migratórias que estavam descansando.

"Você gostaria de voar conosco?", perguntou uma das aves. 

Leandro hesitou, mas a ideia o fascinava. Ele subiu em uma montanha alta e, com um impulso, se lançou, deslizando pela encosta abaixo. Embora não tivesse asas, ele aprendeu a deslizar como o vento.

Ele percebeu que, mesmo sem voar como os pássaros, estava experimentando uma liberdade única. 

Ao voltar para sua colônia, compartilhou suas histórias de aventuras, mostrando que o verdadeiro espírito de aventura está em se abrir para novas experiências, independentemente de como elas se apresentem.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

José Feldman (Mini-contos sobre a natureza) 1 – 5

1. A Árvore Solitária
Em uma vasta planície, uma única árvore se erguia, suas folhas dançando ao vento. Ela era testemunha de muitas estações, desde a florada da primavera até a queda das folhas no outono. Um dia, uma criança se sentou à sua sombra e desenhou um mundo onde as árvores falavam... A árvore, em silêncio, sorriu.

2. O Rio Sussurrante
O rio serpenteava pela floresta, murmurando segredos para quem quisesse ouvir. As pedras e peixes eram seus fiéis ouvintes. Um velho pescador se sentou à beira e, ao lançar sua linha, sentiu que o rio o conectava a tudo que existia, como se ele próprio fosse parte daquela correnteza.

3. O Perfume das Flores
Lara caminhava por um campo coberto de flores silvestres. O aroma doce a envolvia, fazendo-a sentir-se em paz. Ao se agachar para cheirar uma margarida, lembrou-se de sua infância, quando dançava entre as flores… A natureza sempre teve o poder de trazer de volta memórias esquecidas.

4. O Sol Poente
Carlito subiu a colina para assistir ao pôr do sol. À medida que o céu se tingia de laranja e roxo, ele se lembrou de como a vida é feita de ciclos. O sol se despedia, mas sempre voltava… Aquela visão o acalmou, lembrando-o de que novos começos sempre são possíveis.

5. O Canto do Sabiá
Toda manhã, o sabiá cantava na árvore em frente à casa de Lúcia. Seu canto melodioso trazia alegria ao despertar. Certa manhã, Lúcia decidiu abrir a janela e cantar junto. A música ecoou pela vizinhança, unindo os moradores em um concerto improvisado.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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terça-feira, 7 de outubro de 2025

José Feldman (Carta a Najla e Yasmin)

Carta que nunca será enviada, em continuação ao texto “Amor e tragédia nas sombras da intolerância” (https://pergola-de-textos.blogspot.com/2024/12/amor-e-tragedia-nas-sombras-da.html) . Yasmin foi morta por ladrões e Najla se suicidou.
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Queridas Najla e Yasmin,  

Há cinquenta anos eu carrego esta dor, um peso que não se alivia, que me acompanha como uma sombra em todos os momentos do dia e em cada instante da noite. São quase cinco décadas que se passaram, mas é como se tudo tivesse acontecido ontem, como se o tempo tivesse congelado naquele momento em que vocês partiram e eu fiquei aqui, sozinho, rasgado por dentro, tentando juntar os pedaços de um coração que nunca mais foi o mesmo.  

Najla, minha amada, você era o meu mundo, o meu norte, a razão de cada suspiro. Eu me lembro do brilho dos seus olhos, olhos que falavam mais do que qualquer palavra, que diziam tudo o que havia em sua alma. Lembro do seu sorriso, tão delicado, tão cheio de vida, da forma como você tocava as coisas, como se cada gesto fosse uma dança. Você era a minha paz, mas também o meu fogo, e eu nunca soube como um só coração podia conter tanto amor.  

E Yasmin, nossa pequena Yasmin, tão frágil, tão cheia de promessas. Eu me lembro de como ela era pequenina, como cabia inteira nos meus braços, como eu olhava para ela e via o futuro, um futuro que parecia tão brilhante, tão cheio de possibilidades. O cheiro dela, seu chorinho suave, a forma como seus olhos começavam a se abrir para o mundo... Tudo nela era um milagre, e eu me pergunto, todos os dias, por que Deus me deu esse milagre apenas para arrancá-lo de mim tão cedo?  

Eu não consigo parar de pensar naquele dia. Eu me pergunto, ainda hoje, o que você sentiu, Najla, nos momentos finais. Você estava com medo? Estava com raiva? Ou será que sentiu que não havia outra saída? Eu nunca vou entender plenamente o que te levou a isso, mas eu sei que o mundo te feriu. Eu sei que as barreiras que nos separavam — essas malditas barreiras impostas por crenças, por tradições, por um Deus que deveria unir, mas decidiu nos dividir — te esmagaram.  

Eu amaldiçoei esse Deus tantas vezes, Najla. Eu gritei para o céu, questionei, xinguei, implorei por respostas que nunca vieram. Como pode um Deus criar algo tão belo quanto o amor entre duas pessoas e depois destruí-lo só porque elas nasceram em culturas diferentes, em crenças diferentes? Que crueldade é essa? O que fizemos de errado, Najla, além de nos amarmos? Que pecado cometemos além de querer construir uma vida juntos, uma vida onde Yasmin pudesse crescer cercada de amor?  

Mas o mundo não nos deixou. E eu nunca vou perdoar por isso. Eu nunca vou esquecer as palavras duras que ouvimos, os olhares de reprovação, as portas que se fecharam. Eu vi você se desgastando, Najla, sendo abandonada pelos seus próprios pais, que deveriam te apoiar, vi você tentando ser forte, tentando carregar o peso de tudo isso, até que não conseguiu mais. E eu me culpo todos os dias por não ter conseguido te proteger, por não ter sido suficiente para te manter junto.  

E Yasmin... Ah, minha pequena Yasmin. Você foi arrancada de mim antes mesmo que eu pudesse te ver crescer, antes que eu pudesse te ensinar sobre o mundo, antes que eu pudesse te mostrar que, apesar de tudo, a vida ainda pode ser bonita. Eu me pergunto, todos os dias, como você seria hoje. Será que teria os olhos da sua mãe? Será que teria o meu sorriso? Será que seria tão teimosa quanto nós dois? Mas essas perguntas nunca terão respostas, e isso é o que mais me dói.  

Minha pequena e querida Yasmin... Eu desejaria te pegar nos braços, mesmo que fosse só por um instante, e te diria o quanto te amo, o quanto sonhei com o seu futuro, o quanto lamento não ter podido te ver crescer. Eu te contaria sobre tudo o que planejei para nós, sobre os passeios que imaginei, as histórias que eu queria contar para você antes de dormir, as risadas que jamais pudemos compartilhar. Eu te diria que você foi a luz mais pura e breve que já passou pela minha vida, e que, mesmo tão pequenina, você mudou tudo em mim.

Eu também pediria perdão. Perdão por não ter sido capaz de impedir que a dor do mundo nos separasse. Perdão por não ter conseguido ser maior que os preconceitos e as barreiras que nos cercaram. Perdão por não ter podido te dar a infância que você merecia, cheia de amor e segurança.

Eu daria tudo, absolutamente tudo, para poder abraçar vocês mais uma vez. Para sentir o calor do seu corpo, Najla, para ouvir o som da sua voz dizendo que tudo vai ficar bem. Para segurar a pequena Yasmin nos braços, para sentir o cheiro dela, para ouvir seu riso. Mas tudo o que me resta são lembranças, memórias que, ao mesmo tempo em que são preciosas, são como facas que me cortam toda vez que as revisito.  

Najla, eu espero que, onde quer que você esteja, você tenha encontrado a paz que o mundo te negou. E Yasmin, minha pequenina, espero que você esteja nos braços da sua mãe, sentindo o amor que eu nunca tive a chance de te dar como gostaria. Eu espero que vocês estejam juntas, em um lugar onde a dor não existe, onde os preconceitos não separam as pessoas, onde o amor não é julgado.  

Quanto a mim, eu sigo aqui, sobrevivendo, dia após dia. Não vou mentir, há momentos em que tudo parece insuportável, momentos em que eu penso que talvez fosse melhor se eu estivesse aí, com vocês. Mas algo me mantém aqui, talvez a necessidade de carregar a memória de vocês, de lembrar ao mundo que vocês existiram, que vocês foram amadas, que vocês foram tudo para mim.  

Se eu pudesse falar com vocês agora, Najla e Yasmin, eu diria que vocês são a razão de eu ainda buscar algum sentido para essa vida, mesmo em meio à dor. E que um dia, espero, nos reencontremos. Até lá, vivam em meu coração — porque é o único lugar onde o amor que sinto por vocês jamais será tocado pelo tempo ou pela distância, ou pelo preconceito de um mundo ignorante.

Eu não sei se algum dia nos reencontraremos, mas eu me agarro a essa esperança. Porque, Najla e Yasmin, vocês são e sempre serão o amor da minha vida. E enquanto eu viver, vocês viverão em mim.  

Com toda a dor e todo o amor do mundo,  
De quem nunca deixou de amar vocês.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

José Feldman (As Cócegas da Discórdia)

Henrique e Pafúncio eram amigos inseparáveis, há uns 40 anos, mesmo na terceira idade, já aposentados. Passavam as tardes jogando cartas, contando histórias e tomando um bom café. Mas, como em toda amizade de longa data, um dia a paz foi abalada.

Uma discussão sobre quem seria o melhor contador de histórias rapidamente se transformou em um combate acalorado. Pafúncio, com um brilho travesso nos olhos, revelou que tinha um novo amigo que era “muito mais unido” do que Henrique. O velho Henrique ficou furioso. 

— Ah, é? Se eu morrer primeiro, vou puxar o seu pé à noite! — disse ele, com a voz embargada de raiva e um sorriso nervoso.

Pafúncio riu, achando que Henrique estava apenas exagerando. Mas, para sua surpresa, alguns dias depois, Henrique teve um infarto fulminante e faleceu. 

O velório foi triste, mas Pafúncio não pôde evitar de pensar: “Quero ver puxar meu pé, velho malandro!”.

Naquela noite, após o funeral, Pafúncio se acomodou na cama, tentando apagar da mente a discussão ridícula. Mas, ao fechar os olhos, uma sensação estranha começou a invadir o quarto. Ele se virou para o lado e, de repente, sentiu algo gelado tocar seu pé.

— Quem está aí? — sussurrou, com o coração disparado.

E, como se tivesse respondido ao chamado, o espírito de Henrique apareceu, com uma expressão travessa.

— Olá, Pafúncio! Lembra da minha promessa? 

Pafúncio quase caiu da cama. Ele começou a gritar e a rir ao mesmo tempo, enquanto o espírito de Henrique fazia cócegas em seu pé.

— Para! Para! — ele berrou, se contorcendo na cama.

Mas Henrique, em forma de espírito, não parecia se importar. Continuou a fazer cócegas, enquanto Pafúncio tentava explicar que tudo não passou de um desentendimento.

— Eu juro, não tenho outro amigo! Só falei isso para você ficar ciumento! — gritou Pafúncio.

Henrique, contente com a confissão, finalmente parou. Ele olhou para o amigo, agora ofegante, e riu.

— Então, você quer dizer que eu sou seu único amigo? 

— Sim! — respondeu Pafúncio, ainda rindo. — Sempre foi!

O espírito de Henrique decidiu dar uma trégua. Mas a paz durou pouco. Na noite seguinte, ele voltou, insatisfeito pelo amigo o ter enganado e novamente começou a fazer cócegas.

— Ah, você de novo! — gritou ele, rindo desesperado. — Se continuar assim, vou acabar morrendo de tanto rir!

As noites se tornaram um verdadeiro dramalhão. Pafúncio passou a contar para os amigos que “Henrique estava puxando seu pé” e todos achavam que ele tinha ficado maluco. Mas, na verdade, ele apenas estava com saudades dos velhos tempos com seu amigo.

Finalmente, uma noite, teve uma ideia. Ele se deitou e, em vez de se assustar, começou a conversar com o espírito de Henrique.

— Olha, a gente pode fazer diferente. Que tal você me contar histórias em vez de fazer cócegas?

Henrique, surpreso com a proposta, aceitou. E assim, as noites se tornaram um festival de risadas, rindo e trocando as histórias que sempre amaram.

No fim, a amizade deles perseverou até mesmo além da morte, e aprenderam que, às vezes, a melhor maneira de lidar com a raiva é através do riso. 

E, claro, sempre mantendo os pés encolhidos, longe de espíritos travessos!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sábado, 27 de setembro de 2025

José Feldman (71 Anos de Gratidão e Memórias)

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Em setembro celebrei meus 71 anos de vida, e confesso que não consigo esconder a alegria de ter chegado até aqui. Não é só pela idade em si, mas por tudo que vivi, por tudo que vi mudar ao longo do tempo e por tudo que ainda tenho a agradecer. Há algumas décadas, chegar aos 70 anos era quase um feito heróico, um marco raro. Hoje, olho para trás e percebo como o mundo evoluiu, como a vida mudou, e como eu tive o privilégio de acompanhar cada pedacinho dessa transformação.

Eu sou do tempo dos carros como o Aero-Willys, o Karmann-Ghia e o Simca Tufão. Lembro bem do barulho característico de seus motores e da sensação de sentar em um banco que parecia eterno, feito de materiais duráveis, quase indestrutíveis. Ah, e os primeiros Fuscas! Aqueles carrinhos simpáticos que, com frequência, precisavam de um empurrãozinho para "pegar no tranco". Quem nunca passou por isso? E o afogador? Era quase um ritual matutino nos dias frios. Hoje, os carros são completamente diferentes, com injeção eletrônica, cheios de recursos tecnológicos. Mas, cá entre nós, parecem quase descartáveis, feitos de materiais leves, fáceis de substituir. Perderam aquele "peso" de durabilidade que os antigos tinham, mas em troca, ganharam praticidade.

Também sou do tempo do telefone com fio, aquele que para discar exigia girar um disco com paciência. Era quase um exercício de meditação! Depois, vieram os celulares, que começaram como um verdadeiro tijolo — pesados, grandes, com uma antena enorme. E hoje? Hoje, os celulares são pequenos, leves, cabem na palma da mão e fazem tudo: ligações, fotos, navegação... às vezes até mais do que eu consigo acompanhar! Mas, curiosamente, parecem ter nos afastado uns dos outros. As famílias, que antes se reuniam ao redor da mesa para almoçar e conversar sobre o dia, mal conseguem desgrudar dos celulares. Vejo isso com tristeza, comparando com os tempos em que o diálogo era o centro das refeições e o amor era partilhado em cada palavra.

E as ruas? Ah, como eram diferentes! Nos tempos da minha infância, jogávamos bola na rua, andávamos de carrinho de rolimã, e um carro ou outro passava raramente. Hoje, as ruas são como rios de asfalto, inundadas por uma correnteza de carros. Tanta pressa, tanto movimento, que já não há espaço para essas brincadeiras simples e saudáveis. A cidade que antes era feita de casas a céu aberto, hoje é uma floresta de prédios. É impressionante como tudo cresceu, para cima e para os lados.

Mas, apesar de tantas mudanças — algumas que me trazem nostalgia, outras que me impressionam —, hoje meu coração está repleto de gratidão. A celebração dos meus 71 anos não seria a mesma sem Krishna, minha amiga fiel, que esteve e está comigo em todos os momentos, na alegria e na tristeza, sempre me apoiando, sempre ao meu lado. Ela é aquela presença que me dá força, aquele porto seguro que só os verdadeiros amigos sabem ser.

E como não falar da minha companheira de quatro patas, a Sunshine? Desde que ela tinha pouco mais de um mês, criamos um vínculo tão especial que, hoje, ela é como um raio de sol em minha vida. Seu nome não poderia ser mais adequado. Todos os dias, ela ilumina minha jornada, afastando qualquer sombra que possa querer pairar sobre mim. Não importa o que aconteça, o olhar dela, cheio de amor, me lembra que há sempre algo pelo que sorrir.  

Mas, além dessas presenças tão próximas, há também os que, mesmo de longe, aquecem meu coração. Meu irmão e suas filhas, com quem compartilhei tantos momentos importantes da minha trajetória, ocupam um lugar especial na minha vida. A distância pode nos separar fisicamente, mas jamais diminuirá o sentimento que construímos ao longo dos anos. Somos parte uns dos outros, e sei que, mesmo nas ausências, eles torcem por mim, assim como eu torço por eles.  

E como esquecer os amigos, aquelas almas que cruzaram meu caminho e deixaram marcas profundas? Alguns estão perto, outros tomaram rumos diferentes, mas cada um deles contribuiu para que minha vida fosse mais rica, mais alegre e mais significativa. Foram risadas compartilhadas, conselhos trocados, ombros oferecidos nos momentos difíceis. São essas amizades que me ensinaram que, na caminhada da vida, nunca estamos sozinhos.

Hoje, ao olhar para tudo isso, só consigo sentir gratidão. Gratidão por cada memória vivida, por cada pessoa que cruzou meu caminho e por cada instante que me trouxe até aqui. Deus me abençoou com essas pessoas maravilhosas, e por isso, não há como não sorrir. Aos 71 anos, celebro não apenas minha vida, mas também as vidas que, de uma forma ou de outra, se entrelaçaram com a minha. E por tudo isso, só posso dizer: obrigado. Que venham mais anos, mais histórias e mais motivos para agradecer!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

domingo, 21 de setembro de 2025

José Feldman (A visita da felicidade)

Texto construído tendo por base a trova de Lucília A. T. Decarli (Bandeirantes/PR)
A felicidade é rara
e bem poucos a conhecem…
Os que a viram “cara a cara”,
nunca mais dela se esquecem!
A felicidade, dizem, é uma dama rara. Não é dessas que se encontra todos os dias na praça, nem das que se deixam levar por promessas vazias ou abraços apressados. Ela tem seus próprios caprichos e, ao que tudo indica, gosta de aparecer quando menos se espera — mas nunca por acaso.

Certa vez, ouvi dizer que um homem a viu de perto. Era um sujeito simples, desses que a vida insiste em testar. Trabalhava duro, sonhava pouco, mas guardava um sorriso no canto dos lábios, como quem sabe que, mesmo em dias nublados, há um sol por trás das nuvens. Um dia, enquanto varria o quintal ao som do vento, ali, entre as folhas secas e a poeira da estrada, ela apareceu.

A felicidade chegou sem avisar, como uma brisa que refresca sem pedir licença. Não trazia roupas luxuosas, nem se anunciava com fanfarra. Era apenas uma sensação — um calor que lhe subiu pela espinha ao ouvir o riso de seu filho brincando no quintal, ao sentir o cheiro do café fresco vindo da cozinha, ao perceber que, naquele instante, nada lhe faltava. Ele parou. Olhou ao redor e percebeu: ela estava ali.

Mas a felicidade, como sabemos, não é dessas que ficam para sempre. Ela tem o hábito de visitar e partir, deixando atrás de si um rastro de saudade. O homem sabia disso; não tentou prendê-la, não fez perguntas, nem exigiu explicações. Apenas a contemplou, “cara a cara”, como quem sabe que momentos assim nos transformam. Quando ela se foi, deixou consigo algo precioso: a memória do instante.

E é isso que os que a viram carregam consigo. A felicidade, quando surge, não precisa durar uma eternidade para ser inesquecível. Basta um momento, uma fagulha, e ela finca raízes no coração de quem a viveu. Porque, no fundo, não é ela que é rara — rara é a nossa capacidade de reconhecê-la.

Então, se por acaso a felicidade lhe fizer uma visita, não a obrigue a ficar. Apenas a viva. E quando ela for embora, não a lamente. Afinal, os que a viram, mesmo que por um breve instante, nunca mais dela se esquecem.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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