sexta-feira, 29 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 26


Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) II


IMPRECAÇÃO

Para que te amava eu? Corpo d'espuma
Cruel enlevo de lábios cetinosos
Onde bailam desejos luminosos
Estrela, que de luz o céu perfuma.

Para que te amava eu? Que densa bruma
Me ofusca de saudade em tons nervosos
Desfolhando com gritos lacrimosos
As pétalas d'amor uma por uma?

Para que te amava eu? oh! praza aos céus
Que em quanto o sol girar pelo universo
Naufragues da paixão nos escarcéus.

E porque sofro na tristeza imerso,
Pálido goivo ao pé dos mausoléus,
Oxalá que o amor te seja adverso!

O TERREMOTO

Com fragor açoitando a vaga escura,
O temporal irado, espumarento
Cavalga um pérfido corcel - o vento -
Que solta gargalhadas de bravura.

Treme a terra, e com hórrida figura,
Como Atlante, sacode o turvo argento;
Nos gonzos oscilando o pavimento,
Dançam torres no assomo da loucura.

Vai o fogo alastrando o áureo manto,
As ruínas trucidam fugitivos,
Que sangrentos se abraçam convulsivos!

– O que fazer? – inquire o rei em pranto,
O ministro lhe diz com nobre espanto:
– “Sepultar mortos, e cuidar dos vivos.”

ENTRE PALMEIRAS

Faíscam os jaezes dos Cavalos,
Vibra o som dos clarins pela atmosfera;
No dorso de elefantes reverbera
A seda e prata em crebros intervalos.

Rodeado de inúmeros vassalos
Intrépido rajá de cor austera
Busca o tigre e leão, onça e pantera
Cruzando as selvas, e galgando os vales.

No cerrado paul ondula a brenha
E um leão de medonha, hirsuta juba
Em furioso valor se desentranha.

A raiva dos lebréus o estimula,
Os dardos o trespassam, mas derruba
O radjah, que nas vascas estrangula.

NOSTALGIA

Nos estuários alpestres do Brasil,
Onde o sol inflamado resplandece,
A cabilda dos negros desfalece
Sob o látego torpe e mercantil.

Nas areias matiza-se febril
O ouro virgem, e no 'spaço permanece
O diamante, que arisco se aborrece
Entre o cascalho estúpido, imbecil.

O escravo, quando avista um diamante
De dezessete "carates" quebra forro
As algemas sorrindo triunfante.

Que me valeu porém o descobrir-te
Diamante sem rival? – Suspiro e morro
A teus pés almejando possuir-te.

BOLETIM MILITAR

Vai rir-se desdenhosa a sombra de "Pombal"!
Era doida a rainha. O príncipe regente
Ostentando gentil a bochecha eloquente
Tinha bom apetite e ventre clerical,

Mas logo que Junot açaima Portugal
Embarca a toda a pressa e deixa a nossa gente,
Panda vela o conduz ao Brasil florescente,
E rápido imagina um plano teatral.

Veloz como no monte a trepida gazela,
É certo resguardava a insipida pessoa
Adiposa e feliz para cingir a c'roa,

E da nação em prol tão lorpa se revela,
Que nomeia coronel do exercito á cautela
O Santo Taumaturgo Antônio de Lisboa.

TABORDA

Taborda, altivo herói da gargalhada,
Que dominas no palco com bravura,
Quando vier sobre ti a morte escura,
Há de sentir-se humilde, deslumbrada.

E rindo a vez primeira entusiasmada,
Desfranzindo a medonha catadura,
Ao ver-te e ouvir-te em alegria pura,
Despedaça a fera clava ensanguentada.

Como subjugas cauto a morte ingrata,
Vences também risonho a dúctil alma
D'esta multidão gélida, pacata.

E Satan abismado diz em calma:
– Sim?!... Mais almas do que eu ele arrebata?
Já Diabo não sou!... Leva-me a palma. 

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

quinta-feira, 28 de junho de 2018

UBT Curitiba homenageia Vânia Ennes

Vânia Ennes (ao lado) homenageada pela UBT - Seção de Curitiba. Idealizada e realizada por Maria da Graça Stinglin de Araújo, ex-presidente da UBT - Seção de Curitiba, ocorrido na Biblioteca Pública do Paraná, em abril de 2018.

Veja o vídeo no link abaixo:


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) I


QUANDO NECESSÁRIO

Plácido
cordato
sorridente

essa a face

ágil
vigoroso
rude

a outra face

na dupla face
o homem de sempre

na quietude
dos movimentos.

GIBIS

Peixes conversam
em bolhas
sob a água

ideia original
das revistas
em quadrinhos.

MALES

Não faço o mal
ignoro proibições

sociológicas

desfaço o mal
feito em proibições

políticas

esqueço o mal
passo ao largo

caótico

abdico de todo o mal
                    anterior.

LEMBRANÇAS

Palavra
lembrança

música
lembrança

gesto
lembrança

olhar
lembrança

sobre a paisagem vista
emergem lembranças
das passagens anteriores

viajo.

GUARNECER

Guarnece o silêncio
nenhuma palavra será dita

olhos fechados
nenhuma claridade será avistada

absorto
nenhum rumor será ouvido

mãos entrelaçadas
nenhum movimento será feito

guarnece o silêncio
em que se isola
do mundo exterior

sua interioridade
basta.

MISTÉRIOS

                     O mistério se desfaz
quando olhamos da maneira certa
não temendo o que iremos ver
nem sofrendo pelo o que a vista alcança

            não há mistério
e os tempos continuam
como sempre foram

mera afirmação da natureza
          em que tudo se aplica
e se explica no tempo exato.

VIR

Veio no encanto
em mágica carruagem
consigo o perfume
e a alegria das princesas

veio na noite
em alteradas cores
consigo a palavra
e o sorriso das princesas

veio fosse fada
além do horizonte
consigo a magia
e o mistério dos luares

veio sem nada querer
displicente em sua elegância
consigo a música
e as letras de eterno amor.

DA TERRA

Que é a terra senão nutrientes
microscópicos e macroscópicos
seres que se repetem na vida
e a multiplicam?

Que é a terra senão
o que nos sustenta
e de todas as fomes
nos mantém vivos?

Que é a terra senão
a simbiose que se eterniza
na renovação da vida
em outras formas
e a que nos cabe
no final do tempo?

AMANHECER

Amanhece
em fímbrias cores
         cinza azuladas

morros fechados
em suspensas
partículas

a luminosidade aumenta
a percepção da matéria
              que nos rodeia

aclara ideias
desperta sentimentos

                 movimenta.

Fonte:

Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) IV


A existência é definida:
não por azar, mas por sorte,
quanto mais “cheios” da vida,
mais perto estamos da morte.

A gente jamais esquece
de um bom momento os embalos,
pois se a memória fenece,
fica a saudade a lembrá-los.

Agitando o seu penacho,
da leve brisa aos carinhos,
o coqueiro solta o cacho,
num dilúvio de frutinhos.

A voz na garganta presa,
em meu mutismo sem fim,
eu cedo espaço à tristeza:
ela que fale por mim!

Chego, temendo o vazio,
mas pressinto, na ansiedade,
invadir meu quarto frio,
a presença da saudade.

“Conheço o mar, finalmente”,
diz a menina, a sonhar.
E o velho marujo doente:
“Eu também conheço o mar”.

Da emoção que se desdobra
deste amor posto à franquia,
meu coração não te cobra
nem juros, nem garantia.

Da vida, nessa altitude,
não chore os erros que fez!
Se voltasse à juventude,
faria tudo outra vez.

Ergue o mar a crista altiva,
e eu, transtornada e sem guia,
sou como um barco à deriva,
arriscando a travessia.

Estala o fogo e consome
as ervas da terra chã,
lavrando a seara da fome
num mundo sem amanhã.

Indiferente ao cansaço,
rolo às ondas do meu mar,
como no oceano do espaço,
rola a Terra, sem cessar.

Já não guardo nem resquício
daquela mágoa sem pausa.
Só lamento o desperdício
de tanto choro sem causa.

No museu de nossas vidas,
somos fantasmas errantes,
duas sombras, encolhidas,
a chorar sonhos distantes.

O aroma da flor singela,
a energia do condor,
nessa palavra tão bela:
“Mãe”, sinônimo de amor.

O sol ergue, reverente,
o véu cinza da neblina,
e o morro, altivo, emergente,
é o verde altar da campina.

Os raros troncos poupados
à ruína que o fogo fez,
são hirtos vultos sombreados
do negro véu da viuvez.

Quanto sonho e quanta mágoa
eu fiz rolar no meu rio,
que hoje, apático deságua
de mágoa e sonhos vazio!

Teu retrato na parede,
é o santinho a me guardar;
e eu engancho a minha rede,
bem debaixo desse altar.

Tombam as folhas, sem pressa,
rendando a manhã chuvosa,
como a tristeza inconfessa
que faz fingir-me ditosa.

Triste, a lua apaixonada,
se esconde no céu moreno,
e a branca face marcada
chora gotas de sereno.

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da tarde: trovas.
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poemas Escolhidos)


FLAUTA MÁGICA

No alto de minha Figueira
Pousa sempre um tico-tico
Que canta alegre em chorrilho
Quando coloco o CD
Do Altamiro Carrilho.

E o tico-tico de lá
Faz com ele o estribilho:
Canta, canta sem parar,
Ouvindo a flauta tocar
Do grande mestre Carrilho.

E eu fico extasiado
Em meio a tanta beleza,
É um momento encantado:
De um lado a natureza
No trinar do passarinho;
Do outro lado, com a flauta,
O mestre que tanto admiro
Faz magia com o chorinho:
Tocando seu Tico - Tico
O incomparável Altamiro.

A ROSA

Da rosa quero a essência,
O perfume que inebria,
 A pétala sedosa e macia,
A mais pura inocência.

Quero ser também o orvalho,
Que banha seu corpo vadio.
Nas noites de intenso frio
Quero ser seu agasalho!

Quero ser o colibri
A sugar seu doce mel
Ser o seu teto, seu céu,
Seu jardim, seu bem-te-vi.

Quero ser aquele espinho
Que a sua haste protege
Dos insanos e hereges
Que cruzam o seu caminho.

Quero ser o seu pretexto,
Seus enganos e desculpas
Quero ser todas as culpas.
Ser prosa do seu contexto.

ALAMBIQUE

Do bagaço o fogo faço
Para tocar a caldeira
Que esquenta que nem chaleira
Soltando fumo no espaço

Coloco a cana no engenho,
Transformando-a em bagaço.
Do caldo faço o melaço
Que depois vira cachaça...

E assim sai a purinha
Que passarinho não bebe
Mas que desce redondinha
E só toma quem percebe
O segredo da branquinha... 

E o engenho vai tocando
Fumaça na chaminé...
Cachaça é coisa nossa,
Pois agora virou bossa,
É produto brasileiro
Que agrada o mundo inteiro.
Uísque é pra Zé Mané…

CAMPANÁRIO
( Poema dedicado a Ipuca – São Fidélis / RJ – onde vivi minha infância)

Do alto do campanário
da minha pequena aldeia
avisto um lindo cenário
onde a saudade campeia.

Nele os seus campos floridos,
com as cores mais variadas,
vão salpicando as estradas
com seus toques coloridos.

No  peito tenho um vazio
remoendo o meu passado.
Manhã seca de estio,
no rosto os olhos molhados.

E os sinos badalando
anunciam minha dor,
cada toque ressoando,
no meu presente sem cor…

DOR DA SOLIDÃO

Não existe dor maior
Que a dor da solidão...
É dor cruel e perversa
Que não aceita conversa
E nem mesmo explicação!
É dor do só, do sozinho,
É carência de carinho,
Seu sintoma é a paixão.

E essa dor tão doída
Que tanto maltrata a gente
Chega assim tão de repente
Sem sequer bater na porta.
Para ela pouco importa
Se está matando o doente,
Se a "Inês é quase morta".

É uma dor que aniquila,
Que castiga, que maltrata,
É mais forte que a tequila
Mais ardente que a cachaça.
É pior que a dor que tomba,
Mais cruel que a dor que mata.

POEMINHA À PRIMAVERA I

A vida em traje a rigor
Está pronta para a festa...
Durou um ano de espera
O mundo multicolor
Que nos trouxe a PRIMAVERA!

Que essa estação tão linda
Desperte também o amor,
Fazendo brotar na gente
Um mundo cheio de luz,
O desejo mais ardente, 
O querer mais envolvente
Que nos encanta e seduz.

REMINISCÊNCIAS

Trago do tempo passado
O meu mais belo presente;
Dele sou enamorado,
Tive um passado contente.

Minha infância colorida,
Bodoques, atiradeiras
E banhos nas corredeiras
Do Paraíba do Sul.
O sol ardente brilhando
Num céu pintado de azul
Refletia no espelho
D’ água pura e cristalina.
Ah... que saudade que tenho
Daquela linda menina!

Na festa de São João
Quermesse e ladainha,
O namoro com a mocinha
Acelera o coração...
Fogueira, batata doce,
Milho cozido, quentão,
O céu todinho estrelado,
Gente soltando balão.

E esse tempo lembrado
Sei que nunca terá fim,
Eis que pela vida afora
Será para sempre assim...
Pois meu passado ficou
Guardado dentro de mim.

Malba Tahan (Duas Tendas do Deserto)

Perdido de meus companheiros — contava-me um árabe em Medina — caminhava um dia, sem rumo, pelo deserto, quando avistei uma grande tenda, junto da qual estava uma jovem muçulmana com o rosto velado por espesso véu.

Mal pousara em mim seus olhos negros e vivos, exclamou:

— A paz seja contigo, ó irmão dos árabes! Que procuras pelos caminhos de Allah?

Contei-lhe, em poucas palavras o que me acontecera e a razão por que me encontrava a vagar desnorteado pelo deserto, concluindo a minha narrativa com os versos famosos de Kháyyám:

— E neste infortúnio, ó formosa filha de Eva! A vagar, sem destino, tenho duas companheiras: a Fome e a Sede!

— Se assim é — volveu, bondosa, a rapariga — serás meu hóspede nesta tenda!

 E pediu-me que descesse do cavalo e descansasse um pouco, enquanto ia preparar-me um saboroso manjar.

 Tão meiga era a voz daquela boa criatura, tão amável a sua maneira de falar, que não hesitei em aceitar o convite e apeei do cavalo junto à tenda. Momentos depois surgiu-me a jovem, trazendo, num prato finíssimo, um pão delicioso, feito de trigo e de mel.

Graças à bondade da minha afável hospedeira, pude saciar a fome que já me atormentava, e beber, com grande satisfação, alguns goles de água pura e fresca.

Não me esqueci de agradecer ao Altíssimo a mercê que me proporcionara, conduzindo-me os passos até àquela sombra acolhedora; e, fora da tenda junto a um velho coqueiro, sob os olhares da jovem que não me desfitava, murmurei:

— Louvado seja Allah que fez nascer a bondade e o carinho no coração das mulheres!

E era minha intenção descansar mais algum tempo naquele aprazível lugar quando surgiu de repente, vindo não sei de onde, um homem de má catadura, com modos abrutalhados de salteador. Era o marido dá jovem e o dono da tenda.

Ao notar a minha presença, interpelou logo a esposa:

— Quem é esse homem? Que faz aqui?

— É um hóspede — replicou a rapariga.

— Não quero saber de hóspede! — replicou, com azedume. — Enxota-o já daqui, antes que eu perca a paciência!

Ao ouvir tal ameaça, montei a cavalo e fugi, a galope, daquele exaltado muçulmano!

Depois de caminhar muitas horas sem parar, cheguei, finalmente, perto de outra tenda que parecia maior e mais rica do que a primeira.

Uma mulher que se detinha junto à porta perguntou-me com visível rispidez?

— Quem és? Que desejas?

Contei-lhe que era um viajante transviado pelo deserto e pedi-lhe que me desse um pouco d’água, algumas tâmaras e uma côdea de pão.

— Em minha tenda não há lugar para hóspedes — atalhou logo. — Detesto chacais que nos importunam implorando água e pão!

— Uma mulher que se detinha junto à porta, perguntou-me, com visível rispidez: — Quem és? Que desejas?

Surpreendido por tão grosseiras e impiedosas palavras (Allah se compadeça daquela mulher), já ia afastar-me, quando surgiu por detrás da tenda um homem, de fisionomia bondosa, ricamente trajado. Era o marido daquela má criatura e o dono da tenda.

O cheique, aproximando-se de mim, estendeu-me amavelmente a mão:

— Bem-vindo sejas, ó desafortunado amigo! Serás meu hóspede e aqui terás pão, água e boa sombra.

E fez-me apear do cavalo, convidando-me a entrar em sua tenda, e foi ele próprio quem me trouxe saborosas frutas e doces secos.

Achei graça à maneira como essa segunda acolhida contrastava com a primeira, inclusive a alternação de sentimentos dos dois casais, e pus-me a rir gostosamente.

— De que te ris? — perguntou ele.

Contei-lhe, sem nada ocultar, o que me havia acontecido na primeira tenda: a mulher me recebera bem, ao passo que o marido só tivera para mim palavras maldosas, cheias de rancor. E que o contrário, exatamente, sucedia então: a mulher me recebera mal e o marido fora para mim de uma bondade cativante e sem limites!

— Não lhe vejo motivo para admiração ou riso — respondeu-lhe o meu bom hospedeiro. — Até é bem natural que assim haja sucedido!

E como eu o fitasse muito admirado, ele acrescentou:

— Aquela mulher que te acolheu, na primeira tenda, é minha irmã, ao passo que o seu marido é irmão de minha mulher!

E concluiu, em voz baixa:

— Quantos lares há, pelo mundo, meu amigo, que são exatamente como as duas tendas que encontraste no deserto!

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida. 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Caldeirão Poético n. 11


Daqui Deste Âmbito Estreito

Daqui, deste âmbito estreito,
Cheio de risos e galas,
Daqui, onde alegres falas
Soam na alegre amplidão,
Volvei os olhos, volvei-os
A regiões mais sombrias,
Vereis cruéis agonias,
Terror da humana razão.

Trêmulos braços alçando,
Entre os da morte e os da vida,
Solta a voz esmorecida,
Sem pão, sem água, sem luz,
Um povo de irmãos, um povo
Desta terra brasileira,
Filhos da mesma bandeira,
Remidos na mesma cruz.

A terra lhes foi avara,
A terra a tantos fecunda;
Veio a miséria profunda,
A fome, o verme voraz.
A fome? Sabeis acaso
O que é a fome, esse abutre
Que em nossas carnes se nutre
E a fria morte nos traz?

Ao céu, com trêmulos lábios,
Em seus tormentos atrozes
Ergueram súplices vozes,
Gritos de dor e aflição;

Depois as mãos estendendo,
Naquela triste orfandade,
Vêm implorar caridade,
Mais que à bolsa, ao coração.

O coração sois vós todos,
Vós que as súplicas ouvistes;
Vós que às misérias tão tristes
Lançais tão espesso véu.
Choverão bênçãos divinas
Aos vencedores da luta:
De cada lágrima enxuta
Nasce uma graça do céu.


Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, 
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força, 
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança, 
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Súplica

Dá-me, Senhor, a benção que resume
a certeza de que, crescendo aos poucos,
hei de chegar a ver o excelso lume
- privilégio dos bons, quiçá bem poucos!

Dá-me a graça de olhar, sem ter ciúme,
namorados aos pares, de amor loucos,
da saudade a esquecer o frio gume
e o coração no peito a dar-me socos!

Dá-me ver rosas, mesmo em vaso alheio,
a enfeitar este mundo, às vezes feio
- feio porque o egoísmo assim o quis!

Dá-me um punhado tenro de esperanças…
Dá-me o riso espontâneo das crianças…
- Mais nada eu peço, para ser feliz!


A Duas Flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!


A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.


O Louco 

Deu a louca no louco,
e ele se pôs no quintal:
imagina que é outro.

A cara do louco tem cara
de todo mundo que passa.

Para o louco, tudo tem graça.

A graça do louco tem ares
de todo louco que empaca.

Para o louco, nunca tem maca.
Então, como se fosse costume,
ele vira um canário, que vira 
uma flor, que vira uma nuvem,
e o dia, louco, passa e desvira
o pobre louco em vaga-lume.

Deu a louca no louco,
e ele se pôs no quintal:
imagina que é louco.