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sábado, 16 de setembro de 2023
José Feldman (O amanhã nunca morre)
Baitazar Danado Tribofe de Souza estava decidido. Diante do que vinha ocorrendo ultimamente, esta seria a única saída.
Baitazar beirava os 70 anos de idade, era jornalista e escritor, mas ultimamente nada ia bem. Muitas cobranças no jornal, gente com o nariz virado, outros com inveja, vinha provocando atritos por ninharias. Como escritor, parecia que a inspiração fugira dele como o diabo foge da cruz, e a musa... ah! A tal da musa, escafedeu-se nas brumas, e não foi de Avalon, não. Foi lá pros lados de Tocantins mesmo. A família abandonara-o, as filhas nem queriam papo com ele. Quando estava por cima, elas ficavam paparicando-o como abelha em volta do mel, agora que esta má fase vinha-o assolando, olhavam-no como se estivesse com uma moléstia contagiosa, e fugiam espavoridas. "Vade retro, Satanás".
Baitazar dizia que era só uma má fase, um azar momentâneo, mas parecia que era mesmo um baita azar danado. A vida perdera o sentido, seus olhos se perdiam nos milhares de livros que atolavam as estantes de sua casa, sem vontade alguma de ler algum. Oh, desânimo!
Decidira, após muita reflexão, que o melhor para si e para todos é que tirasse a própria vida.
Fim da tarde, encaminhou-se para a ponte mais próxima, resoluto. Subiu na murada da ponte, e olhou para o horizonte... somente via o vazio, o vazio de sua existência. Seria apenas mais um número na estatística de suicídios no país.
Alguns transeuntes estacaram ao ver a cena, e ficaram indecisos sobre qual atitude tomar. Até parentes e amigos (?) estavam próximos.
-"Não faz isso, meu chapa. A vida é tão boa. Deus fecha uma porta, mas abre uma janela. Sai daí!"
- "Pula mesmo, seu desgraçado. Nem a pensão você me paga mais. Vá lá, o Capiroto já tá te esperando."
- "Não, meu amigo. Fica firme. Não dê ouvidos a esta mulher desmiolada. Volte aqui para conversarmos". E o sujeito pensando com seus botões: "Volta mesmo, vou te encher de tanta bolacha, que nem com foto vão conseguir te reconstituir". E continuava cinicamente animando-o: - "A vida é bela. Vamos tomar uma loirinha estupidamente gelada".
Baitazar ficou no pula, não pula, uns o xingavam, outros o incentivavam a pular, e outros o animavam para continuar a vida adiante. Num canto, três mulheres discutiam entre si.
- "Tomara que ele pule, assim fico com o carro dele. Ah... a Maserati é minha!!!!
- "Tua uma ova! Eu também sou filha dele. Vamos dividir.
E a outra, mais burra que um jumento: - "Vamos dividir. Pegamos uma serra e vemos quem fica com o motor? Com os bancos? e..."
- "Tu tá chapada? Andou cheirando cola?"
Enquanto elas se estapeavam, uma garota de uns 15 anos, que nem estava aí para o que acontecia, ou nem se tocara, passa segurando uma pizza.
Ah, aquele cheiro de pizza quentinha saída do forno, o queijo derretendo, e Baitazar sentiu aquilo entrar em suas narinas de sopetão. Convenceu ela a lhe dar um pedaço, seria sua última refeição antes de dar término à sua vida.
- "Qual é, cara? Vai pular ou não? Pô. A novela começa daqui a pouco, e não posso perder o último capítulo." - uma mulher gritava, desesperada.
- "Pula! Pula!"
E enchia de gente, veio a polícia, os bombeiros, a televisão, só faltou a guarda nacional. O tumulto estava formado. Muitos achavam que ele estava dando discurso, e o apoiavam sem nem mesmo saber o que acontecia.
- "É isso mesmo! Você tem que protestar mesmo. Esta sem-vergonhice tem que acabar."
Tinha até um sujeito com uma viola que começou a cantar aquelas famosas dores de corno. Um vendedor ambulante vendia elixires milagrosos.
Enfim… a bagunça estava generalizada.
Baitazar chamou novamente a garota da pizza.
- "De onde é esta pizza? Menina, que delícia!."
- "Pula. Pula." "Discurso!!!" "Fica." "Vai." "Já ganhou!" "Engravidou a menina, tem que assumir!"
- "Quer saber? Que pizza! Deu uma fome danada. Eu vou é comer mais. Amanhã eu venho e pulo."
Desceu da amurada da ponte, e foi com a garota para a pizzaria. Deixou meio mundo com cara de tacho... outra vez.
Fonte:
Texto escrito por mim. Agora vou comer aquela pizza, com o Baitazar! Deu uma fome!!!
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Meus manuscritos,
Panaceia de Textos
A. A. de Assis (Dançar abraçado)
Se você tem mais de 70 anos, decerto se lembra do tempo em que os casais dançavam abraçados – os mais íntimos com os rostos colados. O baile começava às 10 da noite e ia até por volta das 3 da madrugada. As moças com vestidos rodados, os rapazes de terno e gravata. Valsa, bolero, tango, samba-canção, rumba, swing, blues.
De chegada, um cuba-libre ou gim-tônica. Para os que tinham “par constante” não havia problema. Já os avulsos tinham que criar coragem e ir à mesa de uma das meninas a fim de “tirá-la” para dançar. Se ela “dava tábua”, era aquele vexame, e se, de imediato, aceitava dançar com outro, podia dar briga feia.
Lá pelas tantas os casais já estavam bem aquecidos e alguns chegavam a ousar beijos na boca, desafiando as geralmente rígidas normas do clube. Nesse momento entrava em cena o “fiscal de salão”, que se aproximava dos pombinhos e lhes recomendava tomar “bons modos” ou interromper a dança. Em alguns casos os atrevidos eram convidados a se retirar da festa.
Nas duas primeiras décadas de Maringá, os casamentos celebrados na cidade eram, em grande número, resultantes de algum namoro iniciado em um baile ou matinê no Aeroclube, no Grêmio dos Comerciários ou no salão amarelo do Grande Hotel.
A animação ficava por conta de uma de nossas orquestras pioneiras – a do Marchini, a do Penha, a do Britinho. Em ocasiões especiais vinham orquestras de fora, como a do Nélson de Tupã, a do Ruy Rey, a Marajoara de Severino Araújo.
Havia também alguns “bailes de gala”, que exigiam das mulheres vestidos longos e dos homens terno branco ou azul-marinho com gravata-borboleta – o Baile das Debutantes, o Baile da Primavera, o Baile do Rubi. Em junho o traje mudava para a gaiatice, com as alvoroçadas festanças ditas à moda caipira.
Mas sempre com aquele jeito romântico de dançar – os pares abraçados, rostos colados, confissões de amor cochichadas ao pé do ouvido.
Até se dar que de repente, meados dos anos 1950, houve aquela cambalhota completa nos usos e costumes, com forte repercussão especialmente no processo de ascensão da mulher, a começar pela intensificação da busca de igualização profissional, cultural e política dos gêneros. Dentro desse clima de turbulência geral entrou na moda o “rock and roll”, pilotado pelo fenômeno Elvis Presley.
Mas o que foi que teve a ver uma coisa com outra? Teve que ao rock se credita um dos indicativos mais marcantes da emancipação feminina. No baile antigo o homem enlaçava o corpo da mulher e guiava os movimentos dela. Com o novo ritmo, os casais se desgrudaram: ele e ela passaram a dançar soltos, um diante do outro, ninguém conduzindo ninguém.
De qualquer forma, ficou uma pontinha de saudade do “old time dancing”. Converse com seus pais e avós para saber o que eles pensam disso.
Os mais jovens talvez digam que a tendência hoje é o meio termo: um pouco cada-um-pra-si, um pouco agarradinhos. Aí é legal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo em 29.06.2023)
Fonte: Portal do Rigon. https://angelorigon.com.br/2023/06/29/dancar-abracado/
Eduardo Affonso (Reescrevendo Lobato & cia)
Tendo caído em domínio público, o livro “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, será reeditado.
Sem Pedrinho.
O garoto de estilingue no bolso foi limado com o argumento de que seria um peso morto na trama.
O Sítio do Pica-Pau amarelo, que já era um matriarcado, assumiu-se, nesta reedição do primeiro clássico da nossa literatura infantil, como Clube da Luluzinha.
Ali agora reinam Narizinho, Emília, Dona Benta e Tia Nastácia. O resto é figuração.
Haver um menino e uma menina num livro infantil permite um diálogo entre os universos masculino e feminino. Um contraponto, assim como há entre a despachada (e mandona) Emília e o conservador (e obediente) Visconde de Sabugosa.
Monteiro Lobato era um visionário – mas não completamente livre da mentalidade da sua época. O menino brinca de caçar passarinho e tem um boneco de espiga de milho; a menina vive num mundo de fantasia, e brinca com uma boneca de pano.
No Sítio não há lugar para beijo gay (só pós alucinógenos e casamento entre espécies…), mas vozes femininas são privilegiadas: Narizinho é muito mais criativa que Pedrinho; Emília, mais divertida que o Visconde; Tio Barnabé nunca foi páreo para Tia Nastácia; de Dona Benta, então, nem se fala.
Muitos meninos talvez não se interessem por ler o novo “Narizinho”, o que será uma pena.
Mas há outro argumento de peso para editar o texto de Monteiro Lobato: as expressões racistas.
“Beiço” quer dizer apenas “lábio”, mas tem conotação pejorativa. Talvez Emília faça beicinho ao ser contrariada ou D. Benta lamba os beiços após uma comilança, mas só Tia Nastácia, por ser preta, é referida como beiçuda.
Daí “A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira” ter sido reescrito como “Tia Nastácia deu uma risada gostosa.”
O beiço não fez falta.
Antes não incomodava.
Hoje incomoda.
Obras literárias (ainda mais as que caem em domínio público) podem ser livremente adaptadas. Roteiristas e diretores fazem isso o tempo todo ao levá-las para o cinema, o teatro, a televisão.
O texto de hoje (27.09.2019), n’O Globo, é um pequeno delírio sobre que outras mudanças poderiam ser feitas na obra de Monteiro Lobato – e de outros autores de livros infantis.
Um exercício de futurologia, só isso. Lembrando que o futuro não é lá longe: o momento em que você lê este parágrafo já é o futuro de quanto leu o parágrafo que abre o texto.
“A vida vem em ondas, como o mar,”. A onda agora é esta. Qual será a próxima, neste “indo e vindo infinito”?
Fonte: Blog do autor: https://tianeysa.wordpress.com/2019/09/27/reescrevendo-lobato-cia/
sexta-feira, 15 de setembro de 2023
Newton Sampaio (Desvario)
(contos do sertão paranaense)
Na cidadezinha humilde, aquele acontecimento não podia mesmo despertar interesse. Um casamento de pobres, sem convites nem festanças... quem com ele se incomodaria? Os noivos, os padrinhos, as duas famílias... e só. E quando, na tarde esplêndida, o pequeno cortejo atravessou a rua em direção à igreja, notou-se, numa e noutra janela, um arqueamento de bustos. E nas cabeças que apareciam, espiavam olhos de curiosidade. E nos rostos que apontavam, lábios desdenhosos moviam-se, atirando “que parzinho enjoado...”. “Olha o desajeito dele”. “Ché!” Como a esmo exclamações estúpidas: “Esta crise...”
Durvalina Nunes exultava. Sua vida adquiria no momento as mais garridas colorações de felicidade. De família pobre, tendo de trabalhar fora para ajudar os pais há algum tempo vinha já depositando todos os anseios de moça no namoro com o Zeca do Garcia, um rapagão desempenado que dirigia a bodega no fim da rua grande. E, à tarde, de volta do serviço, era sempre um gosto para ela vir pôr ordem na casa, e, em fugidelas medrosas, acolher da janela os olhares desejosos do Zeca. Do namoro ao noivado foi um pulo. E deste ao casamento, nada mais fácil. Naquele dia, portanto, Durvalina, em sua inexperiência, e ingenuidade, e vontade de abandonar a vida de doméstica para cuidar de seu próprio lar, sentiu dentro do peito um estremeção de gozo. E do coração lhe veio uma vontade de ser boa, uma vontade de ser honesta, para consagrar todos os minutos de sua vida à vida dos filhos que viesse a ter...
E, meio zonza, compreendeu à noitinha que se tinha realizado tudo quanto concebera em dias e dias de espera e desejos. E que ela, daquele momento em diante, passava a ser a Durvalina do Zeca, e teria uma casa para cuidar, cheia de venturas incomparáveis.
As semanas, porém, se foram escoando. E as ilusões foram fenecendo. E os primeiros acabrunhamentos vieram galopando na vanguarda de outros acabrunhamentos. Durvalina já desapegara dos lábios aquele sorriso cantante do noivado, e, nos olhos não mais pairava aquela expressão satisfeita. Notou sem dificuldades a progressiva indiferença do Zeca. Para longe tinham ido as promessas de um carinho inextinguível. Para muito longe as esperanças de uma vida conjugal pacífica. Foi então que em seu destino surgiu o consolo da primeira filha. Era linda, de olhos muito verdes. E em sua visão de mãe, Durvalina não podia imaginar criança mais graciosa.
Nela resumiu, portanto, todas as forças de que se julgava capaz para afrontar a vida.
E os dias foram passando... E a vida continuando...
A menina crescia robusta, preludiadas as belezas da moçoila futura pela natureza dadivosa. Mas o Zeca, tornado bêbado incorrigível, envenenava o ambiente do lar com seus maus tratos e boemia interminável, até que, por fim, envolvido numa rixa de canalhas, amanheceu certa vez estendido à porta de uma bodega, com as tripas à mostra. Durvalina aparou o golpe do destino com estoicismo. E chocada pelo imprevisto, pranteou o Zeca, que, afinal de contas, fora sempre seu marido, o eleito de seu coração, e recebera dele, apesar de tudo, requintes de carinhos e amor.
Por esse tempo, Duvalina trazia no ventre sinais de adiantada gestação. E ansiosamente, projetando um mundo de dedicações porvindouras, passou a aguardar o advento da nova criança, que por certo seria linda como a primeira.
No entanto, em meio da floração vigorosa de um setembro invulgar, após aceitar a caridade de espíritos bondosos, por se encontrar sem recursos, teve uma desilusão tremenda. A criança, que ela sempre aguardara linda, lhe saíra disforme, com as duas pernas anquilosas e a metade do rosto hipertrofiada em monstruoso aleijão. Chamou Ayrton ao filho. E procurando, com o infinito amor de mãe, amenizar a criatura teratológica que em suas entranhas concebera, se pôs a procurar colocação. Oferecia-se como doméstica, a profissão de quando mocinha. Mas as portas se fecharam sem piedade. Quem haveria de aceitar em casa uma mulher naquelas condições? Mudou de cidade.
E, em extrema penúria, recorreu ao recurso também extremo. Fez-se mendiga. Suplicou, angustiada, o pão e o agasalho para as duas crianças que agora, mais de que nunca, a prendiam à vida como aflitivo cordão umbilical. E as duas crianças, monopolizando a grandeza de seu amor inteiro, iam padecendo, todavia, na inocência dos destinos que despertam necessidades sem conta.
Os dias se sucediam sobre os dias como as águas do Iguaçu nas sinuosidades do leito. Durvalina esgotara já todas as reservas do organismo. Músculos gastos, era um trambolho que rolava de casa em casa. E ela mais os filhos eram os rebotalhos últimos de uma grande miséria diuturnamente arrastada nas ruas.
Um dia, Durvalina sentiu um estrelejamento no cérebro. Achegou bem ao peito os frutos de seu imenso amor, os quais ela não queria viessem a padecer de futuro os mesmo dissabores. E julgou compreender então porque não encontrava serviço.
Saiu da cidade. Deixou a filha num lado da estrada, recomendando-lhe que a esperasse. A menina estendeu os olhos esplendidamente verdes na terra ressequida que se estirava em frente. E a mãe marchou, apressada, com Ayrton nos braços.
Lá longe espraiavam as ondas azuladas do Iguaçu caudaloso. Durvalina espiou, tendo nos lábios um esgar idiota, o rio misterioso, o rio medonho, cheio de fundões traiçoeiros, o Iguaçu lendário, o Iguaçu profundo, silencioso incompreensível. Uma locomotiva barulhenta, arrastando o cortejo bamboleante dos carros, passou apitando perto de Durvalina. Com o comboio parece que fugiu de seu pensamento a monstruosidade que pudesse haver um crime.
Achegou-se à margem. Lançou em decorrer um olhar temeroso. Num último assomo de consciência beijou freneticamente o filho no aleijão da face. E ali mesmo mergulhou-o na água, cravando-lhe na garganta os dedos trementes. Depois, correu desvairada. Mas estacou logo. Volveu ao rio um olhar congestionado. E percebeu, à flor das águas, a cara hipertrófica do Ayrton, rodando a pouco e pouco, e submergindo lentamente para só deixar lugar aos bracinhos erguidos, que pareciam acenar ainda uma ameaça ou um perdão.
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público
Na cidadezinha humilde, aquele acontecimento não podia mesmo despertar interesse. Um casamento de pobres, sem convites nem festanças... quem com ele se incomodaria? Os noivos, os padrinhos, as duas famílias... e só. E quando, na tarde esplêndida, o pequeno cortejo atravessou a rua em direção à igreja, notou-se, numa e noutra janela, um arqueamento de bustos. E nas cabeças que apareciam, espiavam olhos de curiosidade. E nos rostos que apontavam, lábios desdenhosos moviam-se, atirando “que parzinho enjoado...”. “Olha o desajeito dele”. “Ché!” Como a esmo exclamações estúpidas: “Esta crise...”
Durvalina Nunes exultava. Sua vida adquiria no momento as mais garridas colorações de felicidade. De família pobre, tendo de trabalhar fora para ajudar os pais há algum tempo vinha já depositando todos os anseios de moça no namoro com o Zeca do Garcia, um rapagão desempenado que dirigia a bodega no fim da rua grande. E, à tarde, de volta do serviço, era sempre um gosto para ela vir pôr ordem na casa, e, em fugidelas medrosas, acolher da janela os olhares desejosos do Zeca. Do namoro ao noivado foi um pulo. E deste ao casamento, nada mais fácil. Naquele dia, portanto, Durvalina, em sua inexperiência, e ingenuidade, e vontade de abandonar a vida de doméstica para cuidar de seu próprio lar, sentiu dentro do peito um estremeção de gozo. E do coração lhe veio uma vontade de ser boa, uma vontade de ser honesta, para consagrar todos os minutos de sua vida à vida dos filhos que viesse a ter...
E, meio zonza, compreendeu à noitinha que se tinha realizado tudo quanto concebera em dias e dias de espera e desejos. E que ela, daquele momento em diante, passava a ser a Durvalina do Zeca, e teria uma casa para cuidar, cheia de venturas incomparáveis.
As semanas, porém, se foram escoando. E as ilusões foram fenecendo. E os primeiros acabrunhamentos vieram galopando na vanguarda de outros acabrunhamentos. Durvalina já desapegara dos lábios aquele sorriso cantante do noivado, e, nos olhos não mais pairava aquela expressão satisfeita. Notou sem dificuldades a progressiva indiferença do Zeca. Para longe tinham ido as promessas de um carinho inextinguível. Para muito longe as esperanças de uma vida conjugal pacífica. Foi então que em seu destino surgiu o consolo da primeira filha. Era linda, de olhos muito verdes. E em sua visão de mãe, Durvalina não podia imaginar criança mais graciosa.
Nela resumiu, portanto, todas as forças de que se julgava capaz para afrontar a vida.
E os dias foram passando... E a vida continuando...
A menina crescia robusta, preludiadas as belezas da moçoila futura pela natureza dadivosa. Mas o Zeca, tornado bêbado incorrigível, envenenava o ambiente do lar com seus maus tratos e boemia interminável, até que, por fim, envolvido numa rixa de canalhas, amanheceu certa vez estendido à porta de uma bodega, com as tripas à mostra. Durvalina aparou o golpe do destino com estoicismo. E chocada pelo imprevisto, pranteou o Zeca, que, afinal de contas, fora sempre seu marido, o eleito de seu coração, e recebera dele, apesar de tudo, requintes de carinhos e amor.
Por esse tempo, Duvalina trazia no ventre sinais de adiantada gestação. E ansiosamente, projetando um mundo de dedicações porvindouras, passou a aguardar o advento da nova criança, que por certo seria linda como a primeira.
No entanto, em meio da floração vigorosa de um setembro invulgar, após aceitar a caridade de espíritos bondosos, por se encontrar sem recursos, teve uma desilusão tremenda. A criança, que ela sempre aguardara linda, lhe saíra disforme, com as duas pernas anquilosas e a metade do rosto hipertrofiada em monstruoso aleijão. Chamou Ayrton ao filho. E procurando, com o infinito amor de mãe, amenizar a criatura teratológica que em suas entranhas concebera, se pôs a procurar colocação. Oferecia-se como doméstica, a profissão de quando mocinha. Mas as portas se fecharam sem piedade. Quem haveria de aceitar em casa uma mulher naquelas condições? Mudou de cidade.
E, em extrema penúria, recorreu ao recurso também extremo. Fez-se mendiga. Suplicou, angustiada, o pão e o agasalho para as duas crianças que agora, mais de que nunca, a prendiam à vida como aflitivo cordão umbilical. E as duas crianças, monopolizando a grandeza de seu amor inteiro, iam padecendo, todavia, na inocência dos destinos que despertam necessidades sem conta.
Os dias se sucediam sobre os dias como as águas do Iguaçu nas sinuosidades do leito. Durvalina esgotara já todas as reservas do organismo. Músculos gastos, era um trambolho que rolava de casa em casa. E ela mais os filhos eram os rebotalhos últimos de uma grande miséria diuturnamente arrastada nas ruas.
Um dia, Durvalina sentiu um estrelejamento no cérebro. Achegou bem ao peito os frutos de seu imenso amor, os quais ela não queria viessem a padecer de futuro os mesmo dissabores. E julgou compreender então porque não encontrava serviço.
Saiu da cidade. Deixou a filha num lado da estrada, recomendando-lhe que a esperasse. A menina estendeu os olhos esplendidamente verdes na terra ressequida que se estirava em frente. E a mãe marchou, apressada, com Ayrton nos braços.
Lá longe espraiavam as ondas azuladas do Iguaçu caudaloso. Durvalina espiou, tendo nos lábios um esgar idiota, o rio misterioso, o rio medonho, cheio de fundões traiçoeiros, o Iguaçu lendário, o Iguaçu profundo, silencioso incompreensível. Uma locomotiva barulhenta, arrastando o cortejo bamboleante dos carros, passou apitando perto de Durvalina. Com o comboio parece que fugiu de seu pensamento a monstruosidade que pudesse haver um crime.
Achegou-se à margem. Lançou em decorrer um olhar temeroso. Num último assomo de consciência beijou freneticamente o filho no aleijão da face. E ali mesmo mergulhou-o na água, cravando-lhe na garganta os dedos trementes. Depois, correu desvairada. Mas estacou logo. Volveu ao rio um olhar congestionado. E percebeu, à flor das águas, a cara hipertrófica do Ayrton, rodando a pouco e pouco, e submergindo lentamente para só deixar lugar aos bracinhos erguidos, que pareciam acenar ainda uma ameaça ou um perdão.
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público
Goulart Gomes (Bilico)
Albérico Cavalcanti Alvarenga Silveira era, sem dúvida alguma, o mais conhecido aluno do colégio interno. Ganhara o apelido – Bilico – da meninada que achou que era muito nome para pouca gente. A princípio ele não gostou muito do apelido, mas como calouro não tem direito a reclamar de nada, ele foi deixando, deixando e acabou se acostumando.
"Bilico", ele pensava, “até que não é tão mal. Podiam ter escolhido um apelido melhor... ou pior. Deixa assim. Fico sendo Bilico, mesmo."
Não demorou muito para ele se tornar conhecido nos outros pavilhões do Colégio. Um corpo alto e magro, quase esquelético, dançando dentro do uniforme folgado, o sapato grande como o nariz e as orelhas e o que era mais marcante e dava o toque final a esta excêntrica figura: os óculos, grandes para o seu estreito rosto, de armação pesada, tipo tartaruga, de lentes grossas, sempre a escorregar-lhe do nariz fino e gorduroso, a calejar-lhe as orelhas.
E justamente aqueles óculos é que era o ponto fraco de Bilico. Que remexessem em suas gavetas, afanassem seu material escolar, riscassem seu uniforme e até comessem a merenda que sua mãe lhe trazia semanalmente, mas que não lhe tirassem os óculos. O "banana" do colégio se transformava numa verdadeira fera, atacava o agressor, tomava-lhe os óculos, ia às vias de fato. Na expressão “calcanhar de Aquiles” ninguém naquele colégio ouvira falar, mas “óculos de Bilico” era de uso corrente.
Todos sabiam quem ele era, todos o consideravam o intelectual, apesar de que ele não era nada de tão extraordinário assim; todos o consideravam um fracote, apesar de nunca terem visto demonstrações suas de covardia; todos o consideravam, feio, sem nunca se deterem para notar a sua beleza interior.
Bilico ajudava os colegas para os exames mensais, “passava colas”, dividia seu material, seu lanche, seu tempo e até seu dinheiro com os colegas. Dividia a atenção e o coleguismo igualmente e, no entanto, não tinha um amigo de verdade, alguém em quem pudesse confiar. Todos queriam explorá-lo, ninguém queria ouvi-lo. Estava sempre à margem de todos os acontecimentos, exceto os da sala de aula. Ele não brincava nem jogava bola; não mexia com as meninas nem atirava pedras nos descuidados passarinhos que tinham a ousadia de por ali passar; não ia aos piqueniques nem às pescarias. Seu mundo resumia-se ao seu armário, onde guardava os livros escolares e de aventuras que os pais lhe traziam. Quando não tinha nada a fazer e já estava cansado de ouvir as piadinhas que os colegas faziam a seu respeito, Bilico deitava-se em sua cama e começava a ler as estórias de Ivanhoé, Robin Hood, Os Três Mosqueteiros e tantas outras, talvez sonhando em um dia ser um deles.
Mas, naquele dia, Bilico não conseguia concentrar-se na leitura. O alvoroço era grande. Haveria um passeio a um rio próximo do Colégio no dia seguinte, com natação, pescarias e tudo mais. Os alunos reuniam-se em pequenos grupos nos corredores, nos quartos, nos jardins, nas salas, em todos os lugares para combinar diversões e jogos que iam fazer.
"Parece que vai ser muito divertido", pensou Bilico, e assumiu imediatamente a ideia que desde logo o assaltou: ir também.
................................................
Os meninos estavam admirados. Enfim o bobão, o cascagrossa do Bilico resolvera entrar para a turma e se divertir um pouco. Bilico sentiu no ar que alguma coisa havia mudado. Ele surpreendera a todos e iria mostrar do que era capaz, de que não entendia só de livros, que era um jovem como outro qualquer, apenas um pouco mais reprimido que o normal.
Ao chegarem, nem tudo saiu como ele esperava. Logo a garotada reenturmou-se e começou a nadar, pular, gritar, se divertir. Bilico foi novamente esquecido a um canto. Subiu a uma imensa rocha e ficou de lá, olhando a garotada se esbaldando. Seu sossego, porém, não durou muito tempo.
Logo alguém lá de baixo o descobriu e gritou:
— Mergulha daí, Bilico!
— Pula, Bilico! - gritou outro.
— Pula, pula, pula! - gritava a meninada em coro.
Bilico, naquele momento, rememorou toda a sua vida escolar, desde quando chegara ao colégio há dois anos, mais bobo ainda, em tudo o que o fizeram passar por sua passividade, suas pequenas alegrias e suas imensas tristezas e concluiu que aquele era o momento de pôr um ponto final em tudo, mostrar que ele era também capaz de fazer tudo que os outros fazem... e pulou.
O corpo de Bilico ainda veio dar à tona uma ou duas vezes, para depois desaparecer definitivamente. Seus óculos foram encontrados algumas horas depois, na margem esquerda do rio.
"Bilico", ele pensava, “até que não é tão mal. Podiam ter escolhido um apelido melhor... ou pior. Deixa assim. Fico sendo Bilico, mesmo."
Não demorou muito para ele se tornar conhecido nos outros pavilhões do Colégio. Um corpo alto e magro, quase esquelético, dançando dentro do uniforme folgado, o sapato grande como o nariz e as orelhas e o que era mais marcante e dava o toque final a esta excêntrica figura: os óculos, grandes para o seu estreito rosto, de armação pesada, tipo tartaruga, de lentes grossas, sempre a escorregar-lhe do nariz fino e gorduroso, a calejar-lhe as orelhas.
E justamente aqueles óculos é que era o ponto fraco de Bilico. Que remexessem em suas gavetas, afanassem seu material escolar, riscassem seu uniforme e até comessem a merenda que sua mãe lhe trazia semanalmente, mas que não lhe tirassem os óculos. O "banana" do colégio se transformava numa verdadeira fera, atacava o agressor, tomava-lhe os óculos, ia às vias de fato. Na expressão “calcanhar de Aquiles” ninguém naquele colégio ouvira falar, mas “óculos de Bilico” era de uso corrente.
Todos sabiam quem ele era, todos o consideravam o intelectual, apesar de que ele não era nada de tão extraordinário assim; todos o consideravam um fracote, apesar de nunca terem visto demonstrações suas de covardia; todos o consideravam, feio, sem nunca se deterem para notar a sua beleza interior.
Bilico ajudava os colegas para os exames mensais, “passava colas”, dividia seu material, seu lanche, seu tempo e até seu dinheiro com os colegas. Dividia a atenção e o coleguismo igualmente e, no entanto, não tinha um amigo de verdade, alguém em quem pudesse confiar. Todos queriam explorá-lo, ninguém queria ouvi-lo. Estava sempre à margem de todos os acontecimentos, exceto os da sala de aula. Ele não brincava nem jogava bola; não mexia com as meninas nem atirava pedras nos descuidados passarinhos que tinham a ousadia de por ali passar; não ia aos piqueniques nem às pescarias. Seu mundo resumia-se ao seu armário, onde guardava os livros escolares e de aventuras que os pais lhe traziam. Quando não tinha nada a fazer e já estava cansado de ouvir as piadinhas que os colegas faziam a seu respeito, Bilico deitava-se em sua cama e começava a ler as estórias de Ivanhoé, Robin Hood, Os Três Mosqueteiros e tantas outras, talvez sonhando em um dia ser um deles.
Mas, naquele dia, Bilico não conseguia concentrar-se na leitura. O alvoroço era grande. Haveria um passeio a um rio próximo do Colégio no dia seguinte, com natação, pescarias e tudo mais. Os alunos reuniam-se em pequenos grupos nos corredores, nos quartos, nos jardins, nas salas, em todos os lugares para combinar diversões e jogos que iam fazer.
"Parece que vai ser muito divertido", pensou Bilico, e assumiu imediatamente a ideia que desde logo o assaltou: ir também.
................................................
Os meninos estavam admirados. Enfim o bobão, o cascagrossa do Bilico resolvera entrar para a turma e se divertir um pouco. Bilico sentiu no ar que alguma coisa havia mudado. Ele surpreendera a todos e iria mostrar do que era capaz, de que não entendia só de livros, que era um jovem como outro qualquer, apenas um pouco mais reprimido que o normal.
Ao chegarem, nem tudo saiu como ele esperava. Logo a garotada reenturmou-se e começou a nadar, pular, gritar, se divertir. Bilico foi novamente esquecido a um canto. Subiu a uma imensa rocha e ficou de lá, olhando a garotada se esbaldando. Seu sossego, porém, não durou muito tempo.
Logo alguém lá de baixo o descobriu e gritou:
— Mergulha daí, Bilico!
— Pula, Bilico! - gritou outro.
— Pula, pula, pula! - gritava a meninada em coro.
Bilico, naquele momento, rememorou toda a sua vida escolar, desde quando chegara ao colégio há dois anos, mais bobo ainda, em tudo o que o fizeram passar por sua passividade, suas pequenas alegrias e suas imensas tristezas e concluiu que aquele era o momento de pôr um ponto final em tudo, mostrar que ele era também capaz de fazer tudo que os outros fazem... e pulou.
O corpo de Bilico ainda veio dar à tona uma ou duas vezes, para depois desaparecer definitivamente. Seus óculos foram encontrados algumas horas depois, na margem esquerda do rio.
Fonte:
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.
quinta-feira, 14 de setembro de 2023
Coelho Neto (Rosas, corações desfeitos)
Foi com a entrada luminosa de Hermes, ainda cheirando a silvas redolentes, porque subira da terra onde andara a vagar, que se acendeu no coração impetuoso de Zeus o desejo forte do rever a terra em flor, as águas que escorrem nas rochas, os largos praianos dos mares glaucos, os outeiros frondosos dos montes acima dos quais adejam as águias imponentes.
Horas alegres bordavam a tela azul com fios de ouro tirados do novelo do sol; outras, pálidas, de olhos melancólicos, vestidas de negras túnicas funéreas, coroadas de mirto e papoulas, recenavam estrelas para que fulgissem na treva com luz viva e o Olimpo, nessa tarde de maravilhoso encanto, clara e suave como os olhares macios de Afrodite, rejubilava festivamente.
A própria Hera, sempre taciturna no seu ciúme divino, cantava dobrando a lã translúcida das nuvens estivais.
Eis que Zeus, de repente, se levanta, acena à águia cujo olhar fuzila e, assentando-se-lhe no dorso, instiga-a.
Pasmam os deuses; um momento detém-se as horas e o animal soergue-se, arranca, abre as asas largas e arremessa-se nos ares fulgurantes. Desce vertiginosamente como os titãs rebeldes quando rolaram sob as catapultuosas penhas sobrepostas.
Zeus tem ânsia de rever a terra, os homens, os rebanhos; deseja avistar as águas e as verduras, as furnas sombrias e sempre gementes e as clareiras onde o sol retouça. Já os oceanos brilham como sóis e os lagos lampejam como estrelas, cresce o esplendor entre sombras que parecem nuvens e são serras altas e são prados longos e são vales fundos. A terra aparece de uma só cor sombria, alarga-se dilatadamente em alfombra azul, lisa, sã, sem um relevo de colina, mas logo avultam os acidentes redondos, as bolas dos outeiros de fina relva; movem-se lentos rebanhos e homens. Já se acentuam as linhas, rendilham-se as frondes, ondulam os trigais dourados, aves voam cantando, sobe o fresco aroma dos jardins e das searas e o balido dos anões geme. É a terra.
A águia fogo e os olhos claros de Zeus mal distinguem a mansão efêmera dos homens e as suas belezas transitórias que a Morte espreita cobiçosa. Em toda a parte há flores e risos: são danças cíclicas nos prados, partênias (plantas da América do Sul) à volta dos templos, entre cedros; amores à beira d'água. Em tudo a alegria, a alegria, ilusão da tristeza.
Mas longe, à flor dos mares, branca e muda, uma ilha aparece. Toda branca e lisa é como larga lápide nos mares. A águia, guiada pelo deus, paira um momento sobre a desolada paragem de onde não sobem aromas nem rumores. É tudo funéreo: brancas as praias de areal sem dunas, branco o interior apagado da ilha. Nem arvoredo nem ervas, tudo desolação e silêncio e vultos merencórios seguindo as trilhas brancas, como lêmures cimérios, levando de raso, no lento e tristonho andar, as longas túnicas, tão alvas como o areal estéril. Zeus medita um momento e, fazendo baixar a águia sobre um roçado alvadio, salta em terra, desce à planície, torna-se invisível e espreita a gente melancólica que vai e vem, sem falar, sem sorrir, em passos morosos e surdos.
A sua onisciência logo adivinha a causa de tão estranha tristeza e, lesto, retomando a águia, remonta. Entra no olimpo irritado. É a hora quieta em que se recolhem as púrpuras da tarde e se estendem no espaço as alcatifas da noite mosqueadas de estrelas.
Atravessando impetuosamente o vestíbulo fulgurante, Zeus brada o nome de Eros. As brancas pombas de Afrodite, já agasalhadas no columbário, esvoaçam espavoridas ante a cólera estrondosa do acumulador de nuvens; os deuses afastam-se medrosos e, pálida e lânguida, a deusa, filha da espuma egina, temendo pelo filho, precipita-se embrulhando os pequeninos pés na fímbria da túnica diáfana, luminosa e volátil, como feita da bruma e sol, a receber o Pai, já se lhe arrojando ante os joelhos, linda com o pranto, em fios, a descer-lhe dos olhos verdes, cheios de espanto e medo.
Eros, que se adestra asseteando estrelas, ouvindo a voz tonitruante, adianta-se a correr, com a aljava a bater-lhe o dorso, o arco pendente à ilharga e, avistando o Todo Poderoso, retém os ligeiros passos. E Zeus, fitando nele os olhos flamejantes, ergue-o encolerizado sobre a tristeza da ilha que encontrara, branca e muda, dizendo:
— Todos quantos nela vivem são como sombras que penam. As mulheres são lindas, os mancebos são fortes, e cruzam-se indiferentes. Porque os deixaste em tal abandono?
— Senhor, é fácil reparar o crime do esquecimento. Hoje mesmo, com o favor da noite, farei o que devo.
— E antes do raiar do dia quero ter a prova do que fizeste.
— Tereis a prova, Senhor, antes que as estrelas murchem ao sol.
E Eros baixa aladamente do Olimpo.
O galo vigilante de Ares desfere o seu primeiro canto, ainda que sanem horas tenebrosas levando bojudas urnas de orvalho, quando Eros reaparece no Olimpo e, posto que Zeus repouse adormecido, quer dar conta do seu trabalho e, ante o solo divino, fala com palavras aladas.
— Zeus potente, dominador do Éter... – Aclara-se esplendidamente o Olimpo com a refulgência do olhar do esposo de Hera que desperta à voz do infante.
— Que me trazes por prova do que fizeste?
— Nada, Senhor, senão o desejo de que vos certifiqueis, com os vossos olhos, do resultado da
minha empresa. Era a ilha branca e estéril e é hoje verde alfombra, colmada de formosos bosques odoríferos. Era o presídio do silêncio e nela agora o murmúrio das palavras e o sussurro dos beijos são tão perenes como o fragor das águas nas penhas geradoras. Nos seis caminhos balsâmicos não mais se cruzam figuras solitárias, senão pares abraçados e não há moita de onde não saia, por entre o chilreio de aves que se ameigam, palavras trêmulas de bocas de namorados. Das flechas que levei na aljava nem uma só errou o alvo, e de extremo a extremo da ilha, fui acordando para o amor a gente merencória. O sangue gotejava na areia e as flechas por lá ficaram crescendo em floresta acolhedora e de aroma.
Mas Zeus, sempre desconfiado, ordena a Hermes que baixe à ilha, e percorra, trazendo-lhe uma prova do êxito da missão do infante.
E Hermes desce ligeiro sobre a ilha. Tudo vê e, tentando contar os pares que se sucedem nos meandros amáveis do arvoredo, descobre, a tremer na haste, que era uma flecha acúlea, flor purpurina e nova para os seus olhos divinos. Demora-se a vê-la, maravilhado, e como procure lembrar-se da sua origem — ele que conhecia a origem de todas as flores — eis que ouve uma voz, a voz de Herta, a terra maternal:
— Esta flor, cor de púrpura, de pétalas cordeais — é a rosa: nasceu das gotas de sangue que umedeceram as flechas de Eros vitorioso. Conta-lhes as pétalas e terás o numero dos corações feridos que se buscam e não se deixam nesta ilha florida, dantes areal onde nem o cardo vingava.
E Hermes, tomando a flor, regressa ao Olimpo repetindo a Zeus as palavras de Herta e descrevendo-lhe o que vira.
Zeus, então, afagando a imensa e espalhada barba, mais rebrilhante do que a Via Láctea, põe-se a aspirar o aroma da flor, contente por saber que deixara de existir na terra o triste degredo d'almas, onde corações moços se cruzavam com a indiferença com que duas folhas mortas descem na correnteza fria e trêmula de uma ribeira apressada.
Horas alegres bordavam a tela azul com fios de ouro tirados do novelo do sol; outras, pálidas, de olhos melancólicos, vestidas de negras túnicas funéreas, coroadas de mirto e papoulas, recenavam estrelas para que fulgissem na treva com luz viva e o Olimpo, nessa tarde de maravilhoso encanto, clara e suave como os olhares macios de Afrodite, rejubilava festivamente.
A própria Hera, sempre taciturna no seu ciúme divino, cantava dobrando a lã translúcida das nuvens estivais.
Eis que Zeus, de repente, se levanta, acena à águia cujo olhar fuzila e, assentando-se-lhe no dorso, instiga-a.
Pasmam os deuses; um momento detém-se as horas e o animal soergue-se, arranca, abre as asas largas e arremessa-se nos ares fulgurantes. Desce vertiginosamente como os titãs rebeldes quando rolaram sob as catapultuosas penhas sobrepostas.
Zeus tem ânsia de rever a terra, os homens, os rebanhos; deseja avistar as águas e as verduras, as furnas sombrias e sempre gementes e as clareiras onde o sol retouça. Já os oceanos brilham como sóis e os lagos lampejam como estrelas, cresce o esplendor entre sombras que parecem nuvens e são serras altas e são prados longos e são vales fundos. A terra aparece de uma só cor sombria, alarga-se dilatadamente em alfombra azul, lisa, sã, sem um relevo de colina, mas logo avultam os acidentes redondos, as bolas dos outeiros de fina relva; movem-se lentos rebanhos e homens. Já se acentuam as linhas, rendilham-se as frondes, ondulam os trigais dourados, aves voam cantando, sobe o fresco aroma dos jardins e das searas e o balido dos anões geme. É a terra.
A águia fogo e os olhos claros de Zeus mal distinguem a mansão efêmera dos homens e as suas belezas transitórias que a Morte espreita cobiçosa. Em toda a parte há flores e risos: são danças cíclicas nos prados, partênias (plantas da América do Sul) à volta dos templos, entre cedros; amores à beira d'água. Em tudo a alegria, a alegria, ilusão da tristeza.
Mas longe, à flor dos mares, branca e muda, uma ilha aparece. Toda branca e lisa é como larga lápide nos mares. A águia, guiada pelo deus, paira um momento sobre a desolada paragem de onde não sobem aromas nem rumores. É tudo funéreo: brancas as praias de areal sem dunas, branco o interior apagado da ilha. Nem arvoredo nem ervas, tudo desolação e silêncio e vultos merencórios seguindo as trilhas brancas, como lêmures cimérios, levando de raso, no lento e tristonho andar, as longas túnicas, tão alvas como o areal estéril. Zeus medita um momento e, fazendo baixar a águia sobre um roçado alvadio, salta em terra, desce à planície, torna-se invisível e espreita a gente melancólica que vai e vem, sem falar, sem sorrir, em passos morosos e surdos.
A sua onisciência logo adivinha a causa de tão estranha tristeza e, lesto, retomando a águia, remonta. Entra no olimpo irritado. É a hora quieta em que se recolhem as púrpuras da tarde e se estendem no espaço as alcatifas da noite mosqueadas de estrelas.
Atravessando impetuosamente o vestíbulo fulgurante, Zeus brada o nome de Eros. As brancas pombas de Afrodite, já agasalhadas no columbário, esvoaçam espavoridas ante a cólera estrondosa do acumulador de nuvens; os deuses afastam-se medrosos e, pálida e lânguida, a deusa, filha da espuma egina, temendo pelo filho, precipita-se embrulhando os pequeninos pés na fímbria da túnica diáfana, luminosa e volátil, como feita da bruma e sol, a receber o Pai, já se lhe arrojando ante os joelhos, linda com o pranto, em fios, a descer-lhe dos olhos verdes, cheios de espanto e medo.
Eros, que se adestra asseteando estrelas, ouvindo a voz tonitruante, adianta-se a correr, com a aljava a bater-lhe o dorso, o arco pendente à ilharga e, avistando o Todo Poderoso, retém os ligeiros passos. E Zeus, fitando nele os olhos flamejantes, ergue-o encolerizado sobre a tristeza da ilha que encontrara, branca e muda, dizendo:
— Todos quantos nela vivem são como sombras que penam. As mulheres são lindas, os mancebos são fortes, e cruzam-se indiferentes. Porque os deixaste em tal abandono?
— Senhor, é fácil reparar o crime do esquecimento. Hoje mesmo, com o favor da noite, farei o que devo.
— E antes do raiar do dia quero ter a prova do que fizeste.
— Tereis a prova, Senhor, antes que as estrelas murchem ao sol.
E Eros baixa aladamente do Olimpo.
O galo vigilante de Ares desfere o seu primeiro canto, ainda que sanem horas tenebrosas levando bojudas urnas de orvalho, quando Eros reaparece no Olimpo e, posto que Zeus repouse adormecido, quer dar conta do seu trabalho e, ante o solo divino, fala com palavras aladas.
— Zeus potente, dominador do Éter... – Aclara-se esplendidamente o Olimpo com a refulgência do olhar do esposo de Hera que desperta à voz do infante.
— Que me trazes por prova do que fizeste?
— Nada, Senhor, senão o desejo de que vos certifiqueis, com os vossos olhos, do resultado da
minha empresa. Era a ilha branca e estéril e é hoje verde alfombra, colmada de formosos bosques odoríferos. Era o presídio do silêncio e nela agora o murmúrio das palavras e o sussurro dos beijos são tão perenes como o fragor das águas nas penhas geradoras. Nos seis caminhos balsâmicos não mais se cruzam figuras solitárias, senão pares abraçados e não há moita de onde não saia, por entre o chilreio de aves que se ameigam, palavras trêmulas de bocas de namorados. Das flechas que levei na aljava nem uma só errou o alvo, e de extremo a extremo da ilha, fui acordando para o amor a gente merencória. O sangue gotejava na areia e as flechas por lá ficaram crescendo em floresta acolhedora e de aroma.
Mas Zeus, sempre desconfiado, ordena a Hermes que baixe à ilha, e percorra, trazendo-lhe uma prova do êxito da missão do infante.
E Hermes desce ligeiro sobre a ilha. Tudo vê e, tentando contar os pares que se sucedem nos meandros amáveis do arvoredo, descobre, a tremer na haste, que era uma flecha acúlea, flor purpurina e nova para os seus olhos divinos. Demora-se a vê-la, maravilhado, e como procure lembrar-se da sua origem — ele que conhecia a origem de todas as flores — eis que ouve uma voz, a voz de Herta, a terra maternal:
— Esta flor, cor de púrpura, de pétalas cordeais — é a rosa: nasceu das gotas de sangue que umedeceram as flechas de Eros vitorioso. Conta-lhes as pétalas e terás o numero dos corações feridos que se buscam e não se deixam nesta ilha florida, dantes areal onde nem o cardo vingava.
E Hermes, tomando a flor, regressa ao Olimpo repetindo a Zeus as palavras de Herta e descrevendo-lhe o que vira.
Zeus, então, afagando a imensa e espalhada barba, mais rebrilhante do que a Via Láctea, põe-se a aspirar o aroma da flor, contente por saber que deixara de existir na terra o triste degredo d'almas, onde corações moços se cruzavam com a indiferença com que duas folhas mortas descem na correnteza fria e trêmula de uma ribeira apressada.
Fonte:
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Disponível em domínio público.
Aparecido Raimundo de Souza (Elementos de abstração)
“Não faça como Jonas, que dormia no porão do navio e precisou ser jogado ao mar, para se recordar do que lhe mandara fazer o Senhor.”
Jonas: 1-4-15.
Jonas: 1-4-15.
1
Não afaste do seu lado as pessoas que lhe querem bem.
2
Dê mais de si para você mesmo. Se ame de verdade.
3
Procure ser útil. Esqueça a preguiça, dispense a inércia.
4
Jamais desperdice o tempo com pessoas fúteis e vazias que não lhe acrescentarão nada de útil ao seu dia a dia.
5
Fique o maior tempo possível longe do celular. Lembre-se que ele é uma das doenças incuráveis deste século.
6
Quando alguém ligar para você, fale apenas o necessário.
7
Seja útil em casa procurando ajudar a sua mãe nos afazeres diários sem que ela precise se matar fazendo tudo sozinha.
8
Faça amizade com a bicicleta e pedale. Sua saúde vai amar.
9
Corra, vá a praia, ande no calçadão, aprecie a natureza, respire o dia bonito que o Pai Maior lhe proporciona inteiramente de graça e sem pedir nada em troca.
10
Saia definitivamente do marasmo. Potencialize seu corpo, esbanje a vida divinal que existe dentro do seu âmago.
11
Sob nenhuma circunstância passe o tempo todo dormindo. Tenha em mente que a vida é curta demais para quem não sabe aproveitar o que ela pode lhe proporcionar de extraordinário.
12
Definitivamente não assista a programas de televisão que não lhe trazem nada de prolífero em termos de futuro.
13
Tire um tempo para escrever. Coloque no papel seus principais objetivos e tente, a cada dia, alcançá-los.
14
Leia um bom livro. Devore cada página como se fosse seu prato predileto. Tik Tok, Instagram, Whats App, You Tube, Linkedin, Messenger, Kwai, Facebook, Pinterest, Twitter, nem de sobremesa. Deixe tudo isto para depois, quando você tiver a sua vidinha realizada, emprego garantido, formação profissional de primeira.
15
Ouça músicas que tenham o poder de relaxar suas perturbações e esgotamentos emocionais.
16
Fale com as pessoas pausadamente, sem gritar, ouvindo antes e emitindo a sua opinião logo depois.
17
Apazigue seus demais consanguíneos (irmãos menores, se existirem) dando a eles mais carinho e atenção e, sobretudo, procurando deixar claro e patente que a sua autoridade não tem por objetivo feri-los, ou magoá-los, apenas mostrar a calmaria reinante que flui benevolentemente de dentro de seu coração.
18
Em horas de descanso, faça uma introspecção de sua pessoa, pontilhando tudo aquilo que pode e deve ser extirpado do seu íntimo, sem afetar o anfêmero (cotidiano), permitindo, de contrapeso, que ele siga seu trajeto em franca tranquilidade e perene quietação.
19
Não se esgoele, não brigue, não fale palavrões, não esbraveje. Seja sutil. Tente atingir o controle da sua exasperação de modo que ela não volte a incomodar a sua paz de espírito ou afasta-la do sério.
20
Acredite sempre que você pode. Repita como se fosse um mantra: “eu posso.” Basta querer e saber como atingir as suas metas e ambições mais desejadas.
21
Não fira seu corpo se cortando com objetos contundentes visando chamar a atenção piedosa de pessoas que lhe querem ver para cima e somente anelam diluvianamente a sua venturosa e afortunada felicidade. A piedade não ajuda. Faz com que a sua autoestima caia num ralo enorme e depois você não consiga pegá-la de volta.
22
Tranque a sete chaves seus medos e receios no silencio do seu quarto e peça perdão à Deus pelos erros e desacertos que acaso, por mero descuido, esteja cometendo.
23
Abandone a lista numerosa de remédios do qual faz uso constante de modo desnecessário para doenças imaginárias que somente povoam em sua cabeça. A ansiedade, a depressão e outros males podem ser curados desde que você saiba como usar corretamente a força hercúlea que se vê aprisionada dentro de seu ser esperando apenas um sinal verde para ser totalmente liberta.
24
Faça as pazes com as tristezas e as angústias que insistem em atormentarem o melhor e o excelente dentro do altaneiro prócero (importante) que o universo edificou dentro do seu “eu”. Não se olvide: seu “eu” é um chão intocável.
25
Frequente os lugares básicos, como escolas e igrejas onde a sua formação, seja ela cultural ou religiosa, sedimente lastros inquebrantáveis para que você, num amanhã vindouro se orgulhe, bem como seus familiares entendam que os esforços para lhe tornarem uma pessoa honrada digna e benquista, não redundaram em fracasso.
26
Não fale de sua vida pessoal aos “amigos entre aspas”. Eles querem ver a sua derrocada e aplaudirão veementemente a sua sucumbência. Escolha, pois, à dedo, com quem dividir as suas agruras e tribulações mais estrepitosas.
27
Ame seus pais, seus irmãos, seus vizinhos e até aquelas pessoas chatas e pegajosas que fazem parte (ou não) do seu círculo de amizades. O amor e o amar, devem ser, acima de tudo, irrestritos e sobejamente incondicionais.
28
Respeite os longevos. Amanhã você também fará parte desta fase incômoda da caminhada. Seja gentil com aqueles que estiverem sossegados e quietos em seus cantinhos. A velhice nem sempre é benigna e não abre alas às patacoadas da juventude imoderada e espalhafatosa.
29
Conte até mil, antes de tomar uma decisão definitiva da qual você não tenha total certeza se dará certo ou não. Haja com serenidade e confiança. Mantenha a cabeça fria e procure ver além das aparências o que lhe aguarda no “escondido” do obscuro. Dito de outro modo: tenha convicção se a empreitada, por qualquer motivo não programado der com os “burros n’água”, para que você não se veja depois arrancando os cabelos e pior, perdido e à deriva da própria burrice e estupidez.
30
Em repeteco, redizer o número “21.” Não se fira, não se alfinete, não se retalhe aos poucos, em tentativas gradativas de pôr fim à vida, visando chamar a atenção de quem somente almeja a sua prosperidade e sucesso e, via igual, lhe quer ver, acima de qualquer suspeita, um vencedor, um ganhador desfrutando de um amanhã radioso, obviamente não só na sua vida, mas, igualmente, numa EXISTÊNCIA FUTURA POTENTE E ROBUSTAMENTE VENCEDORA.
Em repeteco, redizer o número “21.” Não se fira, não se alfinete, não se retalhe aos poucos, em tentativas gradativas de pôr fim à vida, visando chamar a atenção de quem somente almeja a sua prosperidade e sucesso e, via igual, lhe quer ver, acima de qualquer suspeita, um vencedor, um ganhador desfrutando de um amanhã radioso, obviamente não só na sua vida, mas, igualmente, numa EXISTÊNCIA FUTURA POTENTE E ROBUSTAMENTE VENCEDORA.
Fonte:
Enviado pelo autor.
Enviado pelo autor.
quarta-feira, 13 de setembro de 2023
Irmãos Grimm (Rolando, o bem-amado)
Era uma vez uma mulher, verdadeira bruxa, que vivia com duas moças. Uma, feia e má, a quem amava por ser sua filha; outra, formosa e boa, a quem odiava porque era sua enteada. Esta última tinha um lindo aventalzinho que enchia de inveja a sua irmã de criação, a qual um dia confessou à sua mãe que desejava possuí-lo, fosse como fosse.
- Não te preocupes, minha filha. - respondeu-lhe a velha- Tu o terás. Há muito tempo que tua irmã merece morrer. Hoje à noite, quando ela estiver dormindo, entrarei no quarto de vocês e lhe cortarei a cabeça. Trata, apenas, de te pores no lado da cama que fica junto à parede e vê se a empurras bem para a beirada.
A pobre moça estaria perdida se não tivesse escutado tudo num canto da sala. Durante o dia não a deixaram sair de casa e, na hora de deitar, a outra meteu-se na cama primeiro, ficando junto à parede. Mas, quando ela adormeceu, sua irmã, de mansinho, trocou-a de lugar. Alta noite, a velha entrou na ponta dos pés, empunhando um machado na mão direita. Com a esquerda experimentou se, de fato, havia alguém na beira da cama. Depois, segurando o machado com ambas as mãos, cortou de um golpe o pescoço da filha.
Assim que a velha se afastou, a moça ergueu-se e foi à casa do seu bem-amado, que se chamava Rolando. Bateu à porta e, logo que ele abriu, disse-lhe:
- Escuta. Temos de fugir o quanto antes. Minha madrasta quis matar-me, mas enganou-se e degolou a filha. Amanhã cedo, quando se der conta do que fez, estaremos perdidos.
- Mas aconselho-te- disse Rolando- que antes apanhes a sua varinha mágica; do contrário não poderemos salvar-nos, caso ela nos persiga.
A jovem voltou em busca da varinha. Depois, agarrou a cabeça da morta e derramou três gotas de sangue no chão: uma diante da cama, uma na cozinha e outra na escada. Feito isso, fugiu a toda pressa com seu bem-amado.
Quando amanheceu, a velha bruxa levantou-se e foi chamar a filha para para lhe dar o avental. Como ela não respondesse a seu chamado, gritou:
- Onde estás ?
- Aqui na escada, varrendo. – respondeu uma das gotas de sangue.
A velha foi até lá, mas, não vendo ninguém, tornou a chamar em voz alta:
- Onde estás?
- Na cozinha aquecendo-me! - respondeu a segunda gota de sangue.
A bruxa se dirigiu para lá e não encontrou ninguém. Perguntou de novo:
- Onde estás?
- Ora, aqui na cama dormindo! - disse a terceira gota.
A velha encaminhou-se para o quarto e se aproximou do leito. e o que foi que viu?... Sua própria filha, banhada em sangue. Ela mesma lhe cortara a cabeça.
A feiticeira enfureceu-se e correu à janela. Como, por meio de sua artes mágicas, enxergasse muito longe, descobriu a enteada que fugia com seu noivo.
- Não adianta! - exclamou - Não me escaparão, por mais longe que estejam. Calçou suas botas de sete léguas, que a cada passo percorriam o caminho de uma hora, e saiu em sua perseguição. Em pouco tempo acercou-se dos dois.
A jovem, vendo que sua madrasta se aproximava a passos gigantescos, utilizou-se da varinha mágica e transformou seu bem- amado num lago enquanto ela se convertia em um pato que passou a nadar no centro da água. Quando a bruxa chegou à beira do lago, começou a atirar migalhas de pão à ave, fazendo todo o possível para atraí-la. Mas esta não caiu na cilada e, ao anoitecer, a velha teve de voltar para casa como tinha vindo.
A moça e seu bem-amado Rolando recuperaram então a forma humana e seguiram adiante, caminhando toda a noite até de madrugada. Quando clareou o dia, a moça transformou-se numa linda flor, no meio de uma moita de espinhos. Ao seu bem-amado ela converteu num violinista. Pouco depois chegou a bruxa com as suas botas de sete léguas e, dirigindo ao músico, disse:
- Meu bom homem, pode me dar licença para colher aquela linda flor?
- Oh, pois não. - respondeu ele. - Enquanto isso, vou tocar um pouco.
Meteu-se a velha na moita para arrancar a flor, pois sabia muito bem quem era ela. Imediatamente o violino se pôs a tocar e a bruxa, quisesse ou não, viu-se obrigada a dançar, pois se tratava de uma ária mágica. Quanto mais depressa tocava, mais violentos saltos ela dava. Os espinhos lhe foram rasgando as vestes, deixando-a ferida e ensanguentada. Como o músico não cessasse de tocar, a feiticeira teve de continuar dançando até cair morta.
Libertados da velha, Rolando disse:
- Agora irei à casa de meu pai preparar nosso casamento.
- Então ficarei aqui, aguardando a tua volta. E, para que ninguém me reconheça, me transformarei num marco de pedra.
Rolando, porém, ao chegar em casa, caiu nos laços de uma outra mulher, que conseguiu fazê-lo esquecer sua noiva. A infeliz permaneceu muito tempo esperando por ele e, vendo que não voltava, ficou triste e transformou-se numa flor, pensando: "Um dia alguém pisará em mim."
Mas aconteceu que um pastor que andava apascentando suas ovelhas naquele campo, avistou a flor. Como a achasse muito linda, cortou-a e guardou-a numa caixinha. Desse dia em diante começaram a acontecer coisas estranhas em casa do homem. Quando se levantava pela manhã, o trabalho todo estava feito, o quarto varrido, as mesas e bancos sem pó, o fogo aceso e as panelas cheias de água. Ao meio-dia, quando chegava em casa, encontrava a mesa posta e servido um bom almoço. O homem não podia compreender aquilo, pois jamais via alguém em sua choupana a qual, além disso, era tão pequena que ninguém poderia ocultar-se nela. Naturalmente aquilo tudo era muito agradável, mas ele acabou ficando alarmado e foi consultar uma adivinha.
- Isto é coisa de magia. - disse ela. - Levanta-te bem cedo e observa se algo se move na casa. Se avistares qualquer coisa. seja o que for , joga-lhe em seguida um pano em cima e o feitiço fica desfeito.
O pastor assim resolveu fazer. Na manhã seguinte ao despontar da aurora, viu a caixa abrir-se e dela saiu a flor. Ele saltou depressa da cama e, rapidamente lhe jogou um pano branco em cima. Pouco depois o encanto se desfez e adiante dele apareceu um a linda moça que lhe confessou haver sido a flor que até então cuidara de sua casa. Contou-lhe a sua história e, como o pastor tivesse gostado muito dela, pediu-a em casamento. Ela, porém, respondeu que não, pois amava a Rolando e que, apesar de a ter abandonado, lhe seria fiel. Mas prometeu ao pastor que continuaria cuidando da sua casa.
Nesse meio tempo, foi se aproximando o dia do casamento de Rolando. De acordo com um velho costume, todas as moças do país foram convidadas a assistir à cerimônia e a cantar em louvor aos noivos. A jovem, ao saber disso, sentiu profunda tristeza que parecia que seu coração já ia parar de angústia. Não quis ir à festa, mas as outras moças foram buscá-la e obrigaram-na a acompanhá-las. Chegada a sua vez de cantar, ela esquivou-se, mas afinal, já tendo todas as jovens cantando, não teve outro remédio senão fazê-lo também. Iniciou-se seu canto e, quando sua voz atingiu os ouvido de Rolando, ele ergueu-se depressa e exclamou.
Tudo o que havia esquecido reviveu em sua memória e em seu coração. Assim, a fiel jovem casou-se com o seu bem-amado Rolando e, acabados os sofrimentos, começou para ela uma vida cheia de venturas.
- Não te preocupes, minha filha. - respondeu-lhe a velha- Tu o terás. Há muito tempo que tua irmã merece morrer. Hoje à noite, quando ela estiver dormindo, entrarei no quarto de vocês e lhe cortarei a cabeça. Trata, apenas, de te pores no lado da cama que fica junto à parede e vê se a empurras bem para a beirada.
A pobre moça estaria perdida se não tivesse escutado tudo num canto da sala. Durante o dia não a deixaram sair de casa e, na hora de deitar, a outra meteu-se na cama primeiro, ficando junto à parede. Mas, quando ela adormeceu, sua irmã, de mansinho, trocou-a de lugar. Alta noite, a velha entrou na ponta dos pés, empunhando um machado na mão direita. Com a esquerda experimentou se, de fato, havia alguém na beira da cama. Depois, segurando o machado com ambas as mãos, cortou de um golpe o pescoço da filha.
Assim que a velha se afastou, a moça ergueu-se e foi à casa do seu bem-amado, que se chamava Rolando. Bateu à porta e, logo que ele abriu, disse-lhe:
- Escuta. Temos de fugir o quanto antes. Minha madrasta quis matar-me, mas enganou-se e degolou a filha. Amanhã cedo, quando se der conta do que fez, estaremos perdidos.
- Mas aconselho-te- disse Rolando- que antes apanhes a sua varinha mágica; do contrário não poderemos salvar-nos, caso ela nos persiga.
A jovem voltou em busca da varinha. Depois, agarrou a cabeça da morta e derramou três gotas de sangue no chão: uma diante da cama, uma na cozinha e outra na escada. Feito isso, fugiu a toda pressa com seu bem-amado.
Quando amanheceu, a velha bruxa levantou-se e foi chamar a filha para para lhe dar o avental. Como ela não respondesse a seu chamado, gritou:
- Onde estás ?
- Aqui na escada, varrendo. – respondeu uma das gotas de sangue.
A velha foi até lá, mas, não vendo ninguém, tornou a chamar em voz alta:
- Onde estás?
- Na cozinha aquecendo-me! - respondeu a segunda gota de sangue.
A bruxa se dirigiu para lá e não encontrou ninguém. Perguntou de novo:
- Onde estás?
- Ora, aqui na cama dormindo! - disse a terceira gota.
A velha encaminhou-se para o quarto e se aproximou do leito. e o que foi que viu?... Sua própria filha, banhada em sangue. Ela mesma lhe cortara a cabeça.
A feiticeira enfureceu-se e correu à janela. Como, por meio de sua artes mágicas, enxergasse muito longe, descobriu a enteada que fugia com seu noivo.
- Não adianta! - exclamou - Não me escaparão, por mais longe que estejam. Calçou suas botas de sete léguas, que a cada passo percorriam o caminho de uma hora, e saiu em sua perseguição. Em pouco tempo acercou-se dos dois.
A jovem, vendo que sua madrasta se aproximava a passos gigantescos, utilizou-se da varinha mágica e transformou seu bem- amado num lago enquanto ela se convertia em um pato que passou a nadar no centro da água. Quando a bruxa chegou à beira do lago, começou a atirar migalhas de pão à ave, fazendo todo o possível para atraí-la. Mas esta não caiu na cilada e, ao anoitecer, a velha teve de voltar para casa como tinha vindo.
A moça e seu bem-amado Rolando recuperaram então a forma humana e seguiram adiante, caminhando toda a noite até de madrugada. Quando clareou o dia, a moça transformou-se numa linda flor, no meio de uma moita de espinhos. Ao seu bem-amado ela converteu num violinista. Pouco depois chegou a bruxa com as suas botas de sete léguas e, dirigindo ao músico, disse:
- Meu bom homem, pode me dar licença para colher aquela linda flor?
- Oh, pois não. - respondeu ele. - Enquanto isso, vou tocar um pouco.
Meteu-se a velha na moita para arrancar a flor, pois sabia muito bem quem era ela. Imediatamente o violino se pôs a tocar e a bruxa, quisesse ou não, viu-se obrigada a dançar, pois se tratava de uma ária mágica. Quanto mais depressa tocava, mais violentos saltos ela dava. Os espinhos lhe foram rasgando as vestes, deixando-a ferida e ensanguentada. Como o músico não cessasse de tocar, a feiticeira teve de continuar dançando até cair morta.
Libertados da velha, Rolando disse:
- Agora irei à casa de meu pai preparar nosso casamento.
- Então ficarei aqui, aguardando a tua volta. E, para que ninguém me reconheça, me transformarei num marco de pedra.
Rolando, porém, ao chegar em casa, caiu nos laços de uma outra mulher, que conseguiu fazê-lo esquecer sua noiva. A infeliz permaneceu muito tempo esperando por ele e, vendo que não voltava, ficou triste e transformou-se numa flor, pensando: "Um dia alguém pisará em mim."
Mas aconteceu que um pastor que andava apascentando suas ovelhas naquele campo, avistou a flor. Como a achasse muito linda, cortou-a e guardou-a numa caixinha. Desse dia em diante começaram a acontecer coisas estranhas em casa do homem. Quando se levantava pela manhã, o trabalho todo estava feito, o quarto varrido, as mesas e bancos sem pó, o fogo aceso e as panelas cheias de água. Ao meio-dia, quando chegava em casa, encontrava a mesa posta e servido um bom almoço. O homem não podia compreender aquilo, pois jamais via alguém em sua choupana a qual, além disso, era tão pequena que ninguém poderia ocultar-se nela. Naturalmente aquilo tudo era muito agradável, mas ele acabou ficando alarmado e foi consultar uma adivinha.
- Isto é coisa de magia. - disse ela. - Levanta-te bem cedo e observa se algo se move na casa. Se avistares qualquer coisa. seja o que for , joga-lhe em seguida um pano em cima e o feitiço fica desfeito.
O pastor assim resolveu fazer. Na manhã seguinte ao despontar da aurora, viu a caixa abrir-se e dela saiu a flor. Ele saltou depressa da cama e, rapidamente lhe jogou um pano branco em cima. Pouco depois o encanto se desfez e adiante dele apareceu um a linda moça que lhe confessou haver sido a flor que até então cuidara de sua casa. Contou-lhe a sua história e, como o pastor tivesse gostado muito dela, pediu-a em casamento. Ela, porém, respondeu que não, pois amava a Rolando e que, apesar de a ter abandonado, lhe seria fiel. Mas prometeu ao pastor que continuaria cuidando da sua casa.
Nesse meio tempo, foi se aproximando o dia do casamento de Rolando. De acordo com um velho costume, todas as moças do país foram convidadas a assistir à cerimônia e a cantar em louvor aos noivos. A jovem, ao saber disso, sentiu profunda tristeza que parecia que seu coração já ia parar de angústia. Não quis ir à festa, mas as outras moças foram buscá-la e obrigaram-na a acompanhá-las. Chegada a sua vez de cantar, ela esquivou-se, mas afinal, já tendo todas as jovens cantando, não teve outro remédio senão fazê-lo também. Iniciou-se seu canto e, quando sua voz atingiu os ouvido de Rolando, ele ergueu-se depressa e exclamou.
Tudo o que havia esquecido reviveu em sua memória e em seu coração. Assim, a fiel jovem casou-se com o seu bem-amado Rolando e, acabados os sofrimentos, começou para ela uma vida cheia de venturas.
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.
Júlia Lopes de Almeida (Folhas de uma velha carteira)
Disse-me um dia um velho amigo:
— Há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia.
Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas leituras parecerão fastidiosas; mas devemos crer que as mães, empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinquenta anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores. Há tempos enviei um livro à minha filha: L'Education nouvelle, de Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "A escola deve desenvolver tanto na criança a amplitude da inteligência quanto a amplitude do peito."
Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios com proveito, graças à instrução que recebeu... Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos de história natural. Um deles frequenta uma oficina de carpintaria, o outro uma de ferreiro... A mãe preside às suas leituras, livros escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música. O pai dá-lhes uma hora de matemática e geografia e contrataram um professor francês para a língua francesa e um inglês para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não têm as mãos acetinadas, está claro... Imagine um ferreiro! Um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática, mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum desembaraço...
Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à vontade num salão como em uma oficina... Em uma das suas cartas diz-me a mãe:
"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência de homens!"
E em outra carta:
"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta, à minha ordem. As quintas e sábados vem um homem guia-os nesse serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão lindas rosas nem tão magníficos repolhos."
Ainda noutra carta:
"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem, e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."
Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem, porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências naturais e línguas vivas. Ela sabe que um dia pode transmitir, e os seus filhos são assim duplamente — suas criaturas.
Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras. Aqui estão palavras de um romance russo:
"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! Que submissão, que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó! É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."
Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.
No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante, com uma expressão de bondade sonhadora...
Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado. Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?
Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores...
Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza, com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras, que nascem da alma e definem com clareza uma ideia ou um sentimento.
Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro. Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental, para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno, mas agora como um cão batido, magro, morta de fome, coberta de humilhações. Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.
Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne martirizada e submissa... O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família, exclama radiante:
— "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"
E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação. A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de sentimento feminino!
E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão alta significação moral... O lenço desempenha na vida um papel bem variado!
Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente de enxugar lágrimas e disfarçar ironias. Quando pertença a uma senhora, — que o do homem é obrigado a um exercício ativo — o lenço branco, de meio metro quadrado, paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado em quatro entre sachês ou raízes de capim cheiroso.
No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também têm disso), eles sentirão a satisfação do dever cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro e da sua abnegação.
Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço; não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz, mas sim o recato que poetisa o seio.
De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas, que despertam a ideia de campos de papoulas, onde bata o sol.
Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo vão entre aspas:
"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica, abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração: triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições, ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando não possamos com a palavra repelir a má intenção de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele é então o salvador da nossa dignidade. É ainda o lenço que, compartilhando da expressão do nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou na saudade de uma despedida. Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se no ar como uma asa na agonia."
Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:
Este teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio
Que hei de um dia mandar-te, pois roubei-o
E foi meu crime em breve descoberto"
(Versos de um simples — Guimarães Passos)
Se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando "Pando, enfunado, côncavo de beijos!"
Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações, que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços, guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa: a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não verem a morte!
“Você não viu algumas vezes um lenço
Avistado com morangos na mão da sua esposa?”
Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua! Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou no seu senhor o monstro de olhos verdes, o enegrecido ciúme, que fez morrer a pálida Desdêmona.
Na ação como na intriga os lenços representam muitas vezes no teatro extraordinárias ficções! São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida, ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem paixões nem enxuguem o suor da agonia, é ainda um magnífico pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia da inércia.
Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva da toalete, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas caras. Rendas...
Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e tão finas que se nos afigura impossíveis terem sido tecidas por gente inculta, sem noção de desenho. Quando se lê o apreço que em certos países dão, e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres, fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os apanhem para continuar a tarefa interrompida...
Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta. Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição. Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica, que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado. A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou entre uivos: — Foi o cock... foi carvão de cock que me matou!
As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no mesmo estribilho recriminativo: — Foi o carvão de cock que me matou!
Veio gente de dentro. Levaram-na em braços. Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável...
Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa, como diz o mestre:
Que não é dia claro e é já alvorecer
Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher .
(Falenas — Machado de Assis)
E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.
Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente; e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou, e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo...
O artifício do pó de arroz é o véu benévolo para os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e sobretudo na sua simplicidade...
Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la. A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.
Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde a rapaziada de uma aldeia próxima passava para a escola. A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.
Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se balançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho? Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois... Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!
Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?
Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola. Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela co-discípula de rosto franzido e cabelo nevado.
No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.
As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente... De vez em quando noticiam os jornais: "... Perdeu-se uma criança... Achou-se uma criança..."
E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir essas confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada, de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas de soluços: — mamãe! Querem a mamãe, cuja mão deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas, sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados para todas as janelas.
Estas cenas, aliás frequentes, sempre enternecem, e a cada pergunta que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre criaturinha, ouve sempre a mesma resposta — mamãe!...
— Em que rua mora? — Mamãe!
— Para onde ia? — Mamãe!...
— Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!
Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra, sai trêmula, — que o não pise um carro! — e, enquanto alucinada sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos, segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.
E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas: "... Perdeu-se uma criança..."
Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele: “Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um lado e vão com ela a rastros do outro, descrevendo uma linha diagonal, como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma, varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar: outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda sem distrações nem indiscrições, deixando apenas entrever o que se deve não mostrar.”
Eu já atinei com a arte. A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as senhoras do meu tempo...
Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse e me visse os tacões, ou a saia de esguelha...
Os homens são terríveis!
— Há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia.
Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas leituras parecerão fastidiosas; mas devemos crer que as mães, empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinquenta anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores. Há tempos enviei um livro à minha filha: L'Education nouvelle, de Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "A escola deve desenvolver tanto na criança a amplitude da inteligência quanto a amplitude do peito."
Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios com proveito, graças à instrução que recebeu... Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos de história natural. Um deles frequenta uma oficina de carpintaria, o outro uma de ferreiro... A mãe preside às suas leituras, livros escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música. O pai dá-lhes uma hora de matemática e geografia e contrataram um professor francês para a língua francesa e um inglês para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não têm as mãos acetinadas, está claro... Imagine um ferreiro! Um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática, mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum desembaraço...
Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à vontade num salão como em uma oficina... Em uma das suas cartas diz-me a mãe:
"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência de homens!"
E em outra carta:
"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta, à minha ordem. As quintas e sábados vem um homem guia-os nesse serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão lindas rosas nem tão magníficos repolhos."
Ainda noutra carta:
"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem, e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."
Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem, porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências naturais e línguas vivas. Ela sabe que um dia pode transmitir, e os seus filhos são assim duplamente — suas criaturas.
Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras. Aqui estão palavras de um romance russo:
"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! Que submissão, que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó! É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."
Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.
No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante, com uma expressão de bondade sonhadora...
Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado. Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?
Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores...
Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza, com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras, que nascem da alma e definem com clareza uma ideia ou um sentimento.
Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro. Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental, para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno, mas agora como um cão batido, magro, morta de fome, coberta de humilhações. Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.
Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne martirizada e submissa... O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família, exclama radiante:
— "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"
E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação. A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de sentimento feminino!
E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão alta significação moral... O lenço desempenha na vida um papel bem variado!
Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente de enxugar lágrimas e disfarçar ironias. Quando pertença a uma senhora, — que o do homem é obrigado a um exercício ativo — o lenço branco, de meio metro quadrado, paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado em quatro entre sachês ou raízes de capim cheiroso.
No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também têm disso), eles sentirão a satisfação do dever cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro e da sua abnegação.
Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço; não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz, mas sim o recato que poetisa o seio.
De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas, que despertam a ideia de campos de papoulas, onde bata o sol.
Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo vão entre aspas:
"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica, abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração: triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições, ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando não possamos com a palavra repelir a má intenção de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele é então o salvador da nossa dignidade. É ainda o lenço que, compartilhando da expressão do nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou na saudade de uma despedida. Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se no ar como uma asa na agonia."
Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:
Este teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio
Que hei de um dia mandar-te, pois roubei-o
E foi meu crime em breve descoberto"
(Versos de um simples — Guimarães Passos)
Se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando "Pando, enfunado, côncavo de beijos!"
Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações, que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços, guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa: a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não verem a morte!
“Você não viu algumas vezes um lenço
Avistado com morangos na mão da sua esposa?”
Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua! Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou no seu senhor o monstro de olhos verdes, o enegrecido ciúme, que fez morrer a pálida Desdêmona.
Na ação como na intriga os lenços representam muitas vezes no teatro extraordinárias ficções! São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida, ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem paixões nem enxuguem o suor da agonia, é ainda um magnífico pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia da inércia.
Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva da toalete, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas caras. Rendas...
Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e tão finas que se nos afigura impossíveis terem sido tecidas por gente inculta, sem noção de desenho. Quando se lê o apreço que em certos países dão, e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres, fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os apanhem para continuar a tarefa interrompida...
Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta. Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição. Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica, que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado. A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou entre uivos: — Foi o cock... foi carvão de cock que me matou!
As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no mesmo estribilho recriminativo: — Foi o carvão de cock que me matou!
Veio gente de dentro. Levaram-na em braços. Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável...
Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa, como diz o mestre:
Que não é dia claro e é já alvorecer
Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher .
(Falenas — Machado de Assis)
E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.
Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente; e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou, e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo...
O artifício do pó de arroz é o véu benévolo para os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e sobretudo na sua simplicidade...
Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la. A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.
Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde a rapaziada de uma aldeia próxima passava para a escola. A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.
Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se balançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho? Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois... Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!
Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?
Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola. Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela co-discípula de rosto franzido e cabelo nevado.
No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.
As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente... De vez em quando noticiam os jornais: "... Perdeu-se uma criança... Achou-se uma criança..."
E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir essas confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada, de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas de soluços: — mamãe! Querem a mamãe, cuja mão deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas, sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados para todas as janelas.
Estas cenas, aliás frequentes, sempre enternecem, e a cada pergunta que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre criaturinha, ouve sempre a mesma resposta — mamãe!...
— Em que rua mora? — Mamãe!
— Para onde ia? — Mamãe!...
— Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!
Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra, sai trêmula, — que o não pise um carro! — e, enquanto alucinada sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos, segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.
E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas: "... Perdeu-se uma criança..."
Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele: “Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um lado e vão com ela a rastros do outro, descrevendo uma linha diagonal, como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma, varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar: outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda sem distrações nem indiscrições, deixando apenas entrever o que se deve não mostrar.”
Eu já atinei com a arte. A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as senhoras do meu tempo...
Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse e me visse os tacões, ou a saia de esguelha...
Os homens são terríveis!
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906
Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906
Disponível em Domínio Público.
terça-feira, 12 de setembro de 2023
Monsenhor Orivaldo Robles (A bolsa ou a vida)
Era um senhor idoso podre de rico, mas muquirana de não pagar cafezinho para a própria mãe. Trabalhara duro na roça até comprar uma propriedade. Daí para frente, a coisa deslanchou. Conseguiu acumular fortuna considerável. Filhas casadas há tempo, vivia agora com sua velha num confortável casarão de fazenda, cercado de todos os confortos da vida urbana.
Depois dos tantos anos de luta, começou a acusar os sintomas da idade. Com receio de ver reduzido o vultoso patrimônio, recusava-se a consultar um médico. Pouco valia a insistência da mulher e das filhas. Ele se esforçava para disfarçar qualquer sinal de dor. Se aparecia algum desconforto maior, recorria a remédios caseiros. Até que, não suportando mais os reclamos do velho corpo, foi obrigado, um dia, a pedir arrego. Acabou no consultório.
O médico lê a ficha preenchida pela secretária e pergunta: – “Então, seu Giácomo, o que é que o senhor tem”? – “Doutor, eu tenho”…, fez uma pausa; temia uma conta salgada, mas tinha também seu orgulho, “tenho uma fazendinha de gado (mil e duzentos bois), de soja (dois mil hectares), tratores, colheitadeiras, uns apartamentos na cidade”… – “Acho que eu não me expliquei direito. Quero saber o que o senhor sente”. – “Ah, doutor, o que eu sinto é deixar tudo para os meus genros, três vagabundos, que não veem a hora de eu fechar os olhos para por a mão no que eu construí com uma vida inteira de sacrifício”.
Claro que é só uma anedota, mas poderia ter acontecido. Não é tão raro que genros lancem olhares gulosos para a fortuna dos sogros. Muita gente deve ter ouvido contar sobre o diálogo entre amigos: – “E o velho seu sogro como vai”? – “Ih, rapaz, aquilo é uma aroeira: está com uma saúde irritante”. Muitos adoram seus sogros, é verdade. Talvez em até maior número, porém, há os que não os suportam. Na maioria dos casos, a desavença passa longe do fator financeiro. Mas existem situações em que o peso do dinheiro figura no centro da questão.
Não se pode negar que a riqueza material define, às vezes de forma decisiva, a constituição de uma família. Quem já não ouviu afirmação do tipo: “Você viu que sujeito mais burro? Namorava a filha de um milionário e, sem mais nem menos, terminou com ela”. A mensagem é evidente: se a outra parte era rica, só um grande idiota deixaria escapar a chance de se ajeitar na vida. Apesar de tantos casais, por aí, infelizes por causa do dinheiro, ainda existe quem coloque a riqueza como exigência primeira de um casamento. Muitos parecem seguir à risca o jocoso ensinamento de que “ter pai pobre é destino; ter sogro pobre é burrice”.
Ninguém está defendendo o ingênuo romantismo de um amor e uma cabana. União nenhuma resiste à falta de uma razoável garantia material. Mas seria loucura dar como suficiente a segurança financeira. Muitos lares se esfarelam por carência de alicerces mais sólidos, que muita gente não entende necessários. Revela despreparo quem se satisfaz somente com beleza de corpo e bom cadastro bancário.
Que futuro haverá para jovens portadores de defeitos graves – falta de fé, de estudo, de trabalho, irresponsáveis, mentirosos, aproveitadores – ainda que belos e ricos? Será que, desde a infância dos pupilos, os pais estão atentos a isso? Se não corrigem os filhos pequenos, mais tarde poderá ser tarde demais.
Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2012/03/17/a-bolsa-ou-a-vida/
Daniel Maurício (Leve-me) 1
Costumava se vestir de verde.
Era reconhecida
Até no tremular
Das folhas ao vento.
Mas hoje,
Depois de muito lamento
Ela vem em doses pequenas
Disfarçada
Com vestido branquicento.
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Clandestino
Embarco neste teu sorriso,
Mesmo sabendo
Que não era pra mim.
Nele viajo
Ainda que por instantes
Embalado
Por um resto de paixão
Que ainda brinca
Tão solitária
Aqui dentro de mim.
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Com o apito do trem
Os corações
Despertavam.
Era gente que chegava
Era gente que partia
Com o apito do trem.
Com o apito do trem
Nos abraços
Desfaziam-se as saudades de uns,
Enquanto as lágrimas
Prenunciavam as saudades de outros.
Com o apito do trem
A vida pulsava
Até mesmo nas cidadezinhas mais remotas
E que hoje quase mortas
Sentem a falta
Do velho apito do trem.
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Não se mata a saudade
Impunemente.
Preso fiquei
No teu olhar.
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Nas tardes de domingo
Olho nos teus olhos
E deixo que
As minhas meninas
Brinquem
Com as meninas
Dos teus olhos
Sem me importar
De que já seja
Quase inverno.
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No desfilar dos dias
Aprendi a desbastar ideias,
A por ponto final
Em muitas frases inacabadas,
A lógica das crianças é simples
E a felicidade delas é tão plena.
Abandonei a pressa
Pois a vida passa até por uma fresta.
Melhor valorizar a pausa,
Mesmo que seja
Pra contrariar a Gramática
Ao se colocar vírgulas
Onde elas não caibam.
O amor é a definição de Deus,
O resto é coleção de "eus"
Sujeitos a ficarem perdidos no breu,
Ou quem sabe em caixas
A mofar.
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Nos meus silêncios
Adoro o falar
Das tuas mãos
Em minha pele.
Tudo fica bem!
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O "eu te amo"
Era pra ser pra sempre.
Mas na primeira "chuva"
Descobriu-se
Que tinha sido uma promessa
Escrita a giz.
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Os dias
Andavam
Pesados.
Vagarosas
Cinzas no olhar.
Mas eis
Que o menino
Que em mim
Habita
Começou
A pintar palavras
Com as sobras
De lápis de cor.
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Outono.
As folhas que caem
São lágrimas das árvores
Se despedindo.
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Quando disse
Que te queria,
Não estava a procurar
Apenas rima.
Rimar é fácil
Remar a dois, não.
E como é bom
Quando os corações
Batem no compasso
Do mesmo verso.
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Que pena!
Os seus "eus"
Eram tantos
Que o nós
Ficou num canto
E só de vez
Em quando
Em cima
Da cama.
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Ser escritor
é...
descrever
a própria dor,
dísfarçando-se
em um personagem.
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Sozinha?
Ah, se tu
Soubesses
Que era eu
Uma daquelas
Pétalas
Que desprezastes
Julgando ser um
Malmequer.
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Tem passado
Que não passa.
Um deles
É o meu amor
Por você.
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Teus beijos
São poesias escritas
Na minha pele.
E a minh'alma
Sabe todas de cor.
Fonte:
Daniel Maurício. Leve-me. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.
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