sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Goulart Gomes (Bilico)

Albérico Cavalcanti Alvarenga Silveira era, sem dúvida alguma, o mais conhecido aluno do colégio interno. Ganhara o apelido – Bilico – da meninada que achou que era muito nome para pouca gente. A princípio ele não gostou muito do apelido, mas como calouro não tem direito a reclamar de nada, ele foi deixando, deixando e acabou se acostumando.

"Bilico", ele pensava, “até que não é tão mal. Podiam ter escolhido um apelido melhor... ou pior. Deixa assim. Fico sendo Bilico, mesmo."

Não demorou muito para ele se tornar conhecido nos outros pavilhões do Colégio. Um corpo alto e magro, quase esquelético, dançando dentro do uniforme folgado, o sapato grande como o nariz e as orelhas e o que era mais marcante e dava o toque final a esta excêntrica figura: os óculos, grandes para o seu estreito rosto, de armação pesada, tipo tartaruga, de lentes grossas, sempre a escorregar-lhe do nariz fino e gorduroso, a calejar-lhe as orelhas.

E justamente aqueles óculos é que era o ponto fraco de Bilico. Que remexessem em suas gavetas, afanassem seu material escolar, riscassem seu uniforme e até comessem a merenda que sua mãe lhe trazia semanalmente, mas que não lhe tirassem os óculos. O "banana" do colégio se transformava numa verdadeira fera, atacava o agressor, tomava-lhe os óculos, ia às vias de fato. Na expressão “calcanhar de Aquiles” ninguém naquele colégio ouvira falar, mas “óculos de Bilico” era de uso corrente.

Todos sabiam quem ele era, todos o consideravam o intelectual, apesar de que ele não era nada de tão extraordinário assim; todos o consideravam um fracote, apesar de nunca terem visto demonstrações suas de covardia; todos o consideravam, feio, sem nunca se deterem para notar a sua beleza interior.

Bilico ajudava os colegas para os exames mensais, “passava colas”, dividia seu material, seu lanche, seu tempo e até seu dinheiro com os colegas. Dividia a atenção e o coleguismo igualmente e, no entanto, não tinha um amigo de verdade, alguém em quem pudesse confiar. Todos queriam explorá-lo, ninguém queria ouvi-lo. Estava sempre à margem de todos os acontecimentos, exceto os da sala de aula. Ele não brincava nem jogava bola; não mexia com as meninas nem atirava pedras nos descuidados passarinhos que tinham a ousadia de por ali passar; não ia aos piqueniques nem às pescarias. Seu mundo resumia-se ao seu armário, onde guardava os livros escolares e de aventuras que os pais lhe traziam. Quando não tinha nada a fazer e já estava cansado de ouvir as piadinhas que os colegas faziam a seu respeito, Bilico deitava-se em sua cama e começava a ler as estórias de Ivanhoé, Robin Hood, Os Três Mosqueteiros e tantas outras, talvez sonhando em um dia ser um deles.

Mas, naquele dia, Bilico não conseguia concentrar-se na leitura. O alvoroço era grande. Haveria um passeio a um rio próximo do Colégio no dia seguinte, com natação, pescarias e tudo mais. Os alunos reuniam-se em pequenos grupos nos corredores, nos quartos, nos jardins, nas salas, em todos os lugares para combinar diversões e jogos que iam fazer.

"Parece que vai ser muito divertido", pensou Bilico, e assumiu imediatamente a ideia que desde logo o assaltou: ir também.
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Os meninos estavam admirados. Enfim o bobão, o cascagrossa do Bilico resolvera entrar para a turma e se divertir um pouco. Bilico sentiu no ar que alguma coisa havia mudado. Ele surpreendera a todos e iria mostrar do que era capaz, de que não entendia só de livros, que era um jovem como outro qualquer, apenas um pouco mais reprimido que o normal.

Ao chegarem, nem tudo saiu como ele esperava. Logo a garotada reenturmou-se e começou a nadar, pular, gritar, se divertir. Bilico foi novamente esquecido a um canto. Subiu a uma imensa rocha e ficou de lá, olhando a garotada se esbaldando. Seu sossego, porém, não durou muito tempo.

Logo alguém lá de baixo o descobriu e gritou:

— Mergulha daí, Bilico!

— Pula, Bilico! - gritou outro.

— Pula, pula, pula! - gritava a meninada em coro.

Bilico, naquele momento, rememorou toda a sua vida escolar, desde quando chegara ao colégio há dois anos, mais bobo ainda, em tudo o que o fizeram passar por sua passividade, suas pequenas alegrias e suas imensas tristezas e concluiu que aquele era o momento de pôr um ponto final em tudo, mostrar que ele era também capaz de fazer tudo que os outros fazem... e pulou.

O corpo de Bilico ainda veio dar à tona uma ou duas vezes, para depois desaparecer definitivamente. Seus óculos foram encontrados algumas horas depois, na margem esquerda do rio.

Fonte:
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.

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