quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Renato Frata (Não é pedir demais)

Lá fora, o sol bate nos quarenta e pode atropelá-lo.

O asfalto avistado ao longo, parece tremer em vapores. Homens com uniforme varrem com languidez, as flores dos ipês deixadas pela noite. Há entre elas tocos de cigarros e outros lixos que o povo insensato deixou na passagem, e ali no muro, ao descuido de alguém, uma torneira chora pingos amornados.

Parece olhos cansados de chorar, mas não, é de alegria que ela verte, já que uma poça formada escorre seu excesso até a guia e dali, em outra menor, segue na descida sem se importar com a quentura que enquanto a aquece, lhe arranca a alma. Esse pequeno fiapo de água escorrida, porém, à mercê da aventura vadia que lhe toma o brio, parece rir do sol pela contraposição do cá em baixo e nem liga se logo estará seco. Aliás, nem se apercebe... E a situação sol-calor, água-frio, me dá uma ideia. Aliás, alguém poderá dizer que de jerico.

Pois como aquele filete desmiolado de água a mim exposto, dispo-me de qualquer siso ou conceito e saio em sua direção. Não sei por que, mas inadvertidamente procuro sombras que me abriguem a calva. Amparo-me no muro, me aproximo, abaixo meu corpo e abro a torneira. Sorrio como quando fazia peraltagem e nem ligo para uma senhora de bolsa e sombrinha que passa em resfolego. Tem pressa e vai. Deixo a água vazar espirrando em meus sapatos sem me preocupar se logo o terei que engraxar.

Aguardo que a água esfrie e então, como aquele moleque de ontem, colho-a e ela, também peralta, brinca de escorrer de minhas palmas. Bebo-a do que sobra. Pego mais, refresco meu rosto e fico. O Eu-Água ganha vida, mas sinto que há um vazio entre nós. Talvez saudade de um passado que se escorre pela memória, tal como ela, pela guia, para morrer mais adiante.

Inspiro solerte, olhos brilhantes, tez acetinada, rejuvenescido. Mais pessoas passam. Umas estranham, outras sorriem concordando que a velhice permite, sim, certas loucuras. Fecho a torneira e dou dois passos para voltar, mas aí, paro. Contemplo o céu, volto agora o olhar à boca seca da torneira, à poça que ainda escorre em filete mais metro, menos metro abaixo, para a morte.

Indago: devo tirar os sapatos e sapatear a poça? Minha juventude repentina pede que sim, as sobrancelhas acinzentadas não deixam.

Então me consolo, mas penso: bem que você poderia estar aqui para partilhar comigo essa arte em que nós sorrindo, levaríamos suas mãos em concha a aparar um pouco de água e, enquanto você a saboreasse, meus olhos saboreariam sua linda face e o complemento que a faz bela por inteiro.

Não é pedir muito, é?

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Texto enviado pelo autor

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