(contos do sertão paranaense)
Na cidadezinha humilde, aquele acontecimento não podia mesmo despertar interesse. Um casamento de pobres, sem convites nem festanças... quem com ele se incomodaria? Os noivos, os padrinhos, as duas famílias... e só. E quando, na tarde esplêndida, o pequeno cortejo atravessou a rua em direção à igreja, notou-se, numa e noutra janela, um arqueamento de bustos. E nas cabeças que apareciam, espiavam olhos de curiosidade. E nos rostos que apontavam, lábios desdenhosos moviam-se, atirando “que parzinho enjoado...”. “Olha o desajeito dele”. “Ché!” Como a esmo exclamações estúpidas: “Esta crise...”
Durvalina Nunes exultava. Sua vida adquiria no momento as mais garridas colorações de felicidade. De família pobre, tendo de trabalhar fora para ajudar os pais há algum tempo vinha já depositando todos os anseios de moça no namoro com o Zeca do Garcia, um rapagão desempenado que dirigia a bodega no fim da rua grande. E, à tarde, de volta do serviço, era sempre um gosto para ela vir pôr ordem na casa, e, em fugidelas medrosas, acolher da janela os olhares desejosos do Zeca. Do namoro ao noivado foi um pulo. E deste ao casamento, nada mais fácil. Naquele dia, portanto, Durvalina, em sua inexperiência, e ingenuidade, e vontade de abandonar a vida de doméstica para cuidar de seu próprio lar, sentiu dentro do peito um estremeção de gozo. E do coração lhe veio uma vontade de ser boa, uma vontade de ser honesta, para consagrar todos os minutos de sua vida à vida dos filhos que viesse a ter...
E, meio zonza, compreendeu à noitinha que se tinha realizado tudo quanto concebera em dias e dias de espera e desejos. E que ela, daquele momento em diante, passava a ser a Durvalina do Zeca, e teria uma casa para cuidar, cheia de venturas incomparáveis.
As semanas, porém, se foram escoando. E as ilusões foram fenecendo. E os primeiros acabrunhamentos vieram galopando na vanguarda de outros acabrunhamentos. Durvalina já desapegara dos lábios aquele sorriso cantante do noivado, e, nos olhos não mais pairava aquela expressão satisfeita. Notou sem dificuldades a progressiva indiferença do Zeca. Para longe tinham ido as promessas de um carinho inextinguível. Para muito longe as esperanças de uma vida conjugal pacífica. Foi então que em seu destino surgiu o consolo da primeira filha. Era linda, de olhos muito verdes. E em sua visão de mãe, Durvalina não podia imaginar criança mais graciosa.
Nela resumiu, portanto, todas as forças de que se julgava capaz para afrontar a vida.
E os dias foram passando... E a vida continuando...
A menina crescia robusta, preludiadas as belezas da moçoila futura pela natureza dadivosa. Mas o Zeca, tornado bêbado incorrigível, envenenava o ambiente do lar com seus maus tratos e boemia interminável, até que, por fim, envolvido numa rixa de canalhas, amanheceu certa vez estendido à porta de uma bodega, com as tripas à mostra. Durvalina aparou o golpe do destino com estoicismo. E chocada pelo imprevisto, pranteou o Zeca, que, afinal de contas, fora sempre seu marido, o eleito de seu coração, e recebera dele, apesar de tudo, requintes de carinhos e amor.
Por esse tempo, Duvalina trazia no ventre sinais de adiantada gestação. E ansiosamente, projetando um mundo de dedicações porvindouras, passou a aguardar o advento da nova criança, que por certo seria linda como a primeira.
No entanto, em meio da floração vigorosa de um setembro invulgar, após aceitar a caridade de espíritos bondosos, por se encontrar sem recursos, teve uma desilusão tremenda. A criança, que ela sempre aguardara linda, lhe saíra disforme, com as duas pernas anquilosas e a metade do rosto hipertrofiada em monstruoso aleijão. Chamou Ayrton ao filho. E procurando, com o infinito amor de mãe, amenizar a criatura teratológica que em suas entranhas concebera, se pôs a procurar colocação. Oferecia-se como doméstica, a profissão de quando mocinha. Mas as portas se fecharam sem piedade. Quem haveria de aceitar em casa uma mulher naquelas condições? Mudou de cidade.
E, em extrema penúria, recorreu ao recurso também extremo. Fez-se mendiga. Suplicou, angustiada, o pão e o agasalho para as duas crianças que agora, mais de que nunca, a prendiam à vida como aflitivo cordão umbilical. E as duas crianças, monopolizando a grandeza de seu amor inteiro, iam padecendo, todavia, na inocência dos destinos que despertam necessidades sem conta.
Os dias se sucediam sobre os dias como as águas do Iguaçu nas sinuosidades do leito. Durvalina esgotara já todas as reservas do organismo. Músculos gastos, era um trambolho que rolava de casa em casa. E ela mais os filhos eram os rebotalhos últimos de uma grande miséria diuturnamente arrastada nas ruas.
Um dia, Durvalina sentiu um estrelejamento no cérebro. Achegou bem ao peito os frutos de seu imenso amor, os quais ela não queria viessem a padecer de futuro os mesmo dissabores. E julgou compreender então porque não encontrava serviço.
Saiu da cidade. Deixou a filha num lado da estrada, recomendando-lhe que a esperasse. A menina estendeu os olhos esplendidamente verdes na terra ressequida que se estirava em frente. E a mãe marchou, apressada, com Ayrton nos braços.
Lá longe espraiavam as ondas azuladas do Iguaçu caudaloso. Durvalina espiou, tendo nos lábios um esgar idiota, o rio misterioso, o rio medonho, cheio de fundões traiçoeiros, o Iguaçu lendário, o Iguaçu profundo, silencioso incompreensível. Uma locomotiva barulhenta, arrastando o cortejo bamboleante dos carros, passou apitando perto de Durvalina. Com o comboio parece que fugiu de seu pensamento a monstruosidade que pudesse haver um crime.
Achegou-se à margem. Lançou em decorrer um olhar temeroso. Num último assomo de consciência beijou freneticamente o filho no aleijão da face. E ali mesmo mergulhou-o na água, cravando-lhe na garganta os dedos trementes. Depois, correu desvairada. Mas estacou logo. Volveu ao rio um olhar congestionado. E percebeu, à flor das águas, a cara hipertrófica do Ayrton, rodando a pouco e pouco, e submergindo lentamente para só deixar lugar aos bracinhos erguidos, que pareciam acenar ainda uma ameaça ou um perdão.
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público
Na cidadezinha humilde, aquele acontecimento não podia mesmo despertar interesse. Um casamento de pobres, sem convites nem festanças... quem com ele se incomodaria? Os noivos, os padrinhos, as duas famílias... e só. E quando, na tarde esplêndida, o pequeno cortejo atravessou a rua em direção à igreja, notou-se, numa e noutra janela, um arqueamento de bustos. E nas cabeças que apareciam, espiavam olhos de curiosidade. E nos rostos que apontavam, lábios desdenhosos moviam-se, atirando “que parzinho enjoado...”. “Olha o desajeito dele”. “Ché!” Como a esmo exclamações estúpidas: “Esta crise...”
Durvalina Nunes exultava. Sua vida adquiria no momento as mais garridas colorações de felicidade. De família pobre, tendo de trabalhar fora para ajudar os pais há algum tempo vinha já depositando todos os anseios de moça no namoro com o Zeca do Garcia, um rapagão desempenado que dirigia a bodega no fim da rua grande. E, à tarde, de volta do serviço, era sempre um gosto para ela vir pôr ordem na casa, e, em fugidelas medrosas, acolher da janela os olhares desejosos do Zeca. Do namoro ao noivado foi um pulo. E deste ao casamento, nada mais fácil. Naquele dia, portanto, Durvalina, em sua inexperiência, e ingenuidade, e vontade de abandonar a vida de doméstica para cuidar de seu próprio lar, sentiu dentro do peito um estremeção de gozo. E do coração lhe veio uma vontade de ser boa, uma vontade de ser honesta, para consagrar todos os minutos de sua vida à vida dos filhos que viesse a ter...
E, meio zonza, compreendeu à noitinha que se tinha realizado tudo quanto concebera em dias e dias de espera e desejos. E que ela, daquele momento em diante, passava a ser a Durvalina do Zeca, e teria uma casa para cuidar, cheia de venturas incomparáveis.
As semanas, porém, se foram escoando. E as ilusões foram fenecendo. E os primeiros acabrunhamentos vieram galopando na vanguarda de outros acabrunhamentos. Durvalina já desapegara dos lábios aquele sorriso cantante do noivado, e, nos olhos não mais pairava aquela expressão satisfeita. Notou sem dificuldades a progressiva indiferença do Zeca. Para longe tinham ido as promessas de um carinho inextinguível. Para muito longe as esperanças de uma vida conjugal pacífica. Foi então que em seu destino surgiu o consolo da primeira filha. Era linda, de olhos muito verdes. E em sua visão de mãe, Durvalina não podia imaginar criança mais graciosa.
Nela resumiu, portanto, todas as forças de que se julgava capaz para afrontar a vida.
E os dias foram passando... E a vida continuando...
A menina crescia robusta, preludiadas as belezas da moçoila futura pela natureza dadivosa. Mas o Zeca, tornado bêbado incorrigível, envenenava o ambiente do lar com seus maus tratos e boemia interminável, até que, por fim, envolvido numa rixa de canalhas, amanheceu certa vez estendido à porta de uma bodega, com as tripas à mostra. Durvalina aparou o golpe do destino com estoicismo. E chocada pelo imprevisto, pranteou o Zeca, que, afinal de contas, fora sempre seu marido, o eleito de seu coração, e recebera dele, apesar de tudo, requintes de carinhos e amor.
Por esse tempo, Duvalina trazia no ventre sinais de adiantada gestação. E ansiosamente, projetando um mundo de dedicações porvindouras, passou a aguardar o advento da nova criança, que por certo seria linda como a primeira.
No entanto, em meio da floração vigorosa de um setembro invulgar, após aceitar a caridade de espíritos bondosos, por se encontrar sem recursos, teve uma desilusão tremenda. A criança, que ela sempre aguardara linda, lhe saíra disforme, com as duas pernas anquilosas e a metade do rosto hipertrofiada em monstruoso aleijão. Chamou Ayrton ao filho. E procurando, com o infinito amor de mãe, amenizar a criatura teratológica que em suas entranhas concebera, se pôs a procurar colocação. Oferecia-se como doméstica, a profissão de quando mocinha. Mas as portas se fecharam sem piedade. Quem haveria de aceitar em casa uma mulher naquelas condições? Mudou de cidade.
E, em extrema penúria, recorreu ao recurso também extremo. Fez-se mendiga. Suplicou, angustiada, o pão e o agasalho para as duas crianças que agora, mais de que nunca, a prendiam à vida como aflitivo cordão umbilical. E as duas crianças, monopolizando a grandeza de seu amor inteiro, iam padecendo, todavia, na inocência dos destinos que despertam necessidades sem conta.
Os dias se sucediam sobre os dias como as águas do Iguaçu nas sinuosidades do leito. Durvalina esgotara já todas as reservas do organismo. Músculos gastos, era um trambolho que rolava de casa em casa. E ela mais os filhos eram os rebotalhos últimos de uma grande miséria diuturnamente arrastada nas ruas.
Um dia, Durvalina sentiu um estrelejamento no cérebro. Achegou bem ao peito os frutos de seu imenso amor, os quais ela não queria viessem a padecer de futuro os mesmo dissabores. E julgou compreender então porque não encontrava serviço.
Saiu da cidade. Deixou a filha num lado da estrada, recomendando-lhe que a esperasse. A menina estendeu os olhos esplendidamente verdes na terra ressequida que se estirava em frente. E a mãe marchou, apressada, com Ayrton nos braços.
Lá longe espraiavam as ondas azuladas do Iguaçu caudaloso. Durvalina espiou, tendo nos lábios um esgar idiota, o rio misterioso, o rio medonho, cheio de fundões traiçoeiros, o Iguaçu lendário, o Iguaçu profundo, silencioso incompreensível. Uma locomotiva barulhenta, arrastando o cortejo bamboleante dos carros, passou apitando perto de Durvalina. Com o comboio parece que fugiu de seu pensamento a monstruosidade que pudesse haver um crime.
Achegou-se à margem. Lançou em decorrer um olhar temeroso. Num último assomo de consciência beijou freneticamente o filho no aleijão da face. E ali mesmo mergulhou-o na água, cravando-lhe na garganta os dedos trementes. Depois, correu desvairada. Mas estacou logo. Volveu ao rio um olhar congestionado. E percebeu, à flor das águas, a cara hipertrófica do Ayrton, rodando a pouco e pouco, e submergindo lentamente para só deixar lugar aos bracinhos erguidos, que pareciam acenar ainda uma ameaça ou um perdão.
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público
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