segunda-feira, 30 de abril de 2018

Faustino da Fonseca Júnior (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.4) I


LIRA DA MOCIDADE

Os versos na mocidade
Todos fazem, e a razão
É serem necessidade
Aos risos do coração.

O futuro cor de rosa,
O mundo cheio de encantos;
A nossa alma jubilosa
Não chorou amargos prantos.

Desde o ar que se respira,
Ao céu da cor de safira,
Tudo ri e diz – Amar!

E contemplando a beleza,
O sorrir da natureza,
Sabemos todos cantar.
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ELA

O busto escultural e primoroso,
O braço torneado, a linda mão,
O rosto aveludado e tão mimoso
Que da rosa assemelha-se ao botão.

O cabelo d'um negro tão lustroso,
A boquinha vermelha, ó perfeição!
O olhar d'um fulgor tão radioso,
Que beleza e ternura d'expressão!

Ao vê–la devaneio, fico louco,
Creio que o meu amor todo inda é pouco
Lembrei-me, e se deixasse de a adorar?

Pode deixar d'amar-se os astros lindos,
Do céu e terra os dons os bens infindos,
A luz doce e tão pura do luar?
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O MAR

Gigante irrequieto, imenso mar,
Inspira-me tão funda nostalgia
O teu sonoro e doce murmurar!

Quando ao sol posto a areia luzidia
Tu vens tranquilamente rebeijar
N'alma despertas maga poesia.

O teu esverdeado transparente
Fala-nos meigamente d'esperança
A ondular poético, dolente,

Beijado pelas auras da bonança;
Parece-me o brincar puro, inocente,
Inofensivo e meigo da criança!
     *     *     *     *     *

Mas quando agitas o teu seio imenso
No voltear das vagas alterosas
Rugindo com fragor enorme, intenso,

Já não tem expressões harmoniosas
Teu palpitar e n'essa hora eu penso
Em coisas bem sinistras, pavorosas.

Ó monstro, no teu seio tens sumido
Vitimas aos milhões, causas terror,
Tens navios, cidades engolido.

Será um coro de vingança e dor
Das vítimas, ó mar, o teu rugido,
Ou do remorso o pávido clamor?
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31 DE JANEIRO DE 1891
Aos Revolucionários do Porto

Foi há um ano já! Leais, ardentes
Filhos do nosso querido Portugal,
Viva, viva a Republica! Valentes,
Bradaram em hosana triunfal,

Ao som da Portugueza revoltados,
Hastearam ao sol nosso pendão,
E pelo Justo Ideal, rudes soldados,
Lutaram sempre até morder o chão!

Os cérberos fiéis da monarquia
Afogaram, porém, a rebeldia
Em ondas de bom sangue, carniceiros!

E os bravos que lutavam com esperança
Caíram a bradar: Ódio! Vingança!
É tempo já! Vingar os Companheiros!
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PORQUE TE AMO

Amo-te porque és tão linda
Como é linda a luz do sol,
Tens o frescor da alvorada,
Tens a cor afogueada
Como os tons d'um arrebol.

Amo-te porque és tão bela
Como é bela a flor mimosa
Que viceja n'um jardim,
A açucena ou o jasmim,
O lírio, o cravo, uma rosa.

Amo-te porque fascinas
Com esse olhar fulgurante
Que asseteia os corações,
D'esses olhos dois carvões,
A graça do teu semblante.

Amo-te porque és bonita
Com esse preto cabelo,
Em anéis fulvos, sedosos,
Cobrindo os ombros formosos
Fulgurante, crespo, belo.

Amo-te enfim porque és meiga
Qual pomba que arrulha mansa,
Porque és boa e carinhosa,
E esta alma angustiosa
Precisa d'amor, criança.

Precisa d'amor! Não sabes
Que é lutar o viver?
O homem sofre amarguras
Por isso busca ternuras
No seio d'uma mulher.
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A SAUDADE

Era de tarde ao pôr do sol, a brisa
Vinha fagueira a remexer as flores,
Iam velozes sobre a fronte lisa
Do Tejo d'ouro de ideais amores,

Ligeiros barcos, avezinhas mansas.
Desferidos em harpas geniais,
Por virgens d'olhar meigo e loiras tranças,
Vinham trenós sublimes, ideais.

O mundo todo pleno d'harmonia.
Eu, só, fitava a solidão do mar
Dominado d'ideal melancolia.

E que buscava então na imensidade?
É que me vinha fundo cruciar*
O acerado** espinho da saudade!
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NOTA:
* Cruciar: Afligir, atormentar, torturar.
** Acerado: Diz-se do que se assemelha ao aço.
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ESPERANÇA

Fitei o teu retrato tristemente
Cansado do trabalho, sem alento,
O espirito meu n'esse momento
Sofria acerbadamente, amargamente.

Contemplei-o e dei-lhe um beijo ardente
Para desafogar o sofrimento,
Pareceu-me que sorrias, pensamento
Que me passou no cérebro latente.

E fui abandonado p’la tristeza,
Recobrei para a luta mais vigor
Trabalharei tenaz e com firmeza.

Vou-me tornar estóico contra a dor.
Eu vi n'esse sorrir de tal beleza
A firme esp’rança d'um eterno amor!

Poemas de Faustino Fonseca Júnior. Lyra da mocidade Primeiros versos. Angra do Heroísmo/Portugal, 1892
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Faustino da Fonseca Júnior nasceu em Angra do Heroísmo, filho de um militar liberal que havia ficado nos Açores após a Guerra Civil. Concluiu o ensino secundário no Liceu Nacional de Angra do Heroísmo, preparando-se para seguir a vida militar. Na sua cidade natal iniciou-se no jornalismo, dirigindo o Noticiarista e revelando-se adepto das ideias republicanas. Partiu para Lisboa com o objetivo de frequentar o curso preparatório da Escola do Exército, onde se matriculou. As suas convicções republicanas, acirradas pela Revolta de 31 de Janeiro, levaram-no a não prosseguir a vida militar, dedicando-se ao jornalismo, colaborando com jornais como O Século, Correio da Manhã, Mundo e Luta. Em 1895 dirigiu o periódico Vanguarda.
Manteve intensa atividade política, especialmente a partir do ultimato britânico de 1890, distinguiu-se como agitador e membro do Batalhão de Voluntários que se ofereceu para ir defender Lourenço Marques, sendo em consequência preso em diversas ocasiões.
Com a implantação da República Portuguesa foi eleito deputado na Assembleia Constituinte pelo círculo eleitoral de Angra do Heroísmo. Com a aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1911 passou a ocupar o cargo de senador, integrando o primeiro Senado da República. Em 1915 voltou a ser eleito senador pelo mesmo círculo.
Em Março de 1911 foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa, substituindo no cargo Xavier da Cunha. Dirigiu aquela biblioteca até à sua morte, levando a cabo diversas iniciativas visando a democratização cultural.
Pertenceu à maçonaria, tendo sido iniciado em 1895. na Loja Renascença, em Lisboa, adotando o nome simbólico de Vasco da Gama.
Para além de uma extensa obra jornalística, é autor de uma volumosa e diversificada obra literária, abrangendo áreas tão diferentes como a teoria política, a historiografia, o romance histórico e as peças para teatro.

Fonte: 

Contos e Lendas do Mundo (Espanha: A Moura Torta)

Havia um rei que tinha um filho, e quando este chegou à  idade de casar, disse a seus pais: 

- Quero me casar com a mulher mais formosa do mundo. Assim, vou percorrer o mundo até encontrá-la.

Saiu do palácio e caminhou até chegar a uma fonte, onde parou para tomar água. Ao inclinar-se para beber, viu que se refletiam três laranjas. Ergueu os olhos e viu que de uma frondosa laranjeira pendiam três grandes e belas laranjas.

- Que saborosas devem ser - disse o príncipe, e dizendo isso, subiu na árvore e cortou as três preciosas laranjas.

Partiu a primeira e, como por encanto, saiu dela uma jovem muito linda que, ao ver o príncipe, lhe disse:

- Dá-me pão.

- Não posso - disse ele - porque não tenho.

- Então volto para minha laranja - disse a jovem, e desaparecendo, deixou a laranja intacta.

Partiu o príncipe a segunda laranja e da fruta saiu outra jovem, muito mais bela que a primeira.

- Dá-me pão - disse ao príncipe.

- Não posso, pois não tenho - ele falou.

- Então volto para minha laranja. 

A laranja se fechou e ficou como antes.

O príncipe ficou pensativo e, decidiu conseguir pão, a fim de dar à ultima jovem da laranja. Assim pensava o jovem, quando coincidiu de passar por ali um cigano em seu coche.

- Amigo - gritou o príncipe - te darei uma moeda de ouro por um pedaço de pão.

Rapidamente o cigano desceu da carruagem e correu a levar o pão ao príncipe. O príncipe ficou muito contente e satisfeito. Partiu a terceira laranja e, como havia imaginado, do coração da fruta saltou uma jovem muito mais formosa que as anteriores.

- Dê-me pão - ela disse.

O príncipe alegremente deu o pão á  jovem, que em seguida falou: 

- Agora te pertenço, podes fazer de mim o que quiseres.

- Contigo me caso - lhe disse o príncipe.

Como a jovem estava nua, o príncipe queria antes vesti-la para leva-la ao palácio. Deu uma olhada na roupa do cigano que ainda permanecia ali, porem notou que estavam muito sujas.

O príncipe então disse à jovem: - Espera aqui com este cigano até que eu volte com uma roupa.

O cigano tinha uma filha que viajava com ele no coche, porém tinha dormido durante todo o tempo em que a história das laranjas ocorria. Ao despertar no momento em que o príncipe subia no cavalo, caiu de amores por ele. Desceu logo do coche e foi perguntar ao seu pai o que estava acontecendo. Ele lhe contou o ocorrido.

A cigana, vendo a jovem, lhe disse: - Deixa-me te pentear para que fiques mais bonita para o regresso do príncipe.

A jovem consentiu, e enquanto a cigana penteava sua formosa cabeleira, sentiu que lhe cravavam um alfinete na cabeça. No momento a dama da laranja se transformou numa pomba. A cigana então tirou a roupa e se colocou no lugar onde estava a jovem.

O príncipe voltou e quando viu a cigana, disse: - Senhora! Como escureceste!

A cigana respondeu: - É que demoraste e acabou me queimando o sol.

O príncipe, acreditando ser a mesma jovem da laranja, levou a cigana ao palácio e se casou com ela.

Um dia chegou uma pombinha ao jardim do rei e disse ao jardineiro:

– Jardineirinho do rei, como está o príncipe com sua mulher?

- Umas vezes canta, porem mais vezes chora - disse o jardineiro. 

Todos os dias chegava a pombinha e fazia a mesma pergunta ao jardineiro, até que este contou ao príncipe. O príncipe deu ordem ao jardineiro para que prendesse a pombinha. O jardineiro untou de visgo a árvore onde diariamente pousava a pombinha e, quando esta chegou para sua visita diária, ao querer voar, ficou presa à  árvore, podendo apanha-la o jardineiro e leva-la ao príncipe.

O príncipe se enamorou da pombinha. Colheu-a com carinho e ao acariciar-lhe a cabeça, encontrou o alfinete que tinha sido cravado e retirou-o. Imediatamente a pombinha se transformou na bela dama da laranja. A formosa jovem contou sua aventura ao príncipe e, entrando os dois no palácio, comunicaram o ocorrido ao rei.

O rei, indignado, deu ordens para que imediatamente matassem a cigana, e o príncipe e a dama da laranja se casaram e foram felizes para sempre.

Fonte:

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 65 a 67 (FINAL)

65 — ACABARAM-SE OS TEMPOS ROMÂNTICOS

Não SEI SE daqui para diante vocês vão achar algum interesse na minha vida. De 1894 em diante procurei ser um homem pacato, sensato, discreto no vestir e no falar, amigo do sossego. Nem sempre, confesso, pude manter essa linha. Mas consegui milagres. Porque, no fim de contas, eu era Tibicuera, índio tupinambá.

A verdade é que os tempos românticos tinham acabado. Não havia mais lugar para aquelas aventuras malucas do passado. Os corsários já não ousavam desembarcar nas nossas costas. Não havia questões sérias de limites. Os homens civilizaram-se. Estávamos prestes a entrar num novo século! 

Minha vida corria sem incidentes dignos de nota. Eu era um homem igual aos outros. Quanto às “aventuras do Brasil”, se eu fosse descrever o que se passou entre 1894 e 1937 corria dois riscos: o de fazer vocês bocejarem e o de amanhã me ver envolvido numa polêmica pelos jornais. Porque a História do Brasil da República para cá, meus amigos, só poderá ser contada com serenidade daqui a cinquenta anos no mínimo.

Olhem. Estamos na praça central duma grande cidade... Que vemos? Pouca coisa. Mas se subirmos para o alto de um monte que fique a alguma distância dessa cidade, havemos de enxergá-la em toda a sua extensão e formar sobre ela a nossa opinião, livre da influência dos seus habitantes. Isso não impede que, recorrendo ao meu caderno de notas, eu lhes dê em poucas palavras um apanhado do que se passou de 94 para cá.

66 — O DESFILE DOS PRESIDENTES

Folhando meu caderno de notas, que vejo? Uma fila de presidentes, vice-presidentes, ministros, fatos, revoluções, heróis, visionários, escritores... e nem sei quanta coisa mais!

Quando a gente se lembra de uma pessoa, imagina a cara dela e ao mesmo tempo algum acontecimento que se passou com essa pessoa. Por exemplo: Quando recordo um presidente que tivemos, ligo à sua imagem duas datas — principio e fim de seu governo — os fatos mais importantes desse período governamental e junto a tudo isso alguns acontecimentos da minha vida particular. Eis uma maneira resumida e pitoresca de gravar na memória a História recente do Brasil.

Atenção! Vai começar o desfile.

PRUDENTE DE MORAIS. Vejo na cabeça dele os números 1894 e 1898. 
Misturo estas imagens com as seguintes: Revoltosos no pátio da Escola Militar. Bandeira branca nas coxilhas do Rio Grande: fim da revolução. 

Nos sertões da Bahia, um homem barbudo com olhos de doido: Antônio Conselheiro, um visionário, que reuniu fanáticos, formou um núcleo formidável, Canudos, que resistiu a muitas expedições de forças do Exército. A Troia de Palha, que nunca se rendeu.

Vejo também o Ministro da Guerra, Mal. Carlos Machado de Bittencourt assassinado quando defendia o Presidente duma agressão.

CAMPOS SALES. Este nome me lembra os números 1898 e 1902. 
Nesses quatro anos aconteceram coisas importantes. Eu, Tibicuera, formei-me em Medicina e montei um consultório. Vi o Presidente da Argentina que visitou o Rio de Janeiro. Campos Sales foi à Argentina, retribuindo a visita. Entramos com festas no século XX. Ao entrar 1901, não sei por que, senti uma enorme saudade do pajé. Creio que derramei umas duas lágrimas na grande madrugada.

RODRIGUES ALVES. Duas datas: 1902 a 1906. 
Em 1902 conheci um dos maiores romancistas da língua portuguesa: Machado de Assis. Era um homem calado acanhado, tímido. Seus romances fariam figura bonita em qualquer literatura do mundo. Nesse mesmo ano conheci dois poetas notáveis: Raimundo Correia e Olavo Bilac. Mas... que é que me lembra mais o nome de Rodrigues Alves?

Ah! O Brasil ganhou mais um naco de terra: o Território do Acre pela indômita bravura de um filho do Rio Grande: José Plácido de Castro. Deixei crescer uma pera Escrevi um livro: “A Vida na Taba”. A crítica lhe foi desfavorável. Disseram: “O autor desconhece o assunto.” Sorri. No fim de contas eu podia estar mesmo esquecido...

Travei relações com outro romancista notável — Aluísio de Azevedo. Outros acontecimentos: Desastre do navio “Aquidabã”. Remodelação da cidade do Rio de Janeiro.

AFONSO PENA. Se vocês gritarem este nome, eu imediatamente vejo um homenzinho de óculos, bigode e pera brancos. E vejo também desenharem-se no ar as datas de 1906 e 1910.

Em 1910 conheci três grandes personalidades da Literatura: Raul Pompeia, autor de “Ateneu”; Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões” e Graça Aranha, autor de “Canaã”. Todos grandes, tão grandes que me encheram o ano. Li esses três livros e fiquei impressionadíssimo. (Será que vocês não querem sentir as mesmas emoções que o amigo Tibicuera sentiu? Os livros estão aí...)

No governo de Afonso Pena foi decretado o serviço militar obrigatório. Um inimigo me denunciou dizendo que eu estava em idade de fazer o serviço militar. Que tolo! Eu tinha mais de quatrocentos anos. Afonso Pena morre antes de terminar o período governamental. Nilo Peçanha, vice-presidente, fica no poder.

Há poucos dias li este nome: HERMES DA FONSECA. Lembrei-me logo destas datas 1910-1914. 
E pensando nestes números, rememorei os seguintes fatos:
Fanáticos na zona do Contestado. Revolta dos marinheiros. Estado de sítio. Intervenção no Estado do Ceará. O meu casamento.

A publicação do meu livro: “O Quilombo dos Palmares”. (A crítica disse: “Fantasias de poeta.” Muito obrigado!)

Que foi que se passou entre 1914 e 1918? WENCESLAU BRÁS, presidente. 
Meti-me na política. Lutas tremendas. Guerra Europeia Os alemães torpedeiam alguns navios mercantes brasileiros. Revejo Ruy Barbosa, grande jurista, imenso orador, o homem que representou brilhantemente o Brasil na conferência de Haia. (Naquele tempo era moda dizer: “Inteligente como Ruy Barbosa.” “Meu filho vai ser um segundo Ruy.”)

Fiz amizade com um romancista delicioso: Lima Barreto. O Brasil declara guerra à Alemanha. Minha mulher se inquieta, temendo que eu embarque para a Europa. Tranquilizo-a. Um fato sensacional, assassinam pelas costas o Senador Pinheiro Machado, vulto proeminente da política.

RODRIGUES ALVES de novo no governo em 1918! 
Mas não chega a assumir. Vem para o Catete o Vice-Presidente Delfim Moreira. Houve novas eleições. Faleceu. E Epitácio Pessoa, que voltava da Europa onde representara o Brasil na Conferência de Versalhes, foi eleito presidente.

Por esse tempo conheci Coelho Neto, escritor brilhante, e Santos Dumont, o pioneiro da navegação aérea: dois ilustres brasileiros. Vi o Rei Alberto da Bélgica na Avenida Rio Branco. Festas fantásticas em honra do soberano. Conto minha vida a minha mulher. Ela ouve em silêncio minhas aventuras, desde a taba até o momento em que nos achávamos. Quando termino a narrativa, ela diz simplesmente: “Mentiroso. Que exemplo para o teu filho!”

Ah! eu me esquecia de contar que tínhamos um filho. Quis pôr-lhe o nome de Tibicuera, para não quebrar a cadeia, Minha senhora protestou. Não queria. Preferia Paulo. Resignei-me. Eu não era mais o guerreiro dos velhos tempos...

Mas... voltemos ao governo de Epitácio Pessoa. Revoltas militares. Prisão do Mal. Hermes. Em 1922, como fazia cem anos que D. Pedro I soltara o brado de independência, houve festejos monumentais. Numa solenidade pública tomei a palavra. Comecei: “Ninguém mais autorizado que eu para falar nesta data, pois, como oficial dos dragões do Império, vi com estes olhos D. Pedro erguer a espada e...” Fui interrompido por uma vaia ensurdecedora. Recebi na cara ovos, repolhos, pedradas e quase fui linchado. 

Em compensação nesse dia conheci um grande poeta e prosador: Ronald de Carvalho.

Foi no governo de ARTHUR BERNARDES— 1922 a 1926 — que cheguei ao mais alto grau de prosperidade financeira. Mudei-me para uma confortável casa. Meu filho fazia-se homem. Estava um belo rapagão. Vi-o um dia de maiô na praia. Bronzeado como um bugre. Tive saudade de mim mesmo. Oh! Eu o amo muito. Conto-lhe histórias, procuro estabelecer entre nós dois a intimidade mágica, para continuar a cadeia, para vencer o tempo e a morte. Qual! O rapaz tem outras ideias, faz troça de mim, diz que estou envelhecendo, ficando caduco.

No governo de Bernardes houve uma revolução no Rio Grande do Sul. A eterna história dos dois partidos rivais. Reforma da Constituição. Comprei um rádio. Meu rapaz me obrigou a adquirir um baratinho.

Veio o governo de WASHINGTON LUÍS: 1926 a 1930.
O presidente, prestes a terminar o seu mandato, indica o homem que deve substituí-lo. Com isso não concordam muitos Estados que formam a Aliança Liberal e fazem por todo o País uma intensa campanha eleitoral. Mas para que estar resumindo, repetindo fatos que vocês todos conhecem, pois aconteceram ontem?

O nome de Washington Luís me faz lembrar aquela avalancha de todos os pontos do País rumo ao centro. A revolução de outubro. Citar nomes? Mas vocês viram. Se não viram, peçam aos mais velhos que lhes contem. É muito cedo para escrever a História destes últimos anos — repito.

No momento em que resolvo pingar um ponto final às minhas aventuras, quem governa o Brasil é Getúlio Vargas. Mudei-me em 1930 para Copacabana. Para o apartamento do arranha-céu onde estou agora escrevendo esta história. Esta história que não sei se saiu boa ou má, agradável ou desagradável. Esta história que durou mais de 400 anos e cento e poucas páginas. 
FIM

67 — ILUSÃO

Deixo por um instante a minha máquina-portátil em que bati todo este livro. Levanto-me. Vou até a janela. Meus olhos descansam no verde bonito do mar — do velho mar onde vi as caravelas de Cabral. Volto ao passado em pensamento. E de repente sinto um sobressalto. É que vejo lá em baixo à beira d’água um vulto familiar e querido. Meu coração bate com mais força... Não pode haver engano. É ele, sim, é Anchieta. Está encurvado, escrevendo alguma coisa na areia. Talvez um novo poema à Virgem. Bem como naquele dia em Iperoig, enquanto os tamoios rugiam e faziam planos de vingança. O mar vem lamber os pés do apóstolo. Ele está indiferente aos banhistas, aos guarda-sóis de gomos coloridos. Fico por um instante deslumbrado. Procuro vencer o espaço que me imobiliza. Faço meia volta. Precipito-me para fora de meu apartamento. Impaciente, não espero o ele​vador. Lanço-me escadas abaixo. De novo me sinto ágil como o índio que corria na taba. Vou apertar a mão de meu amigo Anchieta! Vou pedir-lhe notícias de Nóbrega e dos outros. Vou pedir-lhes que voltem, pois ainda há trabalho, muito trabalho a fazer. Ainda há alguns indígenas a catequizar.

Sim, apesar dos arranha-céus, dos aviões, do rádio. Desço a escada de três em três degraus. Chego finalmente ao térreo. Atravesso o saguão como uma frecha. Saio para o sol. Corto a rua. Avanço, pela areia. Correndo sempre. Enxugo o suor. E me encontro frente a frente com um cidadão vestido de preto que risca pacientemente na areia, com a ponta de seu guarda-sol, um nome qualquer. Ele me olha, espantado. Gaguejo uma desculpa:

— Perdão... Pensei que fosse Anchieta.

Ele não compreende. Alguns banhistas que estão por ali riem da minha atrapalhação. Volto para o meu apartamento, decepcionado e infeliz.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 


domingo, 29 de abril de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de Quem Entende de Trovas) IV


1
A fé tem luz invisível
que brilha no coração
iluminando o possível
no caminho da oração.
2
A goteira enciumada
feriu a rosa em botão
porque à chuva misturada
nunca chamou atenção.
3
Caminhando entre a neblina
na esperança da chegada
o andarilho vive a sina
de uma eterna madrugada.
4
Criar filhos... requer sim
muito amor, senão vejamos:
construímos um jardim
mas das flores não cuidamos.
5
Como sou tão distraído!
Após você ir embora
notei quem tinha fugido:
eu de mim... somente agora!
6
Cultiva a paz aí dentro
do teu coração agora.
Sentirás o amor no centro
e a alma brilhar por fora.
7
De tanto pensar em mágoa 
a tristeza perpetua 
alma transbordante em água 
com pedras de qualquer rua.
8
Distância não é medida
se a paixão é verdadeira;
o calor de despedida
não diminui a fogueira.
9
Escrevo agora somente
sabendo estar solitária;
seu antigo remetente
tem outra destinatária.
10
Liberta meu coração
preso ao teu farto ciúme.
Imita a flor em botão
prestes a exalar perfume.
11
Minha luz interior
tomou forma e consistência
quando descobri o amor
na mais singela existência.
12
Na fúria da roda-viva
no constante competir,
é o cansaço que incentiva
a parar... pensar... e agir.
13
No fim do túnel a luz
sinaliza uma esperança.
Quem a seu brilho conduz
a vitória sempre alcança.
14
No silêncio da varanda,
caramanchão ressequido.
Sinais de pés em ciranda
parecem não ter sumido.
15
Nossas almas tão unidas
num mistério sedutor
parecem que de outras vidas
já nutriam grande amor.
16
Nossas peles coloridas 
num mundo tão pequenino 
são luzes que nossas vidas 
acendem mesmo destino.
17
Nuvens brancas, passageiras,
ao vislumbrarem a terra...
com suas plumas ligeiras
fazem carícias na serra.
18
O ipê floresce no inverno; 
chuva esparsa no verão; 
amor e abraço fraterno 
aquecem toda estação.
19
O nosso tempo é tão lento 
e ao mesmo tempo em zás-trás 
leva e traz na voz do vento 
o bem e o mal que se faz.
20
Os meus brinquedos de infância
à lembrança não têm fim
na criança sem distância
a sonhar dentro de mim!
21
O tempo não tem idade 
nas artimanhas da vida: 
revela toda verdade 
onde a mentira é vivida.
22
Paz! Ver o mundo ao redor
com consciência tranquila;
no próximo o bem maior
sem inveja que aniquila.
23
Quando a mente se alvoroça
e vocifera no entulho
arremeda uma carroça:
mais vazia... mais barulho.
24
Quem leva a vida pequena
seu espírito não medra;
a virtude pesa pena
e o defeito pesa pedra.
25
Sei, nem tudo é um mar-de-rosas;
aprendi com teus carinhos;
as paisagens mentirosas
mostram rosas sem espinhos.
26
Sinto até hoje a carência,
em noites tristes de inverno,
o rigor da paciência
no do doce afago materno.
27
Teatral, muito fagueira,
a trova não é pequena:
representa a peça inteira
em uma única cena!
28
Um leve toque em um ombro
com doações de energias
remove dores no escombro
das horas tristes... vazias...
29
Viver hoje intensamente...
futuro sem ansiedade
não há barreira que tente
apagar qualquer verdade.
30
Volto a crer no amor... senti-lo;
bastou o exemplo que ouvi
partindo de um simples grilo
o estridular: CRI ! CRI ! CRI !

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor 

Malba Tahan (O Pastorzinho Adormecido)


Vencido pela fadiga, o pobre pastorzinho deitou-se à sombra de uma grande árvore, à margem da estrada, e dormiu placidamente.

Que idade poderia ter aquele pequenino de feições tão delicadas? Quinze ou dezesseis anos, talvez... Era um adolescente.

Passou pela grande estrada o rei com sua rutilante guarda de nobres e cavaleiros. O poderoso monarca não tinha filhos e procurava ansioso pelo mundo um herdeiro digno de sua invejável coroa. Ao avistar, pois, o jovem zagal (pastor), o Rei parou e dirigindo-se ao oficial que o acompanhava, disse-lhe.

— Que belo menino vejo ali, a dormir, sob aquela árvore! Se a boa-sorte o colocou no meu caminho, para que contrariar o Destino? Tenho o pressentimento de que poderei realizar agora o sonho admirável de minha vida! Vou levar aquele jovem para o meu palácio e fazê-lo herdeiro do meu trono e de meus tesouros.

E o rei desceu de sua bela carruagem e aproximou-se cuidadoso do pastorzinho adormecido.

Mas... como é incerto e caprichoso o destino das criaturas! O pastorzinho dormia tão sereno, tão tranquilo, que o poderoso monarca ficou com pena de acordá-lo.

— Não, não o despertarei agora — exclamou afinal — Seria uma crueldade arrancá-lo às delícias do sono. Voltarei depois.

E, deixando o pastorzinho adormecido, seguiu a jornada, pela estrada longa, para nunca mais voltar...

Momentos depois, pela estrada silenciosa, passou uma formosa princesa, com suas aias e damas de companhia. Acentuadamente romântica não hesitava em satisfazer as fantasias mais extravagantes que lhe ditava o arrebatado coração. Ao pousar os olhos no pastorzinho adormecido, encheu-se de súbita alegria e exclamou:

— Que lindo rapaz, vejo ali, a dormir, descuidado, sob aquela árvore! Tem, precisamente as feições admiráveis do noivo que sonhei para mim. Vou levá-lo agora mesmo para o palácio de meus pais e elegê-lo meu futuro esposo. Sinto-me, desde já, loucamente apaixonada por esse louro pastorzinho!

E a sentimental princesa aproximou-se leve e delicadamente do eleito de seu coração.

Mas... como é incerto e caprichoso o destino das criaturas! O jovem dormia tão plácido, tão tranquilo, que a princesinha romântica ficou com pena de acordá-lo.

— Não! Seria impiedade despertá-lo agora! Ê bem possível que esteja até a sonhar comigo! Voltarei depois, ao cair da tarde!

E a encantadora filha de reis, deixando o pastorzinho adormecido, seguiu jornada, pela longa estrada, para nunca mais voltar.

Continuava, ainda, o pastor a dormir sob a árvore, quando cruzou a estrada um dos bandidos mais perigosos da região. Pesavam-lhe sobre os ombros os crimes mais cruéis e revoltantes.

Ao deparar-se-lhe o pastorzinho adormecido, o assassino encheu-se de ódio e furor. Em seus olhos brilhava a perversidade dos loucos furiosos.

— Olá! Que vejo! Um menino a dormir como um ébrio no caminho! Vou matá-lo, e é para já. Assim me vingo das perseguições que tenho sofrido nesta maldita terra.

E, arrancando de um afiado punhal, o facínora aproximou-se, pé ante pé, do pobre pastorzinho.

Mas... como é incerto e caprichoso o destino das criaturas! O jovem dormia tão sereno, tão tranquilo, que o bandido hesitou em sacrificá-lo.

— Não —- resmungou afinal. — Não o matarei agora! O sono não permitiria, por certo, que ele sentisse a morte. Voltarei mais tarde, e, então, liquidaremos as nossas contas.

E o impiedoso assassino, deixando em paz o pastorzinho, seguiu jornada, pela longa estrada, para nunca mais voltar!

Meus amigos, reparai bem. Quantas vezes, em meio do turbilhão de vossa existência, não ficastes, como o pastorzinho da lenda, adormecido à margem da grande estrada da Vida? E de vós também se aproximaram, em certos momentos, sem que pudésseis perceber a Fortuna, o Amor e a Morte...

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Olivaldo Júnior (4 Sonetilhos e 2 Glosas)


ESSA VIDA E SEUS MILAGRES
Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria não faz mais do que existir. 
Oscar Wilde

Dos milagres dessa vida,
o maior foi ver a mim,
tão pequeno e sem saída,
ter o sol desse jardim. 

Dos milagres dessa vida,
o melhor foi crer no fim
dessa (e)terna despedida
e no início do "Sem-fim".

Pois milagres acontecem
com os servos que resistem
e confiam no que tecem!...

Que o tecido dessa prece
seja leve aos que persistem
nos milagres que Ele tece!
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UM AMOR PRA RECORDAR
(Sobre o romance de Nicholas Sparks)

Num enredo de cinema,
num romance juvenil,
um casal se torna o tema
dum amor primaveril...

Ele custa a compreender
que ela é luz em sua vida;
e os dois custam a saber
que viver tem despedida...

Da canção que enluarar
Jamie e Landon no salão,
uma estrada vai brilhar!...

Quando Deus os separar,
vão ser dois num coração:
- "Um amor pra recordar".
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DAS ESTRELAS QUE CRIEI

Das estrelas que criei,
uma delas inda brilha
e me faz lembrar do rei
que ficou naquela ilha...

Que ficou naquela ilha,
sem saber o que eu já sei
e pressinto nessa trilha
que, plebeu, me destinei.

Das estrelas que criei,
a mais velha sei que serve
de lanterna para o rei,

este ser que destronei,
mas me dera toda a verve
desse reino, que forjei.
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NO CANTEIRO DA MEMÓRIA

No jardim da consciência,
no canteiro da memória,
nasce a flor da paciência,
flor aberta para a glória.

Para aguá-la, a sapiência
se fez água (Que vitória!),
no jardim da consciência,
no canteiro da memória.

Pelo 'espelho' dessa flor,
vejo a face de quem fui
e de quem se fez rancor.

Na verdade, aquela flor,
paciente, em si conclui
que ser flor exige amor.
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Glosando Luiz Otávio 
(18/07/1916 - 31/01/1977)

MÁGOA SECRETA

MOTE:
Nessas angústias que oprimem,
que trazem o medo e o pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto!
(Luiz Otávio)

GLOSA:
Nessas angústias que oprimem
o coração do Poeta,
nascem as trovas que imprimem
a sua mágoa secreta...

Com as lágrimas que se impõe,
que trazem o medo e o pranto,
faz versos e enfim compõe
com redondilhas seu canto...

Nos lábios que se comprimem
contra os da voz predileta,
há gritos que nada exprimem
da mágoa atroz do Poeta...

Que a mágoa se decompõe 
nas trovas... num acalanto,
segredos que o bem dispõe,
silêncios que dizem tanto!
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Glosando Vanda Alves da Silva

MINHA ESPERANÇA

MOTE:
Em meus tempos de criança,
pelas poças, num tropel...
lançava minha esperança
em barquinhos de papel...
(Vanda Alves da Silva/Curitiba-PR)

GLOSA:
Em meus tempos de criança,
sossegado e até baldio,
só queria ser quem lança
novas redes para o rio!...

Numa intrépida "ignorãça",
pelas poças, num tropel,
tropeçava em quem alcança
seu sertão num carrossel...

Na calçada, Sancho Pança
sem Quixote (tão vazio!),
lançava minha esperança,
minha rede, ao meio-fio!...

Céu azul que não se cansa,
nuvens brancas a granel,
dava a vida em confiança,
em barquinhos de papel...

Fonte: O Autor