sábado, 12 de janeiro de 2013

Clássicos do Cancioneiro Popular (Flor do Dia)



Colhida em Recife.
–––––––––––

Alevanta, meu amor
 Desse bom dormir
 Chame sua mãe
 Para me acudir

 Levantou-se ele
 Sem mais descanso
 Foi selando logo
 Seu cavalo branco

 — Deus vos salve, mãe
 No vosso estrado
 — Deus vos salve, filho
 No vosso cavalo
 Apeia pra baixo
 Jantar um bocado
 — Não quero jantar
 Que vim a chamado
 Que a Flor do Dia
 Lá ficou de parto
 — De mim para ela:
 Um filho varão
 De espora no pé
 E espada na mão
 Rebente por dentro
 Pelo coração

 — Flor do Dia
 Faça por parir
 Minha mãe está doente
 E não pode vir
 Alevanta, amor
 Desse bom dormir
 Chame minha mãe
 Para me acudir
 Que ela mora longe
 Mas sempre há de vir
 Grande dor, marido
 É dor de parir!

 — Deus vos salve, sogra
 No vosso estrado
 — Deus vos salve, genro
 No vosso cavalo
 Apeia pra baixo
 Jantar um bocado
 — Não quero jantar
 Que vim a chamado
 Que a Flor do Dia
 Lá ficou de parto
 — De mim para ela:
 Um filho estimado
 Que eu veja no trono
 Um bispo formado
 Espera lá, meu genro
 Deixa-me vestir
 Que ela mora longe
 Mas sempre hei de ir

 — Pastor de ovelhas
 Que sinal é aquele
 Que está dobrando?
 — É dona Estrangeira
 Que morreu de parto
 Sem haver parteira
 — Aquele sino
 Não cessa de dobrar
 Nem meus olhos
 Também de chorar
 Adeus, minha filha
 Do meu coração
 Que morreu de parto
 Sem minha bênção
 Adeus, milha filha
 Que eu vinha te ver
 Quem não tem fortuna
 Mais val ao nascer

Fonte:
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (O Mauari e o Sono )


Mauari (Ardea Maguari) é um pássaro que não tem pouso certo. Quando pousa, durante o dia ou à noite, em qualquer lugar, começa logo a cochilar e, então, como que sacudido por um susto, levanta vôo subitamente, espantando. 

Contam que o mauari, certa vez, querendo matar o sono esperou-o pousado no galho de uma árvore. Enquanto esperava, ia resmungando: 

— Vou matar esse sono! Vou ficar vigilante. Tenho de matá-lo!

Não demorou muito viu um vulto que se aproximava.

— Acho que é o sono que vem vindo aí... 

Quando o vulto estava bem pertinho e o sono bem próximo, o mauari cochilou, mas acordou de repente, agitou as asas e voou, gritando:

— Cuá! Cuá! Cuá! — e foi para longe dizendo: — Ora vejam o meu coração! Eu cochilei e o sono fugiu. Mas não faz mal. Vou esperá-lo de novo!

Pousado noutra árvore, esperou e esperou. Foi vendo novamente, ali perto, uma escuridão que se aproximava. 

— Aí vem ele de novo! — disse consigo — Agora eu o pego com o meu bico!

A escuridão já vinha bem perto quando o mauari cochilou e, de repente, abriu os olhos, assustado e levantou vôo, gritando: 

— Cuá! Cuá! Cuá!

E assim acontece sempre, desde a antiguidade.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Machado de Assis (Francisco de Castro: Harmonias Errantes)


[RJ.,4 ago. 1878.]

MEU CARO POETA, - Pede-me a mais fácil e a mais inútil das tarefas literárias: apresentar um poeta ao Público. Custa pouco dizer em algumas linhas ou em algumas páginas, de um modo simpático e benévolo, porque a benevolência necessária aos talentos sinceros, como o seu, custa pouco dizer que impressões nos deixaram os primeiros produtos de uma vocação juvenil. Mas não é, ao mesmo tempo, uma tarefa inútil? Um livro é um livro; vale o que efetivamente é. O leitor quer julgá-lo por si mesmo; e, se não acha no escrito que o precede, – ou a autoridade do nome, - ou a perfeição do estilo e a justeza das idéias, - mal se pode furtar a um tal ou qual sentimento de enfado. O estilo e as idéias dar-lhe-iam a ler uma boa página, - um regalo de sobra; a autoridade do nome enchê-lo-ia de orgulho; se a impressão da crítica coincidira com a dele. Suponho ter idéias justas: mas onde estão as outras duas vantagens? Seu livro vai ter uma página inútil.

Sei que o senhor supõe o contrário; ilusão de poeta e de moço, filha de uma afeição antes instintiva que experimentada, e, em todo caso, recente e generosa; seu coração de poeta leu talvez, através de algumas estrofes que aí me ficaram no caminho, este amor da poesia , esta fé viva em alguma coisa superior às nossas labutações sem fruto, primeiro sonho da mocidade e última saudade da vida. Leu isso; compreendeu que há ídolos que se não quebram e cultos que não morrem, e veio ter comigo, de seu próprio movimento, cheio daquela cândida confiança de sacerdote novo, resoluto e pio. Veio bem e mal; bem para a minha simpatia, mal para o seu interesse; mas, segundo já disse, nem bem nem mal para o publico, diante de quem esta página é demais.

E contudo, meu caro poeta, é difícil esquivar-se um homem que ama as musas a não falar de um poeta novo, em um tempo que precisa deles, quando há necessidade de animar todas as vocações, as mais arrojadas e as mais modestas, para que se não quebre a cadeia da nossa poesia nacional.

Creio que o senhor pertence a essa juventude laboriosa e ambiciosa, que hesita entre o ideal de ontem e uma nova aspiração, que busca sinceramente uma forma substitutiva do que lhe deixou a geração passada. Nesse tatear, nesse hesitar entre duas coisas, - uma bela, mas porventura fatigada, outra confusa, mas nova, - não há ainda o que se possa chamar movimento definido. Basta, porém, que haja talento, boa vontade e disciplina; o movimento se fará por si, e a poesia brasileira não perderá o verdor nativo, nem desmentirá a tradição que nos deixaram o autor do Uruguai e o autor d' Os Timbiras.

Citei dois mestres; poderia citar mais de um talento original e cedo extinto, a fim de lembrar à recente geração, que qualquer que seja o caminho da nova poesia, convém não perder de vista o que há essencial e eterno nessa expressão da alma humana. Que a evolução natural das coisas modifique as feições, a parte externa, ninguém jamais o negará; mas há alguma coisa que liga, através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa inalterável, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos. Ninguém o desconhece, decerto, entre as novas vocações; o esforço empregado em achar e aperfeiçoar a forma não prejudica, nem poderia alterar a parte substancial da poesia, - ou esta não seria o que é e deve ser!

Venhamos depressa ao seu livro, que o leitor tem ânsia de folhear e conhecer. Estou que se o ler com ânimo repousado, corri vista simpática, justa, reconhecerá que é um livro de estréia, incerto em partes, com as imperfeições naturais de uma primeira produção. Não se envergonhe de imperfeições, nem se vexe de as ver apontadas; agradeçao antes. A modéstia é um merecimento. Poderia lastimarse se não sentisse em si a força necessária para emendar os senões inerentes aos trabalhos de primeira mão. Mas será esse o seu caso? Há nos seus versos__ uma espontaneidade de bom agouro, uma natural simpleza, que a arte guiará melhor e a ação do tempo aperfeiçoará.

Alguns pedirão à sua poesia maior originalidade; também eu lha peço. Este seu primeiro livro não pode dar ainda todos os traços de sua fisionomia poética. A poesia pessoal, cultivada nele, está, para assim dizer, exausta; e daí vem a dificuldade de cantar coisas novas. Há páginas que não provêm dela; e, visto que aí o seu verso é espontâneo, cuido que deve buscar uma fonte de inspiração fora de um gênero, em que houve tanto triunfo a par de tanta queda. Para que a poesia pessoal renasça um dia, é preciso que lhe dêem outra roupagem e diferentes cores; é precisa outra evolução literária.

O perigo destes prefácios, meu caro poeta, é dizer demais; é ocupar maior espaço do que o leitor pode razoavelmente conceder a uma lauda inútil. Eu creio haver dito o bastante para um homem sem autoridade. Viu que não o louvei com excesso, nem o censurei com insistência; aponto-lhe o melhor dos mestres, o estudo; e a melhor das disciplinas, o trabalho. Estudo, trabalho e talento são a tríplice arma com que se conquista o triunfo.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Soares de Passos (O Escravo)


Tremes, escravo? baqueias
Entre os muros da prisão?
Vergado sob as cadeias
Rojas a fronte no chão?
Já da turba ao longe o grito
Pede teu sangue maldito:
Sentes, escravo proscrito,
Vacilar teu coração?

Não sinto! nada perturba
Minha alegria feroz –
Nem o bramir dessa turba,
Nem a lembrança do algoz.
Vinguei-me! nada me aterra,
Curvai-vos, homens da terra!
Contra mim juraste guerra;
Guerra jurei contra vós.

Eu era livre sem meta
Como as ondas lá no mar;
Era livre como a seta
Quando sibila no ar:
Em vossa avidez tirana
Que me algemou desumana...
Ó minha pobre choupana!
Ó florestas do meu lar!

Além, além nas florestas,
Foi além onde eu nasci;
Onde sem prisões funestas
Já venturoso vivi.
Foi dos bosques na espessura
Que eu tive amor e ternura;
Mas liberdade e ventura,
Pátria, amor, tudo perdi.

Perdi tudo! além da morte
Já não me resta ninguém.
Tinha um pai: a negra sorte
Do filho sofreu também.
Trouxe da pátria distante
O férreo jugo aviltante,
Inda eu era tenro infante
Nos braços de minha mãe.

Minha mãe!... oh! quantas vezes
Me vinha a triste abraçar,
E carpindo os seus reveses
Fitava os olhos no mar!
Seu pranto caía ardente,
Em bagas na minha frente;
E eu, pobre infante inocente,
Chorava de a ver chorar.

Mais tarde, quando o navio
Me trazia à escravidão,
Nas praias do mar bravio
Eu a vi cair no chão;
Vi-a através dos espaços,
Morrendo, estender-me os braços...
Sacudi meus férreos laços;
Mas, ai de mim! era em vão!

Perdi-a! só me restava
A virgem do meu amor,
Que a mulher que eu adorava
Quis partilhar a minha dor.
Mas tinha sua beleza
Só dum escravo a defesa...
Devia, oh raiva! ser presa
Do meu infame senhor.

E eu, soberbo vezes tantas,
Curvei-me daquela vez;
Arrastei às suas plantas
Minha feroz altivez.
Debalde! que o vil tirano
Escarneceu do africano;
Maldição! vaidoso, ufano,
Meu amor calcou aos pés.

– É minha, só minha a escrava:
A ti, pertence o grilhão: –
Disse, e o sangue me escaldava
No fundo do coração.
Da vingança a torva imagem
Me sorriu, me deu coragem –
No meu gemido selvagem
Rugiu irado o leão.

Era noite! – negro sonho
Que destes olhos não sai!-
Era noite! um céu medonho
Vi tua sombra, ó meu pai...
Rojando um grilhão pesado,
Teu espectro ensanguentado
Se ergueu sombrio a meu lado,
Sem dar um gemido, um ai...

Té que alçando a voz: – meu filho!
Meu filho! – bradaste enfim,
E os olhos turvos, sem brilho,
Tinhas cravados em mim...
Eu quis lançar-me em teus braços,
Quis cingir-te em doces laços;
Mas fugindo aos meus abraços,
Volvias a olhar-me assim.

Foste escravo... teu destino,
Tua morte compreendi,
E um nome, o do assassino,
Delirando te pedi;
Mas sem atender a nada,
Erguendo a dextra mirrada,
– Vingança! – com voz irada
Bradaste, e não mais te vi.

Sim, vingado foi teu sangue
Por este braço afinal,
Que um deles caiu exangue
Aos golpes do meu punhal.
Era amargo o fel da taça –
Vinguei a nossa desgraça
Num dos tigres dessa raça,
No sangue do meu rival.

Vinguei o meu e teu jugo!
Que importam férreos grilhões,
O cadafalso e o verdugo,
O suplício e as maldições?
Entre os gozos da vingança
Reluz enfim a esperança;
Já não receio a lembrança
De seus cruentes baldões.

Sinto correr-me nas veias
O fogo que lhe ateei...
Quebrai-vos, duras cadeias,
Escravo não mais serei...
Sou livre! a morte o proclama
Neste peito que se inflama...
Já nele circula a chama
Do veneno que eu tomei!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Coelho Neto (Mano) Parte 3


A MORTE

Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.

Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.

Silêncio trágico continha a todos, suspensos.

Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?

Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.

De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:

- Que horas são?

Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”

Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.

Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.

O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para o oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.

E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.

Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.

Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.

Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.

Alguém chamou por ele, em pranto.

Ai! de nós...

Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.

É um caixão que se fecha. Nada mais.

CONSUMMATUM...

Onde estaria eu quando o desceram para a minha sala de trabalho?

Onde estaria eu que não dei pelo trânsito cruciante?

Quando entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no meu coração que estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!? Olhei em volta... Mas toda aquela desordem - velas ainda acesas, o silêncio, o lúgubre vazio...

Se o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos presente; o morto, não!

A morte arrasta tudo consigo e ali nada mais havia, mais nada senão um sulco revolto como o que fica nas águas à passagem de um barco - fundo, mas de breve duração; agitado, mas só em efêmeras espumas.

Onde estaria eu quando o desceram?

E foi diante daquele vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É pelo diâmetro e profundidade da cova que se pode avaliar a extensão das raízes da árvore derrubada.

Onde estaria eu quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo. Foi melhor assim.

Não há hora mais triste que a do ocaso, hora do descer da luz. A noite é o irremediável, com a consolação das estrelas, que são lágrimas.

Fizeram bem em poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio. Foi como se me adormecessem para uma operação dolorosa.

Quando dei acordo de mim tudo estava consumado.

A CHAVE

Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.

Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas entranhas de um peixe?

Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a jóia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.

Todos os abismos têm limite - de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade. Quantos lá têm amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios, todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o desespero.

O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.

Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se precipitaram!

A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias. Para que? De que me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?

Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável da Eternidade.

Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego - porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.

Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer aos penetrais do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?

De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?

Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão tremente e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo Céu e pela terra?

Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente - força, movimento e afeto: lume no olhar, idéia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no inverno.

Árvore!...

A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não levanta.

De que me serve possuir a chave!... Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não revelará jamais.

A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio.

E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias; lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura. 
––––––––

Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

Teatro de Ontem e de Hoje (Leonce e Lena)


Espetáculo teatralista, do grupo Barca de Dionisio, formado por ex-alunos da Escola de Comunicações e Artes e da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, sob a direção de William Pereira. Voltado para a pesquisa de linguagem, o espetáculo domina todo o galpão de eventos do Sesc Pompéia.

O texto de George Büchner, datado de 1836, historicamente pertence ao romantismo; todavia dele faz uma crítica, inaugurando alguns procedimentos que, retomados pelo expressionismo, o tornam um admirável precursor. A ação centra-se nos desencontros entre o casamento arranjado entre Leonce e Lena, príncipes de reinos diferentes, que fogem de casa diante da iminência de uma união não pretendida. Em suas fugas acabam se conhecendo e se apaixonando, como joguetes do destino. O pano de fundo dessa história é a crise pessoal de seus integrantes, dominados pelo tédio, e a crise do poder político, imutável e sem perspectiva de alteração.

A encenação de William Pereira é grandiosa e emprega fartamente os ingredientes da alta teatralidade: no grande galpão são instalados carros móveis contendo os elementos cenográficos, deslocados de lá para cá, segundo as necessidades. Os atores encarregam-se da contra-regragem, imprimindo à realização procedimentos brechtianos. Os figurinos de Marco Antônio Lima recriam os estereótipos românticos, conferindo-lhes um tom crítico. O desenho de luz, criado por Cibele Forjaz e Edinho Amorim, infunde tons líricos e mágicos à plasticidade das cenas, ajudando na fluência do espetáculo, marcado igualmente pela trilha sonora que alterna Doors, Wagner, lieds de Schumman e Franz Schubert.

Em seu comentário, destaca o crítico Alberto Guzik: "William Pereira e Barca de Dionisos fizeram de Leonce e Lena uma celebração apaixonada da teatralidade. Desde o primeiro quadro, numa espécie de ante-sala do galpão, o teatro se denuncia enquanto ficção, mediante o recurso simples (tão querido de Brecht) de fazer os protagonistas envergarem suas vestes de cena à vista do público. (...) O público participa lúdica, fisicamente, do que se passa em cena. (...) O elenco, formado por um conjunto coeso de intérpretes, tem rendimento homogêneo, de admirável equilíbrio".1

Notas

1. GUZIK, Alberto. Uma celebração apaixonada, que resgata a pesquisa. Jornal da Tarde, São Paulo, p. Q-7, 11 dez. 1987.

Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 782)



Uma Trova de Ademar  

Meu santo sempre se vinga, 
Pois cana não lhe ofereço; 
e, sempre que eu bebo pinga, 
“Ele” me dá um tropeço. 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Tem o bebum certa graça
quando ele diz pela rua:
- Sou do planeta cachaça,
mas tô no mundo da lua!
–Campos Sales/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Nosso mundo anda e desanda 
não é como a gente quer; 
na guerra, o homem é quem manda, 
em casa, manda a mulher. 
–Hilton da Cruz Gouveia/RN– 

Uma Trova Premiada  

2000   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   CALOR   -   4º Lugar 

Vim devolver seu marido
Que nada mais me oferece:
- No frio fica encolhido,
e no calor... amolece !!
–Neide Rocha Portugal/PR– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Sendo traída, de graça, 
pelo esposo, capitão, 
a Maria, por pirraça, 
o traiu com o “batalhão”. 
–Célio Grunewald/MG– 

U m a P o e s i a  

Ir a aula sem lápis e papel 
e voltar sem saber do professor, 
implorar paciência de doutor 
conviver com pessoa infiel, 
dois salários e meio de aluguel 
numa casa pequena pra morar, 
pagar um objeto sem comprar 
e assumir um processo sem dever; 
do que a vida me impõe para fazer 
são as coisas que faço sem gostar. 
–Zé Viola/PI– 

Soneto do Dia  

DILEMA FILHO DA MÃE! 
–José Ouverney/SP– 

Existe mãe sem filho? É o que pergunto. 
Tudo porque uma dúvida peralta, 
com poses libertinas chega e assalta 
os mananciais deste cristão bestunto. 

A religião é aquele eterno assunto 
que recoloca em baixa estima a alta; 
sim, pois o excesso também leva à falta, 
desfigurando a essência do conjunto. 

Mas, reportando ao inicial dilema, 
por isso eu não discuto religião: 
minha ousadia não se presta a tanto; 

o acento foge à “ideia” e engole o trema: 
se o santo, em alguns centros, é invenção, 
em outros, quem dá carta é a “mãe de santo”!

Ricardo Azevedo (Se a Terra Não Existisse, a Gente Pisava Onde?)


Tênis é de lona e borracha. Cueca é de pano e elástico. Caderno é de arame e folha de papel. Televisão é de plástico com uma antena em cima e uma tela na frente. 

Casa é feita de telhado, parede, piso, porta e janela. 

Vaca é de couro, chifre e quatro tetas pingando leite. Cachorro é um ônibus peludo cheio de pulgas. Ser humano é feito de carne, osso, coração e idéias na cabeça.

E o mundo em que vivemos?

O mundo é um monte de terra cercada de água por todos os lados.

A água é o mar, o rio, o lago, a chuva, a poça, a lágrima e o cuspe.

A terra é a terra mesmo.

Tem gente que pensa que terra só serve para cavar buraco no chão, para ser hotel de minhoca, para enfiar poste de luz ou então para sujar o pé de lama em dia de chuva, mas não é nada disso.

Se não fosse a terra, a gente pisava onde?

Se não fosse a terra, a gente construía nossa casa onde?

E as cidades? E as estradas? E os campinhos de futebol?

Sem a terra a gente não ia jogar bola nunca mais!

Uma vez eu tive um sonho. Sonhei que estava dormindo com vontade de fazer xixi. Continuei sonhando e pulei da cama. Pobre de mim! Quando pisei no chão, descobri que naquele sonho não existia chão. Lá fui eu caindo, despencando, voando, esvoaçando. O mundo ali era um lugar sem terra, por isso tudo vivia boiando no ar. Saí do quarto, fui voejando, passei pela sala cheia de cadeiras, móveis e mesas voando e cheguei no banheiro. Lá dentro, o chuveiro, a pia e a privada pareciam umas coisas brancas flutuando no espaço. Fui tentar fazer xixi, mas a privada não parava quieta. A vontade apertava cada vez mais. Tentei fazer pontaria, caprichei na mira, mas não deu. No fim, o sonho acabou. Acordei todo molhado com meu irmão, lá embaixo, gritando socorro. Acontece que a gente dorme em cama beliche, eu em cima e ele embaixo.

Meu irmão me xingou de tudo quanto foi nome. Expliquei a ele que se não fosse a terra firme o beliche estaria voando e aí, sim, ia ser muito pior.

Pensando bem, a terra é a coisa mais importante do mundo em que vivemos. Ela é o solo, o chão, a gleba, o piso, o porto, o lugar onde a gente fica em pé e constrói a vida.

Para falar a verdade, a terra é uma espécie de mãe. 

A mãe de todos nós. 

De onde vêm as árvores para dar sombra e segurança? Da terra.

De onde vêm as frutas para a gente chupar? Da terra.

De onde vem a nascente do rio? E a flor? E o passarinho? E a onça? E a tartaruga? E a borboleta? E o macaco? E o besourinho? E todos os bichos do mundo inteiro menos os peixes e as estrelas-do-mar?

Sem a terra, não ia ter nem milho, laranja, caqui, jabuticaba, banana, pêra, uva, cacau, pitanga, mexerica, romã, maçã, abacate, melancia, abacaxi, nem amendoim nem nada.

O mundo ia ser só um monte de coisa nenhuma cercado de água para todos os lados. 

Mas a terra tem seus truques. Ela não gosta de ser maltratada, não senhor!

Quando fazem queimadas ou destroem o mato ou enchem o chão de lixo e porcaria a terra fica triste vira deserto, corpo árido, seco, estéril, que não dá mais nada.

Ela, que era generosa, formosa, úmida, florida, risonha, fofa, macia, fértil, cheia de sombra, cheia de perfume, cheia de riachinhos, borboletas, besourinhos, bichinhos e bichões, de repente fica tão dura e rachada que só consegue inventar pó, areia e desolação.

Se a terra fosse um deserto ia ter chão, mas como a gente ia ficar?

Fonte:
Você Me Chamou de Feio, Sou Feio mas Sou Dengoso, publicado pela Fundação Cargill. Disponível na Revista Nova Escola: Contos

Isidro Iturat (Arte Poética) parte 2


2. A INTROSPECÇÃO

                                     La poesía es entrar en el ser
                                                                   Octavio Paz


2.1. Gnôthi seautón

          Sem conhecimento sobre a própria interioridade não há escritor, ou seja, sem atender, em alguma medida, os próprios processos psicológicos: nossas fortalezas e fraquezas, atrações e repulsões... ao mental por fim e, idealmente ao espiritual.

           Nota: Devido à complexidade do assunto, estudar o fenômeno poético sob a perspectiva do espírito excede os limites deste trabalho. Por isso, nos limitaremos a abordar aqui a dimensão psíquica. No entanto, temos que dizer que não é infrequente que o indivíduo que se interessa pela introspecção, em um determinado ponto do querer ver “mais adentro”, descubra os movimentos da alma.

2.2. A polaridade mental

          A psicologia moderna explorou as zonas do cérebro onde residem as distintas funções mentais. Uma apresentação sucinta disto poderá ajudar-nos a entender alguns processos relacionados com a criatividade.

           A continuação, algumas destas funções (aquelas que mais interessam ao nosso assunto), e a sua localização: 

Hemisfério esquerdo
Plano consciente
 Pensamento lógico (razão, cálculo, análise)
 Linguagem (sintaxe e gramática, leitura e escritura)
 Visão do detalhe
 Noção de tempo
 Interpretação do ambiente físico

Hemisfério direito
Plano inconsciente
 Pensamento analógico (imagem, símbolo, metáfora, fantasia)
 Música
 Visão do conjunto
 Noção de espaço
 Intuição

          Dos dois hemisférios, um deles sempre é o dominante, mas a zona que os conecta, o corpo caloso, permite a ação integrada das funções de ambos. Curiosamente, segundo a psicologia, os indivíduos mais saudáveis seriam aqueles que conseguem uma melhor compenetração e equilíbrio entre estes dois polos, aproximando-se do que é denominado de coniunctio oppositorum (conciliação dos opostos). Tais sujeitos apresentariam uma personalidade mais integrada, traduzido em signos como um maior conhecimento e adaptação perante o mundo interior e exterior, capacidade de empatia, individualidade, auto-regulação, capacidade de experimentar prazer diante das situações vitais e, obviamente, criatividade. Também pode nos interessar saber que a poesia, pelo fato de exercitar naturalmente a interação entre ambos os hemisférios, colabora com os processos integradores da personalidade.

           Relacionando tudo isto com o temperamento do poema, poderemos observar que, quando a atividade mental é excessivamente dirigida pelo hemisfério esquerdo, tende a produzir obras “frias” e sem intrepidez artística. Do mesmo modo, se acontecer uma polarização para o direito, o poema propende a oferecer formas caóticas. Quando ambos hemisférios trabalham unidos, evoluciona-se para o tipo de obra onde o intelectual e o passional, em vez de atuar confrontados, recebem um incentivo mútuo. Podem dar-se ao mesmo tempo, por exemplo, a emoção intensa e a regularidade formal, as expressões insólitas e o sentido, o pensamento profundo e a forma refinada, o trabalho consciente e a inspiração mágica.

2.3. Vanitas vanitatum

          Começaremos mencionando o que os estudiosos chamam de “grandiosidade infantil”. Aqui, o desejo natural de ser admirado e aprovado em determinadas fases da infância não é transcendido. A causa se encontra em experiências específicas relacionadas com a frustração e o abandono, que levam esse desejo a permanecer com intensidade patológica durante a vida adulta. Menciono o caso porque sinto que é necessário mostrar, mesmo brevemente, a expressão mais aguda do problema, mas em última instância, uma abordagem profunda concernirá, acima de tudo, ao psicólogo.

          Deixando de lado as situações extremas, temos que dizer que, qualquer ser humano que cria alguma coisa e é aplaudido por isso, em algum momento sentirá vaidade, e em maior ou menor medida, dependendo da intensidade dos aplausos, da história pessoal ou da predisposição natural à mesma.

           Então, o que o poeta pode questionar-se não é se a sentirá ou não, mas como impor-lhe limites. Algumas ideias para isto:

2.3.1. Natureza da vaidade

          Quando a sua origem não provém de um conflito dos primeiros anos, trata-se de uma resposta instintivamente natural diante da recepção de um impacto emotivo (no caso do escritor, os aplausos) e que se traduz em um estado de instabilidade emocional. A pessoa envaidecida está fora do próprio equilíbrio, fragilizada. Além disso, quanto maior é a demonstração externa de grandiosidade, maior é a insegurança interior.

2.3.2. Seus efeitos

           As consequências mais comuns são:

           1ª. As pessoas realmente valiosas (por exemplo, aquelas que nos estimam com sinceridade) tendem a se afastar.

           2ª. O autor perde a objetividade em relação à qualidade da própria obra. Assim, qualquer coisa que escreve considera uma “grande obra”. Inclusive,  não é raro o caso de quem já produziu obras excepcionais e que, em  determinado momento, envaidecido, produz obras medíocres acreditando que são genialidades.

2.3.3. Como impor limites à vaidade

           1º. Dedicação ao estudo. Principalmente nos momentos de agravamento da emoção, pode ser útil submergir-se no estudo literário ou da língua. Quanto mais difícil for esse estudo melhor, pois, desse jeito, a pessoa recupera a consciência do muito que ainda falta por saber e fazer.

           2º. O sexo, idealmente com amor. Quando não é realizado com a intenção de agredir, significa propriamente um ato de entrega. Sempre supõe uma “pequena morte” do eu, nos ajudando a delimitá-lo e a colocar os pés no chão. Normalmente, a pessoa que se dedica a tarefas intelectuais e não tem uma vivência mínima do sexo tende a produzir um tipo de discurso intrincado e embebido de um intelectualismo vazio.

           3º. O memento homo (“Lembra-te, homem, que és pó...”). Sem querer ser demasiado trágico, podemos lembrar de que nada impede que, em qualquer momento da vida chegue algum tipo de acidente imprevisível e inevitável que anule a potência física do melhor atleta, a mente do melhor pensador, a fortuna do mais rico, a beleza do mais gracioso, a tarefa do trabalhador mais esforçado, a arte do melhor artista etc.

           4º. Diante do público. Recorrer à leitura de livros de oratória pode ser de grande utilidade, mas menciono igualmente algumas estratégias específicas relacionadas com a nossa epígrafe:

           - A insistência em proclamar ’como sou humilde’ ou criticar a vaidade dos outros não ajuda, porque qualquer observador minimamente lúcido nos dirá o velho ditado espanhol “Dime de qué presumes y te diré de qué careces”. (“Diga-me do que te vanglorias e te direi do que careces”).

           - No contato direto com as outras pessoas o fato de saber ouvir é centrador e fortalecedor. Estar atento às necessidades do outro, ser acessível, mas também saber restringir o contato caso nos sintamos explorados ou esgotados emocionalmente. E, obviamente, evitar sempre a rispidez.

           - Restringir, na medida do possível, o contato com os aduladores e incrementar esse contato com as pessoas que tenham integridade e coragem suficientes para nos dar uma opinião crítica, caso seja necessária.

           - No entanto, tendo talento ou não, sempre é prudente não falar mal da própria obra ao público. Primeiro, porque isso desestimula o leitor para abordar os nossos escritos (como alguém vai se interessar por um texto cujo próprio autor afirma explicitamente que não é bom?...); segundo, isto costuma ser uma das formas mais usuais de falsa modéstia.

           - Se formos elogiados, a princípio, agradecer é suficiente. Isto inclui também algo muito necessário: permitir-nos ser queridos, ”alimentados”, pelo público.

           - Dar atenção à gestualidade. A postura corporal e os gestos podem mostrar nosso estado emocional antes mesmo que as nossas palavras. Por exemplo, encarar o público ou um interlocutor com os braços cruzados já denota uma atitude de defesa, um “nariz empinado” deixa transparecer nosso envaidecimento etc.

           5º. A lei maior. O que mais nos fortalece na hora de lidar com a vaidade é agir com humor, compreensão e compaixão, tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos outros. Somos todos feitos da mesma matéria.

2.4. O elogio e a crítica

          O elogio é bom e necessário, mas existe uma tênue linha que separa o efeito positivo que ele provoca e o desequilíbrio. Para identificar esta linha, primeiro, é preciso ter uma visão minimamente clara dos nossos limites artísticos. O elogio bem assimilado supõe um forte incentivo para continuar criando e, realmente, o artista precisa dele; porém, a crítica não é algo menos indispensável.

           Com relação a este segundo objeto, cabe dizer que, logicamente, é desejável  receber críticas lúcidas e que mantenham a cortesia, mas até mesmo a pior delas, a mais grosseira e obtusa, pode ser benéfica se aproveitada tanto para delimitar a vaidade quanto para melhorar a própria obra.

           Na verdade, a indignação provocada ao receber um insulto, por exemplo, pode significar um valioso estímulo para reexaminar aquilo que se faz. Se o autor tiver algum interesse de que a sua obra alcance a qualidade, colocará verdadeira energia em tentar reforçar as próprias debilidades. Então, mesmo que doa, toda crítica é boa se queremos e sabemos aproveitá-la.

           De qualquer maneira, se desejamos que o impacto emocional seja menor, podemos aumentar a própria receptividade e flexibilidade aprendendo como funciona o processo de reação instintiva que costuma desencadear-se quando uma pessoa é contrariada. Tal processo consta das seguintes fases:

           1ª. Negação. A pessoa nega automaticamente a crítica.

           2ª. Racionalização. Tenta justificar-se, encontrar argumentos racionais para demonstrar que a sua atitude não é errônea.

           3ª. Agressividade. Responde à crítica com hostilidade.

           4ª. Assimilação/aceitação. Em um momento posterior de calma, a pessoa começa a remeditar sobre o assunto e a entrever a sua posição equivocada, caso realmente seja assim.

           Uma forma de evitar as três primeiras fases pode consistir em fazer perguntas para o emissor da crítica. Perguntar o porquê, como, formas de solução e correção. Desse modo, quebramos o cenário de confrontação saindo da nossa postura defensiva, tendo como consequência natural converter nosso oponente, antes “inimigo”, em um aliado para a solução da carência.

           Por último, cabe assinalar os benefícios de escutar a todos, sim, mas também  de “filtrar” aquilo que nos dizem, seja lá quem for, de modo que, finalmente,  as ideias e decisões adotadas sejam fruto de um sólido e cuidadoso processo de discernimento.

2.5. Inspiração e trabalho

          A inspiração é algo que não vem exatamente quando queremos, mas podemos formar as bases mentais para que chegue com maior frequência e facilidade. Isso pode ser alcançado por meio de:

           1º. Trabalho. Seguindo aquela “lei do foco”, segundo a qual tudo o que recebe atenção cresce, se o hábito de escrever é maior, também serão mais frequentes os momentos de inspiração produtiva.

           2º. Ofício poético. É bem certo que um autor com ofício pode escrever um poema com uma técnica perfeita, servindo-se de uma ideia interessante e que esse poema não tenha “alento”, “magia”, “alma”, que não “vibre”, que não “tenha vida”, que seja “frio”... porque faltou a “conexão com o coração”. Contudo, também existirão momentos em que essa conexão seja muito intensa e, se o autor não tiver ofício, também não disporá dos recursos expressivos necessários para aproveitá-la, de modo que, efetivamente  produzirá um poema que reflita emoções muito intensas, mas tão incapaz de cativar o leitor como no primeiro caso.

           Compor, esporadicamente, um poema frio ou que simplesmente não funcione não deve nos preocupar tanto assim. Como não deve nos preocupar que um volume mais ou menos considerável daquilo que escrevemos termine na lixeira (de fato, se isso acontecer, será um indicador a mais de objetividade e sinceridade consigo mesmo). Podemos inclusive dizer que, um poema que não funciona pode estar preparando a nossa sensibilidade para outro que se materializará mais tarde com toda a magia e força poética. Isto é mais provável, por exemplo, quando se volta à escritura depois de um longo período de inatividade.

           No entanto, o que desperta a energia criativa pode variar muito de acordo com os temperamentos, aquilo que funciona com uma pessoa não funciona com outra. Por isso, o poeta deve aprender a conhecer seus próprios processos internos, procurar entender o que o leva a escrever, para que, para quem, que tipo de poesia lhe interessa e quer fazer, quais situações, vivências, leituras desencadeiam, ou não, o verso.

2.6. Disparadores do ato criativo

          Encontram-se naturalmente no que vivemos com especial interesse ou intensidade. Lembraremos, pelo menos, os mais habituais, que podem dividir-se em dos grupos:

2.6.1. Externos (na percepção dos estímulos exteriores)

          1º. As leituras.

           2º. A observação direta do ambiente físico.

           3º. As outras artes: pintura, escultura, música, cinema, teatro etc.

           4º. O conflito e/ou harmonia externos, tanto naqueles em que intervimos ativamente quanto naqueles em que somos simples observadores interessados.

2.6.2. Internos (na percepção dos estímulos interiores)

          1º. As próprias emoções: agressividade, júbilo, excitação amorosa, depressão, humorismo etc.

           2º. O próprio pensamento: meditação filosófica e vital.

           3º. A imaginação.

           4º. A intuição.

           5º. As fantasias diurnas e os sonhos.

           6º. As lembranças.

           7º. Os desejos.

2.7. Períodos de seca criativa

          Durante o caminho artístico, por mais talento que se tenha, é totalmente natural que venham épocas de baixa criatividade, inclusive épocas nas quais seja totalmente impossível escrever. Isto é inevitável, pois, por um lado, a vida pode não nos conceder sempre um espaço para fazer coisas como compor um poema; por outro, mesmo que não seja assim, a energia criativa expressa, per se, seus altos e baixos.

           Porém, nem mesmo um período no qual não possamos escrever deve ser entendido como estéril. Pode ser necessário, por exemplo, para restaurar a energia, acumular novas vivências etc.

           A seguir, algumas sugestões para os períodos nos quais, por uma razão ou outra, o novo texto não sai: se não conseguimos escrever coisas novas, podemos tratar de corrigir textos anteriores ou que se encontrem em processo de refinamento. Se não conseguimos corrigir, podemos aproveitar para ler. Se não conseguimos ler, podemos limitar-nos a deixar que venham novas experiências vitais significativas. Se nem isso acontece, podemos aproveitar para fazer nada. No poeta, tudo trabalha para conjurar o poema, tudo é matéria transmutável em verso, mesmo a não ação, e se realmente queremos manter a poesia no próprio caminho, em algum momento ela voltará.
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Continua…

Fonte:
http://www.indrisos.com/ensayosyarticulos/artepoeticaportugues.html#4