(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)
Desejava dirigir uma pergunta aos meus leitores.
Mas uma pergunta é uma coisa que não se pode fazer sem um ponto de interrogação.
Ora, eu tenho uma birra muito séria a esta figurinha de ortografia, a esta espécie de corcundinha que parece estar sempre chasqueando e zombando da gente.
Com efeito, o que é um ponto de interrogação?
Se fizerdes esta pergunta a um gramático, ele vos atordoará os ouvidos durante uma hora com uma dissertação de arrepiar os cabelos.
Entretanto, não há coisa mais simples de definir do que um ponto de interrogação; basta olhar-lhe para a cara.
Vede: - ?
É um pequeno anzol.
Ora, para que serve o anzol?
Para pescar.
Portanto, bem definido, o ponto de interrogação é uma parte da oração que serve para pescar.
Exemplo:
1º Quereis pescar um segredo que o vosso amigo vos oculta, e que desejais saber; deitais o anzol disfarçadamente com a ponta da língua:
- Meu amigo, será verdade o que me disseram, que andas apaixonado?
2º Quereis pescar na algibeira de algum sujeito uma centena de mil réis; preparais o cordel e lançais o anzol de repente:
- O sr. Pode emprestar-me aí uns 200 mil réis?
3º Quereis pescar algum peixe ou peixãozinho: requebrais os olhos, adoçai a voz, e por fim deitais o anzol:
- Uma só palavra: tu me amas?
É preciso porém que se advirta numa coisa.
O ponto de interrogação é um anzol, e por conseguinte serve para pescar; mas tudo depende da isca que se lhe deita.
Nenhum pescador atira à água o seu anzol sem isca; ninguém portanto diz pura e simplesmente:
- Empresta-me 300 mil réis?
Não; é preciso que o anzol leve isca, e que esta isca seja daquelas que o peixe que se quer pescar goste de engolir.
Alguns pescadores costumam deitar um pouco de mel, e outros seguem o sistema dos índios que metiam dentro d’água certa erva que embebedava os peixes.
Assim, ou dizem:
- Meu amigo, o senhor, que é o pai dos pobres, (isca) empresta-me 300 mil réis? (anzol).
Ou então empregam o segundo meio:
- Será possível que o benfeitor da humanidade, o homem que todos apregoam como a generosidade personificada, que o cidadão mais popular e mais estimado desta terra, que o negociante que revolve todos os dias um aluvião de bilhetes do banco, me recuse a miserável quantia de 300 mil réis?
No meio do discurso já o homem está tonto de tanto elogio, de maneira que, quando o outro lhe lança o anzol, é com certeza de trazer o peixe.
Ainda tinha muita coisa a dizer sobre esta arte de pescar na sociedade, arte que tem chegado a um aperfeiçoamento miraculoso.
Fica para outra ocasião.
Por ora basta que saibam os meus leitores que o ponto de interrogação é um verdadeiro anzol.
O caniço desta espécie de anzol é a língua, e o fio ou cordel a palavra; fio elástico como não há outro no mundo.
Ás vezes, quando se olha para esta figurinha aleijada, o ponto de interrogação parece-se mais com um daqueles corcundinhas, espécie de demoninhos maliciosos, de que falam os contos de fada e que viviam a fazer pirraças aos homens.
É que de fato há ocasiões em que ele torna-se realmente um anãozinho zombeteiro e impertinente, que leva a ousadia até a rir-se nas barbas de um pobre homem.
Haveis de ter encontrado pelo mundo algum desses homens que depois de terem feito todo o mal que podem a outro, vêm com o riso nos lábios insultar a dor e envenenar com sua baba a ferida mal cicatrizada.
Este homem atira à cara do outro o corcundinha de que vos falei, e dirige pouco mais ou menos uma pergunta neste sentido:
- Então, meu amigo, por que não me conta os seus pesares? Não tem confiança em mim?
Há também um certo ponto de interrogação que tem seus ares de mestre de latim ou de professor de primeiras letras.
Este é carrancudo e severo; tem a voz áspera e fanhosa, como do homem que toma rapé; e ordinariamente anda aos pulos.
Lembro-me perfeitamente que na minha aula de latim às vezes estava eu bem distraído, quando ele saltava-me pela frente gritando:
- Hora-ae, vocativo?
Felizmente todas as coisas deste mundo têm verso e reverso; o ponto de interrogação, que quase sempre é um anzol, um anão corcunda, ou um pedagogo, parece-se às vezes com um desses meninos travessos e gentis, um desses anjinhos curiosos e inocentes que desejam saber tudo.
Então ele pergunta, mas é como o filho à sua mãe; ri-se, mas é de prazer e de alegria; e leva todo o tempo a brincar entre as palavras, como o colibri no meio das flores.
Vou mostrar-vos essa face risonha do ponto de interrogação, esse verso da medalha cunhada pelos gramáticos.
É uma poesia que li, não sei onde, e que só tem um defeito: o de ser uma pergunta sem resposta.
Ei-la:
A Emy La-Grua
Que geme de amor,
Que beija lasciva
O seio da flor,
Colhe em teus beijos
O brando suspiro,
A brisa furtiva
Os doces bafejos
De que eu me inspiro?
A onda ligeira
Que treme e palpita,
Que de feiticeira
Murmura e saltita,
Viu-te no sorrir
Que o lábio desata
Brincar e fugir
A doce volata?
A corda da lira
Que mal estremece,
E tênue suspira
Um som que entristece,
Bebe em teu pranto
O débil queixume,
Guarda de teu canto
O eco, o perfume?
Tens nos lábios teus
A flor da harmonia,
Que dás como Deus,
Aos sons melodia,
Acento divino,
A vaga o seu friso,
Às auras um hino,
E a tudo o sorriso?
Dos anjos soubeste
As notas sublimes
D’harpa celeste,
Com que tudo exprimes;
Ou deu-te o amor
A chama sagrada,
O grito da dor,
A voz inspirada?
Agora é muito natural que, depois de ter lido toda esta maçada, depois de ter virado e revirado em todos os sentidos o ponto de interrogação, o meu leitor esteja desesperado por saber qual era a pergunta que eu lhe pretendia fazer, e que deu causa a todo esse aranzel, misturado de poesia.
É muito justo, e por isso vou satisfaze-lo.
Queria contar domingo passado.
É um conto a respeito das mocinhas brasileiras.
O prometido é devido.
Aí vai pois:
“Um dia a fada Beleza desceu à terra, resolvida a distribuir por todas as moças os tesouros de graça e mimos que possuía.
“Mandou que seu irmão o anãozinho Amor chamasse uma mulher de cada nação, para receber o dom que lhe coubesse.
“Quando todas estavam reunidas, a fada começou a distribuição dos seus presentes.
“Deus à Andaluza cabelos negros e tão longos que lhe podiam servir de mantilha.
“A Italiana olhos brilhantes e ardentes como as estrelas do céu de Nápoles.
“A Árabe um moreno excitante e uma pele doce e macia como as penas do marabu.
“A Inglesa uma aurora boreal para tingir as faces, os lábios e as espáduas.
“A Alemã pérolas para os dentes e miosótis para os olhos suaves.
“A Russa a distinção de uma princesa e a nobreza necessária para trazer um nome de sete sílabas terminado por off.
“A Francesa a delicadeza do lírio com a graça e o mimo das rosas.
“Depois, passando aos detalhes, deitou a alegria nos lábios da Siciliana, o espírito na cabecinha loira da Irlandesa, o bom senso no coração da Holandesa.
“Então a Brasileira, que por modéstia e por timidez estivera retirada a um canto, puxou docemente a ponta da túnica azul da fada.
- “E eu?
- “Ah! tinha te esquecido.
- “É verdade.
“E agora como há de ser? Já dei tudo que trazia.
- “Mas eu fico sem nada?
A fada refletiu um momento: depois, chamando as outras com um sinal, disse-lhes:
- “Vós sois tão boas que espero haveis de reparar uma falta que cometi esquecendo na distribuição a vossa irmã do Brasil. Eu vos peço pois que cada uma tire um pouco do presente que lhe fiz, e o dê a esta menina tão modesta.
- Não era possível recusar.
“Todas as mulheres do mundo, com uma graciosa amabilidade, chegaram-se à Brasileira, e deram-lhe, uma os seus cabelos negros, outra as estrelas dos seus olhos, esta o sorriso de seus lábios, aquela a ondulação de suas formas acetinadas.
Eis a história que vos prometi contar domingo, quando vos falava das nossas patrícias. Ainda sei outras tão lindas como esta, mas que a pena a correr não pode demorar-se para contá-las.
Irão em ziguezague.
Não reparem se passo em silêncio pela representação de Sapho, apesar de ser a obra-prima de Paccini.
Digam o que quiserem os maestros, não gosto dessa música de barulho, que abafa a voz humana, e obriga os cantores a fazerem contorsões horríveis.
Na Norma e no Otelo, onde os cantores cantam, há prazer em ouvir-se uma bela voz, que brinca nuns lábios risonhos, desatar-se em ondas de harmonia, ou desprender-se de um seio que se ergue apenas numa ondulação suave.
Mas nestas óperas, onde a voz é um grito, onde o canto é uma convulsão, as notas são arrancadas com esforço, a boca se contrai, e a melodia desaparece num estrépido que atordoa; parece que assistimos ao martírio do cantor, a um suplício horrível da beleza, do talento e da inspiração.
Não; por mais que digam, a voz humana não foi feita para essa música de estrépito. Se desejais ouvir a natureza em suas convulsões, assisti ao espetáculo da tempestade numa costa desabrida, mas não ide ao teatro pedir a um cantor que vos venda por uma mesquinharia de dinheiro as centelhas divinas de seu gênio e de sua alma.
O talento é uma vida, é a vida d’alma, da inteligência e do pensamento; nenhum artista tem pois o direito de cometer esse suicídio moral, e de esperdiçar, como Emy La-Grua, numa só noite, a seiva e o viço de uma existência inteira.
Quando assisti à primeira representação da Sapho, pareceu-me ver um quadro, no qual um pintor de gênio, querendo tocar o sublime, derramasse toda a sua inspiração e gastasse todas as tintas de sua palheta.
Havia alguns traços belos, porém no mais eram tons carregados, claros e escuros pouco harmoniosos, perfis ásperos e destacados sobre um fundo sombrio e confuso.
Depois de todo este preâmbulo, é necessário que conte aos meus leitores os acontecimentos notáveis da semana.
Todos os reduzem a um dia (o sábado), a um acontecimento (a chegada do paquete), e a uma notícia, que anda de boca em boca e de jornal em jornal:
A TOMADA DE SEBASTOPOL
Escrevendo-a, não traço unicamente a crônica da semana, mas a história do mundo durante um ano.
(.)
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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