segunda-feira, 31 de maio de 2010

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 12



11. Cardio ou corde?

Cardio ou corde, o coração é o mesmo. A diferença é que cardio é grego e corde é latim. A medicina usa preferentemente a forma grega (cardiologia, cardiopatia, eletrocardiograma). Corde (em latim cor, cordis) aparece mais na linguagem figurada, tomando-se coração como símbolo dos sentimentos e da vontade. Daí temos, por exemplo, cordial ( = de coração). A propósito, é bom lembrar que o tradicional “cordialmente”, no fecho das cartas, só se justifica quando de fato existe amizade “de coração” entre o remetente e o destinatário. Com igual sentido, temos ainda os verbos concordar (para indicar que dois corações convergem, isto é, ambos “querem” a mesma coisa) e discordar (para indicar que dois corações divergem, isto é, um “quer” alguma coisa e outro quer algo oposto). Durante muito tempo as pessoas acreditaram também que o coração fosse a sede da inteligência e da memória, daí resultando a expressão saber de cor (ter na memória) e os verbos decorar (memorizar) e recordar (trazer de volta à memória).

Aproveitando o fio da meada, parece oportuno recordar um pouco daqueles adjetivos “chiques” chamados eruditos. Daremos a seguir uma pequena lista, colocando entre parênteses o substantivo a que cada adjetivo se refere: acrídio (gafanhoto); adamantino (diamante); álgico (dor); angelical (anjo); anímico (alma); anserino (ganso, pato); aquilino (águia); argênteo (prata); arietino (carneiro); asinino (burro, jumento); áureo (ouro); auricular (orelha, ouvido); austral (sul); avuncular (tio); axial (eixo); bélico, belicoso (guerra); bubalino (búfalo); canoro (canto); capilar (cabelo); ciático (quadril); cínico (cão); columbino (pombo); consuetudinário (costumes); cúprico (cobre); digital (dedo, número); domiciliar (residência); ebúrneo (marfim); eclesial (igreja); embrionário (embrião, início); êneo (bronze); episcopal (bispo); epistolar (carta); equino (cavalo); etílico (álcool); falimentar (falência); felino (gato); fiducial, fiduciário (confiança); fluminense, fluvial (rio); fraterno (irmão); gástrico (estômago); glacial (frio, gelo); hebdomadário (semana); hepático (fígado); heráldico (brasão); hígido (saúde); hípico (cavalo); ictíico (peixe); ígneo (fogo)...

Laborioso (trabalho); lácteo (leite); lúdico (brinquedo, jogo); matutino (manhã); meridional (sul); mnemônico (memória); monacal, monástico (monge); monetário (moeda); ocidental (oeste); murino (rato); ocular (olho); náutico (barco, navio); nodal (nó); ofídico (cobra); onírico (sonho); oriental (leste); ovino (ovelha); papilonáceo (borboleta); paradisíaco (paraíso); pecuniário (dinheiro); persecutório (perseguição); pétreo (pedra); písceo (peixe); plúmbeo (chumbo); pluvial (chuva); probatório (prova); pueril (criança); radical (raiz); renal (rim); sacarino (açúcar); senil (velho); setentrional (norte); sideral (astros, estrelas); somático (corpo humano); telúrico (terra); uxoriano, uxórico, uxório (esposa); varonil/viril (homem, varão); vascular (vasos sanguíneos); venoso (veia); vesical (bexiga); vespertino (tarde); vulpino (raposa).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

domingo, 30 de maio de 2010

Silviah Carvalho (Sonoridade Poética)


VENTO DA MUDANÇA

Sinto o vento da mudança em meu rosto,
uma troca de pele fora de tempo,
sendo o vento a trazer o perfume desconhecido,
tornando as águas dentro de mim em lamento.

Como se eu pudesse controlar as estações,
misturo lugar e tempo, algo que não entendo...
acima do alcance da minha mente, da minha visão
mas que faz pulsar vorazmente meu coração.

Inquietude vã, pois o vento sopra onde quer,
e eu só diminuo a força do lume,
(querendo na verdade extingui-lo), move o meu
ser em discórdia com tempo, não remo contra a maré.

Aceito de bom grado a solidão... Novamente (!)
companheira e amiga da minha fé
dou a carta de alforria ao amor, porém, tristemente.

Peço que vá, é livre! leve seu amor e não lamente,
vives-te em mim o tempo necessário,
para não ser esquecido, infelizmente.

Deixe o frescor deste vento que me muda,
amadurecer dentro de mim a sua ausência,
sem lágrimas nem retorno... E sem clemência.

AS MÃOS E O FRUTO

Como olhar numa tela uma paisagem, ver-se dentro dela,
Fazer dela tua morada, ali tudo poderá acontecer,
Seremos marionetes na sua mão... Até quando!
O fruto maduro caiu da árvore, esmagou-se ao chão,
Quem se importa? O poder te enaltece,
Tens mais que uma vida, a minha. Quantas mais te fartarão?

Era só uma imitação, não era para vê-lo, nem amá-lo,
Nem confundi-lo com um menino? Sua fome era grande,
Quem poderia contê-lo? Alimentou-a, hoje ela vive morta!
As águas passam o rio não! A cor dos olhos não muda,
No lavar de nossas lágrimas. É tempo de recomeçar,
Seguir novo rumo. Simplesmente, muda seu destino.

Não acredite em seus sonhos, melhor mudar de plano,
Assim pusestes um fim. Temor? Talvez, pensava que era
Só um sonho de menina, mais um sonho... Outra menina!
Não era! É amor verdadeiro, Você se entristece ao vê-la de
Novo vivendo sem vida? Não deixe que eu creia no que penso,
Pois penso que tua verdade, não é ponto de partida.

Vem a tempestade, o vento sopra forte,
O Carvalho, porém, aprofunda suas raízes no chão,
Um fato. Tome como lição, tire proveito disto, finca tuas raízes
Na realidade, faz nela morada. Deixe de construir castelos na areia,
Pois, ainda há quem crer em contos de fadas.

Sou um carvalho, mas não tenho a força dele,
Sou só um galho agora preso ao seu coração,
Planta-me, deixe que eu aprofunde minhas raízes,
São raízes de amor sincero que não terminam nunca,
Ainda que caia o tronco, elas ficam numa eterna espera.

Será que as chuvas do amor sobre elas cairão, regando-as
Para que se vistam na primavera? Será que deixará que
Eu morra aos teus pés, será que sua estiagem matará seu coração?
Eu pensei que houvesse sentimento, que houvesse verdade nessa ilusão.
...Mas agora, você é o fruto, eu as mãos.

QUEM DERA...

Ah, alma, pode ser que você chegue às margens do pior
antes de ser libertada e, em uma síncope não voltes mais,
... Quem dera dominar o tempo e as estações!
contar meus dias, mudar de pele, dominar minhas emoções.

Quem dera poder voltar atrás, fazer outras escolhas, consertar
meus erros, eu escolheria não amar mais. Não é o amor que me
assusta e, sim, as conseqüências do amar desesperadamente...
Um amor plenamente possível morre, inconseqüentemente.

Não posso dizer que haja chance, ou que a vida faz sentido,
pois o fardo do sofrimento parece uma pedra pendurada
em meu pescoço, é ela que faz o peso necessário para conservar
no fundo o meu querer...talvez assim nunca mais me faça sofrer.

Na tempestade vi o quanto era frágil minha embarcação,
observei a Águia quando rasgava as alturas e não se inquietava
a respeito de atravessar o rio, enquanto que, o só imaginar, dentro
de mim desfalece o coração... Esvazio-me nesta triste e fria canção.

Descubro que nada é em vão, mas que tudo é propicio a mim,
o sofrimento me põe à parte na vida como um decreto de morte,
ausente de tudo que me faz bem, abatida, me entrego resignada,
esperando as palavras certas para, enfim, ser libertada.

Fonte:
http://www.silviah.net/

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 11



10. Um régulo na panturrilha

Não se assuste se ouvir alguém dizer que fulano tem um régulo na panturrilha. Significará apenas que o tal fulano tem um reizinho na barriguinha. Se os diminutivos em português fossem todos marcados por inho ou zinho, seria moleza (barquinho, barzinho). O problema é que muitos deles vieram prontos do latim, mantendo a forma erudita; outros chegaram até nós via espanhol, francês, italiano, e alguns nem parecem diminutivos. Por exemplo: é fácil entender que caixinha é diminutivo de caixa, porém nem todos percebem de imediato que cápsula (do latim capsa = caixa) é a mesma coisa, isto é, uma caixinha.

Assim também acontece com régulo, diminutivo erudito de rei, e com panturrilha, palavra que pedimos emprestada ao espanhol e que em geral é empregada no sentido de barriga da perna (daí que os jogadores de futebol frequentemente se queixam de “contratura na panturrilha”). A palavra tem origem no latim pantex (= barriga), que virou panza em espanhol e pança em português. De pantex temos também os verbos empanturrar e empanzinar.

Pode ser útil anotar outros diminutivos igualmente interessantes: asterisco (diminutivo do lat. aster = astro, estrela – repare que o asterisco [*] é uma estrelinha); botija (do lat. buttis = pote, tonel); caniço (de cana, cano); cassete (do fr. casse = caixa – cassete é a caixinha onde se guarda a fita); castanhola (de castanha); castelo (do lat. castrum = fortaleza); cedilha (diminutivo da letra grega zeta [z] – o sinal que colocamos embaixo da letra ç era originalmente um pequeno z); crepúsculo (do lat. crepus = escuro); cubículo (de cubo); donzela (de dona); edícula (do lat. aedes = casa); espátula (de espada); fascículo (do lat. fascis = feixe – de varas, de folhas de papel etc.); flâmula (do lat. flama = chama); flóculo (de floco); flósculo, florículo (de flor); folíolo (de folha); goela (do lat. gula = esôfago); gorjeta (de gorja = garganta); grânulo (de grão); janela (do lat. janua = entrada, porta); lagartixa (de lagarto); lamparina (de lâmpada); luneta (do lat. luna = lua); maçaneta (de maçã – as maçanetas antigas tinham, quase todas, a forma de uma pequena maçã); mantilha (de manta); moela (provavelmente de mo, moinho); molécula (do lat. moles = massa, corpo); músculo (do lat. mus, muris = rato – observe que o bíceps tem a forma de um ratinho); neblina (do lat. nebula = névoa); nódulo (do lat. nodus = nó); opúsculo (do lat. opus = obra); ósculo = beijo (do lat. os, oris = boca – para beijar a pessoa contrai os lábios, faz uma “boquinha”); palito (do lat. palus = pau); parcela, partícula (de parte); pastilha (de pasta); película (de pele); pipeta (de pipa); radícula (do lat. radix, radicis = raiz); roseta (de rosa); sarjeta (de sarja = escoadouro de águas); Venezuela (de Veneza – o nome foi dado pelos colonizadores ao observarem o grande número de cabanas construídas sobre estacas nas águas do lago Maracaibo, lembrando uma pequena Veneza); versículo (de verso); vesícula (do lat. vesica = bexiga); vírgula (do lat. virga = vara – a vírgula tem a forma de uma varinha).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Lucia Rodrigues (O Ócio e a Palavra)

Lá estava eu ociosa, o físico, porque serviço braçal tinha, e muito, mas quando tem algo me incomodando fico sem ação e o lado direito do cérebro trabalha sem parar, pensando sobre os acontecimentos da semana que se finda. Me vi questionando sobre o conceito de ótimo, bom, regular e ruim, aplicado às pessoas. Por exemplo, um educador só pode ser bom ou ruim. O conceito ótimo e regular não se mede. Afinal, o que é ser ótimo em algo? O ótimo é um bom melhorado, quanto? O regular é o medíocre, pois significa que o nominado não tem capacidade nem para ser ruim, que é o extremo do bom. O bom nos preenche até fisicamente, pois enchemos e esvaziamos nosso pulmão para pronunciar esse adjetivo de qualidade, lembrando que o ruim só existe devido a inveja pelo bom. Portanto, só podemos classificar (?) alguém como bom ou ruim! Outro espaço que ocupou meu ócio foi que pela milionésima vez observei duas pessoas trabalhando com o mesmo assunto, com diferenças de local e platéia, uma recebeu todo aplauso da crítica por ser famosa e a outra ficou na obscuridade ou até no esquecimento, pois alunos nem sempre percebem o jogo de palavras. O que difere uma pessoa da outra sair do anonimato e virar uma celebridade? Seria o destino? Sorte? Iluminada? Por quem? Da mesma maneira, vejo colegas que precisam lutar muito para publicar seus manuscritos ou outra expressão de arte, e nem sempre conseguem patrocínio. Será que tem a ver com nosso país que não valoriza a cultura, ou não é um bom investimento? Realmente o ócio é a oficina do demo, porque bons pensamentos não são fabricados nela, e o que ficaram são perguntas sem respostas. Só me resta a resignação, coisa de santa, o que não sou! Vou à luta agora! Fui!

Fonte:
http://www.osabordamaturidade.com/2010/05/as-palavras.html

Astolfo Lima Sandy (Estante de Livros)



Astolfo Lima Sandy é autor do livro Mão de Martelo e outros contos (Fortaleza: Programas Editoriais Casa de José de Alencar/Coleção Alagadiço Novo – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1998). Participou do Almanaque do conto cearense (Recife: Ed. Bagaço, 1997), da Antologia do Conto Nordestino ano 2000 (Recife: Ed. Micro, 2000) e da revista Caos Portátil: um almanaque de contos (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Em 2002 recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos, inédito em 2007. Tem contos em suplementos literários e sites na internet. Vencedor de vários prêmios literários. Concluiu em 2007 o romance Exuberante pós-nada (vencedor do Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULT, em 2007).

Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.

Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.

O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.

O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.

Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.

Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).

O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.

Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.

Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p. 277.
Imagem de Giuseppe Maria Crespi.

Astolfo Lima Sandy (Casinha de Bonecas)



Eu sabia do esconderijo de Bebel, mas fingi que não. Mamãe, logo que recolheu a maninha, trancou-se no quarto com papai e lhe contou tudo. O velho saiu de lá furioso, deu socos na mesa e depois me chamou, para investigar se eu ocultava alguma coisa. Apertou meu pulso, me olhou longamente e exigiu que lhe contasse toda a verdade. Eu disse sem pestanejar que não sabia de nada, puxei meu braço e fugi.

Agi assim para proteger minha irmã. Bebel está na casa dos trinta, porém sua cabecinha é de uma criança. Ultimamente, sempre que o dia amanhece, ela corre com seu passo bambo, se mete no vestido branco de mamãe e fica na janela olhando a rua. Quando sumiu só conseguiram localizar a danadinha tarde da noite. Vinha suja e descabelada. Um vendedor de flores foi quem a viu no casarão abandonado, brincando com bonecas.

Meu pai é violento e não perdoaria se descobrisse meus segredos. Ele ainda não se livrou da mania de julgar que somos todas estúpidas. Eu, por exemplo, tenho doze anos e penso como adulta. Bebel é o contrário, mas nos damos muito bem. Aprendo com ela certas coisas que só mesmo uma pessoa de mais idade pode ensinar, e ela, comigo, tudo aquilo que mamãe não quer que a irmãzinha entenda. Acho que a gente se completa.

Os olhos de Bebel brilham iguais aos meus, quando estamos as duas em frente à TV e assistimos às cenas mais picantes de uma novela. Ela também fica trêmula ao deslizar a mão entre as pernas, deixando escorrer uma baba grossa pelo canto da boca. A única diferença é que sei me controlar: corro para o quarto, apago a luz e permaneço debaixo dos lençóis imaginando sonhos que papai nem desconfia.

Bebel ainda é meio tola em certas coisas. Nem sabe falar direito. Pronuncia apenas uns grunhidos que só eu sou capaz de compreender, porque aprendi a ler em seus olhos os desejos e desenganos; separar no tom desses gemidos os espantos e as alegrias. Ela confia em mim como se eu fosse a sua própria cabeça. Não larga do meu pé. O tempo todo atrás: “Dá, dá, dá...”

Conduzo Bebel diariamente até o sótão, abro o baú que só eu sei onde se esconde a chave e deixo que a mana remexa em tudo. Fico olhando enquanto ela se veste de branco diante do espelho quebrado, passa gel nos cabelos e pinta os lábios de batom. Adoro quando ela abre aquele sorriso inocente e tenta calçar os saltos altos que mamãe não usa mais. Gosto de ver Bebel caminhar com seu passo torto, cair, rolar pelo chão até compreender que precisa usar as próprias pernas. Quem não me conhece é de pensar que eu não presto. Mas se engana. A nossa amizade fica melhor assim. Bebel adora que seja assim. Às vezes ela passa a mão pesada sobre meus cabelos e me beija a face com seus lábios pegajosos.

Acho bárbaro ver Bebel se debruçar na janela, para aguardar que o moço da casa em frente atravesse a rua. Toda vez que isso acontece ela bate palmas com aflição, rosna feito uma gata em cima do telhado e deixa escapar mais saliva pelo canto da boca. Se ele acena para nós, minha irmã fica agitadíssima, coça a cabeça sem parar e repete muitas vezes a mesma lengalenga: “Dá, dá, dá...” Uma vez esse rapaz piscou um olho para nós e ficou na porta de sua casa, acenando. Acho que mamãe percebeu, porque logo nos chamou e repreendeu só a mim. Disse que o moço tinha débitos com a justiça e que era bem provável que usasse drogas; achava melhor não darmos cabimentos a ele. Ah, mamãe, mamãe! Sempre dependente do papai. Até o seu modo de falar, agora, é uma cópia perfeita daquilo que ele costuma dizer. Reparando melhor, até a cara dos dois está parecida. Também não é de se admirar: vivem no maior amasso. Coisa mais ridícula, meu Deus, um casal de velhos namorando! Ela pensa que eu não sei o que fazem quando finjo que vou para o colégio e fico trancada no sótão com Bebel; que não ouço seus gemidos.

Mas, no fundo, penso que mamãe só falou essas coisas todas do nosso vizinho porque não gosta que eu desperte em Bebel aquilo que julga prejudicial para uma mente despreparada. Entende que é perversidade eu alimentar certos delírios da maninha. Faço que escuto, mas ajo mesmo é de acordo com o que penso. É muito legal ver Bebel se sentindo mulher, vestir a calcinha pelo avesso, passar blush nas sobrancelhas, tudo de uma forma muito natural. Vibro ainda mais quando o rapaz de quem já falei olha diretamente para mim e sorri. Acho lindo o seu olhar sonhador, daí que detesto quando teima em colocar aqueles óculos enormes, escuros, sem graça nenhuma. Ele tem mais que a idade de nós duas juntas, mas é um homem muito bom. Há um tempo atrás ele disse que, se fosse do nosso interesse, a gente podia brincar de bonecas em sua casa. Alertou sobre o casarão desabitado, que era muito perigoso, e pediu apenas que eu não comentasse o assunto com mais ninguém.

Topei na hora a proposta porque vi que era ótimo nós termos mais um participante nessas distrações. Meu único medo é de que descubram lá em casa o novo esconderijo e venham brigar com o nosso amigo. Papai – como é de costume, aliás – anda cada vez mais bravo. Ontem caminhava de um lado para outro como se procurasse alguma coisa; cochichou pelos cantos com mamãe e depois o encontrei calibrando a velha espingarda de caça.

Também ando bastante ansiosa nesses últimos dias. Agora, quando as brincadeiras acontecem, eu sou sempre a filha e Bebel é a mãe. Do mesmo jeito que se faz numa casinha de bonecas, com a diferença de que, na nossa, as pessoas se mexem de verdade e todas têm alma. O moço pega Bebel pelo braço e seguem até o quarto dele. Tudo como na vida real. Os dois caem na cama, se cobrem com o lençol, enquanto eu fico na sala vendo um filme na TV e comendo pipocas. Depois ele vem, me põe no colo, acaricia minha nuca e me deixa toda arrepiada. Ele garantiu que hoje iremos trocar os papéis: Bebel será a filha...

Fontes:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

Astolfo Lima Sandy (1948)



Astolfo Lima Sandy, natural de Sobral (1948), fez sua estréia em 1998 com o livro Mão de Martelo e Outros Contos, pela UFC.

Em 2002 ganhou o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos.

Participou do JORNAL de Contos Cearenses (Ed. Bagaço, Recife); da Antologia do Conto Nordestino – Ano 2000 (Ed. Micro, Recife);

Ganhou alguns Prêmios Literários; tem inéditos dois livros de contos, um de novelas.

Fonte:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

sábado, 29 de maio de 2010

Trova 148 - Antonio Manoel Abreu Sardenberg (São Fidélis/RJ)

Rachel de Queiroz (Tangerine-Girl)


De princípio a interessou o nome da aeronave: não ‘zepelim’ nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de voo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si – como um animal de vida própria; fascinava-se como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma joia, livrando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-se um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita – pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade – faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U.S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulado entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento – sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita – o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!” – embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixaria ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projetil, mas suavemente, como uma dádiva.

A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto – uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U.S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou – e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também – não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.

Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louco feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços de agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição de menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de ‘Tangerine-Girl’. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus.

Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele ‘Tangerine-Girl’. Seria ela? Sim, decerto... e a aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer ‘a hora depois do meio-dia’.

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho – e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes de escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel se passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão – até parecia manobra militar –, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.

E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado – ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado – nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais ‘ele’ fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...

Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base – só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão da mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:

– Desculpem... houve engano... um engano...

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos – ou às vezes apanhados pelos moleques do sítio.

(Rachel de Queiroz, A Casa do Morro Branco)
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Outros textos de Rachel:
O Amistoso = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/12/rachel-de-queiroz-o-amistoso.html
Um caso obscuro = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/04/rachel-de-queiroz-um-caso-obscuro.html
A Imagem feminina = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/07/rachel-de-queiroza-imagem-feminina.html
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Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p.106.
Imagem = http://falabotao.wordpress.com/

Estante de Livros de Rachel de Queiroz (1910 – 2003)


Rachel de Queiroz (Fortaleza, 1910 - Rio de Janeiro, 2003) estreou em 1930, com o romance O Quinze (“Prêmio Graça Aranha”). Em 1932 publicou João Miguel. Seguiram-se, em 1937, Caminho de Pedra; em 1939, Três Marias (“Prêmio Felipe d´Oliveira”); em 1950, O Galo de Ouro; e em 1975, Dora, Doralina. Colaborou por muito tempo no Diário de Notícias, nas revistas O Cruzeiro e Manchete e outros órgãos. Publicou várias coletâneas de crônicas e escreveu peças de teatro. Em 1992 editou o último romance, Memorial de Maria Moura. De sua vasta obra se destacam dois livros que contém contos mesclados com crônicas: O Brasileiro Perplexo (Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963) e A Casa do Moro Branco (São Paulo: Ed. Siciliano, 1999). Publicou mais os seguintes volumes de crônicas e, em meio a elas, alguns contos: A donzela e a moura torta (1948); 100 Crônicas escolhidas (1958); O caçador de tatu (1967); As menininhas e outras crônicas (1976); O jogador de sinuca e mais historinhas (1980); Mapinguari (1964); As terras ásperas (1993); O homem e o tempo (74 crônicas escolhidas); A longa vida que já vivemos; Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas; Cenas brasileiras. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Traduziu mais de quarenta obras. Traduções para o alemão, o francês, o inglês, o japonês. Diversos prêmios, condecorações e títulos.

Quando publicou, em 1965, o famoso ensaio “Evolução e Natureza do Conto Cearense”, Braga Montenegro fez a seguinte observação: “‘Monólogo’, ‘Romance’, ‘Luisinha, a Manicura’ e mais um punhado de contos a ser retirado em meio a uma avalanche de crônicas, notadamente em O Brasileiro Perplexo (1963), constituem a limitada bagagem de Rachel de Queiroz. Entretanto, a escassez não insinua a inaptidão. Rachel de Queiroz, se quisesse, seria contista na mesma altura por que é romancista, e até não há exagero em afirmar-se que poucas de suas páginas superam a humanidade, a contagiante ternura, a discreta beleza de ‘Monólogo’”.

No volume A Casa do Morro Branco, catalogado como crônicas, observa-se com nitidez a presença da contista.

Na verdade, o livro é composto de 13 contos ou narrativas curtas e um ensaio sobre a Soberba ou o Leviatã. Nas 13 histórias o espaço geográfico da ação quase nunca se repete. Em “Ma-Hôre” o drama se inicia no mar de um planeta desconhecido e, em seguida, no interior de um navio espacial. Em “Natal no Paraguai”, como o título indica, a ação se desenrola naquele país. “O mato era ralo; mas visto do chão parecia fechado” (...). O protagonista, um soldado brasileiro, se achava caído no chão, em algum lugar do Paraguai. “Não sabia onde estava. Paraguai, era. Léguas e léguas, Paraguai adentro.

Em “A Casa do Morro Branco” os episódios ocorrem numa casa (e seus arredores) situada num morro “num desses ricos estados do Brasil adentro”, possivelmente São Paulo: “A casa caiada, cercada de alpendres, é tão antiga que certa gente pretende que ela vem dos tempos do Anhanguera.” O primeiro protagonista é fugido de Pernambuco, por crime político, ao tempo da Confederação do Equador. Em “Os dois bonitos e os dois feios” a ação se desenvolve no sertão. Não há nenhuma referência a localidades apontadas em mapas. Sabe-se apenas que os dois heróis da história “eram vaqueiros”, “campeiros da mesma fazenda”. É o sertão nordestino: novilhas, bois, cavalos, mulungus, cumarus, imburanas, veredas. Em “Isabel” as ações se dão no Ceará, “numa capoeira deserta, na seca ribeira do Sitiá”, proximidades de Quixadá. Os personagens vivem numa terra pedregosa. Isabel e o marido viviam de um “roçado pequeno, quase no quintal da casa”. Ela criava galinhas, ele “ganhava uns vinténs no corte de lenha”. Outro conto ambientado no sertão do Ceará é “Cabeça-Rosilha”, nas fazendas Junco e Califórnia. História de touros bons de briga. E ainda no Ceará, na cidade de Aroeiras, se desenrola a narrativa intitulada “O telefone”. Um dos personagens tem casa na praça da Matriz, “com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão”, típica casa dos ricos nas pequenas cidades do interior nordestino nos séculos XIX e XX.

Em “O vendedor de ovos” o episódio é narrado numa delegacia de polícia de cidade pequena. A trama, porém, ocorre nas ruas. O personagem Anjinho vive “pelos trens, comprando ovo aqui, vendendo ovo na cidade.” Os personagens de “O jogador de sinuca” participam de drama na cidade mineira de Lafaiete, mais precisamente no salão do Bar Campestre, onde disputam uma partida de sinuca.

Em “Vozes d’África” os personagens vivem “isolados, como num sertão longínquo”, no Estado do Rio de Janeiro. Moram numa casa de taipa com telhado de sapé. Uma comunidade de negros. Em “Cremilda e o fantasma” o drama se desenrola numa cidade grande (Rio de Janeiro?) ou, mais especificamente, numa mansão, “trabalho de mestre-de-obras português, portais de cantaria, varandim, sacadas de ferro batido, soalho de acapu e amarelo e até vitrais de cores nos janelões”. Também no Rio de Janeiro se desenvolvem as ações de “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca-Rua”. O protagonista morava no Morro do Bugue-Iúgue e vendia diamba a um motorista de caminhão que tinha ponto no Campo de São Cristóvão.

Em “Tangerine-Girl” não há referência a nenhuma localidade específica. A narradora menciona a casa da protagonista, localizada “a algumas centenas de metros” da “base aérea dos soldados americanos”. A garota é brasileira, posto que “pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa”, a fim de poder entender as mensagens dos marinheiros estrangeiros.

Os dramas dos contos de A Casa do Morro Branco abordam os mais variados temas. Ma-Hôre, o homúnculo da raça dos Zira-Nura, “dois palmos de estatura”, se vê diante de quatro gigantes humanos, numa nave espacial avariada. A história pode ser lida como ficção científica, mas também como mensagem aos exploradores do espaço sideral, sempre certos de que são seres superiores. Ma-Hôre é visto como “anão intruso”, “pequeno humanoide”. No entanto, acaba matando os astronautas e tripulando a nave, “na marcha de regresso à terra dos Zira-Nura”. Os heróis humanos são vítimas de um minúsculo ser de outro planeta.

A morte também está presente em “Natal no Paraguai”. E também a “vingança” do inimigo do suposto herói, no caso o soldado brasileiro. O tempo histórico aqui é o da Guerra do Paraguai, a do “tirano López” e de Pedro II, “imperador brasileiro”. Rachel utiliza na narração a mistura de falas: ora do narrador onisciente, ora do protagonista, em monólogo interior. A cena final (o surgimento de dois meninos paraguaios), até o desfecho (a morte do soldado brasileiro), é magnífica enquanto narração. Outra vingança é de Isabel, no conto que leva o seu nome. O marido vivia bêbado, a roncar na cama feita de “quatro forquilhas de palmo e meio de altura, dois caibros fazendo as barras e a estiva de varas servindo de enxerga”. Isabel vivia de “costas magoadas”, de tanto apanhar do marido: (...) “enrolou a mulher com o relho, que sibilou no ar, com um silvo de cobra”. A cena da morte do homem é de um realismo alucinante. São quase três páginas de narração: “Esteve algum tempo a olhar a criatura.” Segue-se a cena em que ela ajeita na rede o corpo dormido do homem. “Isabel tirou a agulha que enfiara no peito do casaco. E rapidamente costurou uma contra a outra, as duas beiradas da rede” (...). Finalmente “malhou a cabeça que a rede envolvia e o pilão amparava por baixo.” Dá-se a primeira pancada. O corpo se imobiliza. Mesmo assim “Isabel continuou batendo, batendo ritmicamente, até perder a força no braço.”

Em alguns contos a escritora se serve da sua vocação de cronista e vez por outra se imiscui na história. Em “A Casa do Morro Branco” é assim: “Só conheço o lugar de vista.” Ou ao dizer “nós do Nordeste”. A cronista também se mostra em “Os dois bonitos e os dois feios”. A narrativa se inicia com uma longa digressão sobre o amor: “Nunca se sabe direito a razão de um amor.” No segundo parágrafo anuncia: “O caso que vou contar” (...). E mais ainda aqui: “nós mulheres estamos habituadas” (...). Em “Cremilda e o fantasma” a narradora-escritora não se contém: “sei que pela manhã viu-se” (...). Ou: “se me permitem dizer.” E ainda: “esqueci de contar que em vida o moço” (...). Em “O jogador de sinuca” a cronista reaparece logo no início da narrativa, a tecer loas às cidades históricas de Minas Gerais. E no meio da narração: “nunca vi ninguém produzir tal impressão” (...). Em “Tangerine Girl” a narradora põe a língua de fora no meio da narração: “Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete.” E em “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca-Rua”, na primeira frase: “Esta história é um pouco comprida e complicada.” No início da segunda parte do conto pergunta ao leitor: “Já falei que o nosso amigo se chamava Henrique?” Em “Cabeça-Rosilha” a narradora escreve: “ainda me lembro”. Mais adiante esclarece ao leitor que a fazenda Califórnia “era de minha avó”. Nada disso, porém, impede que denominemos de contos as histórias deste livro, exceção feita ao “ensaio” intitulado “A presença de Leviatã”.

O tempo se dilata por anos e anos em “A Casa do Morro Branco”, dividida em três partes e três tempos. Na primeira, “O avô”, é mencionado o ano de 1825, data da chegada de Chico Aruéte ao Morro Branco. Na segunda, “O filho”, “o vigário se saiu com um relaxo em latim”. Na terceira, “O neto”, apareceu “um bando de cavaleiros desconhecidos, que se diziam revoltosos da Coluna Prestes.” No mais das vezes, no entanto, o episódio ou os episódios decorrem num restrito lapso de tempo, como em “O vendedor de ovos” – apenas o tempo de um curto interrogatório numa delegacia de polícia. Em “Cremilda e o fantasma” o episódio central é narrado após uma série de delongas, até que “alguns anos atrás” “dera-se um crime impressionante.” Narrados o crime (a morte de Armando, “um moço solteiro, herdeiro universal da avó”) e suas consequências, são “passados tempos”, o personagem chamado de “o velho” ou “o apóstolo” ou “o pai de Cremilda” passa a habitar a casa onde ocorrera a morte do rapaz. “Passados os primeiros dias” (...), “em certa manhã da segunda semana”, “Armando aparecera”. Inicia-se o episódio principal, que decorre em dias e dias, depois em meses e meses, até o desfecho, com o parto de Cremilda: o menino “nasceu morto”, porque filho do fantasma de Armando.

Além desta história de espiritismo, Rachel de Queiroz dedica outro conto à religião, o de Exu. O aparecimento de “um homem morto na esquina do Tenaro” atrai curiosos e a polícia. A narradora conta fases da vida do morto, o Henrique, ou o Rico, desde quando cultivava um roçadinho de diamba em Alagoas, ao tempo do governo de Arnon de Melo. De plantador passa a consumidor ou usuário. Além disso, adota a magia negra e se transforma em cavalo de Exu. Ao mexer num despacho de outro Exu: “Baixou a mão, revolveu a farofa com o dedo, atirou longe uma moeda, sonâmbulo, sonâmbulo de todo. Apanhou o charuto, que chegou aos lábios, mas soltou antes de morder. Por fim pegou na garrafa, tirou a chapinha nos dentes – imagine que força de transe – e foi tacando o marafo na boca.” E a seguir principia a morrer, até “cair de borco por cima do despacho. Morto.”

Tirante o extraterrestre Ma-Hôre, os personagens de Rachel de Queiroz são tipos sertanejos, urbanos, metropolitanos de um Brasil atrasado (em oposição a globalizado), mas culturalmente rico, mesmo quando essa riqueza se manifesta em ardis espiritistas (fantasmáticos) ou quimbandistas. Esses tipos comuns da gente brasileira nada têm de caricatural, mesmo em contos em que a sátira ou o cômico se manifestam. Enfim, são personagens cujos nomes podem figurar nas galerias mais requintadas da arte de contar.
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Biografia detalhada de Rachel, em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/04/rachel-de-queiroz-1910-2003.html

Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p.101-105.

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 10



9. Culturas, manias etc.

CULTURA (= cultivo, em relação a vegetais; criação, em relação a animais) – apicultura (abelhas); bubalinocultura (búfalos); ciprinocultura (carpas); citricultura (laranja, limão); columbicultura (pombos); cotonicultura (algodão); cunicultura (coelhos); equinocultura (cavalos); olericultura (legumes); piscicultura (peixes); pomicultura (maçã, pera); orizicultura ou rizicultura (arroz); ovinocultura (ovelhas); sericicultura (bicho-da-seda); triticultura (trigo); viticultura (uva).

MANIA (gosto exagerado por alguma coisa, paixão) – antomania (paixão pelas flores); bibliomania (paixão pelos livros); clastomania (mania de destruição); cleptomania (mania de roubar, sem necessidade); dacnomania (mania de morder); enomania (paixão por vinhos); hidromania (mania de beber água); iconomania (mania de colecionar estatuetas, imagens); megalomania (mania de grandeza); melomania (paixão pela música); micromania (mania de humildade); mitomania (mania de mentir); nosomania (mania de se dizer doente); sofomania (mania de exibir erudição); tricotilomania (mania de puxar os cabelos).

METRO (como elemento de composição, indica medida, instrumento utilizado para medir alguma coisa) – anemômetro (velocidade do vento); barômetro (pressão atmosférica); cronômetro (tempo); hidrômetro (consumo de água); higrômetro (umidade); hodômetro (distância percorrida); manômetro (pressão de um líquido); *parquímetro (tempo de permanência de um veículo no estacionamento); pluviômetro (índice de precipitação das chuvas); podômetro (distância percorrida por um pedestre); telêmetro (grandes distâncias); termômetro (temperatura); velocímetro (velocidade).

(*) A palavra parquímetro, embora constituída de elementos de origem latina, chegou ao português passando pelo inglês parking-meter (equipamento que registra o tempo de permanência de um veículo num estacionamento e indica a taxa a ser paga). Em inglês, to park é estacionar, e parking é estacionamento de automóveis. Em português temos os verbos aparcar (em Portugal) e parquear (no Brasil), ambos sinônimos de estacionar.

CRACIA (governo, poder) – aristocracia (poder dos escolhidos, dos nobres); burocracia (poder do escritório, do documento, do papel); democracia (governo do povo); gerontocracia (poder exercido por pessoas idosas); ginecocracia (poder exercido por mulheres); plutocracia (poder dos ricos). Têm sentido semelhante as palavras formadas com o elemento de composição arquiaanarquia (ausência de governo); monarquia (poder exercido por uma só pessoa); oligarquia (poder nas mãos de um pequeno grupo); tetrarquia (poder exercido por quatro pessoas).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Nilto Maciel (O Riso do Gato)


Nunca ria o gato. Sisudo, posava dia e noite para os de casa e os de fora. Costumeiramente vivia em cima da mesinha de centro. Às vezes nas prateleiras da estante, ao lado da Bíblia, da enciclopédia, dos discos. Mil vezes escapou do fim. Quando a arrumadeira se zangava. Quando os meninos brincavam de bola na sala. Quando qualquer mão descuidada o abanava.

Não lhe faltavam elogios. Chamavam-no gato bonito, gatinho lindo, belo gatão. Mesmo quando percebiam sua circunspecção. Talvez até vissem nela o melhor de sua beleza.

As visitas chegavam a ser impertinentes, mal-educadas. Queriam saber onde a dona da casa havia comprado tão fino bibelô. Que loja vendia adornos como aquele? Onde encontrar enfeite tão raro? Se era de gesso, porcelana, barro.

Imune à curiosidade geral, o gato olhava muito sério para o meio da sala. Nem sequer mexia os longos fios do bigode colado às faces. Como se falassem do fim do mundo, de mortes e dores.

Um dia, porém, o gato amanheceu outro. Um largo sorriso enchia seu rosto formoso. O bigode mais espalhado, os olhos mais brilhosos. Não, não se tratava do mesmo objeto. Alguém andava brincando naquela família.

A dona da casa se irritou. Queria de volta seu gato sisudo. Ou não servia o café. O dono da casa apoiou a mulher. Ou o gato antigo, ou muita briga.

Desconfiaram da arrumadeira. Se não desse conta imediatamente do gatinho lindo, perdia o emprego. E ganhava um processo na Justiça. Por roubar um enfeite raro.

A cozinheira jurou inocência pelas chagas de Cristo. Adorava o gato bonito. Só não falava em verdadeira paixão para não ser chamada de doida.

A moça da casa chamou os pais de idiotas. Deixassem de besteiras. Ninguém roubara o gato. Simplesmente o bicho resolvera mudar de cara.

Terminado o café, todos já concordavam com a mocinha. Cada um, no entanto, defendia, com unhas e dentes, sua opinião a respeito do motivo daquela tão esquisita mudança de feições. Para a mãe, o gatinho lindo ria por um só motivo — estava amando. Segundo o pai, o belo gatão ria à toa. Como um débil mental. O rapazinho achava o gato um gênio, que ria da imbecilidade humana.

A copeira limpava a mesa e resmungava. O gatinho sorria como qualquer pessoa. Mais tarde, talvez chorasse.

Um dos meninos achou por bem dar palpite. O bichano ria de satisfeito. Durante a noite pegara um ratinho. Só podia ser aquilo.

Houve gargalhadas em toda a casa.

Zangado, o garoto quis arriscar outra opinião. E se aproximou da mesinha de centro. Seus pais e irmãos gargalhavam ainda.

Súbito agarrou e ergueu a peça. A gargalhada teve fim. Havia realmente um ratinho no fundo oco do objeto.

Fontes:
Nilto Maciel. As insolentes patas do cão. Disponível em http://www.niltomaciel.net.br/
Imagem = http://flickr.com/

Nilto Maciel (O Que é Conto?)


Os manuais e os dicionários de literatura ensinam que o conto deve ter em si um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, uma única célula dramática. Por isso, o conto rejeita as digressões e as extrapolações, ou seja, o passado anterior ao episódio é irrelevante, assim como o são os sucessos posteriores. Sendo o tempo limitado ao momento do drama, também o espaço seria circunscrito a uma sala, um cômodo. Sendo tudo tão restrito, por que as personagens seriam muitas? E a linguagem do conto? A da concisão, com predomínio do diálogo. Chegado o epílogo, o contista há de ter guardado um enigma. Ou o desfecho inesperado, embora determinado desde o começo. E mais uma infinidade de regras, limites, modelos.

Se todos os contistas assim elaborassem contos, há muito teríamos deixado de lado esse gênero cada vez mais rico, por se empobrecer, se uniformizar. Pois não é difícil escrever conto com obediência ao enunciado nos manuais. Os próprios escritores de manuais, os dicionaristas, os professores de literatura, os estudiosos do conto seriam bons contistas. Bastava-lhes seguir o modelo. E assim se deu durante muito tempo. E assim se dá há muito tempo. Não se pode negar, no entanto, que bons contistas não se afastaram de todo (ou em todas as composições) desse molde. Machado de Assis elaborou contos de estrutura tradicional. Guimarães Rosa também. E tantos outros. Assim como escritores medíocres realizaram contos de forma nova, moderna ou revolucionária. Ou seja, o bom conto tanto pode se moldar na tradição como na inovação. Ou não se moldar a nada.

Wilson Martins, no artigo “Contistas”, fez estas observações: “Em termos de literatura, escrever um conto não é contar uma história por escrito — é contá-la com estilo literário, ou seja, com elegância linguística, verossimilhança, sábia estruturação no desenvolvimento da intriga, desenho convincente no caráter dos personagens e invenção de pormenores, tudo concorrendo para defini-lo como obra de arte literária. Também nessa arte tem validade a lei de economia segundo a qual a moeda má expulsa a boa: desanimado com a enxurrada de pseudocontos publicados por pseudocontistas, Mário de Andrade, em desespero de causa, declarou ser conto tudo o que os autores designam como conto – afirmação sarcástica cuja ironia passou larga e convenientemente despercebida, com este resultado inesperado e não menos irônico: passou a ser conto tudo o que se publicava como conto...”

Segundo Assis Brasil, em A nova literatura (Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1973), o conto brasileiro se renovou com Samuel Rawet, cuja estreia se deu em 1956 na coleção Contos do Imigrante. E assim argumenta o crítico: “Aquela história linear, de começo, meio e fim, prima-pobre da novela e do romance, quebrava sua feição tradicional em busca de outros valores formais” (...) “o conto adquiria uma forma autônoma, não mais ligado ao convencional do enredo.”

Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.

Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica.

Estreou em livro Graciliano Ramos aos 41 anos de idade. Isto não quer dizer que tenha começado a escrever tarde. O exercício de escrever está para o escritor como o exercício de andar e falar está para os recém-nascidos. O aprendizado faz-se lentamente. Escrever, no entanto, não é um mecanismo inerente a todos. Como não o é compor música ou pintar quadros. Exercitar o ato de escrever pode resultar num São Bernardo, após anos e anos de exercício contínuo, diário, quase febril. Ou pode redundar em historietas de gosto discutível. Isso quando o candidato a escritor é muito pretensioso. Quando não o é, termina escrevendo artigos ou reportagens. Se chegar a tanto.

A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte, nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.

O narrador (autor de prosa de ficção), como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver.

Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.

A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas.

Todo contista sonhará escrever um grande romance? Contos mais longos seriam ensaios para romances? Talvez sim, inconscientemente. Ensaio que não deveria ser levado ao palco, sob pena de vaias do público. Os bons narradores escrevem contos ou romances e novelas. Nunca confundem alhos com bugalhos.

Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Ora, uma peça curta, como conto e poema, será sempre uma peça curta, mesmo que momentaneamente inserida num volume junto a outras. Quando se fala de “Cantiga de esponsais”, pouco importa se foi publicada neste ou naquela coleção de Machado de Assis, embora só pudesse estar em Histórias sem data, porque assim o quis o autor. Mas isso não significa nada para o leitor (é de interesse do pesquisador, do estudioso, do historiador, etc).

Os gêneros literários estão em constante mutação e interligação. No Brasil ainda se praticam contos aos modos de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Maupassant, Tchecov e outros, todos diferentes entre si. Uns se perdem no meio do caminho e enveredam pela crônica. Outros querem escrever História, que também é crônica. Há até o conto-ensaio. A maioria, no entanto, permanece presa aos ditames do velho e bom realismo. Uns não se afastam do sertão ou do mundo rural. Outros se transviam pelos becos das urbes. Há os que não sabem de matos nem de ruas e preferem os meandros da mente. Uns leram muito, outros nada leram. Uns souberam vagar pelos abismos de Poe, pularam fora dos livros, outros permaneceram de olhos vidrados na paisagem aberta diante de suas janelas. Uns se exercitaram mais, outros se contentaram com os primeiros mugidos. Tem sido assim, é assim, será assim sempre.

Não há mais o conto, no sentido tradicional, dicionarizado do termo. Conto é apenas termo literário de manual e dicionário. Para orientação dos editores e dos professores de literatura. Quem disse que Machado só escreveu contos, romances, poemas e crônicas? Gilmar de Carvalho escreve legendas, Carlos Emílio escreve delírios verbais, Jorge Pieiro escreve contemas, outros querem imitar Maupassant ou Tchekov. O que importa não é a forma, se há atmosfera ou não, se há enredo ou não. Ser ou não ser conto, isto é lá para os filósofos. Importa ser arte literária.

Fortaleza, abril de 2010.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/

Folclore Português – Distrito de Viseu (Lenda da Caninha Verde)



Em tempos que já lá vão, nos primeiros tempos da Reconquista, vivia num palácio em Fataunços, perto de Vouzela, o nobre guerreiro El Haturra, descendente do famoso chefe mouro Cid Alafum.
El Haturra era velho e feio e nunca era visto sem a sua bengala, uma velha cana que vinha sendo transmitida na sua família, de geração em geração, entregue ao seu novo possuidor com umas palavras misteriosas... Ora, o fato de El Haturra se fazer acompanhar por aquela cana negra e ressequida era objeto de troça de todos, a tal ponto que um seu amigo, o jovem português Álvaro o aconselhou a desfazer-se dela.

El Haturra confidenciou-lhe então que a vara tinha magia e que se um dia chegasse a ficar verde era o sinal sagrado do profético encontro de dois primos descendentes de Cid Alafum. Nesse dia esperado, as terras e os tesouros do antigo chefe mouro voltariam à posse da família e as formosas mouras seriam desencantadas. Uma condição essencial era que ambos os descendentes professassem a religião de Alá.

Um dia, passeavam El Haturra e o seu amigo Álvaro pelo campo quando viram uma linda princesa acompanhada por uma formosa aia, de cabelo negro e olhos azuis, que cavalgava um cavalo negro. De repente, a vara começou a ficar verde e El Haturra começou a rejuvenescer, tornando-se jovem e belo. Ao primeiro olhar, El Haturra tinha reconhecido na aia a descendente de Cid Alafum e, juntamente com Álvaro, saiu atrás das duas jovens que se dirigiam à corte do rei de Portugal.

Diz a lenda que El Haturra conseguiu convencer a jovem aia a casar-se com ele e o rei de Portugal abençoou a união com uma condição: o batismo de El Haturra. De início o agora jovem El Haturra opôs-se veemente, mas por fim a sua paixão foi mais forte e aceitou o desejo real. O batismo ficou marcado para o dia do casamento e foi então que aconteceu algo de extraordinário: no momento em que estava a ser batizado, El Haturra voltou a ser velho e feio como antes.

A magia da caninha verde só seria válida se ambos os nubentes professassem a religião de Maomé. A noiva desmaiou naquele mesmo momento e nunca mais quis ouvir falar no seu noivo que desapareceu para sempre, enquanto que a sua cana verde foi guardada num sítio secreto.

Segundo a tradição, se alguém gritar "Viva o fidalgo da caninha verde!" no mesmo local e à mesma hora em que se deu o encontro entre os dois descendentes de Cid Alafum, ouvirá gargalhadas alegres das mouras encantadas que pensam que chegou a hora da sua libertação.

Fontes:
http://lendasdeportugal.no.sapo.pt/
Imagem = http://luminescencias.blogspot.com/

sexta-feira, 28 de maio de 2010

II Concurso de Trovas "Cidade Poesia" - Bragança Paulista



TEMA: “CAMINHADA”

Numa caminhada inglória,
com minha alma enternecida,
pude ver a minha história
no retrovisor da vida.
Ademar Macedo - Natal RN

Juntos, seguimos a estrada,
mas nem uma ideia eu tinha
de que a tua caminhada
terminasse antes da minha.
Alba Christina Campos Netto - São Paulo SP

Nas caminhadas que fiz
pela vida atribulada,
aprendi que ser feliz
é viver de quase nada!...
Almira Guaracy Rebêlo - Belo Horizonte MG

Nesta ambígua caminhada
há mistério e não me iludo:
-“Não sinto medo de nada,
mas tenho medo de tudo!!!”
Antonio Colavite Filho - Santo André SP

A quem vai só pela estrada,
atalho é mera ilusão;
ele encurta a caminhada,
não encurta a solidão.
Campos Sales - São Paulo SP

O reencontro... a caminhada...
a lua seguindo os dois...
a chama reavivada,
e o resto... eu conto depois...
Darly O. Barros - UBT São Paulo SP

Sem conter as mãos ousadas,
por meu corpo te aventuras
em noturnas caminhadas
de prazeres e loucuras...
Edmar Japiassú Maia - Rio de Janeiro RJ

A vida é uma caminhada
que depressa chega ao fim.
Prefiro uma trilha errada,
mas escolhida por mim.
Emília Peñalba de A. Esteves - Porto – Portugal

Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!
Francisco Garcia de Araújo - Caicó - RN

Quando em nossa caminhada
cai a chuva de um amor,
a vida fica encantada
... tenha-se a idade que for!
Heron Patrício - São Paulo/ SP

Pela frente, a caminhada.
Pernas bambas, olhar baço...
E a vida sendo traçada
naquele primeiro passo!
Maria Helena Oliveira Costa - Ponta Grossa PR

Fazendo-me renascida,
numa evolução sem fim,
a caminhada da vida
caminha dentro de mim.
Marina Gaspar Sant’Anna - Cordeiro RJ

Longa vida em caminhadas
de amor, lutas, desencanto,
mais lentas hoje as passadas,
meus sonhos... correndo tanto!
Moacyr Figueiredo - Florianópolis SC

Não condeno a caminhada,
culpo sim, meus passos falhos.
Bem larga era a minha estrada,
fui eu quem buscou atalhos.
Rita Marciano Mourão - Ribeirão Preto SP

Quase ao fim da caminhada,
meu coração, não tem jeito!...
Sempre, um toque de alvorada,
acorda o sonho... em meu peito!
Therezinha Dieguez Brisolla - São Paulo SP

Nas curvas da caminhada,
tento a paisagem mudar.
Se não pode ser mudada,
mudo meu jeito de olhar!
Vanda Fagundes Queiroz - Curitiba PR

Tema: RIMA (humorísticas)

Sua trova – uma obra-prima -
não tem se classificado!?
Quando ele acerta na rima,
o verso é de pé quebrado!
Arlindo Tadeu Hagen - Belo Horizonte MG

O bígamo, com certeza,
comenda de herói já logra.
Conquistou rima e proeza
de aturar mais de uma sogra.
Célia Guimarães Santana - Sete Lagoas MG

- Tira a mão e não se anima!
diz trovadora ao frangote:
- Faça a trova em bela rima,
que aceito a mão no cangote...
Dinair Gomes de C. Leite - Paranavaí PR

A rima da minha trova
é perneta que dá dó.
Nasceu há pouco, é tão nova...
E pulando num pé só!
Mª Marlene Nascimento T. Pinto - Taubaté SP

O coveiro olha de cima
e diz ao ver a Raimunda:
-Para enterrar essa rima...
só mesmo a cova mais funda!
Neide Rocha Portugal - Bandeirantes PR

Que infortúnio o da Raimunda!...
Numa enchente de verão,
derrapou na rua imunda...
... e deu com a “rima” no chão!
Renato Alves - Rio de Janeiro RJ

Raimunda, com tudo em cima,
charmosa e com porte nobre,
no samba mostrou a rima
que não tem nada de pobre.
Rita Marciano Mourão - Ribeirão Preto SP

Algo me veio de cima
e atingiu-me o olho nu...
Reclamando, encontro a rima
para xingar o urubu!!!
Rodolpho Abbud - Nova Friburgo RJ

Ele usa e abusa das rimas...
sobe “degrais”... põe “chapéis”...
e após ler as obras-primas:
- Onde eu pego os meus “troféis”?
Therezinha Dieguez Brisolla - São Paulo SP

A Raimunda chega ao baile
e logo se esquenta o clima,
pois alguns “cegos”, em Braille,
querem só tocar na “rima”!
Wanda de Paula Mourthé - Belo Horizonte MG

Fontes:
Colaboração de Giuseppe Dellalba
Imagem = montagem realizada sobre foto de Rodrigo Moraes

Machado de Assis (Missa do Galo)


Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.

- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.

- Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.

- Ainda não foi? Perguntou ela.

- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.

- Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

- Não! qual! Acordei por acordar.

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.

- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

- Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.

- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.

- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

- Justamente: é muito bonito.

- Gosta de romances?

- Gosto.

- Já leu a Moreninha?

- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedece-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.

E logo alto:

- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...

- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

- Já tenho feito isso.

- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.

- Que velha o quê, D. Conceição?

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.

- É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio...

Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:

- Mais baixo! Mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.

- Eu também sou assim.

- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.

- Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.

- Foi o que lhe aconteceu hoje.

- Não, não, atalhou ela.

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:

- Mais baixo, mais baixo...

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.

- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.

- São bonitos, disse eu.

- Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"

- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

- Já serão horas? perguntei.

- Naturalmente.

- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.

-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

Fontes:
Machado de Assis. Paginas Recolhidas. RJ: Ediouro.