sábado, 5 de junho de 2010

Vicência Jaguarive (Nos Momentos de Lucidez)

Jana = Noel del Rosal Ortiz

Mas os momentos de lucidez são mais frequentes. Ela ainda conserva a consciência de seu papel na família. De vez em quando dá ordens e toma decisões, para depois alienar-se do mundo e de si mesma. A cabeça luta para se manter intacta, embora o corpo esteja fraquejando.

Parece ter a intuição de que continua a ser a mola mestra da família. Por enquanto não pode empreender sua viagem, ainda precisam dela. Chora quando chega um sobrinho ou um amigo que não vê há tempos. Entende que aquela pode ser a última vez. As lágrimas são uma demonstração de que ela ainda tem ciência do que acontece à sua volta. Sabe que se aproxima seu aniversário. Noventa e três anos. Quase um século, mas nem parece. O tempo passou rápido demais.

A avó aproxima-se e leva-a para a lição de bordado. Está de férias do colégio onde estuda, na cidade vizinha. Depois da sessão de bordado, a avó lhe dá dinheiro para uma cocada, seu doce preferido. A avó é autoritária, não admite desobediência, mas é boa... para os netos... para todo mundo. Passa pelo quarto da mãe, que amamenta o bebê chegado há algumas semanas. Entra e a mãe lhe dá um beijo na cabeça. A mãe é doce, carinhosa, paciente. Ela a ama muito. O bebê recebeu o nome de José, e é assim que o chama. Algumas pessoas já começaram a chamá-lo Dedé, mas ela não. Não gosta de apelido.

Alguém aciona a campainha, e ela pergunta à cuidadora quem é. Põe a cabeça para fora da rede. É uma das sobrinhas. Ela casara, não tivera filhos, mas criara quatro sobrinhas que ficaram sem mãe. Na realidade, foi mãe para quase todos os sobrinhos, e eles a amam e preocupam-se com ela. Fica feliz quando sabe que eles vivem bem. Recentemente, soube que vai ganhar um sobrinho-bisneto. Ficou feliz pelo sobrinho que vai ser avô, mas ficou mais feliz por saber que a família continua a crescer.

O pai reconhece seus passos no corredor e a chama. Ele se sente pior do reumatismo, anda com muita dificuldade, e a ferida da perna está mais profunda. Ele quer sempre um filho por perto. Gosta de conversar com ela, porque a acha ajuizada e responsável. Pergunta-lhe se ela vai bem no colégio, se comporta-se bem, se sente saudades de casa. Ele conserva-a perto de si por uma boa meia hora. Ela já está impaciente. Sente o gosto da cocada, que continua na bodega. Quando finalmente ele a libera e ela chega à mercearia, alguém havia comprado o último doce do dia. O semblante de tristeza sensibiliza o bodegueiro, que vai mandar a mulher fazer um outro prato de cocada. Dentro de uma hora ela volte que o doce vai estar pronto.

A cuidadora anuncia a hora do banho. Ela não gosta mais de tomar banho, sente muito frio, apesar da temperatura alta da água. O cheiro do sabonete líquido e do shampoo. Depois, a fragrância da colônia suave, que ganhou no Natal. Como ganha presentes! Os sobrinhos mandam presentes no aniversário, no Dia das Mães e no Natal. E quando vêm passar o fim de semana com ela trazem sempre uma lembrança. Veste um vestido limpo e cheiroso e pede para ouvir música. Levam-na à área coberta, onde se conserva sempre uma rede armada, e ela ouve a voz modulada do Orlando Silva: Lábios que eu beijei / Mãos que eu afaguei / Numa noite de luar assim...

O médico dissera que o pai precisava cortar a perna, para evitar a gangrena. Mas ele não resistiu e morreu horas depois da cirurgia. Ela deixara o colégio para ajudar a tocar os negócios da família. Era a mais velha e tinha jeito para comandar. O irmão mais novo do que ela um ano iria substituir o pai na política. Talvez se candidatasse. Havia também o namorado, que fez pressão para ela deixar os estudos e voltar para casa. Aquele namoro era outro problema que parecia não ter solução. Gostava dele, mas ele era um boêmio. Já havia dito: só se casaria quando ele se cansasse daquela vida. A mãe estava sofrendo com a morte do marido, principalmente porque se sentia desamparada. Era uma mulher fraca, que se apoiava na fortaleza dele. Agora não sabia o que ia ser de sua vida.

Vestida de azul e branco / Trazendo um sorriso franco / No rostinho encantador / Minha linda normalista / Rapidamente conquista / Meu coração se amor. Nélson Gonçalves havia substituído Orlando Silva. Gostava daquela música, que a fazia lembrar-se da sobrinha mais velha, a menina do seu coração. Sempre achara que ela seria professora primária, mas a sobrinha fora além. Fez faculdade e até ensinava na universidade.

Nasceu! É uma menina! E o nome vai ser Vicência Maria, em homenagem à Tatença. O irmão entrara correndo e dera a notícia. Era a primeira filha, a primeira neta, a primeira sobrinha. Ela gostou de ouvir que o nome da menina seria o mesmo da avó deles – Vicência, que os netos chamavam Tatença. Aquela menina seria o xodó da família, ela tinha certeza. Levantou-se da máquina, onde bordava uma colcha para o berço do bebê e apressou-se a ir à casa do irmão. A cunhada já estava pronta na cama, com os belos olhos azuis brilhando de felicidade. A menina tem os olhos azuis? Ela era herdeira do gene dos olhos azuis, havia muito a quem puxar: a mãe tinha os olhos azuis e mais duas irmãs dela também. Ela própria, a tia, e um de seus irmãos ostentavam um par de olhos da cor do céu. Não, ela tem os olhos castanhos, disse a mãe da cunhada.

O irmão fizera um bom casamento. A cunhada era uma esposa perfeita. Ele casara-se antes das eleições. Quando tomou posse, a mulher já estava grávida. Aproximou-se do berço. Quando viu o pacotinho branco, somente com os negros cabelos do lado de fora, sentiu que amaria aquela menina como se fosse sua filha.

O almoço está na mesa. Vamos!? Era a voz da cuidadora. Levou-a para a sala de jantar e aproximou a cadeira de rodas da mesa, onde uma das sobrinhas a esperava. Vovó – era assim que os sobrinhos mais novos a chamavam –, está chegando o seu aniversário. O que a senhora vai querer? Ela sorriu um sorriso maroto: Eu quero uma festa, com bolo confeitado, convite, missa e tudo mais. A sobrinha surpreendeu-se: Outra festa, vovó? A resposta veio em tom de ordem: Sim! Eu não tenho dinheiro? Até morrer vou festejar o aniversário.

O sorriso passou de brincalhão a irônico. O que ela ironizava? A vida, talvez. Será que está lúcida? Perguntou-se a sobrinha. Ela tem momentos de ausência, momentos em que se refugia no passado.

Fonte:
Colaboração da escritora.

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