1. Considerações preliminares
A literatura infantil surgiu no Ocidente por volta do final do século XVII, época que também registrou o apogeu dos contos de fadas. Oriundos da tradição oral e não tendo, originalmente, a criança como público-alvo, os contos inseriram-se, com o tempo, no acervo literário infantil, ocupando um lugar definitivo.
É em 1697, com a publicação de uma coletânea de oito contos em prosa, que o escritor francês Charles Perrault marca a ascensão de um gênero que terá ampla receptividade no leitor-criança. Esses contos, prescindindo às vezes da presença das fadas, mas envolvidos na áurea do maravilhoso, encontraram larga difusão na segunda metade do século XVII e meados do século XVIII, retornando com vigor no século XIX, principalmente na Alemanha com os contos dos Irmãos Grimm, e na Dinamarca, com os contos de Hans Christian Andersen.
Gênero que saltou da oralidade para perpetuar-se na literatura escrita, os contos de fadas avançaram fronteiras e já no século XIX, encontramos em terra brasileira a proliferação desses contos através das traduções de Alberto Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen, que tiveram o cuidado de promover uma adaptação da linguagem, tornando-a próxima da língua portuguesa falada no Brasil.
A Carlos Jansen, alemão radicado no Brasil, coube a difusão de obras em que o elemento maravilhoso se fazia presente como se verifica, por exemplo, em Contos seletos das mil e uma noites (1882) e As aventuras do celebérrimo Barão de Münchausen (1891), ao lado de histórias de aventuras como Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888) e D. Quixote de La Mancha (1901). Entretanto, foi Figueiredo Pimentel o grande divulgador dos contos de fadas, reunindo principalmente contos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen nas obras: Contos da Carochinha (1894), Histórias da Avozinha (1896), Histórias da Baratinha (1896) e Contos de Fadas (1896).
Segundo Arroyo (1986:177) Contos da Carochinha, com o subtítulo Contos populares morais e proveitosos de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição local, reunia 61 histórias seguindo o modelo de Charles Perrault que, em 1697, designara os Contos da mamãe gansa como Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades. A exemplo, portanto, da literatura infantil européia, a nossa literatura, que nesse primeiro momento era somente nossa quanto ao fato de ser traduzida em língua portuguesa abrasileirada, trazia em seu bojo a preocupação com o aspecto formativo da literatura. Diferenciava-se, entretanto, da literatura veiculada nas escolas, marcada por ideais pedagógicos e sem qualquer alusão ao elemento maravilhoso. Saindo do âmbito escolar e visando a um público emergente, os contos de Figueiredo Pimentel resgataram o popular e o mundo das maravilhas, suprindo uma carência então vigente: o conhecimento dos clássicos europeus através de uma linguagem solta, livre, espontânea e bem brasileira para o tempo subvertendo, assim, os cânones da época ( Arroyo, 1986: 178).
É pelos fins do século XIX, que ganha pulso em nossa recém-criada República, a viabilização de um projeto educativo que via no texto infantil e na escola a possibilidade de contribuir para a formação de futuros cidadãos. Juntando-se a isso a preocupação generalizada com a carência de obras adequadas à criança brasileira e que fossem feitas por brasileiros, é que nasce a nossa literatura para crianças. Entre os escritores que se prontificaram a concretizar esse projeto situam-se Coelho Neto, João do Rio, Tales de Andrade, Arnaldo de Oliveira Barreto, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Júlio César da Silva e outros (Lajolo, 1984).
Olavo Bilac e Manuel Bonfim, no prefácio de Através do Brasil (1910) explicitam a ligação da nossa incipiente literatura com os ideais pedagógicos ao afirmarem que a obra fora elaborada com o intuito de constituir-se no único livro de leitura para o curso médio das Escolas Primárias do Brasil, a fim de trazer às crianças o conhecimento necessário para a sua formação cultural, moral e cívica (apud Zilberman, 1986:18).
Nos laços entre a literatura e a escola, não havia espaço para a fantasia. E é ainda Olavo Bilac quem, no prefácio de sua obra Poesias Infantis (1904), adverte o leitor dos perigos existentes em histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças, fazendo-as ter medo das coisas que não existem (apud Zilberman,1986:273).
A produção literária nacional atenta à difusão dos ideais de glorificação à Pátria, enaltecimento da natureza, valorização de heroísmos, preocupação com os registros cultos da língua portuguesa, se ganhou notoriedade devido à sua vinculação à escola, garantia certa de sucesso mercadológico, não servira, entretanto, para suprimir a divulgação dos contos maravilhosos, provenientes do acervo europeu. Prova disto são as obras de Figueiredo Pimentel que, convivendo no mesmo espaço de tempo com os chamados livros de leitura escolar , alcançaram um número significativo de edições, sendo que somente sua primeira obra Contos da Carochinha obtivera, entre 1894 a 1931, o número de cem mil exemplares colocados no mercado ( Lourenço Filho, apud Zilberman, 1986:322).
Paralelamente às histórias de Perrault, Grimm e Andersen divulgadas por Figueiredo Pimentel e que foram traduzidas diretamente dos originais, vicejavam no Brasil os contos pertencentes à tradição oral, transmitidos de geração à geração, principalmente, pelos imigrantes europeus e seus descendentes que aqui aportaram. Inseridos no cotidiano brasileiro, em um ambiente culturalmente diversificado pelo encontro de múltiplas vozes (alemã, francesa, portuguesa, espanhola, italiana e africana) esses contos passaram a se diferenciar do berço de além-mar, ganhando novas versões.
Em Câmara Cascudo (1956), que procedeu à recolha de contos da oralidade, vamos encontrar, por exemplo, A Gata Borralheira, um dos mais conhecidos de Charles Perrault, miscigenado a outros contos. Bicho de Palha, versão encontrada na tradição oral do Rio Grande do Norte, mescla dois contos de Perrault: o já referido A Gata Borralheira e Pele de Asno, a que se acrescenta o toque popular, quer relacionado à denominação do conto e ao nome da heroína (Maria), quer na inserção da religiosidade, pois a entidade mediadora que auxilia a protagonista não é uma fada, mas sim, Nossa Senhora. Similarmente, nos contos recolhidos por Sílvio Romero (1954), A Gata Borralheira transforma-se em Maria Borralheira, numa história que lembra tanto A Gata Borralheira quanto As fadas de Perrault, sem deixar de inserir, também, o elemento religioso. Aqui, a velhinha de As fadas é substituída por Nosso Senhor e a varinha de condão atua não pela magia de uma fada, mas pela intercessão do poder divino.
Ao findar do século XIX e primeiras décadas do século XX, a literatura infantil brasileira depara-se ante duas vias. A primeira, adotando o processo mimético europeu, cativa o leitor pela presença do maravilhoso, entretanto lhe faltam as raízes brasileiras. É um produto importado que embora passando por um processo de adaptação com relação à língua e apresentando histórias resultantes da intertextualidade de outras, como Bicho de Palha e Maria Borralheira, continua sendo um acervo de histórias alheias. Se por um lado, a simbologia presente nos contos atende aos anseios que são universais ao ser humano, como quer Bettelheim (1980), por outro lhe falta a representação da criança brasileira, em suas peculiaridades. A segunda via abre caminho para uma literatura caracterizada como brasileira, isto é, feita por brasileiros e para a criança brasileira. Entretanto, os seus propósitos não convencem o leitor-criança e muito menos o adulto, gerando insatisfações como a expressa por Monteiro Lobato:
A nossa literatura infantil tem sido, com poucas exceções, pobríssima de arte, e cheia de artifício, – fria, desengraçada, pretensiosa. Ler algumas páginas de certos “livros de leitura”, equivale, para rapazinhos espertos, a uma vacina preventiva contra os livros futuros. Esvai-se o desejo de procurar emoções em letra de forma; contrai-se o horror do impresso. (Cavalheiro, 1962:182, V. II)
2. As reinações de Lobato
Optando por uma terceira via, surge a literatura infantil de Monteiro Lobato mostrando que é possível produzir obras que seduzam o leitor-criança, explorando o lado mágico da vida, utilizando em larga escala o elemento maravilhoso sem deixar, entretanto, de focalizar a criança brasileira e o contexto em que está inserida.
Com A menina do Narizinho arrebitado, obra publicada em 1920 e levada às escolas em 1921 como “segundo livro de leitura” e já com o título Narizinho Arrebitado, Lobato consegue um fato inédito no âmbito do mercado livreiro: esgotar 50.000 exemplares em cerca de oito a nove meses (Cavalheiro, 1962:147, V. II).
Rompendo com a literatura tradicional, Lobato angaria, na época, comentários como os feito por Breno Ferraz:
... um livro absolutamente original, em completo, inteiro desacordo com todas as nossas tradições “didáticas”. Em vez de afugentar o leitor, prende-o. Em vez de ser tarefa, que a criança decifra por necessidade, é a leitura agradável, que lhe dá a amostra do que podem os livros (...) a historieta fantasiada por Monteiro Lobato, falando à imaginação, interessando e comovendo o pequeno leitor, faz o que não fazem as mais sábias lições morais e instrutivas: desenvolve-lhe a personalidade, libertando-a e arrimando-a para cabal eclosão, fim natural da escola. (apud Cavalheiro, 1962:146, V.II)
Durante a década de 20, Monteiro Lobato cria outras dez histórias que, somadas à primeira, resultam no livro Reinações de Narizinho, publicado em 1931. Promovendo uma fusão entre realidade e fantasia, anulando os limites de espaço e de tempo, Lobato faz com que o sítio de dona Benta transforme-se na morada, não só dos habitantes do sítio, como também dos integrantes do mundo das maravilhas. Já na primeira história, Narizinho Arrebitado, encontramos o Pequeno Polegar fugindo de seu mundo e de dona Carochinha, a fim de vivenciar novas aventuras:
... Ando atrás do Pequeno Polegar [...] Há duas semanas que fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele. [...] tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda vida presos dentro delas. Querem novidades. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir e o Pequeno Polegar já deu o exemplo. [...] Tudo isso [...] por causa do Pinóquio, do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer.(Reinações de Narizinho, p.11)
Cansado das velhas histórias emboloradas pelo tempo, Polegar abre o caminho para a vinda das demais personagens do mundo encantado: Cinderela, Branca de Neve, Rosa Branca e Rosa Vermelha, Chapeuzinho Vermelho, Gato de Botas, Barba Azul, Patinho Feio, Hansel e Gretel, o Soldadinho de Chumbo, o Alfaiate Valente, Ali Babá, Aladino, Lobo Mau, os heróis gregos Perseu e Teseu, além de Xeerazade e todo o séquito das mil e uma noites. A estes heróis do passado juntam-se outros da contemporaneidade de Lobato, como Tom Mix e Gato Félix, que saem das fitas de cinema e histórias em quadrinhos interagindo com os habitantes do sítio e do mundo maravilhoso. Se as personagens dos contos antigos visitam o sítio, rompendo o espaço geográfico e temporal, os moradores do sítio também se aventuram, empreendendo, tal como Polegar, visitas a outros reinos. É desta forma que visitam em Pena de Papagaio a terra das fábulas e seus fabulistas famosos La Fontaine e Esopo, presenciando as fábulas acontecendo e participando ativamente de outras como em Os animais e a peste, que traz como resultado a vinda de mais um morador para o sítio: o burro falante. E as incursões continuam. Próxima aventura: as terras do barão de Münchausen e com a participação do mundo adulto, pois D. Benta acompanha as crianças na nova empreitada.
Em Reinações de Narizinho o mundo maravilhoso passa a fazer parte do cotidiano das crianças. Assim é que Narizinho em suas incursões pelo Reino das Águas Claras vivencia um conto de fadas, transformando-se pelas “mãos” mágicas de dona Aranha numa princesa que se prepara para o encontro com o príncipe que se é escamado, é, acima de tudo, encantado. O esplendor de seu vestido ofusca os de Pele de Asno e de Cinderela descritos por Perrault e Irmãos Grimm. Suas maravilhosas vestes, tanto as do primeiro encontro ( p.14-15), quanto as confeccionadas para a celebração de seu casamento com o príncipe (p. 61), resultam da interação de elementos que fogem do domínio do real. Dona Aranha, a costureira de cerca de mil anos de idade, assim metamorfoseada por uma fada má, vale-se de um tecido tramado pela fada Miragem, cortando-o com a tesoura da Imaginação e cosendo-o com a linha do Sonho e com a agulha da Fantasia (p. 63).
Tem-se aí a identificação dos recursos utilizados pela costureira Aranha com os selecionados e organizados por Lobato para sua recriação dos contos maravilhosos, em que a miragem, a imaginação, a fantasia e o sonho deixam o campo da abstração e concretizam-se nas aventuras vividas por Narizinho e sua comitiva, nas onze histórias que compõem a obra Reinações de Narizinho.
Se no Reino das Águas Claras, presentificado nas histórias Narizinho Arrebitado e O casamento de Narizinho, Lobato promove o encontro do antigo com o contemporâneo de sua época, maior ênfase se encontra nas peripécias que ocorrem no Sítio do Picapau Amarelo. É na festa organizada para recepcionar os integrantes do mundo maravilhoso (Cara de Coruja), que Lobato proporciona uma verdadeira fusão entre o real do sítio e a ficção dos contos. Desse encontro resulta um maior conhecimento por parte dos habitantes do sítio e, concomitantemente, do leitor. Através da curiosidade de Emília fica-se sabendo o porquê de os sapatinhos de Cinderela ora serem de cristal, ora de camurça. Ou ainda, elucida-se o verdadeiro final desta história, se é o contado por Perrault ou o dos Irmãos Grimm. Estas e outras questões são levantadas buscando respostas dos diretamente envolvidos nas histórias. Resgatam-se portanto, histórias antigas que retiradas da fixidez da escrita, transformam-se em histórias reais, possibilitando que o sítio se transforme, como disse Dona Benta, num livro de contos da carochinha.
As idas e vindas de personagens de diferentes histórias e diferentes autores, assim como as aventuras do pessoal do sítio por outras paragens, revelam ao leitor um mundo em que ele pode interagir, de tal forma que os seus sonhos e suas fantasias passam a ser possíveis de uma real concretização. E isto se torna possível pela atuação das personagens do sítio que, representando o anseio dos pequenos leitores, estabelecem comparações entre uma história e outra, apontam defeitos, buscam soluções, questionam e obtém respostas. Com isso, Lobato transforma em realidade um de seus sonhos: transformar o sítio (leia-se sua obra) na morada de seus leitores.
Convidado a participar desse jogo em que o real e o imaginário se fundem ou se confundem, o leitor se vê enredilhado nas tramas tecidas pelo mestre Lobato, que marotamente, na voz de Peninha revela que o mundo das maravilhas existe por toda parte e para nele ingressar basta ter imaginação: [...] O mundo das maravilhas é velhíssimo. Começou a existir quando nasceu a primeira criança e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra (p. 134).
Entre os recursos empregados por Lobato que viabilizaram os novos rumos da literatura infantil brasileira, destaca-se a centralização dos eventos na personagem-criança. Esta, que até então ocupava um patamar inferior na literatura a ela endereçada, passa a ser o foco de interesse da obra lobateana, acarretando modificações significativas tanto no campo ideológico quanto no estético. Priorizando a criança “reinadeira”, sempre pronta a vivenciar novas aventuras e, ao mesmo tempo, ávida em adquirir novos conhecimentos, Lobato indica ao leitor o caminho a ser trilhado pela imitação dos heróis-mirins Narizinho, Emília e Pedrinho. Intrepidez, criatividade e imaginação fértil caracterizam o perfil infantil lobateano em oposição ao modelo inculcado pela literatura escolar, que promovia a fidelidade à criança exemplar, totalmente dependente dos ditames do mundo adulto. Se, nos contos antigos transmitidos pela literatura escrita e oral, as personagens ( em geral jovens casadoiros ) mostravam-se passivas, dependentes de auxílio externo para conseguirem superar obstáculos ou obterem ascensão social, Lobato resolve tal problema, retomando essas histórias e promovendo a rebeldia das personagens:
Esquecidas de que eram famosas princesas, foram correndo receber o pequenino herói. Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de dona Carocha e virem viver novas aventuras no sítio de dona Benta. Polegar já havia fugido uma vez, e apesar de capturado estava preparando nova fuga –– dele e de vários outros. ( p.96 )
O recurso usado por Lobato, em que os habitantes do sítio interagem com as personagens do mundo maravilhoso, tem como conseqüência o reforço no propósito que une as personagens dos dois mundos e que, evidentemente, deverá atuar de forma eficaz no destinatário da obra. Após a leitura de Reinações de Narizinho, o leitor terá acrescido à sua história não só conhecimentos, mas, sobretudo, a reflexão necessária para se tornar um leitor dotado de um olhar mais crítico, quer com relação ao mundo ficcional que lhe é ofertado, quer com relação ao mundo real de que faz parte.
Ao privilegiar a ótica infantil, Lobato elege como prioridade o ludismo que perpassa, sobremaneira, todas as histórias. Ludismo este que se encontra no inusitado das cenas compartilhadas pelas crianças, animais e objetos antropomorfizados e pelos adultos que compactuam com as personagens-mirins, aceitando e vivenciando o jogo do faz-de-contas.
Criando cenas bem-humoradas, o narrador convida o leitor para compartilhar da brincadeira, como se observa no desenrolar da primeira história, no momento em que o besouro discute com o príncipe do Reino das Águas Claras a respeito da “misteriosa elevação”, onde estão apoiados:
[...] Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:
–– Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.
–– Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura –– volveu o príncipe.
O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.
–– Muito salgada para ser rapadura. Parece antes...( p.08)
O espaço vazio, representado pelas reticências, surge como um convite à entrada do leitor, indicando-lhe a continuação do diálogo.
Essa interação do leitor com o texto, espraia-se pela obra. E, se uma das intenções de Lobato era recuperar os contos tradicionais sob uma nova ótica, o leitor é, novamente, solicitado a colaborar. Desta feita, como se participasse de um jogo de “quebra-cabeças”, cabe-lhe identificar os contos famosos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, pelas pistas que são inseridas na construção do texto. Assim, [...] O peixinho, porém, que era muito valente permaneceu firme...(p. 09) lembra O soldadinho de chumbo de Andersen; [...] a baratinha de mantilha, de nariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa. [...] Estou sentindo o cheirinho dele (p. 13) lembra O pequeno polegar de Perrault e Joãozinho e Maria dos Grimm; [...] –– Estou vendo uma poeirinha lá longe! ( p. 93) remete ao conto O Barba-Azul de Perrault.
Reservando um lugar para o leitor no relato, convidando-o para ingressar no mundo mágico da ficção, onde tudo é possível, a obra lobateana cumpre o seu papel revolucionário. Recuperando caminhos esquecidos, traçando veredas, ampliando as já existentes e abrindo outras, Lobato criou um mapa de um mundo ficcional que se transforma a cada instante, sempre a espera de um novo traçado.
Fonte:
XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.
A literatura infantil surgiu no Ocidente por volta do final do século XVII, época que também registrou o apogeu dos contos de fadas. Oriundos da tradição oral e não tendo, originalmente, a criança como público-alvo, os contos inseriram-se, com o tempo, no acervo literário infantil, ocupando um lugar definitivo.
É em 1697, com a publicação de uma coletânea de oito contos em prosa, que o escritor francês Charles Perrault marca a ascensão de um gênero que terá ampla receptividade no leitor-criança. Esses contos, prescindindo às vezes da presença das fadas, mas envolvidos na áurea do maravilhoso, encontraram larga difusão na segunda metade do século XVII e meados do século XVIII, retornando com vigor no século XIX, principalmente na Alemanha com os contos dos Irmãos Grimm, e na Dinamarca, com os contos de Hans Christian Andersen.
Gênero que saltou da oralidade para perpetuar-se na literatura escrita, os contos de fadas avançaram fronteiras e já no século XIX, encontramos em terra brasileira a proliferação desses contos através das traduções de Alberto Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen, que tiveram o cuidado de promover uma adaptação da linguagem, tornando-a próxima da língua portuguesa falada no Brasil.
A Carlos Jansen, alemão radicado no Brasil, coube a difusão de obras em que o elemento maravilhoso se fazia presente como se verifica, por exemplo, em Contos seletos das mil e uma noites (1882) e As aventuras do celebérrimo Barão de Münchausen (1891), ao lado de histórias de aventuras como Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888) e D. Quixote de La Mancha (1901). Entretanto, foi Figueiredo Pimentel o grande divulgador dos contos de fadas, reunindo principalmente contos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen nas obras: Contos da Carochinha (1894), Histórias da Avozinha (1896), Histórias da Baratinha (1896) e Contos de Fadas (1896).
Segundo Arroyo (1986:177) Contos da Carochinha, com o subtítulo Contos populares morais e proveitosos de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição local, reunia 61 histórias seguindo o modelo de Charles Perrault que, em 1697, designara os Contos da mamãe gansa como Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades. A exemplo, portanto, da literatura infantil européia, a nossa literatura, que nesse primeiro momento era somente nossa quanto ao fato de ser traduzida em língua portuguesa abrasileirada, trazia em seu bojo a preocupação com o aspecto formativo da literatura. Diferenciava-se, entretanto, da literatura veiculada nas escolas, marcada por ideais pedagógicos e sem qualquer alusão ao elemento maravilhoso. Saindo do âmbito escolar e visando a um público emergente, os contos de Figueiredo Pimentel resgataram o popular e o mundo das maravilhas, suprindo uma carência então vigente: o conhecimento dos clássicos europeus através de uma linguagem solta, livre, espontânea e bem brasileira para o tempo subvertendo, assim, os cânones da época ( Arroyo, 1986: 178).
É pelos fins do século XIX, que ganha pulso em nossa recém-criada República, a viabilização de um projeto educativo que via no texto infantil e na escola a possibilidade de contribuir para a formação de futuros cidadãos. Juntando-se a isso a preocupação generalizada com a carência de obras adequadas à criança brasileira e que fossem feitas por brasileiros, é que nasce a nossa literatura para crianças. Entre os escritores que se prontificaram a concretizar esse projeto situam-se Coelho Neto, João do Rio, Tales de Andrade, Arnaldo de Oliveira Barreto, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Júlio César da Silva e outros (Lajolo, 1984).
Olavo Bilac e Manuel Bonfim, no prefácio de Através do Brasil (1910) explicitam a ligação da nossa incipiente literatura com os ideais pedagógicos ao afirmarem que a obra fora elaborada com o intuito de constituir-se no único livro de leitura para o curso médio das Escolas Primárias do Brasil, a fim de trazer às crianças o conhecimento necessário para a sua formação cultural, moral e cívica (apud Zilberman, 1986:18).
Nos laços entre a literatura e a escola, não havia espaço para a fantasia. E é ainda Olavo Bilac quem, no prefácio de sua obra Poesias Infantis (1904), adverte o leitor dos perigos existentes em histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças, fazendo-as ter medo das coisas que não existem (apud Zilberman,1986:273).
A produção literária nacional atenta à difusão dos ideais de glorificação à Pátria, enaltecimento da natureza, valorização de heroísmos, preocupação com os registros cultos da língua portuguesa, se ganhou notoriedade devido à sua vinculação à escola, garantia certa de sucesso mercadológico, não servira, entretanto, para suprimir a divulgação dos contos maravilhosos, provenientes do acervo europeu. Prova disto são as obras de Figueiredo Pimentel que, convivendo no mesmo espaço de tempo com os chamados livros de leitura escolar , alcançaram um número significativo de edições, sendo que somente sua primeira obra Contos da Carochinha obtivera, entre 1894 a 1931, o número de cem mil exemplares colocados no mercado ( Lourenço Filho, apud Zilberman, 1986:322).
Paralelamente às histórias de Perrault, Grimm e Andersen divulgadas por Figueiredo Pimentel e que foram traduzidas diretamente dos originais, vicejavam no Brasil os contos pertencentes à tradição oral, transmitidos de geração à geração, principalmente, pelos imigrantes europeus e seus descendentes que aqui aportaram. Inseridos no cotidiano brasileiro, em um ambiente culturalmente diversificado pelo encontro de múltiplas vozes (alemã, francesa, portuguesa, espanhola, italiana e africana) esses contos passaram a se diferenciar do berço de além-mar, ganhando novas versões.
Em Câmara Cascudo (1956), que procedeu à recolha de contos da oralidade, vamos encontrar, por exemplo, A Gata Borralheira, um dos mais conhecidos de Charles Perrault, miscigenado a outros contos. Bicho de Palha, versão encontrada na tradição oral do Rio Grande do Norte, mescla dois contos de Perrault: o já referido A Gata Borralheira e Pele de Asno, a que se acrescenta o toque popular, quer relacionado à denominação do conto e ao nome da heroína (Maria), quer na inserção da religiosidade, pois a entidade mediadora que auxilia a protagonista não é uma fada, mas sim, Nossa Senhora. Similarmente, nos contos recolhidos por Sílvio Romero (1954), A Gata Borralheira transforma-se em Maria Borralheira, numa história que lembra tanto A Gata Borralheira quanto As fadas de Perrault, sem deixar de inserir, também, o elemento religioso. Aqui, a velhinha de As fadas é substituída por Nosso Senhor e a varinha de condão atua não pela magia de uma fada, mas pela intercessão do poder divino.
Ao findar do século XIX e primeiras décadas do século XX, a literatura infantil brasileira depara-se ante duas vias. A primeira, adotando o processo mimético europeu, cativa o leitor pela presença do maravilhoso, entretanto lhe faltam as raízes brasileiras. É um produto importado que embora passando por um processo de adaptação com relação à língua e apresentando histórias resultantes da intertextualidade de outras, como Bicho de Palha e Maria Borralheira, continua sendo um acervo de histórias alheias. Se por um lado, a simbologia presente nos contos atende aos anseios que são universais ao ser humano, como quer Bettelheim (1980), por outro lhe falta a representação da criança brasileira, em suas peculiaridades. A segunda via abre caminho para uma literatura caracterizada como brasileira, isto é, feita por brasileiros e para a criança brasileira. Entretanto, os seus propósitos não convencem o leitor-criança e muito menos o adulto, gerando insatisfações como a expressa por Monteiro Lobato:
A nossa literatura infantil tem sido, com poucas exceções, pobríssima de arte, e cheia de artifício, – fria, desengraçada, pretensiosa. Ler algumas páginas de certos “livros de leitura”, equivale, para rapazinhos espertos, a uma vacina preventiva contra os livros futuros. Esvai-se o desejo de procurar emoções em letra de forma; contrai-se o horror do impresso. (Cavalheiro, 1962:182, V. II)
2. As reinações de Lobato
Optando por uma terceira via, surge a literatura infantil de Monteiro Lobato mostrando que é possível produzir obras que seduzam o leitor-criança, explorando o lado mágico da vida, utilizando em larga escala o elemento maravilhoso sem deixar, entretanto, de focalizar a criança brasileira e o contexto em que está inserida.
Com A menina do Narizinho arrebitado, obra publicada em 1920 e levada às escolas em 1921 como “segundo livro de leitura” e já com o título Narizinho Arrebitado, Lobato consegue um fato inédito no âmbito do mercado livreiro: esgotar 50.000 exemplares em cerca de oito a nove meses (Cavalheiro, 1962:147, V. II).
Rompendo com a literatura tradicional, Lobato angaria, na época, comentários como os feito por Breno Ferraz:
... um livro absolutamente original, em completo, inteiro desacordo com todas as nossas tradições “didáticas”. Em vez de afugentar o leitor, prende-o. Em vez de ser tarefa, que a criança decifra por necessidade, é a leitura agradável, que lhe dá a amostra do que podem os livros (...) a historieta fantasiada por Monteiro Lobato, falando à imaginação, interessando e comovendo o pequeno leitor, faz o que não fazem as mais sábias lições morais e instrutivas: desenvolve-lhe a personalidade, libertando-a e arrimando-a para cabal eclosão, fim natural da escola. (apud Cavalheiro, 1962:146, V.II)
Durante a década de 20, Monteiro Lobato cria outras dez histórias que, somadas à primeira, resultam no livro Reinações de Narizinho, publicado em 1931. Promovendo uma fusão entre realidade e fantasia, anulando os limites de espaço e de tempo, Lobato faz com que o sítio de dona Benta transforme-se na morada, não só dos habitantes do sítio, como também dos integrantes do mundo das maravilhas. Já na primeira história, Narizinho Arrebitado, encontramos o Pequeno Polegar fugindo de seu mundo e de dona Carochinha, a fim de vivenciar novas aventuras:
... Ando atrás do Pequeno Polegar [...] Há duas semanas que fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele. [...] tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda vida presos dentro delas. Querem novidades. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir e o Pequeno Polegar já deu o exemplo. [...] Tudo isso [...] por causa do Pinóquio, do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer.(Reinações de Narizinho, p.11)
Cansado das velhas histórias emboloradas pelo tempo, Polegar abre o caminho para a vinda das demais personagens do mundo encantado: Cinderela, Branca de Neve, Rosa Branca e Rosa Vermelha, Chapeuzinho Vermelho, Gato de Botas, Barba Azul, Patinho Feio, Hansel e Gretel, o Soldadinho de Chumbo, o Alfaiate Valente, Ali Babá, Aladino, Lobo Mau, os heróis gregos Perseu e Teseu, além de Xeerazade e todo o séquito das mil e uma noites. A estes heróis do passado juntam-se outros da contemporaneidade de Lobato, como Tom Mix e Gato Félix, que saem das fitas de cinema e histórias em quadrinhos interagindo com os habitantes do sítio e do mundo maravilhoso. Se as personagens dos contos antigos visitam o sítio, rompendo o espaço geográfico e temporal, os moradores do sítio também se aventuram, empreendendo, tal como Polegar, visitas a outros reinos. É desta forma que visitam em Pena de Papagaio a terra das fábulas e seus fabulistas famosos La Fontaine e Esopo, presenciando as fábulas acontecendo e participando ativamente de outras como em Os animais e a peste, que traz como resultado a vinda de mais um morador para o sítio: o burro falante. E as incursões continuam. Próxima aventura: as terras do barão de Münchausen e com a participação do mundo adulto, pois D. Benta acompanha as crianças na nova empreitada.
Em Reinações de Narizinho o mundo maravilhoso passa a fazer parte do cotidiano das crianças. Assim é que Narizinho em suas incursões pelo Reino das Águas Claras vivencia um conto de fadas, transformando-se pelas “mãos” mágicas de dona Aranha numa princesa que se prepara para o encontro com o príncipe que se é escamado, é, acima de tudo, encantado. O esplendor de seu vestido ofusca os de Pele de Asno e de Cinderela descritos por Perrault e Irmãos Grimm. Suas maravilhosas vestes, tanto as do primeiro encontro ( p.14-15), quanto as confeccionadas para a celebração de seu casamento com o príncipe (p. 61), resultam da interação de elementos que fogem do domínio do real. Dona Aranha, a costureira de cerca de mil anos de idade, assim metamorfoseada por uma fada má, vale-se de um tecido tramado pela fada Miragem, cortando-o com a tesoura da Imaginação e cosendo-o com a linha do Sonho e com a agulha da Fantasia (p. 63).
Tem-se aí a identificação dos recursos utilizados pela costureira Aranha com os selecionados e organizados por Lobato para sua recriação dos contos maravilhosos, em que a miragem, a imaginação, a fantasia e o sonho deixam o campo da abstração e concretizam-se nas aventuras vividas por Narizinho e sua comitiva, nas onze histórias que compõem a obra Reinações de Narizinho.
Se no Reino das Águas Claras, presentificado nas histórias Narizinho Arrebitado e O casamento de Narizinho, Lobato promove o encontro do antigo com o contemporâneo de sua época, maior ênfase se encontra nas peripécias que ocorrem no Sítio do Picapau Amarelo. É na festa organizada para recepcionar os integrantes do mundo maravilhoso (Cara de Coruja), que Lobato proporciona uma verdadeira fusão entre o real do sítio e a ficção dos contos. Desse encontro resulta um maior conhecimento por parte dos habitantes do sítio e, concomitantemente, do leitor. Através da curiosidade de Emília fica-se sabendo o porquê de os sapatinhos de Cinderela ora serem de cristal, ora de camurça. Ou ainda, elucida-se o verdadeiro final desta história, se é o contado por Perrault ou o dos Irmãos Grimm. Estas e outras questões são levantadas buscando respostas dos diretamente envolvidos nas histórias. Resgatam-se portanto, histórias antigas que retiradas da fixidez da escrita, transformam-se em histórias reais, possibilitando que o sítio se transforme, como disse Dona Benta, num livro de contos da carochinha.
As idas e vindas de personagens de diferentes histórias e diferentes autores, assim como as aventuras do pessoal do sítio por outras paragens, revelam ao leitor um mundo em que ele pode interagir, de tal forma que os seus sonhos e suas fantasias passam a ser possíveis de uma real concretização. E isto se torna possível pela atuação das personagens do sítio que, representando o anseio dos pequenos leitores, estabelecem comparações entre uma história e outra, apontam defeitos, buscam soluções, questionam e obtém respostas. Com isso, Lobato transforma em realidade um de seus sonhos: transformar o sítio (leia-se sua obra) na morada de seus leitores.
Convidado a participar desse jogo em que o real e o imaginário se fundem ou se confundem, o leitor se vê enredilhado nas tramas tecidas pelo mestre Lobato, que marotamente, na voz de Peninha revela que o mundo das maravilhas existe por toda parte e para nele ingressar basta ter imaginação: [...] O mundo das maravilhas é velhíssimo. Começou a existir quando nasceu a primeira criança e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra (p. 134).
Entre os recursos empregados por Lobato que viabilizaram os novos rumos da literatura infantil brasileira, destaca-se a centralização dos eventos na personagem-criança. Esta, que até então ocupava um patamar inferior na literatura a ela endereçada, passa a ser o foco de interesse da obra lobateana, acarretando modificações significativas tanto no campo ideológico quanto no estético. Priorizando a criança “reinadeira”, sempre pronta a vivenciar novas aventuras e, ao mesmo tempo, ávida em adquirir novos conhecimentos, Lobato indica ao leitor o caminho a ser trilhado pela imitação dos heróis-mirins Narizinho, Emília e Pedrinho. Intrepidez, criatividade e imaginação fértil caracterizam o perfil infantil lobateano em oposição ao modelo inculcado pela literatura escolar, que promovia a fidelidade à criança exemplar, totalmente dependente dos ditames do mundo adulto. Se, nos contos antigos transmitidos pela literatura escrita e oral, as personagens ( em geral jovens casadoiros ) mostravam-se passivas, dependentes de auxílio externo para conseguirem superar obstáculos ou obterem ascensão social, Lobato resolve tal problema, retomando essas histórias e promovendo a rebeldia das personagens:
Esquecidas de que eram famosas princesas, foram correndo receber o pequenino herói. Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de dona Carocha e virem viver novas aventuras no sítio de dona Benta. Polegar já havia fugido uma vez, e apesar de capturado estava preparando nova fuga –– dele e de vários outros. ( p.96 )
O recurso usado por Lobato, em que os habitantes do sítio interagem com as personagens do mundo maravilhoso, tem como conseqüência o reforço no propósito que une as personagens dos dois mundos e que, evidentemente, deverá atuar de forma eficaz no destinatário da obra. Após a leitura de Reinações de Narizinho, o leitor terá acrescido à sua história não só conhecimentos, mas, sobretudo, a reflexão necessária para se tornar um leitor dotado de um olhar mais crítico, quer com relação ao mundo ficcional que lhe é ofertado, quer com relação ao mundo real de que faz parte.
Ao privilegiar a ótica infantil, Lobato elege como prioridade o ludismo que perpassa, sobremaneira, todas as histórias. Ludismo este que se encontra no inusitado das cenas compartilhadas pelas crianças, animais e objetos antropomorfizados e pelos adultos que compactuam com as personagens-mirins, aceitando e vivenciando o jogo do faz-de-contas.
Criando cenas bem-humoradas, o narrador convida o leitor para compartilhar da brincadeira, como se observa no desenrolar da primeira história, no momento em que o besouro discute com o príncipe do Reino das Águas Claras a respeito da “misteriosa elevação”, onde estão apoiados:
[...] Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:
–– Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.
–– Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura –– volveu o príncipe.
O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.
–– Muito salgada para ser rapadura. Parece antes...( p.08)
O espaço vazio, representado pelas reticências, surge como um convite à entrada do leitor, indicando-lhe a continuação do diálogo.
Essa interação do leitor com o texto, espraia-se pela obra. E, se uma das intenções de Lobato era recuperar os contos tradicionais sob uma nova ótica, o leitor é, novamente, solicitado a colaborar. Desta feita, como se participasse de um jogo de “quebra-cabeças”, cabe-lhe identificar os contos famosos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, pelas pistas que são inseridas na construção do texto. Assim, [...] O peixinho, porém, que era muito valente permaneceu firme...(p. 09) lembra O soldadinho de chumbo de Andersen; [...] a baratinha de mantilha, de nariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa. [...] Estou sentindo o cheirinho dele (p. 13) lembra O pequeno polegar de Perrault e Joãozinho e Maria dos Grimm; [...] –– Estou vendo uma poeirinha lá longe! ( p. 93) remete ao conto O Barba-Azul de Perrault.
Reservando um lugar para o leitor no relato, convidando-o para ingressar no mundo mágico da ficção, onde tudo é possível, a obra lobateana cumpre o seu papel revolucionário. Recuperando caminhos esquecidos, traçando veredas, ampliando as já existentes e abrindo outras, Lobato criou um mapa de um mundo ficcional que se transforma a cada instante, sempre a espera de um novo traçado.
Fonte:
XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.
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