sábado, 23 de setembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 16

 

Sílvio Romero (Uma das de Pedro Malasartes)

(Folclore do Sergipe)


UM DIA, PEDRO MALASARTES foi ter com o rei e lhe pediu três botijas de azeite, prometendo-lhe levar em troca três mulatas moças e bonitas. O rei aceitou o negócio. Pedro saiu e foi ter à casa de uma velha ali pela noitinha; pediu-lhe um rancho, e que lhe botasse as botijas no poleiro das galinhas.

A velha concordou com tudo. Alta noite, Pedro Malasartes levantou-se, foi de pontinha de pé ao poleiro, quebrou as botijas, derramou o azeite, lambuzando as galinhas. De manhã muito cedo Malasartes acordou a velha, e pediu-lhe as botijas de azeite. A velha foi buscá-las, e, achando-as quebradas, disse:

– “Pedro, as galinhas quebraram as botijas e derramaram o azeite.”

– “Não quero saber disso, disse Pedro; quero para aqui meu azeite, senão quero três galinhas.”

A velha ficou com medo, deu-lhe as três galinhas. Malasartes partiu e foi à noite à casa de outra velha; pediu rancho e que agasalhasse aquelas três galinhas entre os perus.

A velha, como tola, consentiu. Alta noite, Pedro se levantou, foi ao quintal, matou as três galinhas, besuntando de sangue os perus. No dia seguinte, bem cedo, acordou a velha, pedindo as suas galinhas, porque queria seguir viagem. A velha foi buscá-las e encontrou o destroço; voltou aflita, contando a Malasartes.

Ele fez um grande barulho até levar seis perus em troca das galinhas.

Na noite seguinte, foi ter à casa de um homem que tinha um chiqueiro de ovelhas, e pediu-lhe para passar a noite em sua casa e que lhe agasalhasse aqueles perus lá no chiqueiro das ovelhas, porque bicho com bicho se acomodavam bem. O homem assim fez. Tarde da noite, Pedro foi ao lugar onde estavam os perus, e matou-os a todos labreando de sangue as ovelhas. Pela manhã levantou-se bem cedo e pediu ao dono da casa os seus perus. O homem indo-os buscar achou-os mortos, e voltou muito aflito, dizendo:

– “Pedro, não sabe? As ovelhas mataram os seus perus.”

Ouvindo isto, Malasartes fez um grande espalhafato, gritando que o homem tinha morto os perus do rei e recebeu seis ovelhas pelos perus.

Largou-se, indo dormir na casa de um homem que tinha um curral de bois. Aí ele fez as mesmas artimanhas, até pegar seis bois pelas seis ovelhas. Mais adiante, ele encontrou uns vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais adiante encontrou uns homens que iam carregando uma rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, disseram-lhe que era uma moça. Ele pediu para ir enterrá-la e eles deram. Logo que os homens se ausentaram, ele tirou a moça da rede, encheu-a de bastante ouro e enfeites, e foi ter com ela nas costas à casa de um homem rico que havia ali perto. Pediu rancho, e disse às filhas do tal homem que aquela era a filha do rei que estava doente, e ele andava passeando com ela, e pediu que a fossem deitar.

Foram levar a moça para uma camarinha indo Malasartes com ela, dizendo que só com ele ela se acomodava. Deitou a moça defunta na cama e retirou-se, dizendo às donas da casa: “Ela custa muito a dormir, ainda chora como se fosse uma criança, quando chorar metam-lhe a correia.” Alta noite, Pedro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a morta e pôs-se a chorar como menino. As moças da casa, supondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ela se calar, que foi quando Pedro se calou. Depois ele escapuliu e foi para seu quarto.

De manhã ele pediu a moça, que queria ir-se embora. Foram ver a filha do rei, e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que estava morta, e vieram dar parte a Malasartes. Ele pôs as mãos na cabeça, dizendo:

– “Estou perdido; vou para a forca; me mataram a filha do rei!. . . ”

Os donos da casa ficaram muito aflitos, e começaram a oferecer coisas pela moça, e Pedro sem querer aceitar nada, até que ele mesmo exigiu três mulatas das mais moças e bonitas. O homem rico as deu, e Pedro disse que dava uma desculpa ao rei sobre a morte de sua filha, e lhe dava de presente as três mulatas, para o rei não se agastar muito.

Malasartes largou-se e foi logo para palácio, onde entregou ao rei as três mulatas com este dito:

– “Eu não disse a Vossa Majestade que lhe dava três mulatas pelas três botijas de azeite? Aí estão elas.”

O rei ficou muito admirado.

Entrou por uma porta,
Saiu por outra;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte outra.


Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público. 

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 3 -


Ai de quem na escura trilha
não divisa alguma chama!
Esperança é um sol que brilha
no caminho de quem ama...
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Algum dia, a humanidade
vai mudar a sua sorte:
haverá fraternidade
sem bandeira e passaporte!
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Amigo é o que nunca parte
mesmo quando é despedida;
é quem nosso mal comparte
e nos mostra uma saída.
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Amizade não se faz
de elogio passageiro;
quem censura e traz a paz
é um amigo verdadeiro.
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Antes andar com a esperança
do que sozinhos na estrada...
Conosco, ela para, avança,
mas não nos deixa sem nada!
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Deus, Amor, Paz e Pureza
- essas palavras singelas,
neste mundo de pobreza,
são as mais ricas e belas!
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Esperança que se apaga
num soluço, numa prece,
é navio que naufraga,
é paisagem que anoitece.
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Esperança, verde ou gris,
a nos levar em seus braços,
é o sonho de ser feliz
que às vezes fica em pedaços!
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Há sempre o dedo de Deus
na flor, no inseto que voa...
No bem que chega, no adeus;
no gesto de quem perdoa.
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Não haveria fronteira
neste mundo se a amizade
fosse a união verdadeira
entre toda a humanidade!
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O poeta - eterno menino -
brinca também de pião:
solta o fio do destino
à procura da ilusão...
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Para ter sorte na vida,
não faças mal a ninguém!
Deus premia quem na lida
só planta os frutos do Bem.
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Poder praticar o Bem
e fugir à ocasião,
perante Deus, é também
um delito de omissão!
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Por certo a ternura existe
no amigo que está por perto
e transforma um pranto triste
em lindo sorriso aberto!
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Por mais que intimide o mundo
e a vida acarrete o medo,
sempre se guarda no fundo
uma esperança em segredo...
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Por mais que se faça o mal,
com desassombro ou com medo,
a conta vem no final:
para Deus não há segredo.
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Quando alguém está em perigo,
sem esperança de nada,
a presença de um amigo
é o nascer de uma alvorada!
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Quando é cruel o momento,
muitos só contam consigo.
Nas horas de sofrimento,
feliz de quem tem amigo!
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Quando é verdadeiro o amigo,
partilha de tua glória;
e aquele que está contigo
a cada luta e vitória.
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Quanta ternura contida
na promessa que ficou
num canto qualquer da vida,
no pranto que já secou,..
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Se não existe confiança,
tímido o amor permanece,
a amizade não avança,
o sentimento não cresce.
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Se o pranto te aflige o peito,
procura te consolar:
o rio corre no leito
e depois encontra o mar!
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Se o silêncio o poeta invade,
a mente é o laboratório,
onde a infinita saudade
se transforma em verso inglório.
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Ser amigo é estar presente
naquele instante adequado,
ainda que simplesmente
para ficar a teu lado.
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Todos nós somos crianças,
mesmo fingindo que não;
brincamos com esperanças
- nossas bolhas de sabão...
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Zomba a esperança com a gente
a nos levar nem sei onde,
pois se compraz tão somente
em brincar de esconde-esconde..
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Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. Enviado pela Trovadora.

Nilto Maciel (A brincadeira)

A última brincadeira de Alberto terminou mal. Funeral nem houve. Os parentes mais próximos choraram, mas sequer viram seu cadáver. Como estaria? Mutilado, disforme, horrível?

Alberto, um meninão. Ninguém o levava a sério. Para quê, se ele brincava até de chorar e rir?

O mundo é uma peteca, dizia. E largava a palma da mão no tempo.

– Esse é doido.

A sentença não lhe saía da boca e ninguém lhe pedia explicações. E Alberto chutava latas de lixo, cuspia em carpetes, pisava vestidos de noivas, beijava namoradas de colegas.

– Moleque!

Nada o insultava.

– Cretino!

Ele ria e, para não repetir a velha frase, levantava a mão e acompanhava com os olhos o voo da peteca.

A brincadeira mortal podia ter sido um salto do último andar. Ninguém acreditaria em sua queda. Enfrentar leões do zoológico. Mesmo assim pensariam em hipnose, mágica, qualquer coisa.

Não, Alberto foi longe demais. Primeiro ludibriou a segurança do Hotel Internacional e depositou debaixo da mesa do auditório um pacote.

Realizava-se um congresso para o progresso do mundo, e delegados de quase todos os países falavam de guerras, empresas, capitais, mil coisas.

Enquanto os eminentes congressistas blablablavam, Alberto cumprimentou os guardas, voltou à rua e, de um telefone público, comunicou à polícia o próximo fim da reunião.

– Dentro de uma hora, ouviu?

– Quem está falando? Alô!

– Não importa. Vai tudo explodir: hotel, congresso, delegados, planos.

Num minuto, a cidade se encheu de sirenes, carros de bombeiros, soldados, ordens. Evacuaram a alta casa de pasto e na rua uma babel dos diabos se fez. Americano corria, francês suava, inglês tremia, alemão se borrava, italiano sumia.

Escolhido o herói, os comandantes da operação pediram coca-cola e se olharam pelos binóculos.

Faltava um segundinho para a bomba explodir.

– Desata o nó, patife.

O herói desatou o nó e os excrementos salpicaram na sua cara de patife.

E desmaiou.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 2

O QUE NÃO PODE ACONTECER


Você já tem uma história. Você está convencido de que vale a pena. Aquela mulher atravessar a rua despertou em você memórias que você pensava que estavam perdidas e você tem levado para o papel. Hoje você os leu novamente e ficou tão surpreso que duvido que este texto seja realmente seu. Fazendo uma metáfora: você apenas compra o terreno onde poderá construir a sua casa. Agora começa o que eles chamam de "o comércio do escritor" e cujo objetivo final é garantir que cada palavra usada seja aquela que tem que ser e não há outra forma de combiná-los para conseguir o que deseja. Mas antes de continuar, você deve se certificar de que seu texto não contém: erros ortográficos, gramaticais ou de edição, cacofonias, palavras rebuscadas e/ou tópicos.

Muitos escritores iniciantes decidem deixar todos esses detalhes para uma "correção final", mas o olho humano acaba se acostumando com esses erros e acabam não os vendo, além disso, ao corrigi-los repetidas vezes, acabam desaparecer. Um texto com erratas é como um filme em que vemos o microfone ou, imagine, uma câmera! Perde todo o seu valor imediatamente. Como sempre, há exceções. Pode acontecer que o nosso caráter, ou a linguagem que estamos usando nos faz usar a palavra "óbito" em vez de "morte", mas o texto tem que pedir isso, não o nosso desejo de demonstrar a nossa erudição ou vocabulário.

Quanto aos temas, muitas vezes, na descrição de personagens, espaços ou situações, e quase sempre quando toda a história é produto de nossa imaginação, o fácil é refugiar-se nesses lugares comuns. Fuja do mendigo que percebeu como a vida era linda depois que estava arruinada.

O QUE QUERO DIZER?


Revisamos o texto e nossa história não contém mais erros ortográficos, nem erros gramaticais. Aniquilamos qualquer vestígio de cacofonias e sua leitura em voz alta, é fluída. A próxima pergunta é: está entendido?

Não vamos entrar em profundidades psicológicas, nem pensemos em paralelismos transcendentais. Vamos analisar, simplesmente, se alguém que não seja o autor entenderia de em uma primeira leitura o que acontece na história que quero contar.

Temos que fazer um esforço e ser honestos conosco mesmos. Não se trata se tal palavra estiver com “b” ou com “v”; o que acontece na minha história? Em todas as histórias algo acontece, não importa quão pequeno seja, algo tem que acontecer. Pode ser tão simples como acordar e não encontrar um dinossauro (O Dinossauro de Augusto Monterroso) ou fantástico como acordar transformado em um besouro gigante (A metamorfose de Kafka). Mas nem sempre conseguimos nos explicar.

Quantas vezes tentamos contar a um amigo sobre um filme e e você percebe que não nos entendia. Tínhamos entendido o filme, mas não conseguimos contar. A mesma coisa pode acontecer conosco com nossa história:

Podem faltar situações, personagens, tramas, verbos, adjetivos. Ou pior: sobra. Ou pior ainda: sobraram alguns e faltaram outros. Como resolver isso?

A primeira ação para resolver um problema é encontrá-lo. Analisemos os principais aspectos da sua história. Analisemos os erros mais comuns e suas consequências. E observe uma série de dicas para que você possa corrigi-las.

Para começar, se sua história for realmente compreendida, será fácil resumi-la.

O que acontece com o protagonista em uma linha, no máximo uma e meia. Quando você conseguir, você saberá do que está falando. Escreva em um pedaço de papel separado. Feito isso, você deve ir um pouco mais longe e explicar, em cinco linhas, todo a história, isso significa incluir o que acontece com os personagens secundários.

Escreva após o resumo de uma linha e revise-o antes de continuar com o próximo capítulo.

Não desanime se não conseguir na primeira vez, não é nada fácil. Você pode fazer um experimento pedindo a um amigo que lhe conte sobre um filme que assistiram juntos.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do Espanhol por J.Feldman

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 002

 

A. A. de Assis (“Dexis”, o que é?)

Virou atração turística em Maringá o novo edifício-sede da Sicredi, o mais moderno da cidade. Mas o que mais tem chamado a atenção é o novo nome da poderosa cooperativa de crédito – Sicredi Dexis. Muita gente tem perguntado o que é afinal “dexis”?

É uma palavrinha fisicamente modesta, porém muito rica em seu conteúdo. O presidente da instituição, Wellington Ferreira, segundo li no Google, já esclareceu que o nome “Dexis” (de origem grega), foi escolhido pelo seu bonito significado – “aperto de mãos”. Escolha perfeita, visto que aperto de mãos lembra amizade, comunhão, colaboração, enfim “cooperativismo”.

Pronto. A crônica poderia terminar aí. Porém um dos meus brinquedos favoritos é escarafunchar a história das palavras. Então fui lá no velho indo-europeu em busca de algum tataraparente de “dexis”. Achei “deks”, com o significado de “lado direito”, mais especificamente “mão direita”. Em seguida, acompanhando a evolução da palavra, cheguei a “dexios” no grego, “dexter” no latim e finalmente “destro” em português”. É por isso que quando alguém tem igual habilidade nas duas mãos é chamado de “ambidestro”. E como as pessoas se cumprimentam estendendo a “destra”, ou seja, “a mão direita”, entende-se a expressão “aperto de mãos” como o ato de apertar a mão direita de alguém.

Trata-se, conforme se lê nos alfarrábios, de um costume bastante antigo, frequente em numerosas culturas desde bem antes de Cristo. Assim, falar em “mãos dadas” ou “aperto de mãos” é o mesmo que falar de paz, solidariedade, fraternidade, companheirismo, cooperação.

No âmbito da economia, em seus três segmentos básicos (produção, industrialização, comercialização), o cooperativismo tem sido um extraordinário sucesso. Basta citar dois exemplos íntimos nossos – a Cocamar e a Coamo*. A propósito, lembro-me de quando José Cassiano iniciou aqui a conscientização dos produtores rurais sobre a importância da união de forças. No princípio foi meio difícil, todavia Cassiano e outros líderes insistiram e rapidamente a ideia prosperou. Hoje o trabalho cooperativo é a principal alavanca do desenvolvimento regional.

Ora, se “dar as mãos” tem sido uma experiência tão animadora na economia, certamente trará iguais benefícios em todas as demais ações humanas. Vamos então dar as mãos e seguir em frente, organizando uma sociedade mais unida, mais solidária, mais irmanizada; uma sociedade mais inteligente, capaz de entender que a cooperação (ato de co-operar = trabalhar juntos) torna o labor mais fértil e bem mais leve para todos.

O ser humano começou a complicar as coisas lá no início da história, quando permitiu que o egoísmo passasse a presidir os seus projetos. Deu tudo errado, e o resultado foi esse brigueiro louco em que até hoje se envolve a humanidade. Parece, porém, haver chegado a hora de repensar seriamente o nosso modo de existir – o momento enfim de aprender a dar as mãos.   

Quem sabe assim a gente algum dia possa viver em permanente estado de “dexis”?
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(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo, de 21 setembro 2023)
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* ambas são Cooperativas Agrícolas, sendo Coamo, de Campo Mourão/PR e Cocamar, de Maringá/PR.

Caldeirão Poético LXVII


Lola de Oliveira
Porto Alegre/RS 1889 — 1965, Rio de Janeiro/RJ


O SURDO-MUDO

Tu não ouves a voz da mãe querida,
a tua mãe humilde, pura e santa;
o uivar do vento, a música dorida,
nem o trinar do pássaro que canta.

Trazes a boca morta em plena vida
e o túmulo dos sons tens na garganta;
não tiveste a palavra proferida...
És mudo como a pedra, como a planta.

Será castigo o teu destino triste?
Quanta bondade no teu peito existe,
que vai morrer nessa garganta rouca!

És bem feliz, embora incompreendido!
Não ecoa a mentira em teu ouvido,
nem te sai a calúnia pela boca.
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Lúcia Fadigas
Rio de Janeiro/RJ


IPÊ-ROSA

Belo ipê-rosa na colina impera...
É árvore fidalga e donairosa,
que se embeleze na estação radiosa,
cobrindo-se de flor na primavera...

Mas, quando vem o outono, ela, saudosa
de seus enfeites, geme e se exaspera,
pois todo o colorido que tivera
é, agora, uma lembrança cor-de-rosa...

Também nossa alma se embeleze em criança,
de uma viçosa copa de esperança,
sem prever, nessa vida, o desencanto.

Mas vem chegando o outono, indiferente...
E em nossos lábios resta, tão-somente,
o gosto amargo que nos vem do pranto.
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Lúcio de Mendonça
Rio de Janeiro/RJ, 1854-1909

O REBELDE

Ei-lo — é um lobo do mar: numa espelunca
mora, à beira do Oceano, em rocha alpestre;
ira-se a onda e, qual tigre silvestre,
de mortos vegetais a praia junca.

E ele, encarando como um velho mestre
o revoltoso que não dorme nunca,
recurva o dedo — garra forte e adunca —
sobre o cachimbo, único amor terrestre.

E então assoma-lhe um sorriso amargo...
É um rebelde também, cérebro largo,
que odeia os reis e os padres excomunga.

À noite dorme sem rezar: que importa?
Enorme cão fiel, guarda-lhe a porta:
— o velho mar soturno que resmunga.
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Luiz Almeida Teixeira
Niterói/RJ, 1907 – 1986


PROCISSÃO DE VAGALUMES

Quando o sol adormece na distância
e no silêncio a tarde se esvazia,
cintila o vagalume em rutilância,
resplendendo de luz a ramaria.

Colhe da flor a cálida fragrância
e se incandesce em singular magia...
Lanterna acesa em doce vigilância,
até que acorde a aurora de outro dia.

Depois se esconde pela mata agreste
e, apagando a candeia azul celeste,
vai sonhar entre flores e perfumes.

Chegando a noite, a tarde empalidece,
e nascem luzes acendendo a prece
na procissão azul dos vagalumes...
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Luiz Otávio
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

SUPREMA GLÓRIA

Bem sei que com razão nós reclamamos
por tudo o que roubou de nós a Vida
— a Primavera sem florir os ramos...
e o Amor —, Ventura apenas pressentida...

Bem sei que muito tarde nos amamos,
mas com tal força e ardor, minha querida,
que as dores e as angústias que enfrentamos
tornam minha alma à sua mais unida!

Bem sei que, como poucos, nós sofremos
e que a Sorte tem sido tão mesquinha,
mas a Esperança é Luz que não morreu...

Nesta glória, em silêncio, guardaremos:
ninguém, no mundo, foi assim tão minha,
ninguém, na vida, foi assim tão seu...
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Manita
(Maria da Conceição Pires de Mello)
 Niterói/RJ, 1922 - 2011
 
 CANÇÃO DE QUERER-TE MEU

Eu quero as tuas mãos queimando incenso,
para a aleluia dos meus braços nus;
quero-te todo e toda eu te pertenço,
quero os teus olhos para crer na luz.

Quero os teus passos no caminho imenso,
para aonde o sonho os passos meus conduz;
quero o que pensas, cada vez que penso,
quero os teus ombros para minha cruz!

Quero-te, sim, com tal intensidade,
e tem tanto este amor de eternidade,
quanto de ti eu sei que existe em mim;

quero o silêncio do que tu não dizes,
e quero a dor das tuas cicatrizes,
quero-te meu, até depois do fim!

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 1

INTRODUÇÃO

Quantas vezes você já teve uma ideia para uma história, um romance, um filme? Você conseguiu escrevê-lo? E o que você achou do resultado? Quantas vezes, sendo espectador ou leitor, já pensou “sim, sim, está tudo muito bom, mas a
história falha”?

O que significam a literatura e o cinema, o teatro e as séries televisivas, o quadrinhos e novelas de rádio? Contar
histórias.

Esta é uma abordagem do processo de contar uma
história. Cada lição poderia ser outro curso completo, mas, principalmente no início, reforçar esse panorama é muito mais. É importante entrar em detalhes sobre as técnicas narrativas ensinadas na maioria das oficinas de escrita criativa ou livros. Dominar esses aspectos é importante, mas se falhar o principal, que afinal é contar uma história, todo nosso trabalho será inútil. Seria como construir uma casa com materiais de qualidade máxima e todos os avanços tecnológicos, mas cujos alicerces eram de areia.

Quando se trata de contar uma
história, não existe uma fórmula mágica que, uma vez aprendido, nos garante sucesso. A maioria dos roteiristas-diretores dizem que seu último roteiro de romance foi um desafio e eles estão certos. Por muito que sigamos à risca as instruções para a montagem de um móvel ou de um receita culinária ou conselho de um amigo para endireitar a vida; ao final será o nosso talento, a nossa experiência e a nossa perseverança que determinarão o resultado.

Destes três ingredientes, o único que é inato e, portanto, não pode ser aprender ou aumentar, é talento. Entretanto, habilidade ou técnica podem se desenvolver. E a perseverança, na pior das hipóteses, dependerá de nós mesmos e nosso tempo livre.

Há escritores que se destacam pela sua genialidade ou talento, chegam a afirmar ser autodidatas, mas há uma grande maioria que não tem vergonha de reconhecer seus mestres ou para mostrar suas limitações técnicas.

Se você acha que a
história que você escreveu pode ser melhorada ou você nunca a escreveu porque você achou que não valia a pena, talvez essas dicas te ajudem. Eles são breves e práticas. Eles apenas requerem algum tempo e reflexão.

DA IDEIA AO PAPEL

A principal virtude do escritor é saber olhar. Onde outros não veem nada além de uma senhora atravessando a rua, um escritor pode encontrar a inspiração que seja necessária para salvar a
história em questão. Mas não basta olhar, você tem que estar atento e preparado.

Você é daqueles que sempre carrega um caderno e algo para escrever? Se não é assim, você deveria começar a fazer isso. Vladimir Nabokov insistiu que é importante aproveitar esse momento de arrebatamento, na maioria das vezes aquele momento de inspiração não volta.

Repita, não basta pensar “Vou escrever quando chegar em casa”. Quando você chega em casa, não resta um vestígio daquela ideia brilhante, quando muito uma nota, algo que poderia ter sido foi e não foi, como um beijo que não foi dado.

Então, da próxima vez que você pensar “aqui está uma
história”, pegue seu caderno e anote. Escreva o que aconteceu ou o que você viu, deixe-se levar, escreva, escreva tudo, isso ocorre com você sem pensar duas vezes. Não importa quão louco sejam as ideias; escreva-as e pergunte-se "e se...?" e continue escrevendo, não pare, até que você está exausto e nada mais lhe ocorre. Então pare e olhe novamente ao seu redor, se não sabe como continuar, feche o caderno e aproveite o momento. Haverá tempo para trabalhar nesse texto.

Aqui está um erro muito comum: levados pela euforia, perguntamos a alguém próximo para lermos o que (pensamos que) acabamos de terminar. Você tem tanta certeza que você alcançou o que se propôs a fazer? Inicialmente? A defesa mais comum é “foi assim que saiu, deve haver um motivo”, “se eu trabalhar nisso, perde o frescor”.

Não há quem se dedique ao ofício de contar
histórias que não as reelabore antes de mostrá-los pela primeira vez, nem li nenhuma biografia em que tal coisa seja afirmada. Além do mais, muitas vezes os alunos de uma oficina de redação que coordeno, ao lerem seus textos em voz alta, eles percebem seus próprios erros e tudo mais, por não ter trabalhado.

Não tenha pressa: nunca conte uma
história na qual você não trabalhou porque você pode perder a oportunidade de ser ouvido novamente. O melhor é que você a deixe "dormir" alguns dias ou alguns meses (dependendo da sua paciência). Quando você lê novamente, a opinião, para melhor ou para pior, terá mudado. Depois desse tempo, se ela te seguir parecendo tão interessante quanto quando você o escreveu, você deve continuar com o próximo capítulo: O que não pode passar. Se não, deixe novamente onde estava. O resto pode esperar.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

Machado de Assis (Letra Vencida)

CAPÍTULO PRIMEIRO

Eduardo B. embarca amanhã para a Europa. Amanhã quer dizer 24 de abril de 1861, pois estamos a 23, à noite, uma triste noite para ele, e para Beatriz.

— Beatriz! repetia ele, no jardim, ao pé da janela donde a moça se debruçava estendendo-lhe a mão.

De cima, — porque a janela ficava a cinco palmos da cabeça de Eduardo, — de cima respondia a moça com lágrimas, verdadeiras lágrimas de dor. Era a primeira grande dor moral que padecia, e, contando apenas dezoito anos, começava cedo. Não falavam alto; poderiam chamar a atenção da gente da casa. Note-se que Eduardo despedira-se da família de Beatriz naquela mesma noite, e que a mãe dela e o pai, ao vê-lo sair, estavam longe de pensar que entre onze horas e meia-noite, voltaria o moço ao jardim para fazer uma despedida mais formal. Além disso, os dois cães da casa impediriam a entrada de algum intruso. Se tal supuseram é que não advertiram na tendência corruptora do amor. O amor peitou o jardineiro, e os cães foram recolhidos modestamente para não interromper o último diálogo de dois corações aflitos.

Último? Não é último; não pode ser último. Eduardo vai completar os estudos, e tirar carta de doutor em Heidelberg; a família vai com ele, disposta a ficar algum tempo, um ano, em França; ele voltará depois. Tem vinte e um anos, ela dezoito: podem esperar. Não, não é o último diálogo. Basta ouvir os protestos que eles murmuram, baixinho, entre si e Deus, para crer que esses dois corações podem ficar separados pelo mar, mas que o amor os uniu moralmente e eternamente. Eduardo jura que a levará consigo, que não pensará em outra coisa, que a amará sempre, sempre, sempre, de longe ou de perto, mais do que aos próprios pais.

— Adeus, Beatriz!

— Não, não vá já!

Tinha batido uma hora em alguns relógios da vizinhança, e esse golpe seco, soturno, pingando de pêndulo em pêndulo, advertiu ao moço de que era tempo de sair; podiam ser descobertos. Mas ficou; ela pediu-lhe que não fosse logo, e ele deixou-se estar, cosido à parede, com os pés num canteiro de murta e os olhos no peitoril da janela. Foi então que ela lhe desceu uma carta; era a resposta de outra, em que ele lhe dava certas indicações necessárias à correspondência secreta, que iam continuar através do oceano. Ele insistiu verbalmente em algumas das recomendações; ela pediu certos esclarecimentos. O diálogo interrompia-se; os intervalos de silêncio eram suspirados e longos. Enfim bateram duas horas: era o rouxinol? Era a cotovia? Romeu preparou-se para ir embora; Julieta pediu alguns minutos.

— Agora, adeus, Beatriz; é preciso! murmurou ele dali a meia hora.

— Adeus! Jura que não se esquecerá de mim?

— Juro. E você?

— Juro também, por minha mãe, por Deus!

— Olhe, Beatriz! Aconteça o que acontecer, não me casarei com outra; ou com você, ou com a morte. Você é capaz de jurar a mesma coisa?

— A mesma coisa; juro pela salvação de minh’alma! Meu marido é você; e Deus que me ouve há de ajudar-nos. Crê em Deus, Eduardo; reza a Deus, pede a Deus por nós.

Apertaram as mãos. Mas um aperto de mão era bastante para selar tão grave escritura? Eduardo teve a ideia de trepar à parede; mas faltava-lhe o ponto de apoio. Lembrou-se de um dos bancos do jardim, que tinha dois, do lado da frente; foi a ele, trouxe-o, encostou-o à parede, e subiu; depois levantou as mãos ao peitoril; e suspendeu o corpo; Beatriz inclinou-se, e o eterno beijo de Verona conjugou os dois infelizes. Era o primeiro. Deram três horas; desta vez era a cotovia.

— Adeus!

— Adeus!

Eduardo saltou ao chão; pegou do banco, e foi repô-lo no lugar próprio. Depois tornou à janela, levantou a mão, Beatriz desceu a sua, e um enérgico e derradeiro aperto terminou essa despedida, que era também uma catástrofe. Eduardo afastou-se da parede, caminhou para a portinha lateral do jardim, que estava apenas cerrada, e saiu. Na rua, a vinte ou trinta passos, ficara de vigia o obsequioso jardineiro, que unira ao favor a discrição, colocando-se a distância tal, que nenhuma palavra pudesse chegar-lhe aos ouvidos. Eduardo, embora já lhe houvesse pago a cumplicidade, quis deixar-lhe ainda uma lembrança de última hora, e meteu-lhe na mão uma nota de cinco mil-réis.

No dia seguinte verificou-se o embarque. A família de Eduardo compunha-se dos pais e uma irmã de doze anos. O pai era comerciante e rico; ia passear alguns meses e fazer completar os estudos do filho em Heidelberg. Esta ideia de Heidelberg parecerá um pouco estranha nos projetos de um homem, como João B., pouco ou nada lido em coisas de geografia científica e universitária; mas sabendo-se que um sobrinho dele, em viagem na Europa, desde 1857, entusiasmado com a Alemanha, escrevera de Heidelberg algumas cartas exaltando o ensino daquela Universidade, ter-se-á compreendido essa resolução.

Para Eduardo, ou Heidelberg ou Hong-Kong, era a mesma coisa, uma vez que o arrancavam do único ponto do globo em que ele podia aprender a primeira das ciências, que era contemplar os olhos de Beatriz. Quando o paquete deu as primeiras rodadas na água e começou a mover-se para a barra, Eduardo não pôde reter as lágrimas, e foi escondê-las no camarote. Voltou logo acima, para ver ainda a cidade, perdê-la pouco a pouco, por uma ilusão da dor, que se contentava de um retalho, tirado à púrpura da felicidade moribunda. E a cidade, se tivesse olhos para vê-lo, podia também despedir-se dele com pesar e orgulho, pois era um esbelto rapaz, inteligente e bom. Convém dizer que a tristeza de deixar o Rio de Janeiro também lhe doía no coração. Era fluminense, não saíra nunca deste ninho paterno, e a saudade local vinha casar-se à saudade pessoal. Em que proporções, não sei. Há aí uma análise difícil, mormente agora, que não podemos mais distinguir a figura do rapaz. Ele está ainda na amurada; mas o paquete transpôs a barra, e vai perder-se no horizonte.

CAPÍTULO SEGUNDO

Para que hei de dizer que Beatriz deixou de dormir o resto da noite? Subentende-se que as últimas horas dessa triste noite de 23 de abril foram para ela de vigília e desespero. Direi somente que também foram de devoção. Beatriz, logo que Eduardo transpôs a porta do jardim, atirou-se à cama soluçando e sufocando os soluços, para não ser ouvida. Quando a dor amorteceu um pouco, levantou-se e foi ao oratório de suas rezas noturnas e matinais; ajoelhou-se e encomendou a Deus, não a felicidade, mas a consolação de ambos.

A manhã viu-a tão triste como a noite. O sol, na forma usual, mandou um dos seus raios mais jucundos e vivos ao rosto de Beatriz, que desta vez o recebeu sem ternura nem gratidão. De costume, ela dava a esse raio amado todas as expansões de uma alma nova. O sol, pasmado da indiferença, não interrompeu todavia o seu curso; tinha outras Beatrizes que saudar, umas risonhas, outras lacrimosas, outras apáticas, mas todas Beatrizes... E lá se foi o D. João do azul, espalhando no ar um milhão daquelas missivas radiosas.

Não menos pasmada ficou a mãe ao almoço. Beatriz mal podia disfarçar os olhos cansados de chorar; e sorria, é verdade, mas um sorriso tão forçado, tão de obséquio e dissimulação, que realmente faria descobrir tudo, se desde alguns dias antes, as maneiras de Beatriz não tivessem revelado tal ou qual alteração. A mãe supunha alguma moléstia; agora, sobretudo, que os olhos da moça tinham um ar febril, pareceu-lhe que era caso de doença incubada.

— Beatriz, você não está boa, disse ela à mesa.

— Sinto-me assim não sei como...

— Pois tome só chá. Vou mandar vir o doutor...

— Não é preciso; se continuar amanhã, sim.

Beatriz tomou chá, nada mais do que chá. Como não tinha vontade de outra coisa, tudo se combinou assim, e a hipótese da doença foi aparentemente confirmada. Ela aproveitou-a para meter-se no quarto o dia inteiro, falar pouco, não fazer toilette, etc. Não chamaram o médico, mas ele veio por si mesmo, o Tempo, que com uma de suas velhas poções abrandou a vivacidade da dor, e tornou o organismo ao estado anterior, tendo de mais uma saudade profunda, e a imortal esperança.

Realmente, só sendo imortal a esperança, pois tudo conspirava contra ela. Os pais de ambos os namorados tinham a seu respeito projetos diferentes. O de Eduardo meditava para este a filha de um fazendeiro, seu amigo, moça prendada, capaz de o fazer feliz, e digna de o ser também; e não meditava só consigo, porque o fazendeiro nutria iguais ideias. João B. chegara mesmo a insinuá-lo ao filho, dizendo-lhe que na Europa iria vê-lo alguém que provavelmente o ajudaria a concluir os estudos. Este foi, com efeito, o plano dos dois pais; seis meses depois, iria o fazendeiro com a família à Alemanha, onde casariam os filhos.

Quanto ao pai de Beatriz, os seus projetos eram ainda mais definitivos, se é possível. Tratava de aliar a filha a um jovem político, moço de futuro, e tão digno de ser marido de Beatriz, como a filha do fazendeiro era digna de ser mulher de Eduardo. Esse candidato, Amaral, frequentava a casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.

 Não obstante, a esperança subsistia no coração de ambos. Nem a distância, nem os cuidados diversos, nem o tempo, nem os pais, nada diminuía o viço dessa flor misteriosa e constante. Não disseram outra coisa as primeiras cartas, recebidas por um modo tão engenhoso e tão simples, que vale a pena contá-lo aqui, para uso de outros desgraçados. Eduardo mandava as cartas a um amigo; este passava-as a uma irmã, que as entregava a Beatriz, de quem era amiga e companheira de colégio. Geralmente as companheiras de colégio não se recusam a estes pequenos obséquios, que podem ser recíprocos; em todo o caso, — são humanos. As duas primeiras cartas, assim recebidas, foram a transcrição dos protestos feitos naquela noite de 23 de abril de 1861; transcrição feita com tinta, mas não menos valiosa e sincera do que se o fora com sangue. O mar, que deixou passar essas vozes concordes de duas almas violentamente separadas, continuou o perpétuo movimento da sua instabilidade.

CAPÍTULO TERCEIRO

Beatriz voltou aos hábitos anteriores, aos passeios, saraus e teatros do costume. A tristeza, de aguda que era e manifesta, tornou-se escondida e crônica. No rosto era a mesma Beatriz, e tanto bastava à sociedade. Naturalmente não tinha a mesma paixão da dança, nem a mesma vivacidade de maneiras; mas a idade explicava a atenuação. Os dezoito anos estavam feitos; a mulher completara-se.

Quatro meses depois da partida de Eduardo, entendeu a família da moça apressar o casamento desta; e eis aqui as circunstâncias da resolução.

Amaral cortejava a moça ostensivamente, dizia-lhe as finezas usuais, frequentava a casa, ia onde ela fosse; punha o coração em todas as ações e palavras. Beatriz entendia tudo e não respondia a nada. Usou duas políticas diferentes. A primeira foi mostrar-se de uma tal ignorância que o pretendente achasse mais razoável esquecê-la. Pouco durou esta; era improfícua, tratando-se de um homem verdadeiramente apaixonado. Amaral teimou; vendo-se desentendido, passou a linguagem mais direta e clara. Então começou a segunda política; Beatriz mostrou que entendia, mas deixou ver que nada era possível entre ambos. Não importa; ele teimou ainda mais. Nem por isso venceu. Foi então que o pai de Beatriz interveio.

— Beatriz, disse-lhe o pai, tenho um marido para ti, e estou certo que vais aceitá-lo...

— Papai...

— Mas ainda que, a princípio recuses, não por ser indigno de nós; não é indigno, ao contrário; é pessoa muito respeitável... Mas, como ia dizendo, ainda que a tua primeira palavra seja contra o noivo, previno-te que é desejo meu e há de cumprir-se.

Beatriz fez um movimento de cabeça, rápido, espantado. Não estava acostumada àquele modo, não esperava a intimação.

— Digo-te que é um moço sério e digno, repetiu. Que respondes?

— Nada.

— Aceitas então?

— Não, senhor.

Desta vez foi o pai que teve um sobressalto; não por causa da recusa; ele esperava-a, e estava resolvido a vencê-la, segundo a avisou desde logo. Mas o que o espantou foi a prontidão da resposta.

— Não? disse ele daí a um instante.

— Não, senhor.

— Sabes o que estás dizendo?

— Sei, sim, senhor.

— Veremos se não, bradou o pai levantando-se, e batendo com a cadeira no chão; veremos se não! Tem graça! Não, a mim! Quem sou eu? Não! E por que não? Naturalmente, anda aí algum petimetre (pelintra) sem presente nem futuro, algum bailarino, ou estafermo. Pois veremos...

E ia de um lado para outro, metendo as mãos nas algibeiras da calça, tirando-as, passando-as pelos cabelos, abotoando e desabotoando o paletó, fora de si, irritado.

Beatriz deixara-se estar sentada com os olhos no chão, tranquila, resoluta. Em certo momento, como o pai lhe parecesse exasperado demais, levantou-se e foi a ele para aquietá-lo um pouco; mas ele repeliu-a.

— Vá-se embora, disse-lhe; vá refletir no seu procedimento, e volte quando estiver disposta a pedir-me perdão.

— Isso já; peço-lhe perdão já, papai... Não quis ofendê-lo; nunca o ofendi... Perdoe-me; vamos, perdoe-me.

— Mas recusas?

— Não posso aceitar.

— Sabes quem é?

— Sei: o Dr. Amaral.

— Que tens contra ele?

— Nada; é um moço distinto.

O pai passou a mão pelas barbas.

— Gostas de outro.

Beatriz calou-se.

— Vejo que sim; está bem. Quem quer que seja, não terá nunca a minha aprovação. Ou o Dr. Amaral, ou nenhum mais.

— Nesse caso, nenhum mais, respondeu ela.

— Veremos.

CAPÍTULO QUARTO

Não percamos tempo. Beatriz não casou com o noivo que lhe davam; não aceitou outro que apareceu no ano seguinte; mostrou uma tal firmeza e decisão, que encheu o pai de assombro.

Assim se passaram os dois primeiros anos. A família de Eduardo voltou da Europa; este ficou, para tornar quando acabasse os estudos. “Se me parecesse, ia já (dizia ele em uma carta à moça), mas quero conceder isto, ao menos, a meu pai: concluir os estudos.”

Que ele estudava, é certo, e não menos certo é que estudava muito. Tinha vontade de saber, além do desejo de cumprir, naquela parte, as ordens do pai. A Europa oferecia-lhe também alguns recreios de diversa espécie. Ele ia nas férias à França e à Itália, ver as belas-artes e os grandes monumentos. Não é impossível que, algumas vezes, incluísse no capítulo das artes e na classe dos monumentos algum namoro de ordem passageira; creio mesmo que é negócio liquidado. Mas, em que é que essas pequenas excursões em terra estranha lhe faziam perder o amor da pátria, ou, menos figuradamente, em que é que essas expansões miúdas do sentimento diminuíam o número e a paixão das cartas que mandava a Beatriz?

Com efeito, as cartas eram as mesmas de ambos os lados, escritas com igual ardor às das primeiras semanas, e nenhum outro método. O método era o de um diário. As cartas eram compostas dia por dia, como uma nota dos sentimentos e dos pensamentos de cada um deles, confissão de alma para alma. Parecerá admirável que este uso fosse constante no espaço de um, dois, três anos; que diremos cinco anos, sete anos! Sete, sim, senhora; sete, e mais. Mas fiquemos nos sete, que é a data do rompimento entre as duas famílias.

Não importa saber por que brigaram as duas famílias. Brigaram; é o essencial. Antes do rompimento desconfiaram os dois pais que os filhos tinham-se jurado alguma coisa antes da separação, e não estavam longe de concordar em que se casassem. Os projetos de cada um deles tinham naufragado; eles estimavam-se; nada havia mais natural do que aliarem-se mais intimamente. Mas brigaram; veio não sei que incidente estranho, e a amizade converteu-se em ódio.

Naturalmente um e outro pensaram logo na possibilidade do consórcio dos filhos, e trataram de afastá-los. O pai de Eduardo escreveu a este, já diplomado, dizendo que o esperasse na Europa; o de Beatriz inventou um pretendente, um rapaz sem ambição que jamais pensaria em pedi-la, mas que o fez, animado pelo pai.

— Não, foi a resposta de Beatriz.

O pai ameaçou-a; a mãe pediu-lhe por tudo o que havia de mais sagrado, que aceitasse o noivo; mostrou-lhe que eles estavam velhos, e que ela precisava ficar amparada. Foi tudo inútil. Nem esse pretendente nem outros que vieram, uns por mão do pai, outros por mão alheia. Beatriz não iludia ninguém, ia dizendo a todos que não.

Um desses pretendentes chegou a crer-se vencedor. Tinha qualidades pessoais distintas, e ela não desgostava dele, tratava-o com muito carinho, e pode ser que sentisse algum princípio de inclinação. Mas a imagem de Eduardo vencia tudo. As cartas dele eram o prolongamento de uma alma querida e amante; e aquele candidato, como os outros, teve de recuar vencido.

— Beatriz, vou morrer dentro de poucos dias, disse-lhe um dia o pai; por que me não dás o gosto de deixar-te casada?

— Qual, morrer!

E não respondia à outra parte das palavras do pai. Eram já passados nove anos da separação. Beatriz tinha então vinte e sete. Via chegar os trinta com tranquilidade e a pena na mão. Não seriam já diárias as cartas, mas eram ainda e sempre pontuais; se algum paquete não as trazia ou levava, a culpa era do correio, não deles. Realmente, a constância era digna de nota e admiração. O mar separava-os, e agora o ódio das famílias; e além desse obstáculo, deviam contar com o tempo, que tudo afrouxa, e as tentações que eram muitas de um e outro lado. Mas apesar de tudo, resistiam.

O pai de Beatriz morreu dali a algumas semanas. Beatriz ficou com a mãe, senhora achacada de moléstias, e cuja vida naturalmente não iria também muito longe. Esta consideração deu-lhe ânimo para tentar os últimos esforços, e ver se morria deixando a filha casada. Empregou os que pôde; mas o resultado não foi melhor.

Eduardo na Europa sabia tudo. A família dele trasladou-se para lá, definitivamente, para o fim de o reter, e tornar impossível o encontro dos dois. Mas, como as cartas continuavam, ele sabia tudo o que se passava no Brasil. Teve notícia da morte do pai de Beatriz, e dos esforços empregados por ele e depois pela mulher, viúva, para estabelecer a filha; e soube (pode imaginar-se com que satisfação) da resistência da moça. O juramento da noite de 23 de abril de 1861 estava de pé, cumprido, observado à risca, como um preceito religioso, e, o que é mais, sem que lhes custasse mais do que a pena da separação.

Na Europa, morreu a mãe de Eduardo; e o pai teve um instante ideias de voltar ao Brasil; mas era odiento, e a ideia de que o filho podia então casar com Beatriz, fixou-o em Paris.

“Verdade é que ela não deve estar muito tenra...” dizia ele consigo.

Eram então passados quinze anos. Passaram-se mais alguns meses, e a mãe de Beatriz morreu. Beatriz ficou só, com trinta e quatro anos. Teve ideia de ir para Europa, com alguma dama de companhia; mas Eduardo contava então vir ao Rio de Janeiro arranjar alguns negócios do pai, que estava doente. Beatriz esperou; mas Eduardo não veio. Uma amiga dela, confidente dos amores, dizia-lhe:

— Realmente, Beatriz, você tem uma paciência!

— Não me custa nada.

— Mas esperar tanto tempo! Quinze anos!

— Nada mais natural, respondia a moça; eu suponho que estamos casados, e que ele anda em viagem de negócios. É a mesma coisa.

Essa amiga estava casada; tinha já dois filhos. Outras amigas e companheiras de colégio tinham casado também. Beatriz era a única solteira, e solteira abastada e pretendida. Agora mesmo, não lhe faltavam candidatos; mas a fiel Beatriz conservava-se como dantes.

Eduardo não veio ao Brasil, segundo contava, nem naquele nem no ano seguinte. As doenças do pai agravaram-se, tornaram-se longas; e nisto correram mais dois anos. Só então o pai de Eduardo morreu, em Nice, no fim de 1878. O filho arranjou os primeiros negócios e embarcou para o Rio de Janeiro.

— Enfim!

Tinham passado dezoito anos. Posto que eles tivessem trocado os retratos, mais de uma vez durante esse lapso de tempo, acharam-se diferentes do que eram na noite da separação. Tinham passado a idade dos primeiros ardores; o sentimento que os animava era brando, embora tenaz.

Vencida a letra, era razoável pagar; era mesmo obrigatório. Trataram dos papéis; e dentro de poucas semanas, nos fins de 1878, cumpriu-se o juramento de 1861. Casaram-se, e foram para Minas, donde voltaram três meses depois.

— São felizes? perguntei a um amigo íntimo deles, em 1879.

— Eu lhe digo, respondeu esse amigo observador. Não são felizes nem infelizes; um e outro receberam do tempo a fisionomia definitiva, apuraram as suas qualidades boas e não boas, deram-se a outros interesses e hábitos, colheram o fastio e a marca da experiência, além da surdina que os anos trazem aos movimentos do coração. E não viram essa transformação operar-se dia por dia. Despediram-se uma noite, em plena florescência da alma, para encontrarem-se carregados de fruto, tomados de ervas parasitas, e com certo ar fatigado. Junte a isto o despeito de não achar o sonho de outrora, e o de o não trazer consigo; pois cada um deles sente que não pode dar a espécie de cônjuge que aliás deseja achar no outro; pense mais no arrependimento possível e secreto de não terem aceitado outras alianças, em melhor quadra; e diga-me se podemos dizê-los totalmente felizes.

— Então infelizes?

— Também não. Vivem, respeitam-se; não são infelizes, nem podemos dizer que são felizes. Vivem, respeitam-se, vão ao teatro...

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Estação, de 31/10/1882 a 30/11/1882. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 23

 

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 14 : Poema em laços de fita

 
Ao amanhecer, Isadora teve um despertar sereno. Logo avistou, sobre a penteadeira, o rolo preso em fitas. Era o poema de Genuíno. Descobriu o corpo, colocou os pés no chão e, lentamente, apanhou o papel. Desfez o nó do laço e, escorada à cabeceira da cama, começou a ler o que a ela fora escrito:

De peito aberto

“ De peito aberto, coração pulsante,
olhar atento, sorriso infante...
Aqui estou, a mirar o céu, pedindo ao vento que desenhe o rosto teu.
Mas o vento sente ciúmes de ti, e levou as nuvens embora nas asas de um colibri.

Reclamei ao tempo e tive tonturas, calafrios.
É a natureza rivalizando comigo,
mas por ti, meu amor, não temo o perigo.
E te visito na ilusão do meu pensar ...

Ah, pode o mundo não querer, o tempo reclamar,
mil demônios tentarem impedir, mas é contigo,
linda rosa, flor do jardim da minha alma
que hei de me casar.

Tu és a natureza, e eu sou teu cuidador.
Nada te faltará. Sou teu anjo protetor,
em todas as noites, em todos os dias,
em todas as estações te farei cantar...

Sei que pareço um tolo a dizer-te estas palavras
cheias de açúcar, mas fico bobo ao perceber,
que nasci para te fazer feliz.
Feliz como nunca foste antes de encontrar.

E ao Patrão velho, senhor da existência,
tiro o meu chapéu e me ponho a agradecer,
missão mais bela do que essa,
juro que nunca vi acontecer.
     
Nossas almas foram entrelaçadas enquanto
dançávamos a sorrir naquele baile bonito.
Se de um lado a vida quis assim,
esta mesma vida em seu reverso, há de se calar.
E não te deixarás longe de mim...
    
Vamos juntos construir nossa casa, plantar flores,
formar família. Conservar bons amigos,
ser exemplo de fé.

Vem comigo, prenda minha, mostrar para o mundo,
o que é felicidade!

Com carinho, teu Genuíno.

 Ao ler os últimos versos, Isadora dobrou o papel com cuidado, pois o poema já estava a desmanchar-se, molhado em sua chuva de lágrimas…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =
continua...

Fonte:
Texto enviado pela autora

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “04”

 

Estante de Livros (Nós: uma antologia de literatura indígena)

T
exto por Laura Brand

Nós: uma antologia de literatura indígena é uma coletânea de contos de indígenas brasileiros. Com pouco mais de 120 páginas, o livro reúne alguns mitos e contos que sobreviveram a gerações e preserva parte de uma rica história de alguns dos primeiros povos brasileiros.

Estamos acostumados a mergulhar na literatura estrangeira e, quando nos aventuramos na literária nacional, optamos por aquela escrita por brasileiros brancos, de descendência europeia. Ter contato com as narrativas indígenas é algo raríssimo para a maior parte de nós e o livro organizado e ilustrado por Maurício Negro é uma forma de tentar mudar essa realidade, principalmente para jovens leitores.

Nós: uma antologia de literatura indígena é um livro composto por onze contos escritos por descendentes ou nativos de tribos indígenas brasileiras. Além de uma belíssima ilustração abrindo cada capítulo, os contos acompanham um glossário dos termos utilizados, uma mini biografia de cada autor ou atores dos contos e uma breve explicação sobre aquele povo ao qual o conto faz referência ou ao qual a história está inserida. Isso faz com que o livro seja ainda mais enriquecedor, principalmente para os leitores que não estão habituados com determinadas narrativas ou que nunca ouviram falar desses povos. E como os contos são bem curtinhos, o livro se torna uma leitura rápida, divertida e muito rica.

Por meio dos contos escritos por autores de diferentes povos indígenas, Nós: uma antologia de literatura indígena ajuda a exemplificar a rica diversidade existente até hoje no nosso país. O livro é editado e publicado pelo selo Companhia das Letrinhas e isso em si foi um ponto interessante. Isso porque, ao escolher os jovens como foco de um livro de narrativas indígenas, é possível perceber uma preocupação em formar uma nova geração de leitores acostumados a ouvir e buscar outras perspectivas que não apenas estadunidenses e/ou europeias. Foi uma excelente escolha do Grupo Companhia das Letras e abre espaço para novos diálogos e vozes.

Nós: uma antologia de literatura indígena é uma homenagem à verdadeira ancestralidade brasileira. Um livro que reúne memórias e sabedorias milenares de alguns dos povos originários do nosso país e que, por meio da literatura, ainda resistem e expõem sua cultura para o resto do mundo.

Tive pouco contato com esse tipo de narrativa, mas Nós me deixou com um gostinho de quero mais. Não consegui deixar de pensar que o livro poderia ser uma alternativa às ficções europeias que os pais costumam ler para os filhos. Nós é uma forma de conhecermos mais sobre os verdadeiros brasileiros e de abrimos espaço para pensarmos e ouvirmos diferentes vivências e experiências. Mais uma vez a literatura se mostra poderosa.

“Nesta belíssima antologia ilustrada, o leitor vai conhecer dez histórias contadas ou recontadas por escritores de diferentes nações indígenas.

A menina Yacy-May era tão especial que fez com que o sol se apaixonasse por ela, deixando a lua enciumada. O peixe-boi surgiu a partir da união de Guaporé, filho do grande chefe dos peixes, com Panãby’piã, filha do governante dos Maraguá, e sinalizou a paz entre os humanos e os peixes. A velha misteriosa Pelenosamo tem um dia a casa invadida por uma garota curiosa, que resolve investigar o que ela fazia com os galhos secos que sempre levava recolhia e não dividia com ninguém. Essas são algumas prévias das histórias reunidas nesta antologia, contadas ou recontadas por escritores das nações indígenas Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Tratando dos mais diversos temas — dos mitos de origem às histórias de amor impossível —, as narrativas conduzem o leitor por situações e desenlaces muito próprios, sempre acompanhadas por um glossário e um texto informativo sobre o povo indígena de origem de cada autor. Esta é uma chance preciosa para todos aqueles que desejam entrar em contato com as raízes mais profundas de nossa cultura, ainda pouco valorizadas e respeitadas, por puro desconhecimento.”

Fonte:
Site Nostalgia Cinza, de Laura Brand
https://www.nostalgiacinza.com.br/2019/12/resenha-nos.html

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Adega de Versos 112: Jaqueline Machado

 

Aparecido Raimundo de Souza (A tresloucada mania de estourar bolinhas)

POR QUAL MOTIVO as pessoas tem o costume de estourar as bolinhas dos sacos conhecidos como plásticos bolhas que encontram pela frente? Notem que não são só os idosos que se ocupam em fazer uso de tal prática. Em dias atuais, a empreitada se tornou corriqueira. Virou febre. A coisa se propagou oriunda dos nossos avós. Passou, às carreiras, ao convívio dos nossos pais, depois aos nossos filhos e atingiu, em cheio, os adolescentes “mais sem noção de qualquer coisa considerada normal”. Em contrapartida, caiu como luva de pelica, ou como uma nuvem de presságios benignos que tivesse vindo de longe e sobrevoado por sobre as nossas cabeças, sem nenhum tipo de interferência.

Pois bem! Mesmo trilho, é comum, em dias de hoje, ver um velhinho andando pela rua ou sentado na praça, ou mesmo em casa, diante da televisão (que nem de longe lhe chama a atenção), estourando bolinhas, como também uma garotinha simpática entretida com o seu canal de desenhos preferidos tendo às mãos ocupadas em detonar, com esmero e até uma certa exaltação, uma centena de bolinhas de vento. A pergunta que não quer calar: que tara seria essa que faz as pessoas viajarem no desperdício do que restou da sopa, perdão, da maionese?

Que espécie de doideira branda e ao mesmo tempo avassaladora é a dita diversão que invade a cabeça das criaturas a ponto de fazê-las esquecer seus afazeres somente para se aterem ao pipocar do ar saído das suas entranhas e, de contrapeso, do barulho peculiar provocado quando se contraem e arrebentam? As respostas ouvidas numa enquete onde participaram mais de trezentas pessoas, se fizeram as mais variadas possíveis. Algumas sem nexo, porém, todas voltadas para um mesmo ponto de equilíbrio: a mente sã. Vejam as reações colhidas:

— Alivia a tensão;

Seguidas de:
— Relaxa os nervos;
— Qual o quê! Mexe com os músculos;
— Evita o LER;
— Deixa o cara doidão completamente em alfa;
— Faz esquecer um pouco, os problemas;
— Melhor que uma cerveja bem gelada;

Sem falar que criaturas afoitas, rasgaram o verbo:
— Mata a fome como se fosse uma boa marmita de feijão, arroz e carne assada;
— Resgata as coisas boas da vida;
— A gente se desprende do corpo e voa alto.

Alguns chegaram ao cúmulo de levarem a obstinação para o lado médico. Talvez, em face de portentosa cissura, o doutor Drauzio Varella, em seu livro “A Teoria das Janelas Quebradas”, tenha concluído: “funciona como uma terapia ocupacional relaxante que atinge o seu ápice no exato instante em que o ato de apertar se funde com a fratura exposta das bolinhas detonadas como um todo.”

O “tac, tac” repetitivo e reiterado, quando provocado pelos dedos comprimindo o invólucro que as envolvem, desencadeia uma sensação suave de alivio imediato –, relata a escritora Dawn Huebner em seu livro “O que Fazer Quando Você Tem Muitas Manias: um guia para as Crianças superarem o Transtorno Obsessivo Compulsivo – TOC. ” e – conclui, com brilhantismo: “por conta, se converte num remédio prático e eficaz e, o mais importante, se transforma numa receita barata, sem carência, sem as loucuras dos enfrentamentos de filas quilométricas em postos de saúde, como, igualmente, sem necessitar de consultas à médicos especialistas. Resumindo, uma solução meio que mágica. Sintetizando, uma espécie de mandinga, entre aspas, ao alcance de todos.””

“Devemos esclarecer, em contrapartida –, argumenta Olavo de Carvalho em seu livro “O imbecil Coletivo” –, os barulhinhos provocados pelos espocares dos plásticos bolhas, libertam as tensões, acalmam os estresses, espantam os cansaços do dia a dia e fazem com que o organismo volte à sua postura normal. Vale, igualmente, para todos, sem contraindicações. Tornou-se uma espécie meio que irracional de turra ou birra, como a teimosia galopante pelos refrigerantes, aos copos de cerveja, aos cigarros, queimados entre os amigos, as peladas sem uma pelada desvestida nos finais de semana e até o futebol pela televisão””.

A cada dia aumenta consideravelmente o número de escolas espalhadas pelo país, não só da rede pública, como os estabelecimentos particulares (principalmente os colégios das classes altas), que passaram a adotar, em seus currículos, o hábito de “apertar bolinhas” como uma intermediação para “apaziguar os alunos mais inacessíveis e de difícil convivência com os demais colegas dentro e fora das salas de aulas”. Em viagens longas, é comum depararmos com pessoas estrondando bolinhas. E a teima empenhada não ficou só nas esferas menos favorecidas. Nos ônibus interestaduais, nos voos comerciais, criaturas de posses e também aquelas sem os confortos das riquezas, indivíduos entre uma bebida e outra, retiram de suas bagagens de mãos, ou dos fundilhos das calças, discretos saquinho com as preciosas bolinhas para serem enfuriadas, arrebentadas, ou vias idênticas (como dizem os capixabas), “pocadas.”  

Indo direto ao ponto, a teoria dos estouros das bolinhas, ou a liberação do ar aprisionado dentro dos plásticos bolhas, é de excelente alvitre que se deixe claro, vale a pena a todos que carregam essa interessante, engraçada e até divertida mania de sacrificarem tais bolinhas, lerem com bastante atenção e acuidade, o livro “Completamente idiota” do escritor alemão, Tommy Jaud. O autor, pasmem, caros amigos, deixou de ser um imbecil de carteirinha ao descobrir uma maneira simples, fácil e rápida de ganhar dinheiro escrevendo um livro de leitura acessível, onde todo aquele que se acha um idiota ou pretende ser futuramente, deve ter ao alcance da sua mesinha de cabeceira. No final das contas, para o cotidiano da vida, fica a lição de não ser (ou ser, em definitivo) considerado, pelos amigos e familiares, uma pessoa completamente idiota.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 58

 

Contos e Lendas da África (Uma viagem em busca de sal)


(por Robert Hamill Nassau)


PERSONAGENS
Njâbu (civeta*) *conhecido por Gato de Algália.
Mbâmâ (jiboia)
Ngweya (porco-do-mato)
Kudu (jabuti)
Um homem e outros caçadores

PREFÁCIO


Antigamente, as tribos localizadas nas costas africanas ferviam água do mar em panelas de latão, chamadas de netunos. Era assim que obtinham sal, que depois vendiam para as tribos mais distantes.
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Esses quatro animais viviam próximos um do outro em uma mesma aldeia.

Certa noite, aproximadamente uma hora após anoitecer, estavam todos sentados na calçada, conversando. O jabuti Kudu anunciou a todos:

— Ouçam! Tenho algo a dizer! Quero lhes fazer um convite. Vamos fazer uma pequena viagem amanhã. Atravessaremos a floresta até chegar à praia, para comprarmos sal.

— Sim, vamos! — todos concordaram.

E pouco tempo depois foram para suas casas dormir.

Um novo dia nasceu.

Prepararam-se para partir logo cedo.

— Tenho outro pedido. Será o último. Durante o trajeto, ninguém deve criar distrações ou inventar coisas que nos atrasem. Devemos ir direto até a praia.

— Tudo bem, estamos de acordo. — responderam.

E assim começaram sua viagem através da floresta. Seguiram por um bom tempo, pois o plano era percorrer a maior distância possível até pararem para acampar durante a noite. No entanto, ao longo do caminho a civeta Njâbu começou a se queixar:

— Ah, que dor de barriga! Ah, como meu estômago dói!

— Como assim, dor de barriga? — perguntou Kudu.

— Quero dizer que estou apertado! Preciso fazer minhas necessidades!

— Ora, vá! Procure um arbusto aí pelos lados. Esperamos você.

— Não consigo fazer no mato! — resmungou a civeta. — Tenho que voltar para a casa da minha mãe!

— Nem pensar! — esbravejou o jabuti. — O que combinamos antes de sair?

— Nada de atrasos ou distrações. — disseram os outros.

— E você, Njâbu, vai nos atrasar, e atrasos vão nos trazer problemas — acrescentou Kudu.

Mesmo assim, a civeta correu de volta para a cidade e foi ao banheiro de sua casa, enquanto os três a esperavam. Muito tempo depois, já de noite, Njâbu retornou, aliviada.

— Agora me sinto bem melhor. — disse.

No dia seguinte, levantaram-se animados.

— Vamos seguir viagem! — E retomaram o caminho.

Caminharam um bom percurso até que a jiboia Mbâmâ exclamou:

— Ah, que dor de barriga! Ah, como meu estômago dói!

— Como assim, dor de barriga? — perguntou Kudu.

— Quero dizer que estou com fome!

— Não tem problema. Trouxemos comida para a viagem. Venham todos, vamos almoçar. — sugeriu o jabuti.

— Não gosto dessa comida. Vou procurar outro tipo.

— Que outro tipo?

— Vou entrar um pouco na floresta, volto logo. — avisou a jiboia.

Ao entrar na mata ela avistou um antílope vermelho. Mbâmâ então enrolou seu corpo, da maneira que as jiboias fazem quando estão à espreita. O antílope passou saltando e a cobra deu o bote, matando-o. Cobriu-o todo com sua saliva, pois é assim que as jiboias conseguem engolir presas tão grandes. Em seguida arrastou-o até o local onde estavam acampados e preparou-se para devorá-lo.

— Vamos comer todos juntos então. — sugeriu Kudu.

— Se na cidade não dividimos nossa comida, não é aqui que vamos fazer isso. — a jiboia respondeu, antes de engolir o antílope inteiro.

Mbâmâ então chamou seus companheiros e disse:

— Pronto, agora estou satisfeita.

— Certo, então vamos seguir viagem. — disse o jabuti.

— Não! Só consigo continuar depois de digerir tudo.

— Mas ora essa! — exclamou Kudu. — Eu falei na cidade, sem distrações! Njâbu já nos causou atrasos, agora você!

Sem ter o que fazer, todos se sentaram para esperar a jiboia. Aguardaram um mês para que ela fizesse sua digestão.

— Agora podemos partir, — disse ela — mas antes vou ao rio beber água.

E bebeu uma grande quantidade, que a fez expelir os ossos do antílope.

— Estou bem melhor agora. Podemos ir.

Caminharam por muito tempo até encontrarem uma árvore caída, cujo tronco atravessava a estrada e as folhas ainda estavam verdes. O porco-do-mato e a civeta saltaram sobre ela e a jiboia esgueirou-se por baixo. Chamaram o jabuti, que tentava em vão escalar o tronco para chegar ao outro lado.

— Venha! Salte!

— Não consigo! Vocês sabem que minhas pernas são curtas! — disse Kudu, envergonhado. — Só conseguirei atravessar quando este tronco apodrecer e se partir.

— Esta árvore caiu há pouco tempo! Sabe-se lá quantos dias vai demorar para o tronco apodrecer.

— A culpa não é minha! Se vocês não tivessem nos atrasado, Njâbu e Mbâmâ, já teríamos passado por aqui bem antes da árvore cair. Você inventou uma distração, Njâbu, e depois você, Mbâmâ. Agora tratem de me esperar!

Assim fizeram.

Durante essa pausa, os outros três costumavam sair de manhã cedo para uma plantação próxima, onde havia milho, inhame, banana e outros vegetais. A civeta e o porco-do-mato comeram todo o milho e bananas que havia.

Um dia um homem de outra aldeia perambulava pela floresta. Caminhava olhando para todos os lados, à procura de caça, quando encontrou o rastro de animais. Examinou atentamente e exclamou:

— Estas pegadas parecem ser de jabuti! Sim, e aqui há rastros de um porco-do-mato. Ah, e uma civeta também passou por aqui. E também há uma trilha de jiboia! Há muitos animais nesta área. Vou voltar à cidade e chamar outras pessoas para me ajudarem a caçá-los.

Correu de volta para sua cidade e começou a gritar:

— Venham, homens! Vamos à floresta! Encontrei vários animais!

Um dos que atendeu a seu chamado foi o dono da plantação. Outros se juntaram ao grupo, levando armas, facões, lanças e redes, além de cães com guizos na coleira. Partiram sem demora.

Ao se aproximarem dos animais, os cachorros começaram a latir e seus guizos balançaram enquanto corriam. Os homens gritavam para fazer os animais caírem nas redes. O primeiro a ser capturado foi o porco-do-mato, morto com um tiro. Em seguida apanharam a civeta e a atravessaram com uma lança. Encontraram a jiboia dormindo ao lado do tronco e também a mataram. Por fim descobriram o jabuti, que tentava se esconder debaixo das folhas que haviam caído da árvore. Acabou capturado. Foi o único a ser mantido vivo, após ser amarrado.

A caçada havia começado no final da tarde, quando os homens chegaram à cidade, já anoitecia.

— Vamos guardar as caças em uma casa — propôs um deles —, mas deixe o jabuti pendurado em uma viga do teto.

— Amanhã comeremos. — disse outro. — Já está tarde para preparar e cozinhar, vamos dormir.

Perto da meia-noite, após muito esforço, Kudu conseguiu enfim se libertar das cordas. Foi até o canto da sala onde os cadáveres de seus amigos estavam e disse para a civeta:

— Não avisei que não deveríamos inventar desvios em nosso caminho? Agora você está morta.

E virando-se para a jiboia:

— Você também, Mbâmâ. Disse para não nos atrasar. Mataram você também. Se não inventassem tantos assuntos, teríamos feito nossa viagem sem nenhum perigo.

Então escavou um buraco na parede da casa e escapou para a floresta.

Logo amanheceu e os habitantes da cidade disseram uns para os outros:

— Tragam os animais para fora. Vamos cortá-los e prepará-los.

E assim foi feito com os três capturados.

— Traga também o jabuti que está amarrado — pediram a um rapaz.

O jovem logo saiu da casa dizendo:

— Não encontrei nenhum jabuti.

Todos entraram para procurá-lo e, ao verem que não estava lá, disseram:

— Vamos comer o que caçamos. Deixe o jabuti para lá, pois conseguiu fugir.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Lairton Trovão de Andrade (Brados ao Infinito) – 2


AMIZADE

Não cesso de agradecer
por ter eu boa amizade;
muito enriquece meu ser
o bem da fidelidade.

Amizade é amor puro
de transparência contida;
por isso, exclamo seguro:
Salve, oh, âncora da vida!

Seria o pior desabrigo
enfrentar luta sofrida.
Sem ter sequer um amigo
na caminhada da vida.

Como é bom ter amizade,
uma existência querida,
mais que solidariedade,
isso é dádiva da vida!
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O DOM DA ESCOLHA

A inteligência contempla,
como que num espelho,
os pendores do livre-arbítrio
— dom da liberdade humana —
que se manifesta como sendo
frente e verso,
direito e avesso,
— Dom da Escolha —
terrível faca de dois gumes...
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VOZ DO POETA

Contemplo,
com alma de poeta,
o nascer da aurora,
o brilho do Sol,
a pureza dos lírios.

Contemplo,
com sentidos de poeta,
o canto dos pássaros,
o colorido das borboletas,
a lira da primavera.

Contemplo,
com sonhos de poeta,
o fim da corrupção,
a honestidade e o progresso,
o amor entre os irmãos.

Contemplo,
com crença de poeta,
a lição das dores,
o perfume das flores,
a força do amor.

Só me resta poetar,
traçando lições de vida,
ao céu, à terra e ao mar...
Que todo vivente, um dia
claramente, em boa meta,
possa repetir feliz:
"Bendita és tu, para sempre,
mística Voz de Poeta"!
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O BOM CONSELHEIRO

Veja bem, meu irmão,
o melhor conselheiro,
sem nenhuma paixão,
e melhor companheiro,
que a você nunca trai,
superior ao travesseiro,
é um herói, é seu pai.
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CANTA CANTA, PASSARINHO

Canta, canta, passarinho,
canções de me comover!
Canta ao luar, e mansinho,
pra ser lindo o alvorecer!

Canta, canta, passarinho,
sem violência nem pavor!
Traze teu canto alegrinho
pra quem sonha em linda cor.

Canta, canta, passarinho,
— suave despertador
de uma criança em seu ninho
que tem suspiros de amor.

Canta, canta, passarinho,
antes de o dia raiar;
vem, para, com seu carinho
um belo anjinho acordar.
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Ainda que um ser social eu seja,
que adore o convívio dos semelhantes,
que, em contato com pessoas,
tenha vivido profissionalmente,
ainda assim, muitas vezes,
eu gosto de estar só.

Quando estou só,
não me sinto em solidão;
Dou asas ao meu pensamento,
tenho sonhos em preto e branco,
sonhos coloridos, lindos,
construo castelos perfeitos,
encontro a princesa mais bela,
faço poemas,
escrevo trovas,
componho silenciosas melodias,
desenvolvo um pensamento filosófico…

Fonte: Lairton Trovão de Andrade. Brados ao infinito: poemas. Pinhalão/PR: Artgraf, 2014.
Enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 13: O vinho derramado

Ainda que prestes a fazer um grande sacrifício, Isadora se mantém otimista. A tempestade, em seu peito, antes tão revolta, deu lugar a uma bonança com cheiro de terra molhada e alecrim.

Ela não sabia como, mas repentinamente passou a crer na possível intervenção de um milagre, capaz de colocar sua mãe de pé e assim, jamais casar-se contra a própria vontade.

Depois de conversar com Genuíno, de sentir seu toque e enamorar-se do seu sorriso, um portal de luz se abriu em seu caminho, e a voz da esperança decidiu sussurrar em seus sonhadores tímpanos: “Tudo dará certo”.  

Com a mesa posta por dona Ana, todos acomodados e sem poder adiar a desagradável situação, Isadora sentou-se ao lado do pai. Os pais do noivo, senhor Pafúncio e dona Rebeca, não escondiam o entusiasmo de ver o filho encaminhado, ao lado de uma moça tão bela e prendada.

Senhor Antônio ajeitou a guaiaca* e, de pé, fez um breve pronunciamento:

- O coração desse “véio” campeiro, tá faceiro. Pois nesse momento, passo a mão da minha formosa “fia” a esse guri por quem tenho forte apreço. Fábio, Isadora é meu grande tesouro. Cuida bem dela.

- Será tratada e preservada como a joia rara que é. - disse o rapaz ao abrir uma garrafa de vinho, servir a taça de todos e levantar um brinde.

O coração da prenda disparou. A mão visivelmente trêmula fez com que um pouco da bebida derramasse sobre a tolha branca.

Seria esse um sinal de que a virgindade de sua essência estava prestes a ser maculada?

Isadora não se preocupava apenas com a virgindade do corpo, mas também com a virgindade da alma. Temia ser derrotada pela nova realidade, de mirar-se ao espelho e ver uma mulher triste, amarga, com os sonhos desfeitos em lágrimas.

Depois de aterrorizar-se com as próprias sombras, ela voltou a si e pensou: “Preciso acreditar na voz da esperança. Deus há de me libertar desse compromisso insano”.

Reagindo ao mal súbito, sorriu. E seu pai continuou: - Pena não ter tido tempo para um grande festejo. Mas o casório logo sai. E a festa será grande.

Dona Ana, ao sentir a dor da filha, prendeu uma lágrima no olhar, pois sabia que precisava manter -se calma.

- Com certeza. - disse o quase sogro de Isadora. – Será uma festa de arromba!

Os pais do noivo pareciam simpáticos, sobretudo a esposa, uma senhora elegante, de cabelo grisalho.

- Meu filho é um bom homem. Fará sua filha feliz. - disse.

Nesse fatídico momento, Fábio desembrulhou um delicado estojo, do qual retirou uma aliança cravejada de brilhantes e, com o pedido de licença, levou a joia à mão da mulher que ele escolheu para esposa.

O coração de Isadora voltou a acelerar, e tentou aceitar a ocasião como um pesadelo breve que logo daria lugar a belos sonhos.

- Viva os noivos! - bradou o velho Antônio, erguendo a taça transbordando de vinho.

Ao término do jantar, os pais de Isadora e do noivo continuaram a prosa na sala, e o rapaz convidou a noiva para um passeio.  

- Podem ir, mas não demorem por ai. - disse Antônio.

Eles caminharam até o jardim onde Isadora há poucas horas vivera um dos melhores ou o melhor momento de sua vida, junto daquele que assemelhava-se à sua alma, e que de fato poderia fazê-la realizada.

- Estou muito feliz com o noivado. - disse Fábio.

- Desculpe... Mal nos conhecemos. Não sei bem o que dizer.

- Dá para perceber o teu desconforto. Mas logo isso passa.

Tentando quebrar o gelo, ele falou das fazendas e da quantidade numerosa de empregados que possuía junto ao seu pai. Falou também dos carros e das roupas caras, mostrando pertencer ao universo das coisas materiais, frias e perecíveis a qualquer ruído do tempo.

Em suas palavras não se ouvia nada que dissesse respeito ao amor, amizade, bondade. Isadora ouviu tudo com certo desdém. Ele percebeu o desgosto da moça, mas com o controle da situação em suas mãos, continuou a falar. Certo momento, pausou as palavras e fez menção de beijá-la.

- Não! - disse ela, enfaticamente.

- Por que, não? Agora temos um compromisso. Podemos nos beijar.

- Não estou pronta para isso.

- Que besteira! - exclamou ele a tomando pela cintura.

- Por favor. Não force!

- Está bem.

- Melhor voltarmos. Está tarde. Os lampiões das casas estão se apagando.

- Claro, minha noiva.

Ao entrar em casa, Isadora disse estar cansada, e despediu -se de todos.

De frente para a janela do seu quarto, respirou fundo, agradeceu a Deus por ter conseguido suportar aquela terrível provação sem ceder à tentação de sair correndo. E adormeceu pensando em Genuíno...
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Nota de rodapé

* A guaiaca é um acessório masculino parecido com um cinto, feito de tira de couro larga e fechamento em fivela.

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continua…

Fonte:
Texto enviado pela autora