sábado, 15 de maio de 2010

Trova 146 - Lothar Bazanella (São Paulo)

Glória Marreiros (Livro de Poesias)

Pintura de J. P. Martins Barata
E DEPOIS DO AMANHÃ?

E depois do amanhã, que se aproxima
em laudes que transmitem minhas rezas,
talvez que eu veja estrelas sempre acesas
na extrema-unção do brilho que me anima…

E seja um campo santo, noutro clima,
onde as palavras se ouçam, sempre ilesas,
e com sons que tilintam sobre as mesas
que citam o sabor da minha rima.

Há esperança, incerteza, no futuro
do meu sonho, que aspira por ser puro
nas cores dum matiz que esmoreceu…

há-de fazer-se luz na minha treva
e o céu dirá ao sol para que escreva
que, depois do amanhã, existo Eu!
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POEMA DOS SONHOS

Olhando o teu rosto, senti que veneras
o sonho perfeito da vida que tenho.
Comandas minha alma, contigo sustenho
os tons anilados que inventam quimeras.

Tapaste os meus seios com mãos de outras eras,
beijaste os meus lábios com força e empenho,
com âmbar e tinta fizeste o desenho
que embala meu corpo com mil primaveras.

E trazes nas veias poder, sedução,
a raça dum povo que tem coração
e crê que a esperança jamais é perdida.

Eu vi que tu eras o elo perfeito
que abraça este rio que corre em teu peito,
poema dos sonhos, que são minha vida!
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DIGNO EXEMPLO
Dedicado aos meus AMIGOS: Drª Maria José Fraqueza e Sr. Rui Fraqueza nas suas Bodas de Ouro. (24 de Janeiro de 2010)

Venero o vosso exemplo, a vossa luz,
e sinto-me pequena, ante a grandeza
do vosso imenso amor e da pureza
que faz lembrar a paz que há em Jesus.

Foi há cinquenta anos. Faz-se jus
à Zezinha e ao Rui que, com firmeza,
puseram suas vidas sobre a mesa,
onde um círio aceso inda reluz.

O céu desceu à terra neste dia,
com lírios de louvor e de magia
e os anjos ajoelham com fervor.

Desfolho o vosso livro, onde contemplo
o sonho de seguir o vosso exemplo,
mas não sei se consigo tanto amor!...
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SONHANDO NATAL

Criança parida do ventre que tenho
tu guardas no peito pedaços de amor,
canções de luar desprovidas de cor,
e beijos que falam na dor que sustenho..

Suplicas Natal com ternura e empenho;
e queres de mim o poder do calor
que exala esperança, emitindo o fulgor
da chama atiçada p’la cruz do meu lenho.

Se um dia soubesses o quanto te amei…
as lágrimas soltas, tombadas, sem lei,
caindo no rosto, formando um caudal…

Dirias: que mãe é ter sempre um sacrário
aberto ao amor, desfiado em rosário,
com filhos lá dentro, sonhando Natal.
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TESTAMENTO

Minha alma morreu. E deixou-me sem trono.
Não teve suspiros de alguém a chorar,
coberta com laivos da luz do luar,
e ungida com óleos das chuvas de Outono.

Eu vi-a partir nas memórias dum sono
profundo e submerso em procelas de mar,
sedenta do fogo que emerge dum lar
que faz da paixão meretriz, sem ter dono.

Agora, sozinha, no átrio do espanto,
apenas matéria me envolve este pranto
que agita pedaços de amor e tormento.

Eu fui ao notário, que às vezes me acalma,
fiel dos haveres que tinha minha alma,
mas ele me disse: Não há testamento!
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ÚLTIMO SONETO

Não forces o soneto, a emoção.
Deixa que saia livre, em fantasia.
A espera, lentamente, o acaricia
como à mais rara flor, ‘inda em botão.

Deixa nascer o sol da inspiração,
abre as asas da alma, em euforia,
e voa sobre o céu que te inebria,
depois, deixa falar o coração.

Teu último soneto será mar
e terra sobre a luz do teu olhar,
no fogo que, em mim, nunca esmoreceu.

Falará de amor, ódio, de vaidade,
da dor e sofrimento que te invade,
no fim, fala da escrava que sou eu!
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A CASA

Desmoronou-se, em dor, aquela casa
que parecia ser antiga e forte.
Agora, ali, prostrada à sua sorte
agoniza no gelo onde se abrasa...

Quem passa não se importa que ela jaza
por terra, espezinhada pela morte.
Ninguém recorda a linha do seu porte,
deixá-la, assim, tombada em campa rasa.

Dos alicerces gritam vozes de alma,
em febril tempestade que se acalma,
querem saber do corpo que era seu.

Agora está no chão, eu sempre soube
que era frágil, erguida só de adobe,
a casa... sombra e cinza que sou eu.
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CONCLUSÃO

Eu procurei o mundo, ao desvario,
na ânsia de encontrá-lo num poema.
Queria que ele fosse a vida, o tema,
a correr no meu peito, como um rio.

Queria-o majestoso, amplo de brio,
anunciando a luz, clara e suprema,
duma paz duradoira, aonde o lema
fosse amor, saciando o meu vazio.

Nesta minha procura desmedida,
teci sonhos e ninhos sobre a vida,
para amparar a dor, em manhã calma…

Mas quando o sol se fez uma ilusão,
cheguei, por fim, à dúctil conclusão
que o mundo trago-o eu dentro da alma!

Fonte:
Varanda das Estrelícias

Glória Marreiros



GLÓRIA MARREIROS, de seu nome completo Maria da Glória Duarte Marreiros José, nasceu em Monchique/Portugal, onde passou a infância e parte da sua juventude, tendo fixado residência em Portimão já há alguns anos.

Filha do conhecido poeta popular monchiquense Inácio Marreiros, foi ainda na infância que a sua inspiração poética se revelou.

A sua sensibilidade apurada encontrou na prática da religião católica a satisfação de se devotar ao serviço dos outros. Foi catequista e, pelas suas qualidades de liderança e de facilidade de comunicação, desempenhou as funções de Presidente da Ação Católica em Monchique.

Em 1988 publicou o seu primeiro livro, ROCHEDO DE SOLIDÃO, que logo recebeu os maiores encómios da crítica dos jornais “Jornal de Arganil”, “Postal do Algarve”, “A Voz de Olhão”, “Algarve Região” e “Folha do Domingo”.

Em 1991 começou a colaborar em jornais. Do Algarve, nos “Vila de Estômbar” e “Postal do Algarve”; de Lisboa, no jornal nacional “Poetas & Trovadores” e na conhecida revista “Turis Moda”, aparecendo com trabalhos seus ao lado de nomes famosos, como Dr. Alberto João Jardim, Dr. Mota Amaral, Engº Kruz Abecassis, Engº Aguiar de Carvalho, Engº Carlos Pimenta, Elísio Neves, Francisco Camilo, Dr. Barroso da Fonte e João Leal.

Tem participado em muitos Encontros de Poesia, em diversas partes do País. Poemas seus estão incluídos em diversas Antologias, entre elas, IV e V ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA Contemporânea, ANTOLOGIA DA POESIA FEMININA ALGARVIA e colectâneas, como POETA É O POVO nº 1, da Algarve em Foco Editora, POETA É O POVO nº 2, da APPA, MÃOS DADAS, da Editorial Poetas & Trovadores, COLECTÂNEA DE POESIA, do INATEL (1995), POETAS MAIÚSCULOS, do “Jornal da Amadora”, etc.

Foi autora da letra de uma das canções premiadas no III Festival da Canção Juvenil das Festas de Santa Catarina, na Praia da Rocha, tendo sido convidada no ano seguinte para fazer parte do júri desse Festival. Foi também membro do júri do VIII Festival Internacional da Canção Infantil, organizado pela Junta de Freguesia de Portimão, em 1992.

Publicou mais livros de poesia: DANÇAR NA TEMPESTADE, em 1993, EMBALAR A MÁGOA, em 1996, SILÊNCIO DO RISO (1998), TERRA DE NINGUÉM, em 2004, COLAR DE PÉROLAS, em 2006 (Prêmio Literário Paul Harris-2006), EMOÇÕES EM TERRA DOCE, em 2008, e BAILADOS SECRETOS EM NOITES DE LUZ, em 2009. David Mourão Ferreira fez um elogio manuscrito num dos seus sonetos.

Deu entrevistas em rádios sobre a sua obra poética e obteve, por todo o País, várias centenas de prêmios literários em Jogos Florais, nas modalidades de Crônica, Ensaio, Conto e Poesia. Prefaciou vários livros.

É membro da Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve e da Academia Antero Nobre.

Fonte:
Varanda das Estrelícias

Aparecido Raimundo de Souza (Mãe)


(Minha mãe, para mim, é e sempre será o Maior Amor Espiritual (Caderno de Segredos).

Dia das Mães desfilam poetas de todos os cantos do Brasil que homenagearam as suas mães. Vamos começar pela encantadora Silviah Carvalho (de Curitiba, no Paraná) que escreveu estas palavras simples, mas de significado profundo para a Autora de seus dias:

“... Mãe, nome semelhante ao amor,
um “erre” a mais, um “til” que sobrou,
hoje no seu dia, todos se levantam para uma homenagem;
mas poucos, na verdade, lhe direcionam o merecido valor,
como o vento sibilando nas folhas em cálida aragem...

Seu amor, Mãe, é universal – não existe nada igual.
Defende sua prole pondo em risco a própria vida,
ao tempo que nutre um sentimento diferente - chega a ser magistral.
Nos seus braços nenhum filho deixa de ter guarida
e aquele carinho do fundo da alma – único, especial.

Mãe de muitas mães – igualmente querida,
todo dia deveria ser seu, porque nos legou a vida...
E, junto, o respeito, a obediência, o amor e cuidado.
Para nós, seus filhos, o melhor tesouro guardado,
Não deveria, jamais, permanecer no tempo, esquecida.

Sua nobreza – vejo estampado em seu semblante,
sei que o seu amor é acima de tudo mais importante.
Não importa aonde cada um de nós esteja como eu, agora, afastada, distante,
Mas sei - me sente aí, como se estivesse ao seu lado!

Ainda que por todos incompreendida,
Maltratada pela vida e também por quem gerou,
Seu coração grandioso o perdão sempre espalhou...
Ah, mãe, se não fosse por você, o que seria da nossa lida?

Deixo aqui, mãe amada, estas palavras simples, como uma canção,
da sua filha (e dos demais), ainda que não esteja ninguém sentado à sua volta.
Amor, mãe, nem sempre é se fazer presente – ou melhor é se sentir ausente, carente...
Vivendo esse agora nas batidas descompassadas do seu coração:
no fundo, mãezinha fica mais forte e pujante, o calor da emoção!...”;

Esta poesia pode ser vista em “Recanto das letras” (www.silviah.net).
***

A baiana Neuzamaria Kerner também se faz presente e verseja:

“... Ao nascer
a mãe o recebe nos braços
e lhe é dito:
- Tome, é teu, mas cuidado que vôa!
A mãe abrirá os braços
o cobrirá com abraços
e suas asas crescerão.
O menino passarinho passará a pássaro adulto
e voará,
mesmo sem salvo conduto.
Pensará que é pássaro-gigante e
dono do mundo quer se tornar.
Continuará voando
aquém e além dos mares
sozinho ou em pares
e a mãe sempre o aguardando
sempre orando em sua solidão
sem saber se seu passarinho
voltará um dia, ou não”

(do livro “Fragmentos de Cristal” Neuzamaria Kerner).
***

“Optar por um filho é decidir em dado momento ter o seu coração caminhando fora do corpo para sempre”.
(Elisabeth Stone citada por David Cruz Vitória Espírito Santo, em seu livro Fragmentos – Crônicas e Sonetos).
**

Ser mãe

1
Quando todos te condenarem
quando ninguém te escutar,
ela te escuta e perdoa,
por ser mãe – é perdoar!
2
Quando todos te abandonarem
e ninguém te queira ver,
ela te segue e procura
pois ser mãe – é compreender!
3
Quando todos te negarem
um pão, um beijo, um olhar,
ela te ampara e acarinha
por ser mãe – sempre é se dar!
(José Guilherme de Araujo Jorge, do Estado do Acre)
***
Mãe

A oração que eu rezo,
todos os dias,
ao acordar...

Suave
presença,
idílio constante,
no meu caminhar...

Mãe,
minha estrela guia,
a maior alegria
meu doce sonhar!...

Meu futuro,
meu agora,
minha luz brilhante no escuro,
meu anjo eterno, a me guiar

Fontes:
Colaboração do Autor
- Desenho: Maurício de Souza

Conte a sua história no projeto Ler é Bom, Experimente!



Nasce o Blog do Ler é Bom, Experimente! no ano em que o projeto comemora dez anos e cem mil alunos participantes.

Nos muitos anos do projeto “Ler é Bom, Experimente!”, várias são as manifestações de professores e estudantes narrando como foi a sua participação no projeto. Essas experiências e acontecimentos agora podem ser relatados no Blog do projeto que nasce com a proposta de troca de conhecimentos entre alunos, professores e demais pessoas envolvidas com o projeto.

Esse espaço na WEB será um canal de informação e discussões de temas abordados nas obras e ações de incentivo à leitura, aplicadas nas escolas. Local de compartilhamento de histórias interessantes que ocorreram na sua escola, casa, na sua vida, por conta do projeto Ler é Bom, Experimente!.

O Blog do “Ler é Bom, Experimente!” nasce tendo como primeiro tópico a abertura de espaço para que você professor e o seu aluno contem como foi a sua participação, as atividades desenvolvidas e o resultado no estímulo à leitura.

Com o tópico "Conte a sua história no projeto Ler é Bom, Experimente!" queremos saber a sua história, como aluno e professor, e torná-la conhecida para outros participantes do projeto e visitantes do blog.

O espaço é seu! Participe e estimule o seu aluno a participar, contando a sua história no projeto, comentando sobre os tópicos ou textos de outros participantes.

O endereço do blog é: www.lerebomexperimente.com.br/blog

Fonte:
Colaboração de Laé de Souza

Anonimo (O Homem, seu Cavalo e seu Cachorro)



Um homem, seu cavalo e seu cão, caminhavam por uma estrada.

Depois de muito caminhar, esse homem se deu conta de que ele, seu cavalo e seu cão haviam morrido num acidente.

Às vezes os mortos levam tempo para se dar conta de sua nova condição... A caminhada era muito longa, morro acima, o sol era forte e eles ficaram suados e com muita sede.

Precisavam desesperadamente de água.

Numa curva do caminho, avistaram um portão todo magnífico, todo de mármore, que conduzia a uma praça calçada com blocos de ouro, no centro na qual havia uma fonte de onde jorrava água cristalina.

O caminhante dirigiu-se ao homem que numa guarita, guardava a entrada.

- Bom dia, ele disse.
- Bom dia, respondeu o homem.
- Que lugar é este, tão lindo? ele perguntou.
- Isto aqui é o céu, foi a resposta..
- Que bom que nós chegamos ao céu, estamos com muita sede, disse o homem.
- O senhor pode entrar e beber água à vontade, disse o guarda, indicando-lhe a fonte.
- Meu cavalo e meu cachorro também estão com sede.
- Lamento muito, disse o guarda. Aqui não se permite a entrada de animais.

O homem ficou muito desapontado porque sua sede era grande. Mas ele não beberia, deixando seus amigos com sede.

Assim, prosseguiu seu caminho. Depois de muito caminharem morro acima, com sede e cansaço multiplicados, ele chegou a um sítio, cuja entrada era marcada por uma porteira velha semi-aberta. A porteira se abria para um caminho de terra, com árvores dos dois lados que lhe faziam sombra.

A sombra de uma das árvores, um homem estava deitado, cabeça coberta com um chapéu, parecia que estava dormindo:

- Bom dia, disse o caminhante.
- Bom dia, disse o homem.
- Estamos com muita sede, eu, meu cavalo e meu cachorro.
- Há uma fonte naquelas pedras, disse o homem e indicando o lugar. Podem beber à vontade.

O homem, o cavalo e o cachorro foram até a fonte e mataram a sede.

- Muito obrigado, ele disse ao sair.
- Voltem quando quiserem, respondeu o homem.
- A propósito, disse o caminhante, qual é o nome deste lugar?
- Céu, respondeu o homem.
- Céu?
- Mas o homem na guarita ao lado do portão de mármore disse que lá era o céu!
- Aquilo não é o céu, aquilo é o inferno.

O caminhante ficou perplexo.

- Mas então, disse ele, essa informação falsa deve causar grandes confusões.
- De forma alguma, respondeu o homem. Na verdade, eles nos fazem um grande favor. Porque lá ficam aqueles que são capazes de abandonar até seus melhores amigos...

Fontes:
- http://www.bilibio.com.br/mensagem/51/O+Homem+seu+Cavalo+e+seu+Cachorro.html
- Desenho de autoria de Berega.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Maria do Carmo Ferreira (Retrato Falado)


(para o Targos, in memoriam)

Cachorrinho peralta
de onde vem você
sem fada-madrinha
sem anjo-da-guarda
sem estrela-guia
sem breve & brevê?

Cachorrinho pernalta
tipo S.R.D.
mais pra vira-lata
que pra pequinês
e a cauda emplumada
em chapéu tirolês.

Cachorrinho pintado
a dedo a pincel
preto branco preto.
Onde a tinta acaba
como sobrancelhas
dois pingos de mel.

Cachorrinho da breca
treloso malcriado
travesso fujão.
Tão sem cerimônia
me abanando o rabo.
Tão sem proteção.

Cachorrinho frajola
todo serelepe
sem isto de medo.
Num salamaleque
saltou da coleira
mais ágil que coelho.

Cachorrinho risonho
como aconteceu?
Não foi de verdade
(nem passa por sonho)
foi tão de repente
(mentira, eu abono!)

que você morreu!

Fonte:
"Jogos Florais & Animais" (livro infantil de poemas) in http://www.blocosonline.com.br/sites_pessoais/sites/lm/cao/lmcpo05.htm

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Martha Medeiros (Saudade)

Fonte:
Foto e montagem de José Feldman

Raduan Nassar (Aí pelas Três da Tarde)


(para José Carlos Abbate)

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Fonte:
NASSAR, Raduan. "Menina a caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997.

Raduan Nassar (1935)



Raduan Nassar nasceu em 27 de novembro de 1935, em Pindorama, cidade do interior do Estado de São Paulo, filho de João Nassar e Chafika Cassis. Seus pais haviam se casado em 1919 na aldeia de Ibel-Saki, no sul do Líbano e em 1920 imigraram para o Brasil. Seu pai junta-se a parentes que já estavam aqui e se inicia no ramo do comércio, no interior do Estado do Rio de Janeiro. Em 1921 mudam-se para a cidade de Itajobi, no Estado de São Paulo.

Mudam-se, em 1923, para Pindorama, cidade vizinha de Itajobi, e lá seu pai abre uma venda, que posteriormente seria transformada em uma loja de tecidos, a Casa Nassar.

Pelas mãos da parteira Rosa Conca, na casa da família em Pindorama (esquina da Rua 15 de Novembro com 1º. de Maio), nasce Raduan, sétimo filho de João e Chafika (antes, haviam nascido Violeta, Rosa, Norma, Uydad, Raja e Rames; depois viriam Rauf, Leila e Diva — todos ainda vivos.

Em 1943 o autor inicia seus estudos no Grupo Escolar de Pindorama. Expansivo e de ótima memória, Raduan é freqüentemente chamado para recitar poesias nas datas comemorativas, mesmo com sua dificuldade em pronunciar corretamente o "r" fraco. Segundo ele, neste ano tem "uma das melhores alegrias da infância" de que se lembra, ao ganhar um casal de galinhas-de-angola do pai.

Torna-se coroinha em 1946, após dois anos do início de sua fase de fervor religioso que o levava a ir à missa todos os dias para comungar. Neste ano, sentado na varanda de sua casa, livra-se definitivamente do "trauma" do "r" fraco, ao tentar decorar o Hino à Bandeira (cantando inúmeras vezes o verso "Salve lindo pendão da esperança").

No ano seguinte inicia o curso ginasial na vizinha cidade de Catanduva e começa a trabalhar com o pai. Para facilitar a ida dos filhos à escola, João Nassar muda-se com a família para Catanduva em 1949. Nesta época Raduan tem uma coleção de pombas — que foram citadas em seu romance Lavoura Arcaica — que acabará deixando em Pindorama quando da mudança.

Em 1950, durante uma aula na quarta série do ginásio, Raduan sofre a primeira das sete convulsões que sofreria nos dois dias seguintes. O diagnóstico alarmista e incorreto de um médico — que chegou a mandar isolar sua casa — seus pais decidem levá-lo para São Paulo em um avião-ambulância. Lá é tratado por um neurologista, tendo retornado da crise com amnésia parcial e passa a ter um comportamento introvertido. Debilitado, não consegue concluir o ano letivo.

No ano seguinte reinicia seus estudos, tendo como professora de português sua irmã Rosa. Orientado por ela, começa a ler clássicos brasileiros como parte do currículo escolar. Com sua assistência também, faz consideráveis progressos no aprendizado da língua, em âmbito familiar.

Em 1952 inicia o curso científico em Catanduva, ao mesmo tempo em que começa a criar peixes em um tanque que ele mesmo constrói no quintal de casa.

Buscando sempre facilitar a vida escolar dos filhos, João Nassar resolve transferir-se para São Paulo, em 1953. A família se instala no bairro de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, na Rua Teodoro Sampaio, 2.173. No mesmo local, João Nassar abre um armarinho, o Bazar 13, que anos depois viria a se tornar uma empresa comercial de expressão naquela cidade. Raduan trabalha ao lado do pai durante o dia e conclui o segundo ano do científico no curso noturno do Instituto de Educação Fernão Dias Pais, situado também em Pinheiros.

No ano seguinte troca o científico pelo curso clássico, mais voltado para a área de Ciências Humanas, e conclui o colegial na mesma escola.

Em 1955 ingressa ao mesmo tempo na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e no curso de Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). No segundo semestre abandona o curso de Letras. No curso noturno de Direito, conhece Hamilton Trevisan, procedente de Sorocaba (SP), e com aspirações literárias.

No segundo ano, Trevisan apresenta o escritor a Modesto Carone, outro sorocabano, que acabara de ingressar na Faculdade de Direito. Modesto também tinha projetos definidos no terreno da literatura. Como Raduan já começasse a manifestar suas primeiras preocupações nesta área, as conversas entre os três passam a ser dominadas por temas literários.

Em 1957 Raduan ingressa no curso de Filosofia da USP. Era o sexto entre os irmãos a freqüentar a mesma faculdade. Na Faculdade de Direito conhece José Carlos Abbate, um paulistano que acabaria se tornando um de seus melhores interlocutores. Inseparável, o grupo de quatro amigos começa a se encontrar com regularidade na Biblioteca Mário de Andrade e na biblioteca da Faculdade de Direito, onde discute autores e obras e faz boa parte de suas leituras. Também se tornam comuns as noitadas em salões de snooker e bares do centro velho da cidade.

No ano de 1958 interrompe praticamente o curso de Filosofia ao restringir sua freqüência a uma disciplina (Sociologia). No ano seguinte, decidido a dedicar-se integralmente à literatura, abandona o curso de Direito (estava no último ano) e atende só com trabalhos ao curso de Estética na Faculdade de Filosofia.

Falece João Nassar, em 1960, após oito anos de enfermidade. No ano seguinte o escritor desliga-se dos negócios da família. Escreve o conto "Menina a caminho". Viaja para Matane, no Canadá francês, onde viviam duas tias, irmãs de seu pai. De lá segue como imigrante para os Estados Unidos, onde permanece por apenas dois meses.

De volta ao Brasil, em 1962, retoma o curso de Filosofia. Reaproxima-se dos irmãos, com quem passa a ter ótimo diálogo, muito embora lhes fale de seus projetos literários.

Concluído o curso de Filosofia, em 1963, no ano seguinte viaja para Lüneburg, interior da Alemanha Ocidental, a fim de estudar alemão. Através de cartas de amigos e de familiares, toma conhecimento do golpe militar de 31 de março. Comunica ao Departamento de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP sua decisão de não assumir a assistência da cadeira de Psicologia Educacional no campus de São José do Rio Preto daquela instituição. Ao mesmo tempo, abandona o curso de alemão e decide voltar para o Brasil. Antes disso vai ao Líbano e conhece a aldeia de seus pais.

Começa, em 1965, na Chácara Tapiti, em Cotia, São Paulo, a se dedicar à criação de coelhos. Ernst Weber, que mais tarde se dedicaria, como ele, ao jornalismo, era seu sócio. No ano seguinte Raduan passa a presidir a Associação Brasileira de Criadores de Coelho, ocasião em que promove uma concorrida exposição de coelhos e pássaros no Parque da Água Branca. Continua, no entanto, a se encontrar com o grupo de amigos da Faculdade de Direito, na casa de Hamilton Trevisan, onde discutem política e literatura.

Em mutação constante, encerra a criação de coelhos e funda, com os irmãos, em 1967, o Jornal do Bairro, contando com a participação ativa de José Carlos Abbate, que era o redator-chefe da publicação, e de Ernst Weber, então iniciando sua carreira no jornalismo. Apesar de regional, o jornal dedicava parte de seu espaço a textos referentes à política nacional e internacional.

O escritor faz, em 1968, as primeiras anotações para o futuro romance Lavoura arcaica. Dois anos depois escreve a primeira versão da novela Um copo de cólera e os contos O ventre seco e Hoje de madrugada.

Em 1971 morre sua mãe, Chafika, segundo ele "criadora de mão cheia" de galinhas e perus. Dela lhe veio o gosto por criação de animais. Apesar de não ter fé religiosa, participa em 1972 da leitura comentada que a família faz do Novo Testamento. As reuniões semanais para este fim se entendem ao longo de quase todo o ano. Ao mesmo tempo, ele retoma as leituras do Velho Testamento e do Alcorão (esta iniciada em 1968). A preocupação com temas religiosos irá mais tarde se refletir de modo acentuado em Lavoura arcaica. Escreve Aí pelas três da tarde, que sai como matéria no Jornal de Bairro e anos depois aparecerá republicado como conto em outros veículos.

Em 1973 conhece a professora Heidrun Brückner, do Departamento de Línguas Germânicas da USP, que viria a se tornar sua companheira.

No ano seguinte, por discordar da mudança editorial no Jornal de Bairro, deixa em abril a direção do semanário, que tirava 160 mil exemplares por edição. Sem alternativa imediata, começa a escrever Lavoura arcaica, trabalhando dez horas por dia, até concluí-lo, em outubro. Seu irmão Raja, formado em direito e licenciado em filosofia, é o primeiro leitor dos originais. À revelia de Raduan, Raja tira duas cópias do romance e decide passá-las para amigos. Uma dessas cópias acaba chegando às mãos de Dante Moreira Leite, ex-professor de Raduan na Faculdade de Filosofia, que encaminha os originais à Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro.

Em 1975, com a ajuda financeira do autor, a José Olympio publica Lavoura arcaica.

O livro ganha, em 1976, o prêmio Coelho Neto para romance, da Academia Brasileira de Letras, cuja comissão julgadora tinha como relator o crítico e ensaísta Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde). Recebe, ainda, o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (na categoria de Revelação de Autor) e Menção Honrosa e também Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos de Arte — APCA.

Em 1978 a Livraria Cultura Editoria, de São Paulo, publica Um copo de cólera. A novela recebe o prêmio Ficção da APCA.

Em 1982 sai a edição espanhola de Lavoura arcaica, pela editora Alfaguara, de Madri. Segunda edição do mesmo livro pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro.

A Editora Gallimard, da França, lança Lavoura arcaica e Um copo de cólera num só volume, em 1984. A segunda edição de Um copo de cólera é publicada em São Paulo pela Editora Brasiliense (a 3a. edição sairia em 1985 e a 4a. em 1987). Raduan compra a Fazenda Lagoa do Sino, em Buri, sudeste do Estado de São Paulo e passa a se dedicar integralmente à produção rural. Morre o amigo Hamilton Trevisan, cujo livro de contos, O bonde da filosofia, seria publicado em março de 1985 pela Global Editora, de São Paulo. Numa entrevista ao "Folhetim", suplemento do jornal Folha de São Paulo, Raduan deixa claro que abandonou a literatura: no mesmo número, o jornal publica o conto O ventre seco.

Em 1987 a editora Suhrkamp lança o livro Lateinamerikaner über Europa, uma coletânea de ensaios e depoimentos de escritores latino-americanos sobre a Europa, organizada por Curt Meyer-Clason, que inclui A corrente do esforço humano, de Raduan Nassar.

A revista espanhola El Paseante publica, em 1988, os contos Aí pelas três da tarde e O ventre seco (o primeiro seria publicado ainda na Folha de São Paulo em1989 e o segundo, também neste ano no Jornal do Brasil).

Sai a terceira edição de Lavoura arcaica, em 1989, pela Companhia das Letras, de São Paulo, hoje em sua quarta reimpressão.

Em 1991 é publicada pela Suhrkamp, de Frankfurt, a edição alemã de Um copo de cólera. A segunda edição sai neste mesmo ano.

1992 marca a quinta edição de Um copo de cólera, pela Companhia das Letras, de São Paulo, hoje em sua segunda reimpressão.

Comemorando os 500 títulos da Companhia das Letras, é feita uma edição não-comercial de Menina a caminho.

José Castello, jornalista voltado para livros e autores, teve publicado em 1999 o livro "Inventário das Sombras" (Editora Record - Rio de Janeiro, pág.173), no qual traça o perfil de diversos escritores. Autor de "O Poeta da Paixão", "O Homem sem Alma", "Na Cobertura de Rubem Braga" e "Uma Geografia Poética", assim vê o escritor Raduan Nassar (parte):
(...)
Atrás da máscara
"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior."

Montaigne

Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.

O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.

Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)

OBRAS DO AUTOR
1. Editadas em livro:
- Lavoura arcaica (romance), 1975
- Um copo de cólera (novela), 1978
- Um copo de cólera / Lavoura arcaica, 1980
- Menina a caminho (conto), 1994
2. Em periódicos nacionais e estrangeiros:
- Aí pelas três da tarde (conto), Jornal de Bairro, São Paulo, 16/02/72
- idem, El Paseante, Madri, Siruela, dez. 1988
- idem, Folha de São Paulo, São Paulo, 21/01/89
- O ventre seco (conto), Folha de São Paulo, São Paulo, 16/12/84
- idem, El Paseante, Madri, Siruela, dez. 1988
- idem, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18/03/89
- Eustáquio Gomes - Notas à margem de Um copo de cólera (ensaio), in —, Ensaios Mínimos, Pontes/Editora da Univ.Estadual de Campinas UNICAMP, 1988.
- Afrânio Coutinho e J. Galante Sousa - Enciclopédia de LiteraturaBrasileira, Oficina Literária Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro, 1990
- Brésil: Les belles étrangéres, Paris, Ministère de la Culture et de la Communication, 1987
- La Literature Brésilienne, Paris, L'o&il de la Lettre Groupment de Libraries, 1987
CINEMA:
- Um copo de cólera. Roteiro. Por Aluizio Abranches e Flávio R. Tambelllini, 1995.
- Lavoura Arcaica. Direção e roteiro de Luiz Fernando Carvalho, estrelado por Seltom Mello, Leonardo Medeiros, Simone Spoladore, Raul Cortez e Juliana Carneiro da Cunha. Fotografia de Walter Carvalho. Trilha sonora:Marco Antônio Guimarães. Prêmios: Melhor Contribuição Artística - Festival de Montreal - Canadá - 2001; Prêmio Especial de Júri: Festival de Biarritz - 2001; Prêmio do Público: 25a. Mostra BR de Cinema - São Paulo - 2001; Prêmio Ministério da Cultura - Festival Rio-BR 2001.
Fontes:
- José Castelo - Inventário das Sombras , Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, "Atrás da Máscara"
– Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles. Edição 2. Setembro dr 1996.
– Retrato: Revista Veja. 30 de julho de 1997.

Raduan Nassar (O escritor em Xeque)



Entrevista concedida à Revista Veja, em 30 de julho de 1997.

É um caso curioso, o do escritor paulista Raduan Nassar. Há 21 anos ele tenta fugir da literatura, mas de tempo em tempo acaba enrolado em relançamentos, homenagens e leituras públicas de obras suas. Foi o que aconteceu nos últimos meses. Autor de apenas dois livros, o romance Lavoura Arcaica e a novela Um Copo de Cólera, além de alguns contos publicados aqui e acolá, Nassar, fazendeiro de profissão, é venerado pela crítica literária como um dos melhores escritores brasileiros. A unanimidade a favor é tanta que ninguém percebeu que a ligeira recaída do autor, o conto "Mãozinhas de seda", escrito no ano passado, não é nada mais do que uma "molecagem", como ele próprio o define. Antes de viajar para o Oriente Médio, em companhia do diretor Luiz Fernando Carvalho, que prepara um filme baseado em Lavoura Arcaica, Nassar concordou em falar a VEJA, superando a sua aversão a entrevistas. Ele reafirma que não pretende voltar à literatura e aproveita para verter seu copo de cólera sobre essa tal modernidade.

Veja -- O brasileiro é essencialmente caipira, como acredita o presidente Fernando Henrique Cardoso?

Nassar -- O brasileiro em geral não sei, que não sou sociólogo, mas posso falar de mim. Me sinto caipira se acontece de eu entrar num shopping. Me sinto caipira diante da parafernália eletrônica. Me sinto caipira diante da desenvoltura urbana de certos cidadãos, uma desenvoltura que literalmente me faz mal. Me sinto caipira diante da progressiva impessoalidade nas relações humanas. Me sinto caipira porque sou contra o desperdício e contra essa nova mania do usa-e-joga-fora. Tenho um amigo que vive me dizendo que, se é para ter rádio, eu deveria trocar o meu. Então, também sou caipira por ainda gostar de rádio e por ter o rádio que sempre tive. Agora, se eu disser que não dispenso logo cedo uma boa horinha de música caipira, aí já vão dizer que, se não sou o Jararaca, sou então o Ratinho. Pensando bem, acho que sou o Jararaca. Seja quem eu for, que fique bem claro que me lixo para essa entidade que se identifica com o que está aí e que porta o elegante nome de "homem moderno", que mais parece griffe de moda. Mesmo quando se tranca no banheiro, esse homem está sempre de celular no ouvido, o que é o fim da picada. Aproveito para repetir o que o Carlos Drummond de Andrade disse há uns quinze anos nestas mesmas páginas amarelas: isso não é civilização, isso é uma porcaria!

Veja -- Por que o senhor voltou a publicar e está aparecendo em público?

Nassar -- Meu nome vem circulando nos últimos meses, mas isso não quer dizer que eu tenha voltado a escrever. Literatura para mim é coisa do passado. Não acredito que se possa recuperar aquele impulso vital que leva alguém a mergulhar de cabeça numa atividade. Depois que se perde isso, a gente tem mais é que cair fora. Não se faz literatura para valer com paixão requentada. Mesmo a literatura mais pessimista, aquela que afirma que o nosso mundo é o pior dos mundos, acaba até se desmentindo pelo entusiasmo com que se expressa. Já disseram que a voz sem entusiasmo jamais será ouvida.

Veja -- Mas o seu conto "Mãozinhas de seda" foi escrito no ano passado.

Nassar -- Aquilo foi uma molecagem.

Veja -- Por quê?

Nassar -- Uma molecagem contra mim mesmo, pois dá seqüência à minha inequívoca vocação para o suicídio autoral, como já disseram. No momento em que o seu trabalho está sendo divulgado como nunca, publicar um texto como esse é o mesmo que fazer um esparramo com o ventilador. A hipocrisia de intelectuais, a troca de favores entre eles, o comércio de prestígio, tudo isso não acontece só no Brasil. Não revelei nada de novo em "Mãozinhas de seda", só registrei o que é consenso entre os próprios intelectuais. Os mais inseguros e suscetíveis ficaram ouriçados, começaram a achar que a coisa é com eles, mas o texto não tem endereço certo, não tem CEP, nem nada.

Veja -- Mas não há notícia de crítica ruim a um livro seu. É bom ser unanimidade?

Nassar -- Duvido dessa suposta unanimidade dos críticos. Devem existir inúmeros leitores que não gostam dos meus livros.

Veja -- O que o senhor acha da crítica literária brasileira atual?

Nassar -- Não sei se as gerações de críticos anteriores foram tão melhores, como dizem. Às vezes penso que a crítica literária seria dispensável. Já aconteceu de eu ler autores incensados por críticos de peso e me sentir um completo débil mental por não conseguir enxergar tudo aquilo que eles viram. Acho impressionante essa capacidade de construir edifícios teóricos sobre o nada. Devemos tirar o chapéu para tanta imaginação. A crítica talvez seja importante para divulgar obras que poderiam passar despercebidas, embora a duração de certos livros dependa muito mais do boca-a-boca de leitores anônimos qualificados.

Veja -- As panelinhas literárias fazem parte do jogo ou dá para evitá-las?

Nassar -- Nunca participei de panelinhas, e prefiro não falar nada sobre o seu comportamento. Me limito a lembrar que a Rua Aurora dos velhos tempos em São Paulo, clássica por seus bordéis, seria um templo em comparação a elas.

Veja -- O fato de ter abandonado a literatura não o teria transformado em um personagem fascinante?

Nassar -- Abandonei o curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de letras na universidade, o curso de direito no último ano, a empresa familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos, o jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que só quando abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem fascinante? Não é esquisito?

Veja -- O senhor se sente mitificado pelos críticos?

Nassar -- Quem sabe? O que posso dizer com certeza é que exercício crítico e mitificação não deveriam andar juntos, embora boa parte dos críticos empregue toda sua vida e energia na construção de mitos. É um processo que vem de longe e termina nas escolas. Os autores que constam dos currículos escolares acabam desumanizados, são transformados em pequenos deuses. O resultado disso é que o próprio ato de escrever é sacralizado, quando escrever é uma atividade como qualquer outra. Pessoalmente, fui vítima desse ensino da literatura nas escolas. Tanto que fiz segredo para minha família até as vésperas de eu ser publicado -- tinha receio de que me tomassem por pretensioso. Isso sem falar do massacre que a gente sofria nas livrarias. Era eu entrar numa livraria para achar que não teria nada a acrescentar à montanha de coisas que já tinham sido ditas, o que chegava a me levar a pensar em desistir dos meus objetivos literários. Eu não me dava conta então de que escrever tem muito a ver com história pessoal, muito a ver com exorcizar condicionamentos, fantasmas, demônios e sabe-se lá mais o quê. Nesse sentido, escrever é uma atividade incomparavelmente mais acessível e eficiente do que um divã de psicanalista. Acho até que parei de escrever porque me dei alta na auto-análise que fazia.

Veja -- Como a literatura deveria ser ensinada nas escolas?

Nassar -- Não sei, só desconfio de que ela não deveria ser ensinada como vem sendo. De um modo geral, acho que os professores transferem para os alunos gostos e critérios pessoais, o que acaba formando um rebanho destinado a adorar certos nomes. Talvez se devesse treinar o aluno a pensar com a própria cabeça, a ser ele mesmo na sua relação com as leituras -- supondo-se, é claro, que o professor também conseguisse pensar com sua própria cabeça.

Veja -- Qual a função da literatura hoje, se é que ela tem alguma?

Nassar -- Para quem faz, seria se ocupar em fazer. Para quem lê, se ocupar em ler. As duas ocupações seriam bons recursos para ludibriar a existência, o que não é pouco, sobretudo se se tratar de uma literatura portadora de reflexão sobre a vida. Escritores e leitores de uma literatura assim corresponderiam à parte da espécie que não consegue se ajustar a esse mundo. Uns e outros sairiam da sua solidão na medida em que a leitura promoveria um encontro entre eles. Agora, do ponto de vista de uma função social mais ampla, não consigo enxergar nada com clareza. Pode até ser uma grande inutilidade.

Veja -- O senhor vai ao cinema e ao teatro?

Nassar -- Há muitos anos não vou ao cinema e nem me lembro da última vez que fui ao teatro. Em parte por preguiça, mas sobretudo porque perdi o interesse. Não me faz falta. Acontece de eu ver um filminho em vídeo, mas é raro, e gosto quando vejo. Acho que existe uma oferta exagerada do que chamam de bens culturais. Como as informações passam por produto de maior valor no mercado, isso explica por que existe tanta gente de língua de fora atrás de um grande número delas. Me pergunto se as pessoas são mais felizes assim. Torço para que sejam.

Veja -- E televisão?

Nassar -- Vejo um bocado de TV, talvez por comodismo. Assisto a telejornais e acompanho novelas. No momento, estou começando a engatar em A Indomada. Vi Renascer, por exemplo, com muito interesse. Seu autor, Benedito Ruy Barbosa, se não estivesse na televisão, suponho que estaria escrevendo romances. Boa parte dos bons ficcionistas está hoje na televisão. Curto muito o trabalho de atores, e o Brasil tem alguns excelentes. Falar do Raul Cortez, como Berdinazi em O Rei do Gado, é incorrer num lugar-comum. Gosto também do trabalho daquele jovem, o Selton Mello, que teve seu melhor desempenho em Tropicaliente, com momentos antológicos. Agora, como televisão, o que mais me pegou nesses últimos tempos foi o Brasil Legal, da Regina Casé. A zorra das suas reportagens acaba em um milagre incrivelmente saboroso.

Veja -- Qual foi o último livro que o senhor leu?

Nassar -- Ficou difícil ler alguma coisa nos últimos anos por causa da diarréia antidiscursiva que acabou atacando também a prosa. É uma palavra solta aqui, é outra sem qualquer nexo lá, uma poesia que uma hora é pintura, aí não já não é mais pintura, é música, é eletrônica, é o escambau. Confesso que não tenho recursos e nem paciência. Fico até me perguntando se esses poetas imaginam que o leitor deve se debruçar a vida toda sobre o que eles fazem, para poder sacar alguma coisa. Me pergunto também se não existiria algo de comum entre essa moda antidiscursiva e subnutrição mental. Continuo pensando que as palavras, como os indivíduos, só ganham força quando se organizam ao lado de outras. Mas o desmanche não vem acontecendo só na literatura e nas oficinas de carros roubados.

Veja -- Onde mais?

Nassar -- De uns anos para cá, o mundo perdeu a graça. Depois do desmanche do Leste Europeu, andaram inclusive espalhando por aí que a História também foi desmanchada. Parece que literatura e contexto político nunca andaram tão sintonizados, é desmanche para tudo quanto é lado. Desmanche de estatais, desmanche de amizades, de linguagem. Por sinal, tem poeta vestido com macacão e mecânico de oficina lendo Joyce. Ficou difícil apostar em utopias, acho mesmo que no mundo todo só se pode falar em geléia geral. Mas desconfio de que o motor da História vai se acelerar logo mais com convulsões pela sobrevivência. Afinal, este mundo não foi criado por um deus bondoso, o deus bondoso só reina de fachada -- um mundo como o nosso só pode ser obra exclusiva do capeta.

Veja -- O senhor é um produtor rural insatisfeito?

Nassar -- Não há como não me sentir insatisfeito. Fala-se muito na falta de uma política agrícola, mas tudo não passou de papo-furado até agora. Na minha opinião, a questão agrícola brasileira só será encaminhada quando for alterada a relação entre setor urbano e setor rural. O setor urbano está montado no setor rural, e de nada adiantaria uma reforma agrária sem corrigir essa distorção. Um exemplo: para beber em poucos minutos uma Coca-Cola, o produtor rural precisaria desembolsar o equivalente a 10 metros quadrados de terra. É isso mesmo: na região da minha fazenda, 1 metro quadrado de terra sai por 10 centavos. Passei a converter também em sacos de milho os valores de produtos e serviços urbanos. Você precisa de trinta sacos de milho de 60 quilos para pagar uma consulta médica de meia hora. A conversão que venho fazendo na minha vida pessoal se tornou tão obsessiva que, se vou ao dentista, logo vejo nele um pé de milho. Para não falar das margens de lucro da grande indústria e da atuação do setor financeiro. Mas vamos parar por aqui que acabo saindo do sério.

Veja -- O que o senhor gosta de fazer nas horas vagas?

Nassar -- Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono. É o nirvana!

Veja -- E entre um nirvana e outro, o que haveria para fazer?

Nassar -- Há duas velhas sugestões. "Cultivar o seu próprio jardim", que é a do Voltaire, cínica e pessimista. E a sugestão do poeta Jorge de Lima, fervorosa e otimista: "Há sempre um copo de mar para um homem navegar". No fundo, são dois trapaceiros, pois as alternativas são ilusórias, em qualquer dos casos a gente acaba entrando pelo cano. Bom mesmo é dormir.

Fonte:
Revista Veja. Editora Abril. 30 de julho de 1997.

Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido - Parte Final) Novela em 4 partes



- Fernando: - O melhor é esperares aqui, sossegadinho, enquanto eu vou pôr a "mamã"a casa. Depois, eu próprio, te levarei a tua casa. Mas toma atenção, não te mexas deste sítio, nem um metro sequer.
- Sandro: - Está bem, eu prometo tudo ao “papá”…
- Fernando: - Se não me obedeceres, esfolo-te vivo. Sabes ou imaginas o que é ser esfolado vivo?
- Sandro: - Se sei, é a lei dos "Lobos Maus"!
- Fernando: - Pois, se te moveres desse maple até eu chegar, será aplicada a lei daqui, ou seja a lei do Oeste!

Novamente, em casa da sua amiga Isabel, Margarida, preparava-se, pela terceira vez para se deitar.

Toda a casa se encontrava em desalinho, pois, com a precipitação de levar o Sandrito a São Pedro de Moel, Teresa não fizera nenhuma arrumação à casa.

Já se encontrava na cama, quando a campainha da porta tocou repetidamente. Levantou-se e…

- Margarida: - Quem é?... Quem está a bater a estas horas à porta?...
- Fernando: - Sou eu, o Fernando ou o Josué; já nem sei quem sou. Abra por favor…
- Margarida: - Mas então não acompanhou o avô a Trás-os-Montes?
- Fernando: - Pois não. No regresso a São Pedro de Moel, tive um furo num pneu, o que me atrasou um pouco. Quando cheguei ao hotel, já o avô tinha-se ido embora…
- Margarida: - Ai que pena, fico bastante preocupada…
- Fernando: - Mas o pior, foi o avô ter levado aquele "terrorista"do Sandrito (ou Paulo...) ou lá o que é…
- Margarida: - Aquele miúdo só nos tem dado problemas. E agora, ele é bem capaz de contar tudo ao avô Guido
- Fernando: - Por esse motivo vim cá pedir-lhe que me acompanhe a Trás-os-Montes, a casa do avô Guido
- Margarida: - Mas...eu não o posso acompanhar. Estou aqui em Leiria, em missão profissional, por isso não posso ausentar-me... o telefone está a tocar, pode ser o Augusto. O senhor Josué não se importar, atenda; o telefone que está aí no corredor...
- Fernando: - Com todo o prazer... ...Sim, estou...É sim, é esse número... a Margarida?...Está, está, mas está a descansar … Digo-lhe, sim... Estou a compreender...O casal de turistas americanos, anularam a viagem...muito bem, muito bem...dar-lhe-ei o recado. Boa noite...
- Fernando: - O telefonema era para mim?
- Fernando: - Era sim. Até que enfim que consegui saber o seu nome: Margarida! É um nome bonito, como aliás a dona...
- Margarida: - E de quem era o telefonema?
- Fernando: - Era da agência "Turismo ao Alcance de Todos", para a avisar que o casal de turistas americanos, anulou a viagem à última hora.
- Margarida: - Sendo assim, tenho de regressar imediatamente a Lisboa...
- Fernando: - Impossível!... Tem de me acompanhar a casa do avô Guido... Sabe, estou muito preocupado com o que lhe teria dito aquele endiabrado miúdo. Por favor, não me deixe sozinho nesta altura!
- Margarida: - Mas tem de compreender, se o acompanhar, fico em risco de perder o meu emprego…
- Fernando: - Há muito tempo que preciso de uma secretária e, a Margarida vem mesmo a propósito!
- Margarida: - Eu, sua secretária?
- Fernando: - A Margarida sabe escrever música?
- Margarida: - Infelizmente não sei…
- Fernando: - Que pena! mas...mas sabe escrever no computador?...
- Margarida: - Não percebo mesmo nada…
- Fernando: - Línguas?...
- Margarida: - Só sei dizer em francês, Bonjour ...E em inglês, Yes
- Fernando: - Nada mais?!
- Margarida: - Nada...mesmo nada!
- Fernando: - Pelo menos, terá boa letra?
- Margarida: - É detestável! Até a minha assinatura é ilegível!
- Fernando: - Estupendo! Você tem todas as condições desejáveis. É justamente aquilo que necessito, uma secretária que não saiba fazer nada. Enfastiam-me as secretárias eficientes! Não acha que são insuportáveis?
- Margarida: - Sim, concordo... Bem tentei que não me contrata-se como sua secretária, mas não tive êxito!
- Fernando: - Enquanto a Margarida acaba de se arranjar, vou meter gasolina no carro e, ver a pressão dos pneus e o óleo. Durante a viagem, continuaremos a falar.
- Margarida: - Então até já. Não se esqueça de fechar a porta…
- Fernando: - Margarida, somos amigos, não é verdade?...
- Margarida: - Claro que sim!

Já amanhecia, quando iniciaram a viagem rumo a Trás-os-Montes e, quando chegaram a casa do avô Guido, o Sol já tinha nascido.

Josué Teixeira, parou o carro diante do grande portão e, fez ressoar por duas vezes a volumosa aldraba de bronze, a qual produziu um atroador ruído, ali naquele vetusto casarão, a que não faltava certa beleza.

- Augusto: - Ah, é o menino Josué, estava à sua espera. O senhor Guido, ainda está deitado e, parece que está calmo.
- Fernando: - Augusto, quem vos meteu na cabeça, trazerem o Sandro?
- Augusto: - O senhor Guido não quis esperar. Apenas os senhores saíram dos seus aposentos, teimou em partir, dizendo que não queria incomodá-lo, obrigando a acompanhá-lo. Quando descemos para o hall, encontra-mos o rapaz que se aproximou de nós. O senhor Guido convidou-o a vir com ele, e ele aceitou logo o convite. Resultado, tivemos mesmo que trazer o garoto.
- Fernando: - Mas esta embrulhada nunca mais acaba?...
- Augusto: - Receio bem que não, senhor Josué. Quer subir?... estão os dois no quarto do avô, a tomar o pequeno almoço.

Subiu os degraus em dois pulos, acariciando, ao passar, as faces da velha Elisa, a mulher do Augusto, que lhe dava as boas-vindas.

Ao entrar no quarto do ancião, acalmou momentaneamente o seu nervosismo. Ele estava sentado na sua esplêndida e tão chorada cama de colunas, de mogno escuro. Com a cabeça recostada nas suas almofadas de penas, o Avôzinho tomava café com leite e torradas. Numa mesita instalada junto do leito, Sandrito fazia o mesmo.

O rapazito ostentava no lábio superior uns magníficos bigodes de café com leite, que lhe davam um aspecto cómico.

- Fernando: - Bom dia e bom apetite!
- Sandro: - Olá,"papazinho"!... Bom dia, não quer café com leite?
- Avô Guido: - Vocês são muito teimosos, mas confesso que estava à vossa espera, pois, com certeza que não iam abandonar o vosso querido filhinho, estou certo?
- Sandro: - "Mamãzinha", dá-me mais café com leite e mais torradas, está bem?
- Margarida: - Não comas muito, olha que ficas com dores de barriga...
- Sandro: - Já não tenho dores de barriga!
- Augusto: - Com a precipitação da partida, o senhor Guido deixou os medicamentos, no Hotel, em São Pedro de Moel.
- Avô Guido: - Vocês têm de me darem razão, confio eu num velho tonto como o Augusto, e depois acontece-me destas. Ele, quer ver se eu morro primeiro do que ele, mas não vai ter esse prazer!
- Fernando: - Não diga isso avô, pois, o Augusto é um verdadeiro amigo que tu tens. Não é um criado, é um amigo!
- Avô Guido: - Lérias, lérias...Ele quer é que eu morra primeiro do que ele.
- Fernando: - Não se preocupe com os medicamentos, pois, tenho que ir hoje a Bragança assinar um contrato e trago-lhe os medicamentos.
- Augusto: - Parece-me que esses medicamentos, só se encontram em Lisboa ou no Porto…
- Fernando: - Talvez não seja assim como dizes, Augusto. Avô não se preocupe, pois, hoje à noite, terá cá os medicamentos.
- Avô Guido: - Podes ir Fernando, mas vais sozinho, pois, a tua esposa e o teu filho, ficam aqui ao pé de mim.
- Fernando: - Mas...mas avô, a Márcia
- Margarida: - Podes ir, querido "maridinho", pois, eu ficarei com o nosso querido "filhinho". Depois, regressaremos ambos a Leiria. Como sabes, o Sandrito, anda na escola e não quer perder o ano...
- Sandro: - O que tem, se eu perder mais um ano?... O meu pai diz que eu sou estúpido por feitio e natureza!
- Avô Guido: - Oh Fernando, tu dizes isso ao teu filho?...
- Fernando: - Sim... Sim, eu digo-lhe isso... mas é só às vezes e por brincadeira. Todos nós sabemos que o Sandrito é muito inteligente, e muito aplicado na escola.
- Margarida: - É um dos melhores alunos da escola onde anda.
- Avô Guido: - Tu, Fernando, tens que ter muito cuidado com essas considerações que dizes ao garoto, pois, não podes nem deves desmoralizar o teu filho. O vosso filho, não é, querida Márcia.
- Margarida: - Sim, sim avô, eu, até já tenho chamado a atenção do Fernando, para certos termos que ele usa para com o menino.
- Avô Guido: - E, não se esqueçam que ele é o único filho que vos resta, pois, os outros morreram todos…
- Margarida: - Morreram todos?!
- Fernando: - Pois... os outros morreram todos. Até parece que não te lembras dessas tragédias, Márcia?
- Margarida: - Eu lembrar-me?... Ah, pois...Pois morreram todos…
- Fernando: - Coitadinhos, ficamos sempre muito constrangidos quando pensamos neles. Não chores Márcia, senão também eu começarei a chorar…
- Avô Guido: - E, por cada funeral, paguei cerca de mil euros, fora as flores e os arranjos das campas.
- Margarida: - Pois...pois foi assim mesmo. Mas não quero recordar esses momentos dramáticos.
- Fernando: - Nós temos sofrido muito, Avôzinho... foram desgostos em cima de desgostos…
- Sandro: - Mas eu já tive irmãos?! Não me lembro.
- Margarida: - É que nós, eu e o Fernando, procurámos sempre esconder estes tristes factos do Sandrito
- Fernando: - Bem, como se costuma dizer "barco parado, não segue viagem...", e eu ainda tenho que ir a Bragança e, depois possivelmente ao Porto.
- Sandro: - Posso ir contigo,"papá"?
- Margarida: - Não,"filhinho", tu ficas aqui ao pé da "mamã", pois, o "papá" tem muitas voltas a dar e muito trabalho a fazer.
- Sandro: - Os "papás"são todos a mesma coisa!
- Avô Guido: - Sandrito, vai brincar para o pátio, mas com muito juízo...
- Fernando: - E eu, vou indo. Adeus minha querida "mulherzinha"!
- Fernando: - Adeus,"amor" e boa viagem. Encontrar-nos-emos em Leiria. Um beijo!

Já era noite quando Josué Teixeira regressou a casa do avô, naquela pequena aldeia transmontana. Tocou a albarda de bronze da porta e, o velho criado Augusto, veio abrir-lhe. Ao entrar no grande salão do vetusto casarão, teve uma grande surpresa…

- Avô Guido: - Olha Márcia, o teu querido esposo já chegou!
- Fernando: - Mas, Márcia, ainda não regressou a Leiria?!
- Avô Gildo: - Desculpa, filho, mas eu é que tive a culpa, pois, consegui convencer a tua esposa a ficar. Não te zangues comigo. Também seria inútil regressar, pois, a Márcia está aqui muito a seu gosto, não é verdade, filhinha?
- Margarida: - Assim é, avô…
- Avô Guido: - E até mais, prometeu-me que ficará alguns dias aqui, junto de mim...
- Margarida: - Fizeste boa viagem,"querido"Fernando? Espero que não estejas muito zangado comigo, por me encontrar ainda aqui...
- Fernando: - Como sabes, ou deves de calcular, até estou muito contente por te encontrar aqui, junto ao avô.
- Margarida: - Sabes,"amor", necessitava de um pouco de repouso para os nervos e, esta tranquilidade aldeã, far-me-á bem. Amanhã, mando vir roupas, pois, não posso andar muito tempo com esta. Embora este trajo azul, me fique bem, não é verdade, querido “maridinho”?
- Fernando: - Qualquer coisa, te fica maravilhosamente bem, meu "amor"!
- Margarida: - No outro dia, disseste-me que te enlouqueço, quando visto este azul. Claro que dizes sempre coisas parecidas, qual for o vestido e a cor que envergue... olha, "querido", queres um cafezinho?...faz tanto frio lá fora na estrada, que o café, decerto, saber-te-á bem…
- Avô Guido: - Estou a gostar muito de os ouvir. Fico muito contente que sejas carinhoso com a tua mulher, não posso com os matrimônios que se tratam friamente sem calor e sem amor.
- Margarida - O Fernando sempre foi muito carinhoso. Está sempre a chamar-me diminutivos ternos, como: queridinha, amorzinho, fofinha, etc.…
- Fernando: - Bem!... Creio que o avô deve descansar. Os seus medicamentos estão aqui. Agora, é conveniente ir para a cama descansar.
- Avô Guido: - Eu vou já, vou já. O Sandro dormirá aqui ao lado, e a Elisa já preparou o quarto lá de baixo, para vocês e espero que fiquem lá muito bem. A cama é muito boa.
- Fernando: - Muito bem, avô, ficaremos lá, perfeitamente e quentinhos...
- Avô Guido: - Escuta lá, Fernando, prometes que ficarão cá uns dias?...
- Fernando: - Não sei... Não sei se os meus afazeres profissionais o permitirão…
- Avô Guido: - Se te for impossível pelo menos, deixa-me a Márcia e o Sandrito. Tu podes vir de vez em quando, ver-nos…
- Fernando: - Oh avô, amanhã decidiremos...Agora, dorme tranquilo, pois, bem precisas de descansar.
- Margarida: - Mas. Aonde está o Sandrito?... Já há um bom par de horas que não lhe ponho os olhos em cima…
- Avô Guido: - Não te preocupes, minha filha, pois vamos já saber... Augusto...oh Augusto, onde estás?
- Augusto: - Estou aqui, senhor Guido... Quer os seus medicamentos?
- Avô Guido: - Não, não quero ainda os medicamentos, mas sim saber, onde se encontra o pequeno Sandrito?
- Augusto: - Deve de estar... deve de estar...ou está...
- Avô Guido: - Que mistério é esse? Onde está o rapaz?
-Augusto: - O rapaz estava a brincar no pátio, e depois...o senhor Guido sabe daquela gaiola... a gaiola dos pássaros...
- Avô Guido: - Claro que sei, a gaiola que tem dezenas de pássaros…
- Augusto: -Pois...que tinha dezena de pássaros, mas, o Sandrito abriu-lhes a porta da gaiola e eles fugiram…
- Fernando: - Ai, aquele diabo de rapaz!...
- Avô Guido: - E Augusto, onde está agora o Sandrito?
- Augusto: - Bem, como os pássaros fugiram todos, como já lhe disse...fugiram todos... eu, meti o Sandrito dentro da gaiola!
- Avô Guido: - Como assim, tu fizeste isso?!
- Augusto: - Se abrir aquela janela, ouvirá decerto, o berreiro que ele está lá a fazer dentro da gaiola.
- Avô Guido: - Olha lá, mas porque é que tu meteste o rapaz dentro da gaiola?... Não me digas que estás à espera que ele cante. Traz-mo já cá imediatamente.
- Fernando: - Mas o Avôzinho, precisa de se deitar, para descansar…
- Avô Guido: - Não tentem disfarçar e aliviar a vossa culpa, pois, vocês os dois é que deviam de estar dentro daquela gaiola. Imaginem bem a qualidade de educação que têm dado ao vosso filho! Vão, vão-se deitar, que eu próprio falarei com o miúdo. Vão indo, vão indo…
- Margarida: - Então, até amanhã, avô. Com sua licença vou me vou retirar para o meu quarto…
- Fernando: - Margarida, agora que estamos sós, posso saber porque motivo ainda continua nesta casa, e não regressou a Leiria?
- Margarida: - Se me fala nesse tom, não lhe responderei. Procure ser um pouco mais simpático, o que nem lhe deve ser muito difícil…
- Fernando: - Perdoe-me, Margarida, mas confesso que estou um pouco desorientado. Ocorreram tantas coisas ao mesmo tempo, e este miúdo dá-me cabo dos nervos. Sinto-me responsável por tal escolha, melhor, por toda esta situação.
- Margarida: - Eu só fiquei cá, para não deixar o Sandrito sozinho, pois, o avô fez questão que ele ficasse e, assim, talvez acabasse por comprometer, irremediavelmente esta estranha situação, ao contar ao avô, certas coisas…
- Fernando: - Já estou a compreender tudo, mil agradecimentos e mil perdões, pela minha conduta de há pouco. Estou a ficar refém daquilo que projectei na tentativa em dar ao avô Guido, um fim tranquilo…
- Margarida: - Por favor, não se esforce para se mostrar agradecido. Eu também tenho uma certa quota do que aconteceu e ainda está a acontecer. Sejamos sensatos.
- Fernando: - Não pretendo mostrar-me grato, pois, estou-o na realidade. Mas, sobretudo, sinto-me confuso, porque tenho a impressão de que, no fundo, você está aborrecida comigo, por a ter arrastado para esta situação tão bizarra.
- Margarida: - Não estou, não contra sua. Não vê que me sinto contentíssima, por ter podido ser útil neste processo, sobretudo, ao avô Guido?
- Fernando: - Quer dizer que só entrou nesta estória em atenção à situação do avô? É de agradecer a sua nobre actuação.
- Margarida: - Parece-me que estou a ler certas dúvidas no seu olhar…
- Fernando: - A Margarida, não pode ler nada no meu olhar!
- Margarida: - Engana-se Josué...
- Fernando: - Então, como é tão boa em ler nos meus olhos, deve ler também outras coisas, não é assim?
- Margarida: - Talvez....deixe-me rir!
- Fernando: - Como, por exemplo, que a achei encantadora, desde o primeiro momento em que a vi...
- Margarida: - Talvez.... Não sou feia de todo (segundo dizem) e, já percebi que o seu coração estremece com facilidade, perante os encantos femininos. E o avô confirmou, digamos, essa sua faculdade.
- Fernando: - Você se diverte enraivecendo-me, mas não consegue, pois, não conto zangar-me consigo de maneira nenhuma. Sabe, não há um só "teimoso"… E eu não quero ser teimoso. Adivinha que...
- Margarida: - Desculpe pois, tenho a imaginação muito fatigada pelos últimos acontecimentos, por isso, não posso dedicar-me às suas adivinhas. Vou para o meu quarto, pois, estou a cair de sono…

Margarida despediu-se do Josué com um seco “boa noite”, e penetrou no amplo quarto, mobilado à antiga, mas tão acolhedor e confortável, que parecia dar-lhe as boas-vindas.

Ao centro, viam-se duas camas iguais, cobertas com grossas colchas de seda, já um pouco desbotadas. Riu-se e pensou alto: “Gosto desta casa, pois, é um verdadeiro lar. Ao entrar, recordei logo a minha. Não é que se assemelhem em nada, mas por causa do ambiente, qualquer coisa de "indefinível", que flutua e constitui o espírito das habitações. A cama é macia, mas, mesmo que fosse dura, não daria por isso.

Alguém bate à porta do quarto…

- Elisa: - Dão-me licença, posso entrar?
- Margarita : - Entre, entre Elisa ...
- Elisa: - Tomei a liberdade de lhe trazer uma das minhas camisas de dormir. As noites aqui em Trás-os-Montes, são muito frias, e , embora a flanela seja muito grossa, talvez a senhora não veja inconveniente em…
- Margarida: - Pois claro que a vestirei, e vou ficar até muito quentinha. Muito obrigado Elisa!
- Elisa: - Trouxe também, uma bata e umas chinelas e, também coloquei uma botija de água quente na cama. Terá cobertores suficientes?
- Margarida: - Creio que sim. Dormirei formidavelmente, como uma princesa!
- Elisa: - Não tenha pressa de se levantar cedo, pois, trazer-lhe-ei o pequeno-almoço aqui à cama.
- Margarida: - Que luxo! Muito obrigado, Elisa!

Depois de bater à porta, Fernando (Josué) entrou no quarto para lhe desejar uma boa noite…

- Fernando: Eu vou também fazer soninho. Procure sonhar comigo, Margarida, está bem?...
- Margarida: - Procurarei sonhar consigo e com esta situação. Espero que não se transforme em pesadelo…
- Fernando: - Então, boa noite...querida!
- Margarida: - Que disse... Querida?!
- Fernando: - Como ouviu muito bem. Eu disse "querida", e não retiro uma só letra sequer! Até amanhã e boa noite!

Passados breves minutos, novamente bateram à porta…

- Fernando: - Márcia, Márcia!...
- Fernando: - Quem está a bater à porta?...
- Fernando: - Sou eu... o Fernando... abra a porta por favor!
- Margarida: - O Fernando?! Mas o que é que você quer?!
- Fernando: - Ora...o que hei-de querer, querida “esposa”?... entrar no nosso quarto para me deitar…

Ela saltou da cama, compreendendo logo que ocorria, qualquer coisa fora do vulgar. Embrulhou-se na enorme bata que a Elisa lhe tinha emprestado e abriu a porta. No limiar, apareceram à sua frente, o Fernando, terrivelmente confuso, igualmente vestido com um roupão e um pijama e, atrás dele, o avô Guido, com a sua inseparável bengala e um olhar trocista…

- Avô Guido: - Queria convencer-me de que vocês estão bem instalados, e assim, desci em pessoa, para verificar com os meus olhos... Só não compreendo que faz este maroto, que ainda não se deitou, ao lado da sua bela esposa?...
- Fernando: - Ia, deitar-me...agora mesmo, avô...
- Avô Guido: - Anda, deita-te e fica caladinho. Mete-te já na cama, pois, quero aconchegar-te a roupa, como fazia quando eras pequeno...
- Fernando: - Mas, avô... Eu ainda tenho que fazer ginástica junto à lareira…
- Avô Guido: - Ginástica, a estas horas e junto à lareira?...
- Fernando: - Sim, sim...é um hábito já muito antigo, sabe?... Faço-o sempre antes de deitar-me…
- Avô Guido: - Palhaçadas!... Deixa-te de tolices e, vai já para a cama, vá que já é muito tarde e está muito frio…
- Fernando : - Mas...Avô, tente me compreender…
- Avô Guido: - Não estou a compreender mesmo nada. Tira o roupão…Assim... gora mete-te debaixo da roupa. Gosto muito que ainda sejas obediente. Agora, aconchegar-te-ei e ficarei mais tranquilo, e depois, mando o Augusto retirar a cama que não vai ficar ocupada. … Augusto e Elisa, retirem esta cama para a arrecadação!
- Fernando: - Pronto, pronto avozinho, já estou na caminha junto à minha querida esposa...já se pode ir embora descansado...
- Avô Guido: - Estou a ver, estou a ver… boas noites, meus filhos. Levo a chave, para os deixar fechados, caso contrário, estou certo de que amanhã, quando eu me levantasse, a "gaiola"estaria vazia. Bons sonhos, meu filhos queridos filhos!...
- Fernando: - Avô!...não feche a porta...Avô...Avô...Avô!...
- Margarida: - Augusto!...Elisa!... por favor, abram esta porta!
- Fernando: - Augusto!...demónio de homem parece que é surdo!... Augusto!...Vou dar um pontapé nesta porta...ai..ai..ai...que magoei o meu pé...
- Margarida: - Isto é completamente absurdo! É ridículo! Como eu fui capaz de me meter numa trapalhada destas!
- Avô Guido: - Não gritem, nem batam mais na porta. Que grandes idiotas que vocês são! Pensavam assim poder enganar o avô, sem vergonha nenhuma! Vou abrir a porta para podermos falar…
- Fernando - Avô, engana-lo como?... Sinto-me envergonhado…
- Avô Guido: - Naturalmente ser velho, não quer dizer que seja idiota. Vejo muito mal, estou muito surdo, mas nunca confundiria o meu neto verdadeiro com o seu meio-irmão. Que farsa vocês urdiram, pensado em enganar-me…
- Fernando: - Então quer dizer que?...
- Avô Guido: - Que, se te confundi por momentos…isso foi de curta duração, e apenas enquanto a minha cabeça não regulava bem, logo a seguir ao ataque do coração...depois comecei a compreender tudo o que me estavam a fazer, ou seja, a armarem-me em parvo. Comecei a averiguar a grandeza da minha desgraça. Logo que regressei a casa o meu advogado avisou-me o meu neto tinha morrido.
- Fernando: - Avô, tente compreender, eu queria evitar-te um grande desgosto…
- Avô Guido: - Bem sei, Josué, nunca deixaste de me querer muito. Desde muito pequeno, que foste sempre o meu verdadeiro neto. Fui a Leiria, impulsionado pela curiosidade e, também para te criar dificuldades e divertir-me um pouco, assim, como também ao idiota do Augusto. Perdoa esta travessura de velho, mas vocês são uns cretinos... querem enganar-me, a mim, a mim, o Guido Ribeiro, transmontano dos quatro costado!
- Augusto: - Senhor Guido, não se excite assim, deve ir deitar-se e procurar descansar....
- Avô Guido: - Cala-te, mentecapto. Tu és o pior de todos! Julgavas-te mais esperto do que eu?! Pois, saíram-te as coisas ao contrário, cabeça de pardal! Julgavas tu que eu não reconhecia o menino Josué?... Como vês, de nada serviu armarem esta comédia grotesca. Isto também é contigo, pequena linda…
- Margarida: - Perdoe-me, senhor Gildo. Encontrei-me metida neste caso sem ainda compreender como e porquê.
- Avô Guido – Cala-te, cala-te, pois não preciso de explicações. Não me enternecerás com a tua cara bonita e a tua voz de rolinha mansa. Ora, não te armes em "mosca morta", pois nem merece a pena.
- Fernando: - Escuta, avô a Margarida é…
- Avô Guido – Ah, se chama Margarida e não Márcia! E esse tão "bonitinho" rapaz (como é o nome dele?) onde é que o arranjaste?...
- Fernando: - É filho da…
- Avô Guido: - Compreendo. E aquela engraçada “cunhadita” que dançava tão desajeitadamente?...
- Fernando: - É, a...
- Avô Guido: - Muito me ri...ri de vocês! Sobretudo de ti e da tua linda noiva, Josué. Suponho que seja tua noiva... não o podem negar, pois, até parecem mesmo uns pombinhos... comem-se um ao outro, com os olhos…
- Margarida: - Nada disso, senhor Guido, nada disso!
- Fernando: - Ainda...não é minha noiva.
- Avô Guido: - Ainda não é?... Então do que estás tu à espera? Não me digas que ainda não te declaras a ela. Porquê, meu filho, estás com medo de seres recusado ou com vergonha?
- Fernando: - É que não me atrevo a…
- Avô Guido: - Pois, atreve-te grande tolo me saíste...Não vês que ela não deseja outra coisa. Que te ama?...
- Fernando: - Avô, compreende... A Margarida é a melhor pequena que eu conheci... prontificou-se a ajudar-me, simplesmente por bondade. Nunca conheci outra como ela. Mas o caso é que...Margarida é... seria... enfim, a definitiva!
- Margarida: - Josué, por favor, não faca mais confusão na minha cabeça.
- Avô Guido: - Ai...o meu remédio, Augusto... Sofri muito, estes dias. Mas, agradeço-te, filho, pois embora não sejas o Fernando, quero-te como se o fosses.
- Margarida : - Sente-se mal, avô?
- Avô Guido: - Não pequena, só estou um pouco cansado…
- Augusto: - Vou chamar o já médico!
- Avô Guido: - Não...não é preciso...já está a passar. Sofri muito com a morte do meu neto, mas, foi Deus que assim o quis. Não te assustes, pequena, pois, em breve estarei melhor... Margarida, é um nome bonito e, tu és muito bonita... olha lá porque estás a choras? Olha filha, limpa esses belos olhos. Mereces ser feliz, porque tens bom corarão, e o Josué também, aliás, sempre o teve desde criança. Hão-de ser muitos felizes e terão filhos bonitos. Mais bonitos do que esse "demónio", que está para aí; como é que se chama esse "ranhoso"?... Quero saber o nome verdadeiro.
- Margarida: - Chama-se Paulo…
- Avô Guido: Ele é muito esperto (embora não seja inteligente) pelo caminho, contou-me histórias muito divertidas. Gostaria que ele ficasse aqui mais uns dias... faz-me rir...Eu... Eu…
- Fernando: - Olhe, o avô adormeceu. É o melhor que nos podia ter acontecido. Está esgotado, coitado do avô Guido, vou pôr-lhe uma manta por cima...
- Margarida: - Vou aproveitar o fato do avô estar a dormir, para me ir embora. Embora me custe bastante, não me despedir dele. É tão bondoso!
- Fernando: - Se é esse o teu desejo, Margarida…
- Avô Guido: - Mas qual desejo... Mas qual desejo, qual carapuça. Estou mesmo a ver que já não se pode descansar um pouco... Seus finórios... Augusto, Augusto...Dá-me a minha bengala…
- Margarida: - A bengala, avô?...
- Avô Guido: - Sim, a bengala. Era o que vocês precisavam, apanhar ambos com ela. Não têm vergonha de gozarem e fazerem pouco de um pobre velho?
- Fernando: - Mas, avô compreenda por favor...
. Avô Guido: - Cala-te!...Augusto, ajuda-me a levantar...Agora, dá-me aquelas chaves do quarto…
- Margarida: - Mas o avô vai-nos fechar novamente, aqui dentro do quarto?... Nem quero acreditar.
- Fernando: - Mas, avô escute-me por favor!
- Avô Guido: - Calem-se, calem-se por favor. Olha que apanham mesmo com a bengala. Ficam aqui fechados até se declararem um ao outro, e não demorem muito. Deitem-se, deitem-se já, pois, a noite é, e têm muito tempo de falarem do que me tramaram. Boa noite e acordem muito bem dispostos e com as consciências limpas. Não preciso de mais desculpas de vossa parte.

Ao sair do quarto depois de fechar a porta à chave, encontrou o Sandro no corredor…

- Sandro: - Olá avozinho, andava mesmo à sua procura, pois a cozinha está fechada à chave…
- Avô Guido: - Olha "netinho"…Vai mas é chamar avô a outro!...

FIM

Fonte:
Colaboração do autor.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Pablo Neruda (Saudade)


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
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Fonte:

domingo, 9 de maio de 2010

Trova 145 - Barreto Coutinho (Limoeiro/PE)

Nelson Saúte (O Marido Deixa-Andar e a Mulher Furiosa)



A mulher estava farta do marido deixa-andar. O homem não tinha como mudar. Todos lhe passavam à frente. Na rua olhavam-no desdenhosos. Até o panhonho da esquina comprara um carro. Ele, nada. Os filhos dos vizinhos andavam em escolas privadas, pavoneavam-se. O marido dela nada persistia na desgraça. Passara o tempo da balalaica, o que dera nele? Agora, quando todos estavam a evoluir, ele persistia. Quando lhe indagava, ele respondia, sussurrando:

- Eu sou coerente.

- Mas marido nós vamos comer coerência aqui em casa?

A verdade é que não faltava comida em casa. Esse era o argumento. Os filhos iam à escola pública. Por vezes não tinham carteiras, sentavam-se no chão. Os vidros eram partidos, as casas de banho fediam. Mas isso não era culpa do Estado. Quem vandalizava?

O homem não perdia a fleuma. Explicava com bons modos que ele não entrava na onda do novo-riquismo, não praticava nenhum tipo de falcatrua para enriquecer. Não iria satisfazê-la a todo o custo. Acreditava no mérido. Persistia no trabalho. Afinal, um homem de valores.

- Marido tu não queres evoluir mesmo!

- Até pode ser.

Ela foi previsível. Foi-se embora. Abandonou tudo: a casa, os haveres corroídos pelo tempo, os filhos assombrados com o infuturo, o marido. Aquilo que poderíamos chamar família.

Ele ficou com os filhos, continuou o mesmo. Ela vigiava-o. Ia sabendo do homem à distância ou através dos filhos. Quando queria dizer o que quer que fosse do pai, os filhos reprovavam com olhar. Ou diziam apenas:

- Mãe.

Nem ela, nem ele se engajaram noutra relação. Estavam separados. Mas algum os unia. Algo de invísivel.

Um dia soube que ele tivera direito a um carro de alienação no serviço. Era bom técnico e ganhou essa benesse.

A mulher ficou furiosa.

- O sacana enquanto esteve comigo nunca me quis dar um carro. Agora, que está sozinho anda de carro?

Num desses dias, ela abeirou-se da casa que habitara e munida de paus e pedra desfigurou o carro, descarregando sobre ele toda a sua bilis. O homem ouvia um barulho esquisito lá de dentro e vozes que se avolumavam. Saíu ainda de pijama e se defrontou com aquele insólito.

A mulher tresloucada à porta de casa, derrubando o carro novo. Como sempre, um grupo de vizinhos curiosos, que murmuravam.

O homem olhou para a mulher e não conseguiu pronunciar uma palavra que fosse. Estava incrédulo.

Ela fixou-o com aquele seu olhar felino, que o fazia estremecer, e disse, antes de irromper numa convulsão dos diabos:

- Toda a vida eu quis uma vida melhor. Agora que me fui embora é que compras um carro? Não, eu não vou permitir que vivas bem sem mim!

O homem caminhou em direção da mulher e amparou-a num abraço, abriu ala no meio dos que se aglomeravam e levou-a para dentro de casa.

Lá fora, ficou o espanto dos que assistiram à inusitada cena e um carro completamente espatifado.

Fonte:
http://www.pnetliteratura.pt/