segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 03

 

Aparecido Raimundo de Souza (Quando as águas do nosso rio interior viram mar?)

A TERRA É COMO o barro. E o barro é encosta, morro e nuvem e é também céu. Deus é o Soberano Espírito como é amor e amor é algo como Deus: não morre nunca, é eterno, sagrado, reluz e resplandece. Celebra em nosso corpo uma concretude interrelacional que é a alma e o espírito fundidos num só corpo e inseridos harmoniosamente no planeta em que vivemos. O título acima é por demais sugestivo e nos leva a questionarmos a nós mesmos. E mais que isso, a nos fazer pensar: quando as águas do nosso rio interior viram mar? Basta estarmos em paz. Melhor dito, deveríamos todos estar em paz.

A paz nos renova, nos conforta, nos reanima. Faz com que todos vivamos em sintonia meridiana com a Natureza. Cultivar a Natureza é agricultar (1) a graça e hortar (2) a graça é ter a quietude e a mansidão para um trilhar e um caminhar prósperos. Elevar o espírito à patamares nunca visitados nos acarreia (3) para bem longe das intempéries, Por conseguinte, não deveríamos ser prolixos, nem nos deixarmos vencer pelos muitos vícios que nos arrastam para o buraco. O buraco, às vezes é raso. Em outras, nos deixa aprisionados e sem volta. Precisamos acreditar piamente num amanhã melhor. Um porvir que revigora.

O simples acreditar, nos fortifica, nos consola e nos vitaliza por dentro. Sem mencionarmos o fato de que edificados por dentro, tudo se torna menos mal e proveitosamente mais saudável. Abonarmos de coração aberto e com Fé naquilo que está por vir, faz com que todas as coisas sejam possíveis e querençosas (4), aprazentes (5) e alcançáveis, bastando apenas que lutemos com perseverança e afinco, força de vontade irrestrita, e, sobretudo, obstinação incondicional. A teimosia (ou repetindo, a obstinação) e a contumácia, precisam ser esmeradas e literalmente obcecadas. O amor é por excelência, a ponte fixa e indestrutível que nos levará ao sucesso, que nos unirá ao futuro e, via igual, afastará de nossas vidas as horas más e repletas de melancolias.

Não existirá nada rotulado de “ruim” ou de “péssimo” para o nosso corpo, se não quisermos, assim como não criará vida as perniciosidades, se estivermos abertos somente para as “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS”. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” estão ao nosso redor, quase nos atropelando. Carecemos, sem mais delongas, afastar o que nos tira o tino, a rota, a bússola, enfim, tudo que atravanca e que, de alguma forma, direta ou indiretamente nos distancia do foco e nos impede de agarrá-las pelos cabelos. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” precisam, ou melhor, devem ser agarradas pelos cabelos.

Mesma linha, sem nós ou amarras, deveremos abrir agora, nesse momento, todas as portas e escancararmos as janelas do mais profundo da alma para os fluídos renovadores que vêm do espaço, objetivando que eles se acheguem e em nós façam morada. A nossa alma é a morada do Pai Maior. É a segunda Casa do Altíssimo. Para que tal milagre se faça concreto, basta unicamente que saibamos destravar as Entradas do Universo pessoal que está presente em cada um de nós, deixando que eles entrem e se espalhem e não só espalhem, ESPELHEM o que o Criador de todas as coisas nos deu e continua nos ofertando de presente, de grado vivificante, a cada novo amanhecer, sem nada, absolutamente nada, nos pedir em troca.
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Notas de rodapé:
1 – Agricultar – Trabalhar com agricultura. No sentido do texto, cultivar a graça.   
2 – Hortar – Lavrar a terra, preparando o chão para qualquer tipo de plantação
3 – Acarreia – Outro modo de dizer conduzir ou mostrar o caminho a ser seguido.
4 – Querençosas – Tudo aquilo que se torna benévolo, afetivo ou benigno.    
5 – Aprazentes – Coisas agradáveis que deleitam ou satisfazem.


Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 8 -


CINDERELA

"Como o lírio entre os espinhos é minha amada entre as donzela."
(Ct. 2.2)


Há tanto desengano que me intriga,
Que, não poucas vezes, me castiga
Sem nenhuma piedade.
Meu refrigério de consolação
E saber onde está meu coração,
Por quem vale a saudade.

Como posso viver sem esse amor?
Só nele encontro todo meu vigor
E paz na solidão.
És a minha princesa desejada,
Encantos raros de afetuosa fada,
Grande amor e paixão.

Busco-te muito! - Almejo teu olhar,
Que, apaixonado, amor quer encontrar
Pra saciar seus desejos...
Do meu caminho clara luz, vem logo!
Não mais demores! Escuta meu rogo!..
- Terás milhões de beijos.

Beijos de cavalheiro apaixonado,
Beijos ternos de um príncipe encantado
Por sua princesa bela.
A vida é breve! Veloz é o tempo!
Em pensamento, eu sempre te contemplo,
Ó minha Cinderela!
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DÁDIVA DE AMOR
"O perfume das tuas vestes é como o perfume do Líbano."
(Ct 4.11)


Pra você, meu amor, mais este dia...
Que ele seja repleto de poesia...
Da primavera dou-lhe seu sorrir
E dos jardins, canteiros a florir.

Pra você, meu amor, todo perfume...
Da mais brilhante estrela dou-lhe o lume;
Aos seus pés, com carinho, quero por
Tudo o que vá lhe dar muito louvor.

É certo que das flores a fragrância
É menor que o aroma da elegância
De você recendendo, sem cessar,
Enchendo de perfume todo o ar.

O brilho, eu bem sei, do seu olhar
É capaz de uma estrela ofuscar;
Mas o que lhe ofereço, com ardor,
É tão-somente amor e mais amor.
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Lume: Luz, clarão, brilho.
Fragrância: Cheiro suave, perfume, aroma.
Recendendo: Espalhando, emitindo, exalando (forte aroma).

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MEU SER
"o amor é a fortaleza que levanta sobre mim."
(Ct.2A)


Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.

Amo-te como ninguém na vida,
Quero-te tanto, bem mais que ao mundo
Esta semente, n'alma nascida,
Cresceu, cresceu - é o amor profundo.

O amor é imenso e arde em minh'alma,
Mas é, contudo, meu lenitivo;
És o que tenho - minha doce palma -
E isso é o tudo pelo que vivo.

A vida é bela te amando assim,
Na luz do dia, sonho feliz;
Quem dera ter-te bem junto a mim,
Daquele jeito que eu sempre quis.

Em cada hora deste meu tempo,
Nestes minutos do meu viver,
Eu peço às nuvens, imploro ao vento:
Daqui me levem, lá está meu ser!

Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.
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Lenitivo: Conforto, alívio, consolação.
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O SUPER -HOMEM
"És toda bela, minha amiga, em ti não há mancha alguma." (Ct. 4.7)

Quisera ter feroz força do leão
E o rugir impetuoso do trovão,
Que apavoram, de vez, a natureza;
Na verdade, eu seria um super-homem,
Que haveria de ter grandioso nome,
Só para proteger-te, com certeza.

Quisera ter a cauda da baleia
E ser o teu escudo, ó sereia,
Que me atrai com o timbre da tua voz;
Dispensaria arpejos de instrumentos,
Teria meus ouvidos bem atentos
Somente pra te ouvir - te ouvir a sós.

Quisera ter do vento a rapidez
E te levar comigo, de uma vez,
Para o mistério espacial estrelado;
Bem longe deste mundo, sem preceito,
Terias vida longa, em novo leito,
E o imenso amor de eterno namorado.

Na galáxia, só feita de quimera,
Contigo, meu amor, eu bem quisera
Criar indescritível paraíso;
Meus olhos, co'a visão do teu fulgor,
Veriam a grandeza deste amor,
Estampada na luz do teu sorriso.
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Sereia: Fig- Mulher sedutora.
Timbre: Marca, sina, qualidade de voz.
Arpejos: Modulação prolongada, sucessiva e rápida, dos diversos sons de um compasso num instrumento musical.
Preceito: Regra de proceder, ordem, prescrição.
Quimera: Ilusão, fantasia, ideia sem fundamento.

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Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (O Ladrão)

Quem lê os jornais desta capital, tem a impressão de que a arte que mais tem progredido, é, no Rio de janeiro, a arte de furtar. Os feitos da gatunagem são, realmente, aqui, tão numerosos e frequentes, que se fica supondo, ao examiná-los, que os nossos gatunos são homens inteligentíssimos, capazes de ludibriar o resto da população.

O caso não é, entretanto, este. Os gatunos não progrediram, não acrescentaram uma página, sequer, ao famoso compêndio do padre Antônio Vieira. O que sucede é coisa diferente: a população ingênua, ou incauta, foi que se tornou mais incauta ou mais ingênua tornando, assim, mais fácil do que outrora, a infração do sétimo mandamento. O caso do comissário Francisco Ambrósio é, mais ou menos, uma viva demonstração dessa verdade.

Funcionário policial de uma argúcia surpreendente, Francisco Ambrósio de Oliveira era apontado em toda a parte como um legítimo espantalho da gatunagem urbana. Não havia meliante, malandro ou desordeiro que ele não conhecesse. O seu faro de perdigueiro, auxiliado por uma perspicácia digna de Sherlock Holmes, constituía, pode-se dizer, o melhor elemento de repressão de que, até hoje, dispôs a policia.

Certa noite, porém, ao entrar, de regresso da ronda, na sua própria casa, ouviu Francisco Ambrósio, de repente, movimentos de gente estranha no pavimento superior. Cauteloso, habituado a essas experiências da própria coragem, galgou, três a três, os degraus da escada, até que observou, espantado, que o visitante noturno se havia homiziado no seu quarto de dormir. Ao abrir o compartimento sofreu, no entanto, uma decepção: a única pessoa que ali se achava era D. Luisinha, a qual, ao escancarar-se a porta, pulou, assustada, da cama, sem saber do que se tratava.

O faro policial é, felizmente, uma virtude que se manifesta contragosto, mesmo, de quem a possui. E assim foi que, sem custo, Francisco Ambrósio descobriu, impondo silêncio com o dedo indicador estirado sobre os lábios, que havia um gatuno debaixo da cama.

- O gatuno está ali debaixo! - rosnou, convicto, ao ouvido da mulher.

E em voz alta, arrancando o revolver do bolso traseiro da calça:

- Quem está aí?

D. Luisinha tremeu, pela sorte do marido.

- Quem está aí? - gritou, de novo, o comissário.

E ia perguntar pela terceira vez. quando a moça, temendo que o ladrão lhe saltasse sobre o esposo, segurou a autoridade pela manga do paletó, puxando-a para fora do quarto, ao mesmo tempo que aconselhava, amorosa:

- Deixa disso, Francisco. Ele, que não responde, é com certeza, porque não é conhecido...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

domingo, 18 de setembro de 2022

Adega de Versos 91: José Antonio Jacob

 

Nilto Maciel (Lampião à Italiana)

Ruggero Figini descobriu o Brasil em 1974. Desembarcou na Bahia e logo tratou de conhecer o Pelourinho. Porém queria muito mais que acarajé e candomblé. Cobiçava um papel no filme Dona Flor e seus dois maridos. De preferência o de um deles. Procurou Bruno Barreto. Talvez estivesse no Rio de Janeiro. E Sônia Braga? Ninguém sabia dela.

Lembrou-se do tempo das filmagens de I Girasoli. Nunca esperara ser trocado por Mastroianni. Desesperou-se, arquitetou escândalos. Imaginou até uma agressão física a De Sica.

Desde menino Ruggero sonhava nos braços das mais belas mulheres da Itália. Um dia ainda contracenaria com Claudia Cardinale, Silvana Mangano, Monica Vitti, Virna Lisa. E ainda escolheria o diretor. Fellini com fulana, Visconti com sicrana, Antonioni com beltrana. E alcançaria o Oscar. Mais de um. Seria famoso no mundo inteiro.

No entanto, os anos se passavam, as atrizes envelheciam, e só lhe sobravam pequenas atuações em filmes medíocres.

E por que não se fazer cineasta? Tudo dependia de encontrar um belo roteiro. Logo alcançaria a fama de Rosselini, Pasolini, Bertolucci. Fossem para o inferno Arnaldo Jabor, Bruno Barreto, Cacá Diegues e todo o alfabeto do cinema brasileiro. Sim, iria dirigir um filme monumental: a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Em italiano o título seria Il Lampione.

Restava encontrar o roteirista. E por que não o já velho amigo Airton Acaiaca? Até porque Airton e Virgulino haviam nascido no Ceará. “Não, Ruggero, Lampião não era cearense. Nem Airton. E onde nascera o roteirista? “Dizem que é mineiro, se não for baiano”. O italiano concluiu: “Melhor assim. Filmaremos em Canudos”. E pôs-se a falar de Antonio Conselheiro.

Para Ruggero, o Lampião do roteirista mais parecia um gângster, um Al Capone. E terminaram se desentendendo. O cineasta chamou Airton de incompetente. Não conhecia a História de seu próprio povo. O brasileiro também não se conteve: “Aventureiro, ator fracassado, impostor”.

Dias depois dessa rusga Ruggero Figini regressou a Roma. Não levava nada, a não ser o roteiro de Acaiaca.

Il Lampione alcançou enorme sucesso na Europa. Não teve, no entanto, a direção de Ruggero, que preferira vender o roteiro a um produtor cinematográfico.

Uma fortuna.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLVII

INSÔNIA

 
MOTE:
Na mais estreita amizade,
sem a menor cerimônia,
à noite, tua saudade
vem deitar com minha insônia!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Na mais estreita amizade,
numa amizade tão pura,
unem-se à minha ansiedade
lembranças só de ternura.
 
E a saudade, de repente,
sem a menor cerimônia,
se coloca em minha frente
como conselheira idônea.
 
Revivo, então, na verdade,
velhos dias de alegria...
À noite, tua saudade
vem me fazer companhia...
 
Sentindo-me, assim, amado,
numa beleza-fitônia,
tua saudade, ao meu lado,
vem deitar com minha insônia!
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   ... SE MORRESSE A SAUDADE?
 
MOTE:
... E se morresse a saudade?
Fatalmente eu morreria...
Pois, é esta doce maldade
o alimento do meu dia!
Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:

... E se morresse a saudade?
O que seria de mim?
Acho que a fatalidade
seria mesmo o meu fim!
 
Se a saudade fosse embora,
fatalmente eu morreria...
pois com ela, sem demora,
iria junto a alegria!
 
Amo a saudade, é verdade,
ela faz bem a minha alma,
pois, é esta doce maldade
que me faz feliz e acalma!
 
Hoje, são as esperanças
que mantêm esta utopia...
São minhas doces lembranças,
o alimento do meu dia!
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   POETA FINGIDOR
 
MOTE:
O poeta é um fingidor
finge tão completatente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

GLOSA:

O poeta é um fingidor
e tem emoções de artista;
nos seus olhos só de amor
há um fingimento altruísta!
 
Se está triste de verdade,
finge tão completamente,
que mostra felicidade,
sem nem mesmo estar contente!
 
Suspira sem sentir dor,
ou chora e a sente gemendo,
que chega a sentir que é dor
aquela  dor que está tendo!
 
Segue, assim, no seu fingir,
num fingir tão inocente
que,  às vezes, chega a sentir
a dor que deveras sente.
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   SEGUNDA VOZ
 
MOTE:
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:

A vida pôs, por maldade,
entre nós dois, um adeus...
e nessa triste verdade,
marejam-se  os olhos meus!
 
Eu não consigo aceitar
tanta distância entre nós,
quero e preciso sonhar,
pois nos tornamos dois sós!
 
A nossa realidade
é tão triste, tão sem fim,
que, quando eu canto, é a saudade
que canta dentro de mim!
 
Meu canto é quase um lamento
e é essa saudade atroz,
cantando na voz do vento,
que faz a segunda voz…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

Sammis Reachers (Casemiro, O Profeta)

Impossível coordenar no mesmo período os termos Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro elemento que completa a equação: Profeta. Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro. Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam que tivera esposa, que aparentemente abandonara o coitado.

Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes completavam o arquétipo do eremita: shortões ou calças puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido. Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande, mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo.

Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo bem que poderia ser confundido com um elemento antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no agreste do país. Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério que, ao menos para as crianças da época, o envolvia: Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador profundo, e dizia:

– Você não ia entender, garoto...

– Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta.

– Garoto, isso está muito além de sua mente de criança. Sabe, eu vejo mundos...

– Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos.

– Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para entender. São mistérios...

Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo. E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu feijão mágico em minhas terras férteis.

Pois bem, as primeiras experiências de mercar reciclagem de todos os moleques do bairro começaram com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos feministas de igualdade laboral, até meninas se apresentavam naquele entreposto para vender ferragens e garrafas!

Recordo de que era comum na época catarmos ferro e latas principalmente. Essas hodiernas embalagens plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E, como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia havia um lixãozinho a céu aberto.

Chegando diante do ferro-velho do Profeta, um ritual se estabelecia: Apanhávamos alguns soquetes bem pesados, feitos de barras de ferro, e nos púnhamos a amassar todas aquelas latas, uma barulheira infernal. Como o produto era pouco, pouquíssimo valorizado, e nossa carestia era grande, recorríamos a um subterfúgio que, acredito, sempre foi e ainda é praticado em todo o grande mundo: Colocar pedras dentro das latas para que, depois de amassadas, seu peso aumentasse. Ah, doce esporte!

Mas tal subterfúgio nem sempre redundava em logro: Se Profeta, apanhando uma das latas a esmo e a balançando, percebesse o engodo, mandava recolher todo o conteúdo que já estava em sua balança e “ir vender em outro lugar”. Era preciso apuro para amassar bem amassadas as latas com pedras, e não colocar pedras em todas, é claro.

Certa feita, a engenhosidade maléfica de Renato teve uma inspiração, um insight criativo, o qual ele comunicou a uns cinco ou seis moleques da rua. Acontece que a casa de Profeta era protegida não por um muro de alvenaria, mas por um emaranhado de chapas de lata, arames e paus entrelaçados. Um quiprocó dos carambas, que lembrava até algumas obras de arte modernas que eu viria a conhecer. Mas, dentre aquele emaranhado muito bem urdido, Renato percebera uma lacuna. Sim, uma chapa de lata que, se corretamente forçada, daria entrada naquele quintal, ainda que fosse pelo menos a uma criança menor que nós.

O que se seguiu foi vergonhoso, mas julgávamos apenas estar empatando o jogo, pois as balanças de Profeta eram algo suspeitas de sempre “roubar para a casa”, ou a banca, outra prática de universal valência...

Toda noite, íamos até aquele ponto da cerca e, forçando silenciosamente a lataria, embutíamos um dos pequenos para dentro – em geral um dos irmãos menores de Renato, Aguinaldo (“Guinaldo”) ou Ricardo (“Cado” ou “Cadim”). Os pequenos safardanas então surrupiavam o que podiam – garrafas e garrafões, pedaços de alumínio que porventura Profeta houvesse esquecido “do lado de fora”, já que os materiais de mais valor eram guardados dentro de casa, e até ímãs. E, no dia seguinte, lá íamos nós... revender as peças para ele mesmo, Profeta.

Lembro que nos regozijávamos com aquilo, acreditando sermos os maiores malandros de todo o orbe terrestre. Dinheiro fácil e justiça, a desejada justiça, feita contra aquelas balanças viciadas em infidelidade!!!!

Mas a alegria durou pouco. O velho, mesmo com todo aquele traquejo de lelé da cabeça ou doidivanas, certo dia nos disparou, na lata:

– Ei, esse ímã aqui não é meu, não?

Antes que pudéssemos negar, o raciocínio daquele misantropo correu rápido como numa visão, e ele imediatamente associou todas as nossas vendas dos dias anteriores a desfalques – agora ele entendia – em sua própria firma.

O resultado: Além de perdermos a carga que fôramos levar naquele dia, ficamos proibidos de ali comerciar por um bom tempo. E o buraco na cerca, ah, o velho encontrou e tapou no mesmo dia!

Com o tempo, o pobre do Profeta foi diminuindo as atividades, e por fim vendeu a parte da frente de seu terreno para um indivíduo que lá construiu sua casa. Ficando ainda mais isolado, pois sua casa agora ficava “escondida” no terreno dos fundos, ali Profeta faleceu, sozinho e misterioso como sozinho e misteriosamente vivera boa parte de sua vida.

Saudades de Profeta, de suas broncas, seu jeito irritadiço, e das muitas risadas que pude dar com aquele simpático, sim, simpático velhinho ranzinza. Velhinho que, além de me ensinar sem querer a exercitar a imaginação, me dera os rudimentos práticos do ofício de catador: saber diferenciar “metal” de cobre, antimônio de “bloco”, ferro de aço e por aí vai...

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.