sexta-feira, 28 de junho de 2013

II Concurso Fulguras do Amor – Poesia (Vencedores)

MEDALHA DE OURO:
REGINALDO COSTA DE ALBUQUERQUE
(CAMPO GRANDE – MS)

A Estátua


Quando em minha janela a noite cresce,
corro até a pracinha aqui bem perto.
A um canto do jardim sempre deserto,
o vulto de uma estátua alto floresce.

Do jarro erguido aos ombros a água desce
ondeando a flor de um lago a céu aberto...
Na pedra ao lado, as mãos ao peito aperto,
dizendo o meu penar diluído em prece.

O bico da coruja adianta a hora...
Na quietação da rua espreita a aurora
detrás do vicejar de um malmequer.

E ao retornar a casa alguém me chama!
No lago, as lindas curvas de alva dama...
Era a estátua num corpo de mulher.

MEDALHA DE PRATA:
ROZELENE FURTADO DE LIMA
(TERESÓPOLIS – RJ)

Doce mel 


Hoje eu só quero encontrar 
Um amor carregado de vontade
Desejoso de morrer de amar
De ser momento na eternidade

Quero beijos muito ardentes
Carícia livre sem restrição
Entregar tudo, totalmente
Corpo, pele, sonhos e ilusão 

Sussurrando com estrelas deixar fluir
Provar o néctar, saborear o doce mel
Sem parcelar a liberdade de ficar

Pagar, receber, dar e dividir
Ser ponte, ser escada, ser céu 
Ir onde nunca olvidei chegar

MEDALHA DE BRONZE:
LARISSA LORETTI
(RIO DE JANEIRO – RJ)


Um amor cigano sem fronteiras

Pássaro nômade sem fazer história...
Um amor estranho, diferente.
Amor cigano
uma fonte que se faz presente
de carinhos e desejos...
Em torno da fogueira
o nosso amor ardente...
Em meio a ouro, prata,
castanholas,
taças de vinho
sons de violino,
e uma esteira de luz
em meu caminho...
Sobre uma rosa vermelha
o punhal cruzado,
sob o céu todo estrelado
Santa Sara protegendo e perdoando...
Dentro do meu destino
um amor cigano
partindo pelo mundo afora
um amor peregrino
guardado
em mim, e neste poema que
a emoção escreveu
apenas para dizer aqui
estrela, encanto, flor...
a melhor coisa que me aconteceu.

Fonte:
Paulo Caruso. http://www.reinodosconcursos.com.br/index.php?pagina=1501479057_20

Academia Brasileira de Trova (Palestra sobre Luiz Otávio, em 2 de Julho)

Prezados Acadêmicos e Membros de Honra da ABT e amigos trovadores ou amantes da trova:

DIA 2 (DOIS) DE JULHO (TERÇA FEIRA),
ÀS 16 HORAS
ACADEMIA BRASILEIRA DE TROVA
PALESTRA DA ACADÊMICA MARIA NASCIMENTO (CADEIRA Nº 53, PATRONÍMICA DE ELTON CARVALHO),
" A VIDA E A OBRA DE LUIZ OTAVIO, "O PRÍNCIPE DOS TROVADORES".

Contamos com Vossas presenças para abrilhantarem e prestigiarem uma das mais consagradas trovadoras vivas, que por muitos anos preside e foi fundadora da União Brasileira de Trovas (UBT-RJ)

horário: 16 horas

Local: sede da FALARJ (Federação das Academias de Letras do Rio de Janeiro)

À Rua Teixeira de Freitas, nº 5 , esquina com a Avenida Augusto Severo nº 8 , Sala 303 - 3º andar (Lapa Centro)

Fonte:
Messody Ramiro Benoliel

Diogo Fontenelle (O Fazer Crônica ao Lume da Poesia )

Bruno Paulino garimpa memórias – acontecidas e sonhadas! – ao longo de suas vivências de menino sertanejo. Nesse tear de gemas e gemidos, o jovem prosador lança mão dos lápis de cores do seu coração marinheiro a azular as miudezas do dia a dia mesquinho, a “...esverdejar”, qual berilo esmeralda, esperas e esperanças vazadas pelas negações e ausências do viver nordestinado.

Ergue-se então, o poeta que veleja pelas marés da tessitura da crônica, gênero que muitas vezes resvala pelo mero fotografar de lembranças encharcadas de desabafos em timbres confessionais. Ressalve-se que não é esse o “fazer crônica” do referido escritor que se afirma pelo ruminar da vida em contínua ancoragem no papel inundado pelos vestígios do sangrar e do sonhar de um menino do bravio sertão cearense. Nesse serpentear, o cronista reanima Quixeramobim à luz de um olhar apaixonado pelo desaguar da melodia da terra em suas florações de encontro e desencontro, de amor e desamor.

Eis assim, o despertar do cronista menino que não matava passarinhos, neto do Vô Luís, Tangedor de Sonhos a bordo de uma cadeira de balanço... Portanto, eis o menino poeta que se faz caçador de palavras multicores a voar pelos ares, como passarinhos em eterno cantar de invernia.

Nesse horizonte mágico do verbal lírico, confesso que volto a Quixeramobim em visita guiada pelo cronista poeta Bruno Paulino, encontro uma cidade inédita para mim, diferente das várias Quixeramobins que venho ajardinando em meus “lembrados” dourados. Descortinam-se dessa edição sopros de vivências infantis e juvenis pontuadas por filigranas do dia a dia que escondem relâmpagos de ternura e encantamentos de outros tempos e espaços que descolam da alma sertaneja sempre sedenta pelo tilintar do “Maravilhoso” em contínua cigania a cumprir a profecia de que “Deus quer ver o povo de Quixeramobim feliz!”

Causa-me especial surpresa que um jovem dos tempos tecnológicos contemporâneos movidos pelo domínio da “Era Digital”, venha escrever uma carta para Manuel Bandeira, Poeta Maior. A meu ver, escrever uma carta entre os caprichos de uma caligrafia vazada em papel azul é coisa de enamorado da Poesia em viagem à deriva pelos vapores do século dezenove. Mas, para meu espanto, é essa a escolha do citado jovem escritor que parece ancorar nos tempos presentes, acendendo luzes de romantismos perdidos e aparentemente extintos, mas ainda passíveis de um redespertar.

Será que os casarões de Quixerambim erguidos “à sombra dos pés de cajá e juazeiros” podem ainda guardar perfumes e melodias do luminoso beato Antonio Conselheiro, da bela Dona Guidinha do Poço, do menestrel Fausto Nilo, da mais que devota catequista Dona Carminha André, e do sábio Jorge Simão? Bruno Paulino vem me confirmar que sim, bem que eu desconfiava nas minhas romarias pelo Reino Insólito da Infância! Cabe-me acreditar que Quixeramobim possui “túneis do tempo” a operar quando bem dedilhados pelo talento de um mago das Artes em floração.

“Mago da Palavra” é o que o verdadeiro Poeta sonha constituir-se ao longo de duros pesares. Na Esfera transcendental da Profecia, regida por algum dom de intuição que eu talvez possa acessar, mediante as proezas do “vento aracati” tangido pelo três vezes Santo Padroeiro: Santo Antonio de Lisboa, Santo Antonio de Pádua, e o não menor Santo Antonio de Quixeramobim... Eu ouso vislumbrar que Bruno Paulino, enquanto cronista estreante, venha trilhar os labirintos do Fazer Poético em Sinfonia Maior.

Fonte:
Nilto Maciel. http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/06/o-fazer-cronica-ao-lume-da-poesia-diogo.html

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 4

André o escutava, sem dar uma palavra, mas patenteando no rosto enorme interesse pelo que ouvia.

Era a primeira vez que se achava assim, em comunicação amistosa com um seu semelhante; era a primeira vez que alguém o escolhia para confidente, para íntimo. E sua alma teve com a surpresa deste fato o mesmo gozo de impressões que experimentara ainda há pouco o seu paladar com os saborosos doces até aí desconhecidos para ele.

E o Coruja, a quem nada parecia impressionar, começou a sentir afeição por aquele rapaz, que era a mais perfeita antítese do seu gênio e da sua pessoa.

Quando Salustiano veio abrir-lhes a porta à hora do jantar, encontrou Teobaldo de pé, a discursar em voz alta, a gesticular vivamente, defronte do outro que, estendido na cadeira, toscanejava meio tonto.

— Então? Exclamou o homem das barbas longas. — Que significa isto?

— Isto quê, ó meu cara de quebra-nozes? Interrogou Teobaldo soltando-lhe uma palmada na barriga.

— Menino! Repreendeu o homem; não quero que me falte ao respeito!

— E um pouco de Madeira, não queres também?

— O senhor bem sabe que aqui no colégio é proibido aos alunos receberem vinho.

— Para os outros, não duvido! Eu hei de receber sempre, se não digo ao velho que não empreste mais um vintém ao diretor.

— Não fale assim... O senhor não se deve meter nesses negócios.

— Sim, mas em vez de estares aí a mastigar em seco e a lamber os beiços, é melhor que mastigues um pouco de requeijão com aquele doce.

— Muito obrigado.

— Não tem muito obrigado. Coma!

E Teobaldo, com sua própria mão, meteu-lhe um doce na boca.

— Você é o diabo! Considerou Salustiano, já sem nenhum sinal de austeridade. E, erguendo a garrafa à altura dos olhos: — Pois os senhores dois beberam mais de meia garrafa de vinho?!.

André ao ouvir isto, começou a rir a bandeiras despregadas, o que fazia talvez pela vez primeira em sua vida. Pelo menos, o fato era tão estranho que tanto Salustiano como Teobaldo caíram também na gargalhada.

— E não é que estão ambos no gole?... Disse homem, a cheirar a boca da garrafa e, sem lhe resistir ao bom cheiro, despejou na própria o vinho que restava.

— Que tal a pinga? Perguntou Teobaldo.

— É pena ser tão mal empregada... Responde o barbadão a rir.

— Este Salustiano é um bom tipo! Observou o menino, enchendo as algibeiras de frutas e doces.

— Ora, quando o diretor não pode com o senhor eu é que hei de poder...

E, querendo fazer-se sério de novo:

— Vamos! Vamos! Aviem-se, que está tocando a sineta pela segunda vez!

— Não vou à mesa, respondeu Teobaldo — daqui vou para o jardim; diga ao doutor que estamos indispostos.

E, voltando-se para o Coruja.

— Oh! André! Toma conta de tudo isso e vamos lá para baixo ouvir a flauta do Caixa-d’óculos.

Desde então os dois meninos fizeram-se amigos.

Foi justamente a grande distância, o contraste, que os separava, que os uniu um ao outro.

As extremidades tocavam-se.

Teobaldo era detestado pelos colegas por ser muito desensofrido e petulante; o outro por ser muito casmurro e concentrado. O esquisitão e o travesso tinham, pois, esse ponto de contato — o isolamento. Achavam--se no mesmo ponto de abandono, viram-se companheiros de solidão, e é natural que se compreendessem e que se tornassem afinal amigos inseparáveis.

Uma vez reunidos, completavam-se perfeitamente. Cada um dispunha daquilo que faltava no outro; Teobaldo tinha a compreensão fácil, a inteligência pronta; Coruja o método, e a perseverança no estudo; um era rico; o outro econômico; um era bonito,
débil e atrevido; o outro feio, prudente e forte. Ligados, possuiriam tudo. E, com o correr do ano, por tal forma se foram estreitando entre os dois os laços da confiança e da amizade, que afinal nenhum deles nada fazia sem consultar o camarada. Estudavam juntos e juntos se assentavam nas aulas e à mesa.

Por fim, era já o André quem se encarregava de estudar pelo Teobaldo; era quem resolvia os problemas algébricos que lhe passavam os professores; era quem lhe arranjava os temas de latim e o único que se dava à maçada de procurar significados no dicionário Em compensação o outro, a quem faltava paciência para tudo isso, punha os seus livros, a sua vivacidade intelectual à disposição do amigo, e dividia com este os presentes e até o dinheiro enviado pela família, sem contar as regalias que a sua amizade proporcionava ao Coruja, fazendo-o participar da ilimitada consideração que lhe rendia todo o pessoal do colégio, desde o diretor ao cozinheiro.

De todas as gentilezas de Teobaldo, a que então mais impressionara ao amigo foi o presente de uma flauta e de um tratado de música, que lhe fez aquele volta de um passeio com o diretor do colégio. Coruja trabalhava à sua mesa de estudo quando o outro entrou da rua.

— Trago-te isto, disse-lhe Teobaldo apresentando-lhe os objetos que comprara.

— Uma flauta! Balbuciou André no auge da comoção. — Uma flauta!

— Vê se está a teu gosto.

Coruja ergueu-se da cadeira, tomou nas mão instrumento, e experimentou-lhe o sopro, e ficou tão satisfeito com o presente do amigo que não encontrou uma só palavra para lho agradecer.

— Que fazias tu? Perguntou-lhe Teobaldo.

Mas correu logo os olhos pelo trabalho que estava sobre a mesa e acrescentou:

— Ah! É ainda o tal catálogo!

— É exato.

— Gabo-te a paciência! Não seria eu!

E, tomando a bocejar uma das folhas escritas o outro tinha defronte de si.

— Isto vem a ser?...

— Isto é a numeração das obras, respondeu André.

— Ah! Vai numerá-las...

— Vou. Para facilitar.

— E isto aqui? [interrogou Teobaldo, tomando outra folha de pape].

— Isto é uma lista dos títulos das obras.

— E isto?

— O nome dos autores.

— Depois reúnes tudo?

— Reuno.

— Melhor seria fazer tudo de uma mais prático. Assim, não é tão cedo que te verás livre dessa maçada!

— Há de ficar pronto.

Mas estava escrito que o célebre catálogo não teria de ficar acabado nas férias deste ano. Urna circunstância extraordinária veio alterar completamente os planos do autor.

Logo ao entrar das férias, o pai de Teobaldo apresentou-se no colégio para ir em pessoa buscar o filho.

Entrou desembaraçadamente a gritar pelo rapaz desde a porta da rua.

— Ah! É V. Exa. exclamou o diretor com espalhafato, logo que o viu. E correu a tornar-lhe o chapéu e a bengala.

— Bela surpresa! Bela surpresa, Sr. Barão! Tenha a bondade de entrar para o escritório!

— Vim buscar o rapaz. Como vai ele?

— Muito bem, muito bem.! Vou chamá-lo no mesmo instante. Tenha a bondade V. Exa. de esperar alguns segundos.

E, como se a solicitude lhe dera sebo às canelas, o Dr. Mosquito desapareceu mais ligeiro que um rato. O Sr. Barão do Palmar, Emílio Henrique de Albuquerque, era ainda nos seus cinqüenta e tantos anos uma bela figura de homem. A vida acidentada e revessa, a que o condenara sempre o seu espírito irrequieto e turbulento não conseguira alterar-lhe em nada o bom humor e as gentilezas cavalheirescas de sua alma romântica e afidalgada. Como brasileiro, ele representava um produto legítimo da época em que veio ao mundo.

Nascera em Minas, quando ferviam já os prelúdios da independência, e seu pai, um fidalgo português dos que emigraram para o Brasil em companhia do Príncipe Regente e de cujas mãos se passara depois para o serviço de D. Pedro I, dera-lhe por mãe uma formosa cabocla paraense, com quem se havia casado e de quem não tivera outro filho senão esse.

De tais elementos, tão antagônicos, formou-se-lhe aquele, caráter híbrido e singular, aristocrata e rude a um tempo, porque nas veias de Emílio de Albuquerque tanto corria o refinado sangue da nobreza, como o sangue bárbaro dos tapuias. Crescera entre os sobressaltos políticos do começo do século, ouvindo roncar em torno do berço a tempestade revolucionaria, que havia de mais tarde lhe arrebatar a família, os amigos e as primeiras e mais belas ilusões políticas. Desde muito cedo destinado às armas, matriculou-se na Escola Militar, fez parte da famosa guarda de honra do primeiro Imperador, e, com a proteção deste e mais a natural vivacidade do seu temperamento mestiço, chegou rapidamente ao posto de capitão.

Teve, porém, de interromper os estudos para fazer a lamentável guerra de Cisplatina, donde voltou seis meses depois, sem nenhuma dar ilusões com que partira, nem encontrar os pais e amigos, que sucumbiram na sua ausência, e nem mais sentir palpitar-lhe no coração o primitivo entusiasmo pelos defensores legais da integridade nacional. Orfanato, pois, ao vinte e dois anos, senhor de uma herança como bem poucos de tal procedência apanhavam nessas épocas, pediu baixa do Exército e levantou o vôo para a Europa, fazendo-se acompanhar por um criado que fora de seu pai, o Caetano, aquele mesmo criado que, trinta e tantos anos depois, apareceu no colégio do Dr. Mosquito vestido de libré cor de rapé, com botões amarelos.

Ah! Se esse velho quisesse contar as estroinices que fez o querido amo pelas paragens européias que percorreu! Se quisesse dizer quantas vezes não expôs a pele para livrá-lo em situações bem críticas! Quantas vezes por causa de alguma aventura amorosa ou por alguma simples questão de rua ou de café não voltaram os dois, amo e criado, para o hotel com o corpo moído de pauladas e os punhos cansados de esbordoar!

Durante essas viagens levaram eles a vida mais aventurosa e extravagante que é possível imaginar; só voltaram para o Brasil no período da regência, depois da abdicação do Sr. D. Pedro I, por quem o rapaz não morria de amores. Tornando à província, Emílio, talvez na intenção de refazer os seus bens já minguados, casou-se, a despeito da oposição do Caetano, com uma rapariga de Malabar, filha natural de um negociante português que comerciava diretamente com a Índia.

Atirou-se então a especular no comércio, mas o seu temperamento não lhe permitia demorar-se por muito tempo no mesmo objeto e, achando-se viúvo pouco depois de casado, lançou as vistas para Diamantina, que nessa ocasião atraía os ambiciosos, e lá se foi ele,. sempre acompanhado pelo Caetano, explorar o diamante. Tão depressa o viram em 1835 na Diamantina como em 1842 em Santa Luzia na revolução ao dos liberais mineiros, lutando contra a célebre reação conservadora manifestada pela lei de 3 de Dezembro.

A galhardia e valor com que se houve nessas conjunturas valeu-lhe a estima de Teófilo Otoni e outros importantes chefes do seu partido. Dessa estima e mais dos bens particulares que então gastou na política foi que se originou o título, com que mais tarde o agraciaram. A sua atitude política, a sua riqueza e os seus dotes naturais haviam-lhe já conquistado na corte as melhores relações deste tempo.

Uma vez, por ocasião de trazer para aí uma excelente partida de diamantes, travou conhecimento com um importante fazendeiro de café, em cuja fazenda se hospedou por acaso. Esse homem, mineiro da gema, era no lugar a principal influência do partido conservador e, sem dúvida, um dos que primeiro explorou a famosa Mata do Rio, que então começava a cobrir-se de novas plantações. O fazendeiro tinha uma filha e Emílio cobiçou-a para casar. Mas o encascado político, descendente talvez dos antigos emboabas que avassalaram o centro de Minas, não cedeu ao primeiro ataque, e Emílio teve de lançar mão de todos os recursos insinuativos da sua raça para conseguir captar a confiança do pai e o coração da filha. Quando lá tornou segunda vez, deixou o casamento ajustado.

Então foi ainda a Diamantina liquidar os seus negócios e, voltando à Mata, recebeu por esposa a mulher que, mal sabia ele, estava destinada a ser a mais suave consolação e o melhor apoio do resto de sua vida. Foi desse enlace que nasceu Teobaldo, logo um ano depois do casamento. Emílio só reapareceu na corte em 1847, onde os seus correligionários, então no poder, o agraciaram com o titulo de Barão do Palmar; mas voltou logo para Minas e tratou de estabelecer com os seus capitais uma fazenda na vizinhança da do sogro, que acabava de falecer.

Foi esse o melhor tempo de sua vida, o mais tranqüilo e o mais feliz. Só depois de casado, Emílio pode avaliar e compreender deveras a mulher com quem se unira; só depois de casado descobriu os tesouros de virtude que ela lhe trouxe pura casa, escondidos no coração.

Laura, assim se chamava a boa esposa, era um destes anjos, criados para a boa segurança do lar doméstico; uma dessas criaturas que nascem para fazer a felicidade dos que a cercam. Em casa, senhores chamavam-lhe "Santa". E este doce tratamento conduzia com os seus atos e com a sua figura.

— Esta, sim! Exclamava o Caetano, entusiasmado Esta, sim, é uma esposa de conta, peso e medida!

Pouco a pouco, Emílio fui amando a mulher, ao ponto de chegar a estremecê-la, o que até aí lhe parecia impossível.

No meio de toda essa felicidade, Teobaldo deu os seus primeiros passos pela mão do pai, da Santa e do fiel Caetano, que já o adorava tanto como os outros. O pequeno era o mimo do casa; era o cuidado, o enlevo, a preocupação de quantos o viam crescer.
Com que sacrifício não consentiu, pois, o Barão do Palmar que o filho, daí a seis anos, seguisse sozinho para um colégio de Londres, donde havia de passar a Coimbra.

Mas assim era necessário, porque Emílio, então comprometido no tráfico dos negros africanos, viu-se atrozmente perseguido por Euzébio de Queiroz, terror dos negreiros e seu inimigo político.

Eis aí quem era e donde vinha o pai de Teobaldo.
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continua…

Nathalia Leal (Sarau Poético no I Arraial do Papel no Varal, de Maceió)

Uma noite de lua cheia, repleta de cores, bandeirolas e animação, marcou o I Arraial do Papel no Varal, nesse 25 de Junho. Ambientado no Arraial Central da Prefeitura de Maceió, o sarau poético atraiu um público extenso e heterogêneo – muitos foram os que estavam participando e lendo poesia pela primeira vez, o que enriqueceu ainda mais a celebração.

A recepção foi feita pelo grupo de forró Mistura Fina, que animou os presentes. Casais dançavam e rodopiavam próximos ao varal de sisal. A performance de abertura do sarau foi feita pelo animado ator Paulo Poeta, que leu uma poesia do alagoano Tonho Lambe-Sola, arrancando  palmas e risos calorosos do público. Zabumba, triângulo e sanfona do trio-pé-de-serra Os Mais Fortes do Forró introduziam a chegada animada de cada pessoa que ia ao palco dizer poesia.

Presente pela primeira vez no Papel no Varal, a estudante Karen Pimentel, 17, afirmou: “Estou gostando. É importante dar a oportunidade de todo mundo se expressar, mesmo que através da palavra dos outros”. Laryssa França, 21, leu Biu de Crisanto no palco e ressaltou a importância do evento: “É um encontro de poesia, e isso é muito raro”.

A presença de Eliezer Setton deixou a noite ainda mais calorosa e atraiu a atenção daqueles que passavam por perto: o músico, que introduzia suas canções através de causos e cantou clássicos como “Coco 2000”, acabou sua apresentação sendo aplaudido de pé. A Associação Alagoana de Ciclismo também prestigiou o I Arraial do Papel no Varal, com direito a leitura de poema no palco, com bicicleta e capacete.

Cantadas audaciosas enviadas pelo correio elegante, a boneca de pano, o “troféu macaxeira” e a irreverente apresentação de Ricardo Cabús aumentaram a dose de humor, já garantida pela seleção dos poemas matutos de Xexéu Beleléu, Chico Doido do Caicó, entre outros. Houve também entrega de brindes Ao Pharmacêutico àqueles que melhor entoavam os versos, como a jovem Eduarda Leite, de 12 anos.

Outras pessoas também se aventuraram na leitura. É o caso de Gerson Nunes Siqueira, de 55 anos: “Eu leio mal, gaguejando, mas vou ler. O poema fala da história de onde eu ‘vim’, do sertão.” – afirmou, enquanto esperava ansiosamente ser chamado ao palco.

Arriete Vilela, escritora e frequentadora assídua do Papel no Varal, demonstrou sua admiração à continuidade do projeto e sua capacidade de expansão: “É uma iniciativa que vem crescendo, e o melhor: saiu de um círculo pequeno de escritores e leitores alagoanos e hoje está num alcance popular. Gosto muito da ousadia do Ricardo Cabús”.

Apesar da seleção de poemas majoritariamente “matuta”, a leitura dos versos de Manuel Bandeira em “O Trem de Ferro”, feita por José Márcio Passos, arrancou aplausos – o ator também leu “O Gato do Vigário”, de Lêdo Ivo, num clima de grande descontração. As interpretações cuidadosas de Arilene de Castro e Demis Santana – com seu enfeitado chapéu de cangaceiro – também foram de grande destaque. Chico de Assis fez duetos interpretativos com Paulo Poeta, com direito a homenagem ao tradicional pastoril, coco de roda, guerreiro e às nuances coloquiais nordestinas, no encerramento do sarau. Os dois atores entoaram canções folclóricas e arriscaram uma paródia da típica procissão interiorana, aproveitando a animação do público. “A festa acabou. Até ano que vem, se ‘nós vivo for’!”, disparou Chico, em tom de brincadeira.

O evento encerrou-se ao som do trio Os Mais Fortes do Forró, que tocou peças do repertório de Jacinto Silva e Tororó do Rojão, de acordo com o tema escolhido pela Prefeitura de Maceió para os festejos juninos de 2013. Apesar do clima de fim de festa, os casais continuavam sua dança animada, ao som do forró.

O I Arraial do Papel no Varal superou as expectativas e recebeu o maior público de todas as edições do projeto: ao todo, é possível estimar um alcance de cerca de mil pessoas, dentre as que estavam de pé e outras que lotavam as 600 cadeiras ou permaneciam assistindo o sarau por algum tempo. Celebrando a rica cultura popular nordestina, o evento contou com uma atmosfera agradável e animada, permeada por sorrisos, cores e poesias, numa noite bastante interativa.

Fonte:
e-mail do Papel No Varal

3a Conferência Municipal de Cultura em Belo Horizonte (5 e 6 de Julho)

Clique sobre a imagem para ampliar
A Fundação Municipal de Cultura promove nos dias 5 e 6 de julho a 3ª Conferência Municipal de Cultura de Belo Horizonte, evento preparatório para a 3ª Conferência Nacional de Cultura que acontecerá em novembro. Os debates estão organizados em torno dos seguintes temas: Implementação do Sistema Nacional de Cultura; Produção Simbólica e Diversidade Cultural; Cidadania e Direitos Culturais e Cultura e Desenvolvimento. Para o encaminhamento de propostas relativas a esses temas, serão realizadas Conferência Livres em todas as regionais do município nos dias 18, 20, 22 e 24 de junho. As inscrições para a 3ª Conferência Municipal de Cultura devem ser feitas pela internet no site BH Faz Cultura em formulário específico (clique aqui para acessá-lo) ou nas unidades da FMC (confira tabela abaixo com os enderços).

Mais informações podem ser obtidas pelo email: conferenciacultura@pbh.gov.br.

3ª CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE CULTURA

Local: Instituto de Educação - rua Pernambuco, 47- Funcionários

5 de julho (sexta-feira) das 18h às 22h

6 de julho (sábado) das 8h às 20h
informações: conferenciacultura@pbh.gov.br

Fonte:
e-mail da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 3

Entre os novos alunos, que entraram no seguinte ano para o colégio do Dr. Mosquito, vinha um, que se chamava Teobaldo Henrique de Albuquerque. Menino de doze anos, muito bonito, elegante e criado com mimo. Falava melhor o inglês e o francês do que a sua própria língua, porque estivera mais tempo em Londres do que no Brasil.

O tipo desta criança fazia um verdadeiro contraste com o do Coruja. Era débil, espigado, de uma palidez de mulher; olhos negros, pestanudos, boca fidalga e desdenhosa, principalmente quando sorria e mostrava a pérola dos dentes. Todo ele estava a respirar uma educação dispendiosa; sentia-se-lhe o dinheiro na excelência das roupas, na delicada escolha de perfumes que a família lhe dava para o cabelo e para o lenço, como em tudo de que se compunha o seu rico enxoval de pensionista.

Criança como era, já falava de coisas que o outro nem sonhava ainda; tinha já predileções e esquisitices de gosto; discutia prazeres, criticava mulheres e zombava dos professores sem que estes aliás se dessem por achados, em razão dos obséquios pecuniários que o colégio devia ao pai de Teobaldo, o Sr. Barão do Palmar. Não obstante, esses mesmos dotes e mais sua estroinice de menino caprichoso, sua altivez natural e adquirida por educação abriam em torno dele o ódio ou a inveja da maior parte dos condiscípulos. Logo ao entrar no colégio, fizera muitos inimigos e, pouco depois, era tido e julgado como o mais embirrante e o mais insuportável entre todos os alunos do Dr. Mosquito.

Não lhe perdoavam ser ao mesmo tempo tão rico, tão formoso, tão inteligente e tão gentilmente vadio. Além de tudo isso, como se tanto já não bastava, havia ainda para o fazer malquisto dos companheiros aquela escandalosa proteção que lhe votavam os professores, apesar da formidável impertinência do rapaz. Em verdade a todos falava. Teobaldo com uma sobranceria ofensiva e provocadora. No seu modo de olhar, no tom da sua voz, no desdém de seus gestos, sentia-se a uma légua de distância o hábito de mandar e ser obedecido.

Esta constante arrogância, levava ao supremo grau, afastou de junto dele todos os seus condiscípulos. Mas o orgulhoso não parecia impressionar-se com o isolamento a que o condenavam as suas maneiras, e, se o sentia, não deixava transparecer em nenhum dos gestos a menor sombra de desgosto. Ninguém o queria para amigo.

Um domingo, porém, ao terminar o almoço, ouviu dentre um certo grupo de seus colegas uma palavra de ofensa, que lhe era dirigida. Voltou-se e, apertando os olhos com um ar mais insolente que nunca, exclamou para o grupo:

— Aquele de vocês que me insultou, se não é um covarde, apresente-se! Estou disposto a dar-lhe na cara!

Ninguém respondeu.

Teobaldo franziu o lábio com tédio e, atirando ao grupo inteiro, por cima do ombro, um olhar de desprezo, afastou-se. dizendo entredentes:

— Canalha!

Mas, ao chegar pouco depois à chácara, seis meninos dos mais fortes dos que compunham o grupo, aproximaram-se dele e exigiram que Teobaldo sustentasse o que havia dito no salão.

Teobaldo virou-lhes as costas e os seis iam precipitar-se sobre ele, quando o Coruja, que tudo presenciara a certa distância, de um pulo tomou-lhes a frente e os destroçou a murros.

Acudiu o inspetor, fez cessar a briga e, tomando o Coruja pelo braço, levou-o à presença do Dr. Mosquito.

Teobaldo acompanhou-o.

Exposto o ocorrido, foi o Coruja interrogado e confessou que era tudo verdade: "Batera em alguns de seus companheiros".

— Pois então recolham-no ao quarto do castigo, disse o diretor. Passará aí o domingo, fazendo considerações sobre o inconveniente das bravatas!

— Perdão! Observou Teobaldo; quem tem de sofrer esse castigo sou eu! Fui o causador único da desordem. Este menino não tem a menor culpa!

E apontou para o Coruja.

— Ó senhores! Pois se eu o vi atracando-se aos outros, como um demônio! exclamou o inspetor.

— E ele próprio o confessa... Acrescentou o diretor. Vamos! Cumpra-se a ordem que dei!

— Nesse caso eu também serei preso, respondeu Teobaldo.

E tão resolutamente acompanhou o colega, que ninguém o deteve. Foram recolhidos à mesma prisão, e desta vez, graças à influência de Teobaldo, o outro, além de não ter de gramar o escuro, recebeu licença para levar consigo alguns livros e a flauta que lhe emprestara o Caixa-d’óculos.

Logo que os dois meninos se acharam a sós, Teobaldo foi ter com o Coruja e disse, apertando-lhe a mão:

— Obrigado.

André fez um gesto com a cabeça, equivalente a estas palavras: "Não tem que agradecer, porque o mesmo faria por qualquer criatura". Se o senhor fazia parte do grupo que insultei, volveu Teobaldo, peço-lhe desculpa.

— Não fazia, respondeu o outro, dispondo-se a entregar-se de corpo e alma à sua ingrata flauta.

Felizmente para o colega, foram interrompidos por uma pancada na porta. Teobaldo correu a receber quem batia, e soltou logo uma exclamação de prazer:

— Oh! Você, Caetano! Como estão todos lá e casa? Mamãe está melhor? E papai, papai que faz que não vem me ver, como prometeu?

Caetano, em vez de responder, pousou no chão uma cesta que trazia, e abriu os braços para o menino, deixa do correr pelo sorriso de seu rosto duas lágrimas de ternura que se lhe escapavam dos olhos.

Era um homem de meia idade, alto, magro, de cabelos grisalhos, à escovinha, cara toda raspada; e tão simpático, tão bom de fisionomia, que a gente gostava dele à primeira vista. Trajava uma libré cor de rapé, com botões de latão e alamares de veludo preto.

Caetano entrara muito criança para o serviço do avô de Teobaldo, pouco antes do nascimento do pai deste, nunca mais abandonou essa família, da qual mais adiante teremos de falar, e por onde se poderão avaliar os laços de velha amizade que ligavam aquele respeitoso criado ao neto de seu primeiro amo. Por enquanto diremos apenas que o bom Caetano. viu crescer ao seu lado o pai de Teobaldo; que o acompanhou tanto nas suas primeiras correrias de rapaz, como mais tarde nas suas aventuras políticas durante as revoluções de Minas; e que a intimidade entre esses dois companheiros por tal forma os identificou, que afinal criado era já consultado e ouvido como um verdadeiro membro e amigo da família a que se dedicara.

— Mas, Caetano, que diabo veio você fazer aqui? Perguntou Teobaldo. Há novidade lá por casa? Fale; Mamãe piorou?

— Não; graças a Deus não há novidade. A senhora baronesa não piorou, e parece até que vai melhor; o que ela tem é muitas saudades de vossemecê.

— E papai, está bom?

— Nhô-Miló (era assim que chamava o amo) está bom, graças a Deus. Foi ele quem me mandou cá. Vim trazer um dinheiro ao doutor.

— Ah! Ao diretor? Quanto foi?

— Trezentos mil réis.

— Seriam emprestados, sabes?

— Creio que sim, porque trouxe uma letra que tem de voltar assinada…

— E isso que trazes aí no cesto é para mim?

— É, sim senhor. É a senhora baronesa quem manda.

Teobaldo apressou-se a despejar a cesta. Vinham doces, queijo, nozes, figos secos, passas, amêndoas, frutas cristalizadas e uma garrafa de vinho Madeira.

— Isto é que é pouco; devia ter vindo mais... Considerou ele, pousando a garrafa no chão.

— Pois fique sabendo que, se não fosse Nhô-Miló, nem essa teria vindo... A senhora baronesa chegou a zangar-se com ele.

E, mudando de tom:

— Mas é verdade, vossemecê está preso?

— Qual! Estou aqui porque assim o quis.

Em quatro palavras Teobaldo contou o motivo da sua prisão.

— Ah! Disse o criado, vossemecê é seu pai, sem tirar nem pôr!

— Sim, mas não contes nada em casa...

— Não há novidade, não senhor!

E, depois de conversarem ainda mais alguma coisa, Caetano abraçou de novo o rapaz, despediu-se do outro e retirou-se, pretextando que não convinha demorar-se para não chegar muito tarde à fazenda.

Outra vez fechada a prisão, Teobaldo, restituído ao seu bom humor com o presente da família, voltou-se, já risonho, para o companheiro e disse, batendo-lhe no ombro:

— Ao menos temos aqui com que entreter os queixos. E, dispondo tudo sobre uma cadeira, principiou a expor o conteúdo dos pacotes e das caixinhas de doce: Felizmente a garrafa está aberta e o púcaro d’água serve para beber vinho. Não acha que isto veio a propósito?

— É, resmungou o Coruja.

— Pois então, mãos à obra! Gosta de vinho?

— Não sei…

— Como não sabe?

— Nunca provei.

— Nunca? Oh!

— É exato.

— Pois experimente. Há de gostar.

André entornou no púcaro três dedos de vinho e bebeu-o de um trago.

— Que tal? Perguntou o outro fazendo o mesmo.

— É bom! Disse Coruja a estalar a língua.

— Com um pouco de queijo e doce ainda é melhor, atire-se!

André não se fez rogado, e os dois meninos, em face um do outro, puseram-se a petiscar, como bons amigos. Teobaldo, porém, depois de repetir várias vezes a dose do vinho, precisava dar expansão ao seu gênio comentador e satírico; ao passo que o companheiro saboreava em silêncio aqueles delicados pitéus, que chamavam ao mal confortado paladar delícias inteiramente novas e desconhecidas para ele. E contentava-se a resmungar, de vez em quando:

— É muito bom? É muito bom!

— Pois eu, sempre que receber presentes lá de e prometeu o outro, hei de chamá-lo para participar deles. Está dito?

— Está.

— Você chama-se…

— André.

— De…

— Miranda.

— André Miranda.

— De Melo.

— Ah!

— E Costa.

— Não sabia. Como todos no colégio só o tratam por "Coruja"...

— É alcunha.

— Foi aqui que lha puseram?

— Foi.

— Por quê?

— Porque eu sou feio.

— E não fica zangado quando lhe chamam assim?

— Não.

— Eu também faria o mesmo, se me pusessem alguma. Os nossos colegas são todos uns pedaços dasnos, não acha?

Coruja sacudiu os ombros e Teobaldo, um pouco agitado pelo Madeira, começou a desabafar todo o ressentimento que até ai reprimia com tanto orgulho.

Falou francamente, queixou-se dos companheiros, julgou-os a um por um, provando
que eram todos aduladores e invejosos.

— Não quero saber deles para nada! Exclamou indignado. Você é o único com que me darei!

E, muito loquaz e vário, passou logo a falar dos colégios europeus, do modo pelo qual aí se tratavam entre si os estudantes, dos modos de brincar, de estudar em comum, do modo, enfim, pelo qual se protegiam e estimavam.
–––––––––-
continua…

terça-feira, 25 de junho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 2

Dormindo conseguiu o que não fizera acordado: seu roncos foram ouvidos pelo inspetor do colégio, e, daí a pouco André, sem dar ainda acordo de si, era conduzido à mesa do refeitório, onde ia servir-se o chá. Seu tipo, já de natural estranho, agora parecia fantástico sob a impressão do estremunhamento; e os estudantes, que o observavam em silêncio, abriram todos a rir, quando viram o inesperado colega atirar-se ao prato de pão com uma voracidade canina.

Mas André pouco se incomodou com isso e continuou a comer sofregamente, no meio das gargalhadas dos rapazes e dos gritos do inspetor que, sem ele próprio conter o riso, procurava chamá-los a ordem.

Por estes fatos apenas fez-se notar a sua entrada no colégio, visto que ele, depois da ceia, recolheu-se ao dormitório e acordou no dia seguinte, ao primeiro toque da sineta, sem ter trocado meia palavra com um só de seus companheiros.

Não procuravam as suas relações, nem ele as de ninguém, e, apesar das vaias e das repetidas pilhérias dos colegas, teria passado tranqüilamente os primeiros dias da sua nova existência, se um incidente desagradável não o viesse perturbar. Havia no colégio um rapaz, que exercia sobre outros certa superioridade, nem só porque era dos mais velhos, como pelo seu gênio brigador e arrogante. Chamava-se Fonseca e os companheiros o temiam a ponto de nem se animarem a fazer contra ele qualquer queixa ao diretor.

André atravessava numa ocasião o pátio do recreio, quando ouviu gritar atrás de si Ó Coruja!

Não fez caso. Estava já habituado a ser escarnecido, e tinha por costume deixar que a zombaria o perseguisse à vontade, até que ela cansasse e por si mesma se retraísse.

Mas o Fonseca, vendo que não conseguira nada com a palavra, correu na pista de André e ferrou-lhe um pontapé por detrás. O pequeno voltou-se e arremeteu com tal fúria contra o agressor, que o lançou por terra. O Fonseca pretendeu reagir, mas o outro o segurou entre as pernas e os braços, tirando-lhe toda a ação do corpo.

Veio logo o inspetor, separou-os e, tendo ouvido as razões do Fonseca e dos outros meninos que presenciaram o fato, conduziu André para um quarto escuro, no qual teve o pequeno esse dia de passar todos os intervalos das aulas. Sofreu a castigo e as acusações dos companheiros, sem o menor protesto e, quando se viu em liberdade, não mostrou por pessoa alguma o mais ligeiro ressentimento.

Depois deste fato, os colegas deram todavia em olhá-lo com certo respeito, e só pelas costas o ridicularizavam. Às vezes, do fundo de um corredor ou do meio de grupo, ouvia gritar em voz disfarçada:

— Olha o filhote do padre Olha o Coruja!

Ele, porém, fingia não dar por isso e afastava-se em silêncio. Quanto ao mais, raramente comparecia ao recreio e apresentava-se nas aulas sempre com a lição na ponta da língua.

No fim de pouco tempo, os próprios mestres participavam do vago respeito que ele impunha a todos; posto que estivessem bem longe de simpatizar com desgracioso pequeno, apreciavam-lhe a precoce austeridade de costumes e o seu admirável esforço pelo trabalho. Uma das particularidades de sua conduta, que mais impressionava aos professores, era a de que, apesar constante mal que lhe desejavam fazer os colegas, jamais se queixava de nenhum, e tratava-os a todos mesma forma que tratava ao diretor e aos lentes isto com a mesma sobriedade de palavras e a mesma frieza de gestos.

Em geral, era por ocasião da mesa que as indiretas dos seus condiscípulos mais se assanhavam contra O Coruja, como já todos lhe chamavam, não tinha graça nem distinção no comer; comia muito e sofregamente com o rosto tão chegado ao prato que parecia que apanhar os bocados com os dentes.

Coitado! Além do rico apetite de que dispunha, não recebia, à semelhança dos outros meninos, presentes de doce, requeijão e frutas que lhes mandavam competentes famílias; não andava a paparicar durante dia como os outros; de sorte que, à hora oficial da comida, devorava tudo que lhe punham no prato, sem torcer o nariz a coisa alguma.

Um dia, porque ele, depois de comer ao jantar todo o seu pão, pediu que lhe dessem outro, a mesa inteira rebentou em gargalhadas; mas o Coruja não se alterou e fez questão de que daí em diante lhe depusesse ao lado do prato dois pães em vez de um!

— Muito bem! Considerou o diretor.— É dos tais que paga por meio e come por dois! Seja tudo por amor de Deus!
CAPÍTULO III
Assim ia vivendo o Coruja, desestimado e desprotegido no colégio, e corno que formando na sua esquisitice uma ilha completamente isolada dos bons e dos maus exemplos, que em torno dele se agitavam.

Dir-se-ia que nascera encascado em grossa armadura de indiferença, contra a qual se despedaçavam as várias manifestações do meio em que vivia, sem que elas jamais conseguissem lhe corromper o ânimo. A tudo e a todas parecia estranho, corno se naquele coração, ainda tão novo, já não houvesse unia só fibra intacta. E, todavia, nenhum dos companheiros seria capaz de maltratar em presença dele um dos mais pequenos do colégio, sem que o esquisitão tomasse imediatamente a defesa do mais fraco. Não consentia igualmente que fizessem mal aos animais, e muita vez o encontraram acocorado sobre a terra protegendo um mesquinho réptil, ou lhe enxergavam vivos sinais de ameaças em favor de alguma pobre borboleta perseguida pelos estudantes.

Na sua mística afeição aos fracos e indefesos, chegava a acarinhar as árvores e plantas do jardim e sentia-se vê-las mal amparadas na hora do recreio. Não reconhecia em ninguém o direito de separar uma flor da haste em que nascera ou encarcerar na gaiola um mísero passarinho. E tudo isso era feto e praticado naturalmente, sem as tredas aparências de quem deseja constituir-se em modelo de bondade. Tanto assim, que tais coisas só foram deveras percebidas por um antigo criado da casa, o Militão, a quem os meninos alcunharam por pilhérias de "Dr. Caixa-d'óculos".

O Caixa-d’óculos era nada mais do que um triste velhote de cinqüenta a sessenta anos, vindo em pequeno das ilhas e que aqui percorrera a tortuosa escala das ocupações sem futuro. Fora porteiro de diversas ordens religiosas, moço de câmara a bordo de vários navios, depois permanente de polícia, em seguida sacristão e criado de um cônego, depois moço de hotel, bilheteiro num teatro, copeiro em casa de um titular e afinal, para descansar, criado no colégio em que se achava o Coruja.

De tal peregrinação apenas lhe ficara um desgosto surdo pela existência, um vago e triste malquerer pelos fortes e pelos vitoriosos. E foi por isso que ele simpatizou com o Coruja; porque o supunha ainda mais desprotegido e ainda mais desarmado do que ele próprio. Era, enfim, o único em quem o pequeno do padre, durante o seu primeiro ano de colegial, nem sempre encontrara o desprezo e a má vontade. Vindas as férias, o Revmo. João Estêvão, a pretexto de que o pupilo lucraria mais ficando no colégio do que indo para casa, escreveu a esse respeito ao Dr. Mosquito, e bem contra a vontade deste, o pequeno por lá ficou.

André recebeu a notícia, como se já a esperasse, e viu, sem o menor sintoma de desgosto, partirem, pouco a pouco, todos os seus companheiros. Destes, a alguns vinham buscar os próprios pais e as próprias mães: e, ali, entre as frias paredes do internato, ouviam-se durante muitos dias, quentes palavras de ternura, e sentiam-se estalar beijos de amor, por entre lágrimas de saudade. Só ele, o Coruja, não teve nada disso.

Viu despovoar-se aos poucos o colégio; retirarem-se os professores, os empregados, e afinal o último colega que restava. E então julgou-se de todos só e abandonado como uma pobre andorinha que não pudesse embandar-se à revoada das companheiras.

Só, completamente só.

É verdade que o diretor ocupava o segundo andar com a família, isto é, com a mulher e duas filhas ainda pequenas; mas as férias aproveitavam eles para os seus passeios, e além disso, o Coruja só poderia procurá-los à hora das refeições. Embaixo ficaram apenas o hortelão e o Caixa-d’óculos.

André pediu licença ao diretor para tomar parte no serviço da horta e obteve-a prontamente. Com que prazer não fazia ele esse trabalho todas as manhãs! Ainda o sol
não estava fora de todo e já o Coruja andava pela chácara, descalço, em mangas de camisa, calças arregaçadas, a regar as plantas e a remexer a terra. O hortelão, vendo o gosto que o ajudante tomava pelo serviço, aproveitava-o quanto podia e limitava-se a dirigi-lo.

— Ó Coruja, gritava-lhe ele, já em tom de ordem, a perna trançada e o cachimbo no canto da boca: — apara-me aí essa grama! Ou então: Remexe-me melhor aquele canteiro e borrifa-me um pouco mais a alface, que está a me parecer que levou pouca água!

As horas entre o almoço e o jantar dedicou-as o Coruja aos seus estudos, e às quatro da tarde descia de novo à chácara, onde encontrava invariavelmente o Caixa-d’óculos às voltas com uma pobre flauta, dentro da qual soprava ele o velho repertório das músicas de seu tempo.

Foi essa miserável flauta que acordou no coração de André o gosto pela música. Caixa-d’óculos deu por isso, arranjou um outro instrumento e propôs-lhe ministrar algumas lições ao pequeno. Esse aceitou com um reconhecimento muito digno de tão boa vontade, mas sem dúvida de melhor mestre, porque manda a verdade confessar que aquele não ofuscava a glória de nenhum dos inúmeros flautistas que ocupam a superfície da terra, contando mesmo os maus, os péssimos e os insuportáveis.

Mas o caso é que, depois disso, eles lá passavam as últimas horas da tarde, a duelarem-se furiosamente com as notas mais temíveis que um instrumento de sopro pode dardejar contra a paciência humana; e terminada a luta, recolhia-se André ao dormitório e pegava no sono até à madrugada seguinte.

As férias não lhe corriam por conseguinte tão contrárias, como era de supor, e só dois desgostos o atormentavam. Primeiro, não poder comprar uma flauta nova e boa; segundo, ver sempre fechada a biblioteca do Colégio.

Que curiosidade lhe fazia aquela biblioteca! Ele a rondava como um gato que fareja o guarda-comida; parecia sentir de fora o cheiro do que havia de mais apetitoso naquelas estantes, e, por seu maior tormento, bastava trepar-se a uma cadeira e espiar por cima da porta, para devassar perfeitamente a biblioteca.

Um suplício! Vinham-lhe até ímpetos de arrombar a fechadura; e, como consolação, passava horas esquecidas sobre a cadeira, na pontinha dos pés, a olhar de longe para os livros, procurando distinguir e ler o que diziam eles nas letras de ouro que expunham nas lombadas.

Alguns, então, lhe produziam verdadeiras angústias, principalmente os grandes, os de lombo muito largo, que aí estavam de costas, soberbos, como bojudos sábios, concentrados e adormecidos na sua ciência.

O Coruja tivera sempre um pendor muito particular por tudo aquilo que lhe cheirava a alfarrábio e línguas mortas. Adorava os livros velhos, em cuja leitura encontrasse dificuldades a vencer; gostava de cansar a inteligência na procura de explicação de qualquer ponto duvidoso ou de qualquer fosse sujeita a várias interpretações.

Já desde a casa do padre Estêvão que semelhante tendência se havia declarado nele. É que seu gênio retraído e seco dava-se maravilhosamente com esses amigos submissos e generosos — os livros; esses faladores discretos, que podemos interromper à vontade e com os quais nos é permitido conversar dias inteiros, sem termos aliás obrigação de dar uma palavra.

Ora, para o André, que morria de amores pelo silêncio, isto devia ser o ideal das palestras. Além do que, à sua morosa e arrastada compreensão só o livro podia convir. O professor sempre se impacienta, quando tem de explicar qualquer coisa mais de uma vez; o livro não, o livro exige apenas a boa vontade de quem estuda, e no Coruja a boa vontade era justamente a qualidade mais perfeita e mais forte.

Um dia, o diretor, descendo inesperadamente ao primeiro andar, encontrou-o  tão embebido a espiar para dentro da biblioteca que se chegou a ele sem ser sentido e deu-lhe uma ligeira palmada no lugar que encontrou mais à mão. O Coruja, trepado às costas de uma cadeira e agarrado à bandeira da porta, virou-se muito vermelho e confuso, como se o tivessem surpreendido a cometer um crime.

— Que faz o senhor aí, seu Miranda?

— Olhava.

— Que olhava o senhor?

— Os livros.

O Dr. Mosquito encarou-o de alto a baixo, e, depois de medir um instante acrescentou:

— Vá lá acima e diga à mulher que mande as minhas chaves.

André saltou do seu observatório e apressou-se a dar cumprimento às ordens do diretor.

Este, logo que chegaram as chaves, abriu a biblioteca e entrou. O pequeno, à porta, invadiu-a com um olhar tão sôfrego e tão significativo, que o Dr. Mosquito o chamou e perguntou-lhe qual era o livro que tanto o Impressionara. André coçou a cabeça, hesitando, mas a sua fisionomia encarregou-se de responder, visto que o diretor, depois de lamentar com um gesto a grande quantidade de pó encamado sobre os livros, foi à fechadura, separou do molho de chaves a da biblioteca e disse, passando-lha:

— Durante o resto das férias, fica o senhor encarregado de cuidar destes livros e de fazer tudo isto arranjado e limpo. Quer?...

André sacudiu a cabeça afirmativamente e apoderou-se da chave com uma tal convicção, que o diretor não pôde deixar de rir.

Logo que se viu só, tratou de munir-se de um espanador e de um pano molhado, e, com o auxílio de uma escadinha que havia na biblioteca, principiou a grande limpeza dos livros. Não abriu nenhum deles, enquanto não deu por bem terminada a espanação. Metódico, como era, não gostava de entregar-se a qualquer coisa sem ter de antemão preparado o terreno para isso.

Oh! Mas quão diferente foi do que esperava a impressão recebida, quando se dispôs a usufruir do tesouro que lhe estava franqueado. Não sabia qual dos livros tomar de preferência; não conseguia ler de nenhum deles mais do que algumas frases soltas e apanhadas ao acaso. E, toda aquela sabedoria encadernada e silenciosa, toda aquela ciência desconhecida que ali estava, por tal forma o confundiu e perturbou que, no fim de alguns segundos de dolorosa hesitação, o Coruja como que sentia libertar-se dos volumes a alma de cada página para se refugiarem todas dentro da cabeça dele. Bem penosas foram as suas primeiras horas de biblioteca. O desgraçadinho quase que se arrependeu de havê-la conquistado com tanto empenho, e chegue a desejar que, em vez de tamanha fartura de livros, lhe tivessem franqueado apenas quatro ou cinco.

Mas veio-lhe em socorro uma idéia que, mal surgiu, começou logo por acentuar-se-lhe no espírito, como uma idéia de salvação. Era fazer um catálogo da biblioteca.

Esta luminosa idéia só por si o consolou de toda a sua decepção e de todo o seu vexame. Afigurava-se-lhe que, catalogando todos aqueles livros num só, vê-los-ia disciplinados e submissos ao seu governo. Entendeu que, por esse meio, tê-lo-ia a todos debaixo da vista, arregimentados na memória, podendo evocá-los pelos nomes, cada um por sua vez, como o inspetor do colégio fazia a chamada dos alunos ao abrir das aulas.

E o catálogo ficou sendo a sua idéia fixa.

Principiou a cuidar dele logo no dia seguinte. Mas, a cada instante, surgiam-lhe dificuldades: não sabia como dar começo à sua obra, como levá-la a efeito. Tentou arranjar a coisa alfabeticamente; teve, porém, de abandonar essa idéia, como inexeqüível; numerou as estantes e experimentou se conseguia algum resultado por este sistema; foi tudo inútil. Afinal, depois de muitas tentativas infrutíferas, o acaso, no fim de alguns dias, veio em seu auxílio, atirando-lhe às mãos o catálogo de uma biblioteca da província.

Era um folheto pequeno, encadernado e nitidamente impresso. Coruja abriu-o religiosamente e passou o resto do dia a estudá-lo. Na manhã seguinte, a sua obra achava-se começada, pela nona ou décima vez, é certo, mas agora debaixo de auspícios muito mais prometedores.

E em todo o resto das ferias foi o seu tempo sistematicamente dividido entre o trabalho da horta, o estudo de seus compêndios, as lições do Caixa-d’óculos e a organização do famoso catálogo. Esta, porém, era de todas as suas ocupações a mais querida e desvelada; o que, entretanto, não impediu que ela ficasse por acabar depois da reabertura das aulas.

— Fica para mais tarde, pensou o Coruja, cheio de confiança na sua vontade.

E, sem confiar a sua idéia a ninguém, nem mesmo ao diretor, passava todos os dias feriados e todas as horas de recreio, metido na biblioteca, de cuja fiscalização continuava encarregado.
–––––––––––––––––––––––
continua…….

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte I

CAPÍTULO I
 
Quando, em uma das pequenas cidades de Minas, faleceu a viúva do obscuro e já então esquecido procurador Miranda, o pequenito André, único fruto deste extinto casal, tinha apenas quatro anos de idade e ficaria totalmente ao desamparo, se o pároco da freguesia, o Sr. padre João Estêvão, não o tomasse por sua conta e não carregasse logo com ele para casa.

Esta bonita ação do Sr. vigário levantou entre as suas ovelhas um piedoso coro de louvores, e todas elas metendo até as menos chegadas ao padre, estavam de acordo em profetizar ao bem-aventurado órfão um invejável futuro de doçuras e regalias, como se ele fora recolhido pelo próprio Deus e tivesse por si a paternidade de toda a corte celeste.

A Joana das Palmeirinhas, essa então, que era muito metediça em coisas de igreja, chegava a enxergar no fato intenções secretas de alguma divindade protetora do lugar e, quando lhe queriam falar nisso, benzia-se precatadamente e pedia por amor de Cristo que "não mexessem muito no milagre" É melhor deixar! Segredava ela. — É melhor deixar que o santinho trabalhe a seu gosto, porque ninguém como ele sabe o que lhe compete fazer! Mas o "pequeno do padre" como desd'aí lhe chamaram, foi aos poucos descaindo das graças do inconstante rebanho, pelo simples fato de ser a criança menos comunicativa e mais embesourada de que havia notícia por aquelas alturas.

O próprio Sr. vigário não morria de amores por ele, e até se amofinava de vê-lo passar todo o santo dia a olhar para os pés, numa taciturnidade quase irracional.

— Ora, que mono fora ele descobrir!... Dizia de si para si, a contemplar o rapaz por cima dos óculos. — Aquela lesma não havia de vir a prestar nem para lhe limpar as galhetas!

O pequeno era de fato muito triste e muito calado. Em casa do reverendo não se lhe ouvia a voz durante semanas inteiras; e também quase nunca chorava, e ninguém se poderia gabar de tê-lo visto sorrir. Se o vestiam e o levavam a espairecer um bocado à porta da rua, deixava-se o mono ficar no lugar em que o largavam; o rosto carrancudo, o queixo enterrado entre as clavículas, e seria capaz de passar assim o resto da vida se não tomassem a resolução de vir buscá-lo. A criada, uma velha muito devota, mas também muito pouco amiga de crianças, só olhava para ele pelo cantinho dos olhos e, sempre que olhava, fazia depois uma careta de nojo. "Apre! Só mesmo a bondade do Sr. vigário podia suportar em casa semelhante lorpa!"

E cada vez detestava mais o pequeno; afinal era já um ódio violento, uma antipatia especial, que se manifestava a todo o instante por palavras e obras de igual dureza. E a graça é que jamais nenhuma destas vinha só; era chegar a descompostura e aí estava já o repelão, em duas, três, quatro sacudidelas, conforme fosse o tamanho da frase.

O André deixava-se sacudir à vontade da criada, sem o menor gesto de oposição ou de contrariedade.

– Ah! Só mesmo a paciência do Sr. vigário!

Apesar, porém, de tanta paciência, o Sr. vigário, se não mostrava arrependido daquela caridade, era simplesmente porque esse rasgo generoso muito contribuíra para a boa reputação que ele gozava, não só aos olhos da paróquia inteira, como também aos dos seus superiores, a cujos ouvidos chegara a notícia do fato. Mas, no íntimo, abominava o pupilo; mil vezes preferia não o ter a seu lado; suportava-o, sabia Deus como! Como quem suporta uma obrigação inevitável e aborrecida.

Ah! Não havia dúvida que o pequeno era com efeito muito embirantezinho. Sobre ser uma criança feia, progressivamente moleirona e triste, mostrava grande dificuldade para aprender as coisas mais simples. Não era com duas razões, nem três murros, que o tutor conseguia meter-lhe qualquer palavra na cabeça. O pobre velho desesperava-se, ficava trêmulo de raiva, defronte de semelhante estupidez. E, como não tivesse jeito para ensinar, como lhe faltasse a feminil delicadeza com que se abrem, sem machucar, as tenras pétalas dessas pequeninas almas em botão, recorria aos berros, e, vermelho, com os olhos congestionados, a respiração convulsa, acabava sempre empurrando de si os livros e o discípulo, que iam simultaneamente rolar a dois ou três passos de distancia.

— Aquele maldito estúpido não servia senão para o encher de bílis! O melhor seria metê-lo num colégio, como interno... Era mais um sacrifício — Vá! Mas, com a breca! Ao menos ficava livre dele!

Oh! O bom homem já não podia agüentar ao seu lado aquela amaldiçoada criança. Às vezes, ao vê-la tão casmurra, tão feia, com o olhar tão insociável e tão ferrado a um ponto, tinha ímpetos de torcê-lo nas mãos, como quem torce um pano molhado.

Nunca lhe descobria a mais ligeira revelação de um desejo. À mesa comia tudo que lhe punha no prato, sem nunca deixar ou pedir mais. Se o mandavam recolher à cama, fosse a que hora fosse, deitava-se incontinente; se lhe dissessem "Dorme!" Ele dormia ou parecia dormir. "Acorda! Levanta-te!" Ele se levantava logo, sem um protesto, como se estivesse à espera daquela ordem.

Qualquer tentativa de conversa com ele era inútil. André só respondia por monossílabos, no mais das vezes incompreensíveis. Nunca fazia a ninguém interrogação de espécie alguma, e, certo dia perguntando-lhe o padre se ele o estimava, o menino sacudiu com a cabeça, negativamente.

— E que tal?... Considerou o vigário; — olha que entranhas tem o maroto!...
E segurando-lhe a cabeça para o fitar de frente:

— Com que, não gostas de mim, hein?

— Não.

— Não és agradecido ao bem que te tenho feito?

— Sou.

— Mas não me estimas?

— Não.

— E, se fores para o colégio, não terás saudades minhas?

— Não.

— De quem então sentirás?

— Não sei.

— De ninguém?

— Sim.

— Pois então é melhor mesmo que te vás embora, e melhor será que nunca mais me apareças! Calculo que bom ingrato não se está preparando aí! Vai! Vai, demônio! E que Deus te proteja contra os teus próprios instintos!

Entretanto, à noite, o padre ficou muito admirado, quando, ao entrar no quarto do órfão que dormia, o viu agitar-se na cama e dizer, abraçando-se aos travesseiros e chorando: "Mamãe! Minha querida mamãe!"

— São partes, Sr. vigário, são partes deste sonso!... Explicou a criada, trejeitando com arrelia.
CAPÍTULO II
André seguiu para o colégio num princípio de mês. Veio buscá-lo à casa do tutor um homem idoso, de cabelos curtos e barbas muito longas, o qual parecia estar sempre a comer alguma coisa, porque, nem só mexia com os queixos, como lambia os beiços de vez em quando.

Foram chamá-lo à cama às cinco da manhã. Ele acordou prontamente, e como já sabia de véspera que tinha de partir, vestiu-se logo com um fato novo que, para esse dia, o padre lhe mandara armar de uma batina velha. Deram-lhe a sua tigela de café com leite e o seu pão de milho, o que ele ingeriu em silêncio; e, depois de ouvir ainda alguns conselhos do tutor, beijou-lhe a mão, recebeu no boné, uma palmada da criada e saiu de casa, sem voltar, sequer, o rosto para trás. O das barbas longas havia já tomado conta da pequena bagagem e esperava por ele, na rua, dentro do trole. André subiu para a almofada e deixou-se levar. Em caminho o companheiro, para enganar a monotonia da viagem, tentou chamá-lo à fala:

— Então o amiguinho vai contente para os estudos?

— Sim, disse André, sem se dar ao trabalho de olhar para o seu interlocutor.

E este, supondo que o boné do menino, pelo muito enterrado que lhe ficara nas orelhas com a palmada da criada, fosse a causa dessa descortesia, apressou-se a suspender-lho e acrescentou:

— É a primeira vez que entra para o colégio ou esteve noutro?

— É.

— Ah! É a primeira vez?

— Sim.

— E morou sempre com o reverendo?

— Não.

— Ele é seu parente?

— Não.

— Tutor, talvez...

— É.

— Como se chamava seu pai?

— João.

— E sua mãe?

— Emília.

— Ainda se lembra deles?

— Sim.

E, depois de mais alguns esforços inúteis para conversação, o homem das barbas convenceu-se de que tudo era baldado e, para fazer alguma coisa, pôs-se a considerar a estranha figurinha que levava a seu lado. André representava então nos seus dez anos o espécime mais perfeito de um menino desengraçado.

Era pequeno, grosso, muito cabeçudo, braços e pernas curtas, mãos vermelhas e polposas, tez morena e áspera, olhos sumidos de uma cor duvidosa e fusca, cabelo duro e tão abundante, que mais parecia um boné russo do que uma cabeleira.

Em todo ele nada havia que não fosse vulgar. A expressão predominante em sua fisionomia era desconfiança, nas seus gestos retraídos, na sua estranha maneira de esconder o rosto e jogar com os ombros, quando andava, transparecia alguma coisa de um urso velho e mal domesticado.

Não obstante, quem lhe surpreendesse o olhar em certas ocasiões descobriria aí um inesperado brilho de inefável doçura, onde a resignação e o sofrimento transluziam, como a luz do sol por entre um nevoeiro espesso.

Chegou ao colégio banhado de suor dentro da sua terrível roupa de lustrina preta. O empregado de barbas longas levou-o à presença do diretor, que já esperava por ele, e disse apresentando-o:

— Cá está o pequeno do padre.

— Ah! Resmungou o outro, largando o trabalho que tinha em mão. — O pequeno do padre Estêvão. É mais um aluno que mal dará para o que há de comer! Quero saber se isto aqui é asilo de meninos desvalidos!... Uma vez que o tomaram à sua conta, era pagarem-lhe a pensão inteira e deixarem-se de pedir abatimentos, porque ninguém está disposto a suportar de graça os filhos alheios!

— Pois o padre Estêvão não paga a pensão inteira? Perguntou o barbadão a mastigar em seco furiosamente e a lamber os beiços.

— Qual! Veio-me aqui com uma choradeira de nossa morte. E, "porque seria uma obra de caridade, e, porque já tinha gasto mundos e fundos com o pequeno", enfim foi tal a lamúria que não tive outro remédio senão reduzir a pensão pela metade!

Os das barbas fez então várias considerações sobre o fato, elogiou o coração do Dr. Mosquito (era assim que se chamava o diretor) e ia a sair, quando este lhe recomendou que se não descuidasse da cobrança e empregasse esforços para receber dinheiro.

— Veja, veja, Salustiano, se arranja alguma coisa, que estou cheio de compromissos!

E o Dr. Mosquito, voltando ao seu trabalho, exclamou sem mexer com os olhos:

— Aproxime-se!

André encaminhou-se para ele, de cabeça baixa.

— Como se chama?

— André.

— De quê?

— Miranda.

— Só?

— De Melo.

— André Miranda de Melo... Repetiu o diretor, indo a escrever o nome em um livro que acabava de tirar da gaveta.

— E Costa, acrescentou o menino.

— Então por que não disse logo de uma vez?

André não respondeu.

— Sua idade?

— Dez.

— Dez quê, menino?

— Anos.

— Hein?

— Dez anos.

— An!

E, enquanto escrevia:

— Já sabe quais são as aulas que vai cursar?

— Já.

— Já, sim, senhor, também se diz!

— Diz-se.

— Como?

— Diz-se, sim, senhor.

— Ora bem! Concluiu o Mosquito, afastando com a mão o paletó para coçar as costelas.

E, depois de uma careta que patenteava a má impressão deixada pelo seu novo aluno, resmungou com um bocejo:

— Bem! Sente-se; espere que venham buscá-lo.

— Onde? Perguntou André, a olhar para os lados, sem descobrir assento.

— Ali, menino, oh!

E o diretor suspendeu com impaciência a pena do papel, para indicar uma das duas portas que havia do lado oposto do escritório. Em seguida mergulhou outra vez no seu trabalho, disposto a não interrompê-lo de novo: André foi abrir uma das portas e disse lentamente:

— É um armário.

— A outra, a outra, menino! Gritou o Mosquito, sem se voltar.

André foi então à outra porta, abriu-a e entrou no quarto próximo. Era uma saleta comprida, com duas janelas de vidraça que se achavam fechadas. Do lado contrário às janelas havia uma grande estante, onde se viam inúmeros objetos adequados à instrução primária dos rapazes. O menino foi sentar-se em um canapé que encontrou e dispôs-se a esperar.

Foi-se meia hora e ninguém apareceu. Seriam já quatro da tarde e, como André ainda estava só com a sua refeição da manhã, principiou a sentir-se muito mal do estômago. Esgotada outra meia hora, ergueu-se e foi, para se distrair, contemplar os objetos da estante. Levou a olhá-los longo tempo, sem compreender o que tinha defronte da vista. Depois, espreguiçou-se e voltou ao canapé. Mais outra meia hora decorreu, sem que o viessem buscar. Duas vezes chegou à porta por onde entrara na saleta e, como via sempre o escritório deserto, tornava ao seu banco da paciência. E, no entanto, o apetite crescia-lhe por dentro de um modo insuportável e o pobre André principiava a temer que o deixassem ficar ali eternamente.

Pouco depois de entrar para a saleta, um forte rumor de vozes e passos repetidos lhe fez compreender que alguma aula havia terminado; daí a coisa de cinqüenta minutos, o toque de uma sineta lhe trouxe à idéia o jantar, e ele verificou que se não enganara no seu raciocínio com o barulho de louças e talheres que faziam logo em seguida. Depois, compreendeu que era chegada a hora do tal recreio porque ouvia uma formidável vozeria de crianças que desciam para a chácara.

E nada de virem ao seu encontro.

— Que maçada! Pensava ele, a segurar o estômago com ambas as mãos.

Afinal, a escuridão começou a invadir a saleta. Havia cessado já o barulho dos meninos e agora ouviam-se apenas de vez em quando alguns passos destacados nos próximos aposentos. Em tais ocasiões, o pequeno do padre corria à porta do escritório e espreitava. Ninguém.

Já era noite completa, quando um entorpecimento irresistível se apoderou dele. O pobrezito vergou-se sobre as costas do canapé, estendeu as suas pernitas curtas e adormeceu.
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continua…
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