sábado, 23 de outubro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 12: Luiz Otávio

 

Fernando Pessoa (Diário de Bernardo Soares*) "1"

* Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, semi heterônimo de Fernando Pessoa.
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Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais calmos — tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.

Mas há mais alguma coisa… Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!

Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.

Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio — inconsciência, muitos ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas — salada coletiva da vida.

Fonte:
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. Disponível em Domínio Público.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 12


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cospe prosa
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apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
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as flores
são mesmo
umas ingratas

a gente as colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós

nunca tivesse
havido vênus
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dança da chuva

senhorita chuva
me concede a honra
desta contradança
e vamos sair
por esses campos
ao som desta chuva
que cai sobre o teclado
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eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
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furo a parede branca
para que a lua entre
e confira com a que,
frouxa no meu sonho,
é maior do que a noite
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moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
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não fosse isso e era menos
não fosse tanto e era quase
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que tudo passe

passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
e passe a paz

passe o que nasce
passe o que nem
passe o que faz
passe o que faz-se

que tudo passe
e passe muito bem
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tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada para
para ser ventura
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um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos. Publicado em 1983.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Adega de Versos 52: Daniel Maurício

Fonte: Facebook do poeta.
 

Hans Christian Andersen (A Pena e o tinteiro)


Era no gabinete de um poeta. o tinteiro achava-se sobre a mesa, e alguém disse:

- É estranho quanta coisa pode sair de um tinteiro! Qual será a próxima obra? É na verdade estranho!

- Sim - disse o tinteiro- É prodigiosa! E é o que estou sempre a dizer. 
 
Dirigindo-se à pena e aos outros objetos que estavam ali e podiam ouvi-lo, continuou:
 
 - É quase inacreditável. Realmente, não sei qual será a futura obra que vai sair, quando o homem se põe a me sugar. Uma gota que tira de dentro de mim basta para encher meia página de papel, e quanta coisa pode  estar contida nela! Sou na verdade uma coisa muito singular! É de mim que saem todas as obras do poeta, todos esse seres vivos que o leitor julga conhecer, os sentimentos ternos, o humor, as encantadoras descrições da natureza...Eu mesmo não compreendo, porque não conheço a natureza; mas tudo isso está em mim! Foi de mim que saíram e continuam saindo aquelas multidões de moças, lindas e graciosas, de galhardos cavalheiros, montando soberbos corcéis; de cegos e aleijados - e nem eu mesmo sei quanta coisa mais. Mas, palavra de honra! Faço tudo isso sem pensar.

- Nisso tens razão - disse a pena. - Tu não pensas absolutamente em nada; a não ser assim, saberias que apenas forneces o líquido; dás a matéria líquida, para que eu possa manifestar o que reside em mim, aquilo que escrevo. Sim! Quem escreve é a pena! Homem nenhum o põe em dúvida. E no entanto, a maioria dos homens tem tanta compreensão da poesia como um tinteiro velho.

- Ora, tu não tens muita experiência. Mal faz uma semana que estás servindo, e já te gastaste até a metade! Imaginas que és o poeta...Não passas de uma servente; antes que viesses já tive muitas outras da tua espécie, tanto da família dos patos, como de fabricação inglesa:  conheço tanto a pena de tubo, como a de aço. Muitas já me auxiliaram, e ainda hei de me servir de muitas outras, quando vier o homem que faz os movimentos em meu lugar, e escreve o que sai do meu interior.

– Humpf, seu potinho de tinta! – retorquiu a pena, com desdém.

Á tardinha voltou o poeta. Assistira a um concerto, ouvira um excelente violinista, e sentia-se arrebatado por aquela arte maravilhosa. O artista tirava do instrumento sons prodigiosos: ora fazia-o vibrar, como sonoras gotas d'água, ora como pérolas a rolarem; já, era um coro de passarinhos gorjeando, já, o murmúrio do vento num pinheiral. O poeta tivera a impressão de ouvir o pranto do próprio coração, mas em melodias que pareciam ressoar em uma voz de mulher. Era como se vibrassem não só cordas do violino, mas também o cavalete, e as cravelhas, e o tampo. Fora um concerto extraordinário!

Era certamente difícil, tocar assim; mas parecia apenas um passatempo; era com os e o arco dançasse pelas cordas, acima e abaixo. Diria até que qualquer pessoa poderia imitá-lo...O violino soara por si, o arco tocara sozinho; ambos, sozinhos, faziam tudo, e os ouvintes esqueciam o mestre que os conduzia, inspirando-lhes vida e alma.

Sim, quem fica esquecida era o mestre; mas o poeta lembrou-se dele; pronunciou-lhe o nome e tomou nota de suas impressões.

- Que coisa ridícula, o violino e o arco a se vangloriarem de suas façanhas! E, contudo, nós, homens, quantas vezes o fazemos - o poeta, o artista, o inventor, o cientista, o general - todos o fazem! E no entanto, somos apenas os instrumentos, tocados pela mão de Deus. A ele somente se deve toda a glória. Nós nada temos de que nos orgulhar.

Sim! Foi isso o que poeta escreveu, em uma parábola, a que chamou "O Mestre e os Instrumentos".

- Quem levou uma boa sova, foste tu! – disse a pena para o tinteiro, quando os dois ficaram sozinhos de novo. – Você ouviu quando ele leu em voz alta o que eu havia escrito?

- Sim, ele leu aquilo que eu te dei para que escrevesses. Foi uma bofetada que levaste, pela tua arrogância. Nem sequer percebes quando és alvo de ironias... Dei-te uma bofetada, saída diretamente do meu interior: eu, ao menos, conheço a minha própria malícia.

– Vidrinho de tinta!

– Pauzinho de escrever!

Assim, ambos ficaram satisfeitos por terem dado uma boa resposta. É muito agradável acreditar que decidimos uma questão dando a última palavra, é algo que nos faz dormir bem. E naquela noite os dois dormiram bem.

Só o poeta não dormiu. Seus pensamentos se agitavam dentro dele como os sons do violino, caíam como pérolas e farfalhavam como o vento forte no meio da floresta. Nesses pensamentos, o poeta compreendia o próprio coração; eram como raios que partiam da mente do eterno Mestre.

“Unicamente a Ele é devida toda a glória.”

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) – 8 –


A alma
É uma centelha de D'us
Que em nós habita.
E quando saudosa
Faminta suplica
Pela Árvore da Vida
Que com o seu fruto
A mantém
Imortal.
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A insônia
Roncava tão alto
Que não me deixava dormir.
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As aspas
São caspas
Nas cabeças
Das palavras.
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Ela
Bebeu tanta solidão
Que embriagou-se
Com meia taça
De carinho.
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Emotiva
Ela era de choro fácil.
Acho que tinha as lágrimas
Aninhadas nos caracóis
Dos cabelos das nuvens.
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Londres...
O teu céu cinza
Veste o meu olhar
Que vai buscar estrelas.
Estrelas... até brilham nos postes
Mas não nos meus olhos saudosos.
Passos apressados...
Acho que é a liberdade que corre
E todos vão atrás.
Triste, meu peito-gaiola
Aprisiona o pardal irrequieto,
Que agora discreto
Engoliu seu canto
Pra não se perder entre a multidão.
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Meus pensamentos
São barcos que me levam
A lugares,
Em que talvez,
Meus pés não possam ir.
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Na memória,
A balança ainda balança
A Ciranda cirandinha ainda se canta,
Passa-se o anel
E a peteca sobe até ao céu
Voando penas nos meus olhos.
E a bola no campinho
Ainda se disputa com brigas
Mas também com muito carinho,
Entre os meninos
Que eram mais do que irmãos.
Corre solta a saudade louca
Dos jogos de bets,
Pega-pega, cabra-cega,
Mocinho e ladrão.
Queima em meu peito
As brincadeiras de queimadas,
Pique-latinha, esconde-esconde,
Arco e flecha e até de espadas.
Onde será que a alegria de outrora se esconde
Pois já não tem os grandes quintais
E pra pular corda nem tem mais onde.
De figurinhas, vazios estão meus bolsos
Cheios mesmo só meus olhos
Dessas menenices
Que guardo no coração.
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Nas luzes de Manhattan
Embriagam-se meus olhos.
Ao som de uma música azul,
Bebo as estrelas
Numa taça borbulhante.
A ausência de um amor
Com letras maiúsculas,
Arde o meu peito.
E pelas ruas noite a dentro,
Sedento,
Tão cioso me reinvento.
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O resto do amor antigo
Para o próximo
Não se aproveita.
Esvaziar a casa é preciso
Para de amor
Fazer nova colheita.

Murilo Rubião (os Dragões)


"Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes."
(Jó, XXX, 29)


Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.

Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas. O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.

Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior ao dos pretendentes.

Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.

Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me a calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:

— São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!

Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.

Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues para serem educados, compreendi a extensão da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Mais bem-dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes oferecia.A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos.

No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão. Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.

Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites mal dormidas e ressacas alcoólicas.

O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal. Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.

Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.

Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los. Enfrentavam-me com uma resistência surda, impenetrável. As minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava.

Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.

Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava cambalhotas.

Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.

O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros, acendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem a sua presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade.

Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos e palmas ritmadas:

— Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!

Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:

— Que venha essa coisa melhor!

Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira proeza de vomitar fogo.

Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal.

Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos, verificou-se a fuga de João.

Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas, especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício da bebida.

Seja qual for a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.

Fonte:
Murilo Rubião. O pirotécnico Zacarias. Publicado em 1974.

Murilo Rubião (“Os Dragões”) Análise do Conto

Artigo de Vinícius Ferreira dos Santos (UEL)*


Antes de iniciar a análise do conto “os dragões” de Murilo Rubião, faz-se necessário entender as definições sobre o fantástico e sua relação com a ideia do real. O gênero fantástico lida com uma causalidade narrativa que não é atestada no real. O termo fantástico (do latim phantastica e antes do grego phantastikós) aponta para algo que é criado pela imaginação, que não existe na realidade.

A constituição do real tem características arbitrárias e é constituído pelo referencial do leitor: “Seus valores culturais, que se atualizam através da história, forjam padrões de julgamento (juízo) que caracterizam os aspectos normativos” (SCHWARTZ, 1981, p.54). Para tanto, o fantástico transpassa o universo do concreto, do real e do cotidiano, residindo a partir da linguagem.

Murilo Rubião “trazia em seu estilo as tintas do gênero” que, posteriormente, seria chamado de literatura fantástica. De escrita fácil, direta e inteligente seus contos invadem o espaço da fantasia para fazer uma crítica sutil à sociedade.

É notório nos contos de Murilo Rubião epígrafes bíblicas, especificamente, do antigo testamento, ele não as usa por seu sentido religioso, mas como chaves de leitura ou ampliação de sentido das narrativas.

No conto “Os Dragões” a epígrafe remete ao livro bíblico de Jó, capítulo 30 versículos 29 “Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes”. Tanto os dragões presente na epígrafe, quanto no conto, representam na cultura judaica uma literatura descritiva do mundo animal ligados a Jó - assim como monstros, corujas e dentre outros. Desse modo, os dragões que foram inseridos no texto possuiriam um caráter de estranhamento e desconhecido, e sendo assim não são aceitos pela sociedade. Os dragões representam uma idealização do bem e do mal e comumente eles têm uma energia que é criadora e outra destruidora.

Vale destacar que, os dragões, no conto cumprem uma função na sociedade que estimula o preconceito e a intolerância na comunidade que se instala. “Poucos souberam compreendê- los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer” (RUBIÃO, 1998). O ser humano necessita de uma história e de um contexto para compreender-se enquanto ente no mundo, enquanto, os dragões, são sujeitos históricos e sem contexto, por isso sofrem preconceitos de algumas pessoas da sociedade, pois, uma comunidade que é tradicional tem dificuldades de aceitar o que é diferente ao seu redor.

Apenas as crianças não se importaram com a presença dos dragões na comunidade, talvez por não serem influenciadas pelo modo de pensar dos adultos: “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões” (RUBIÃO, 1998).

Fazendo uma correlação com o conto “Teleco o coelhinho”(1) que tem como base as transformações repentinas do coelhinho em outros animais, que nos mostra a sua tentativa de adaptação a este mundo, no qual já não são tão comuns valores como a pureza e a bondade. Teleco que queria tanto ser humano torna-se no fim de sua vida, sem dentes e encardido. Neste momento do conto o narrador obriga os leitores a enxergar de fato que a imperfeição rege a vida humana.

A partir dessa análise foi possível constatar que tanto “Os Dragões”, quanto o “Teleco, o coelhinho” os personagens representam um elemento simbólico na narrativa que não é atestada no real, mas que causa estranheza e faz com que o leitor remeta a ideia do mundo real.

Com a chegada das criaturas na pequena cidade, muitas teorias foram discutidas pela população. Primeiro o vigário: que acreditava serem dragões enviados do demônio. Já o velho gramático negava “a qualidade de dragões, “coisa asiática de importação europeia”. Enquanto o jornalista via nas criaturas monstros antediluvianos, referindo-se ao dilúvio e a arca que figuram do Antigo Testamento.

Após o abandono dos dragões, por não terem serventia para a população, o personagem narrador, um professor, decide alfabetizá-los e dar-lhes um nome. Porém, era sabido por ele que eram dragões e deveriam ser tratados como tal. Muitos, assolados por moléstias e doenças provenientes dos homens, vieram a falecer, ficando apenas dois “infelizmente os mais corrompidos”: João e Odorico.

Ao serem perguntados sobre o passado, ambos não se lembravam, a não ser sobre a entrada na cidade: “Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha”. Tanto “montanha” quanto “precipício” são figuras que ecoam no Antigo Testamento. A primeira é lembrada enquanto fortaleza, protegida por Deus e simboliza segurança; e a segunda sinaliza perigo, devido à profundeza onde habita o desconhecido.

A preocupação maior do professor é a iniciação à maioridade de João: “João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade”. O fogo remete a figurações dúbias: pode significar tanto uma força criatura quanto destruidora; e pode, também, significar a iluminação pela sabedoria e purificação da compreensão; já a destruição de Sodoma e Gomorra, presente no livro de Gênesis no Antigo Testamento, foi a partir do fogo e do enxofre.

A presença de subtextos bíblicos também remete a uma possível finitude da cidade no conto: “Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município [...]”. No conto, os habitantes esperam a chegada de outros dragões, talvez por já estarem condenados ao fim. Enquanto a já referida cidade bíblica fora condenada a destruição, a cidade de “Os Dragões” é condenada a eternidade, dando esse caráter de reiteração, voltando assim novamente à epígrafe.

O subtexto bíblico parece revelar um paradoxo que acompanha a maioria dos contos de Murilo Rubião. Ao que tudo indica, ao preferir a eternidade na própria vida, nega a integridade católica, amplamente difundida na cultura da América-Latina.
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Fonte:
* Anais do X SEPECH - Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas da UEL. 2014. (Seminário). p. 733 a 743.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 529


 

Paulo Mendes Campos (O canarinho)

Atacado de senso de responsabilidade num momento de descrença de si  mesmo, Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a  sua passarinhada. Às crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não aguentou a crise da puberdade morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos, com um fanatismo que impunha respeito ou piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme, com a sua fé.

A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados chapinha ou da terra, e que mais cantam por boa vontade que vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul.

Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça, há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os  bichos comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem.

Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia*, mas que havia de fazer?

Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, relegado agora à área, onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha. Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas.

E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso  não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu inda possa ter.  Assim, vendo o passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho. A empregada viu e veio contar-nos.

Mas, cadê o menino? Voado? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de  expressão  tão  dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas.

O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca mais.

Mas voltou. Na hora do almoço, a empregada  veio  dizer-nos  que ele estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito  triste.

É verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e com fome. Um  ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso canário-da-terra, a doer em nossos olhos.

Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo, dizendo never more. Este refrão (never more) me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui de casa está triste, ridiculamente    triste, nesta manhã luminosa de junho.
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* Serôdia = tardia

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. Autor, 1960.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXII

A CHAMA DO AMOR...

MOTE:
Peço a Deus que o tempo corra
e corra a nosso favor,
para que este amor não morra,
antes que eu morra de amor!...

Aloísio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
Peço a Deus que o tempo corra

e que una mais, a nós dois,
e que apressado, concorra
pra antecipar o depois!

Quero que seja veloz
e corra a nosso favor,
impulsionado, na voz
desse nosso grande amor!

Peço a Deus que nos socorra,
que encurte as horas, um pouco,
para que este amor não morra,
nem diminua, tampouco!

Eu quero ter a certeza
que essa chama, com fervor,
continue sempre acesa...
antes que eu morra de amor!…
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LUA DA PAIXÃO...

MOTE:
Da paixão em nós presente
fulge um desejo tão farto,
que a lua, em quarto crescente
parece cheia em meu quarto...
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:
Da paixão em nós presente

entre suspiros e beijos,
aumentam, sempre, entre a gente,
os nossos sensuais desejos!

E nessa doce emoção,
fulge um desejo tão farto,
que todo o meu coração,
contigo, amor, eu reparto!

Essa explosão envolvente,
tem tanta força a mostrar,
que a lua, em quarto crescente
não se cansa de aumentar!

É tanta a luz, que irradia,
que de luz se faz um parto
e a Lua, em sua magia,
parece cheia em meu quarto…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LAVOURAS DO CÉU

MOTE:
Pela magia do vento,
que leva a semente ao léu,
elevo meu pensamento,
para as lavouras do céu!
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

GLOSA:

Pela magia do vento,
eu viro um mago, a sonhar
e é em agradecimento,
que então me ponho a rezar!

Esse vento tão faceiro
que leva a semente ao léu,
faz vezes de feiticeiro,
num brando e lindo escarcéu!

Vendo o vento em andamento
bailando pelo universo,
elevo meu pensamento,
e nasce, então, o meu verso!

Esse vento vou lembrar
como um doirado troféu,
vou pedir chuva e luar
para as lavouras do céu!
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DUAS TRAPAÇAS

MOTE:
Nós somos duas trapaças
usando a mesma altivez:
- Eu finjo que tu não passas...
- Tu finges que não me vês...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:
Nós somos duas trapaças,

tentando nos enganar;
vestimos nossas couraças,
mas continuamos a amar!

Guardamos nosso segredo
usando a mesma altivez,
num silêncio que dá medo,
que nem o tempo desfez!

Com teu olhar, tu me abraças,
mas eu faço que nem vejo...
- Eu finjo que tu não passas...
e sufoco o meu desejo!

Bate forte o coração,
quando tu passas... de vez,
mas fria e sem emoção,
tu finges que não me vês.
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ESPERANÇAS NAUFRAGADAS...

MOTE:
Pelo mar das ilusões,
pelas paragens salgadas,
fui buscar embarcações
de esperanças naufragadas...
Renata Paccola
São Paulo/SP

GLOSA:

Pelo mar das ilusões,
eu me pus a navegar,
e, ao pulsar de corações
comecei a procurar...

Segui, assim, minhas rotas
pelas paragens salgadas...
Nessas paragens remotas,
procurei contos de fadas!

Explodindo em emoções
de riso e pranto, alternados,
fui buscar embarcações
entre sonhos tão sonhados!

Sete mares, eu cruzei,
em incessantes jornadas
mas só um porto, encontrei,
de esperanças naufragadas...

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Aparecido Raimundo de Souza (Macacos me mordam)


O telefone celular de repente começou a tocar insistentemente dentro da mochila que o Bigode trazia às costas. Sem pressa, tirou-a e colocou no chão. Abriu um compartimento pequeno fechado por um zíper e pegou o aparelho que se esgoelava. Era o Paulo.

— Alô! Paulo? Sou eu. Fale...

— Bigode, por que demorou pra atender? Onde você está?

— Onde marcamos. Na porta da casa que você me passou o endereço ontem à noite. Lembra?

— Seu mentiroso. Então me diga: o que tem aí na frente dessa residência?

— A entrada...

— ...O quê?

— Na porta de acesso tem a entrada, ora bolas.

— Seu imbecil, você ainda nem saiu da cama. Se realmente está aonde te mandei, me fale o que tem na porta, junto à entrada.

— Você não explica! Só o velho senhor Capacho.

— Um velho capacho? E quem colocou essa porcaria aí?

— Isso eu não sei. O fato é que toquei duas vezes a campainha e ele apareceu.

— Não estou entendendo. Você tocou a campainha duas vezes e ele apareceu? Ele quem, apareceu?

— Meu Deus, Paulo, o seu Capacho. De quem estamos falando?

— Bigode, o capacho não está no chão?

— Não, o seu Capacho está em pé, na minha frente com um copo de café numa das mãos e um pedaço de pão com manteiga na outra. É um senhor simpático de idade bastante avançada. Foi ele que veio atender a campainha.

— Um... Um senhor?

— Em carne e osso. É a ele que me refiro desde o começo da nossa conversa.

— Pastel. Você é um pastel.

— Ah! Bem lembrado. O Pastel. Está quase chegando. Você tirou as palavras da minha boca.

— Quem está quase chegando?

— O Pastel. E, de lambuja, trazendo um ajudante.

— Bigode, pelo amor de Deus, que pastel, que ajudante?

— Pastel é meu vizinho, seu bocó e está vindo para cá com outro amigo nosso, que mora no mesmo bairro. O nome dele é Bolinho de Carne.

— Como? Bolinho de carne?

— Isso. Um ajudante porreta. Sempre que o serviço aperta costumo convocar os dois. Assim como você lembrou de mim e me chamou... Fiz o mesmo com Pastel e Bolinho. Eles vão nos dar uma mãozinha na retirada dos cacarecos.

— Bigode, seu espertinho de uma figa. Entra logo nessa droga de casa e comece a desmontar os móveis.

— Tenho que esperar pelo Pastel e pelo...

— ...Entre logo e deixe de palhaçadas. Estou chegando aí com o caminhão em menos de meia hora. Nesse tempo quero as tranqueiras todas desmontadas. Com ou sem esse pastel ou bolinho de carne.

— Está bem, está bem, você é quem manda. Agora fale com o senhor Capacho.

— Não quero...

Apesar do contra, Bigode passou o celular para o ancião.

— Bom dia, meu amigo. Com quem falo?

— Paulo. Meu nome é Paulo. E o senhor?

— Eu sou o Capacho.

— O senhor ligou para meu patrão ontem a tarde pedindo um caminhão a frete?

— Positivo. Liguei sim.

— Seu nome é realmente Capacho?

— Na verdade, José Capacho da Silva Oliveira. Capacho para os amigos.

— Desculpe. Nunca antes de hoje havia falado com alguém que tivesse um nome tão...

— ...Tão...?

— ...Tão fora do comum, excêntrico...

— Agradeço seus elogios. Geralmente as pessoas acham estrambótico.

— Que diabo vem a ser isso?

— Extravagante.

— Concordo plenamente.

— Obrigado. Bem, voltando ao nosso caso, quanto tempo o senhor acha que levará para desmontar todos os meus móveis e acomodar no seu caminhãozinho?

— Caminhão. Eu tenho um caminhão. Pois bem. Vai depender aí do Bigode que está ao seu lado.

Risos.

— Ele me parece um bom rapaz. Só acho que sozinho não conseguirá. Tenho muita tranqueira. Sabe como é: velho adora coisas antigas.

— Não se preocupe seu Tapete. Vamos dar conta do recado.

— Perdão, seu Paulo. Não é tapete, é Capacho.

— Mil desculpas. Cabeça cheia de preocupações dá nisso…

— Eu compreendo. Deixa perguntar uma coisa, seu Paulo. Não é mais viável aguardarmos a sua chegada com seu caminhãozinho e a dos dois rapazes?

Paulo começou a dar sinais de que a conversa não lhe agradava nem um pouco, quando o senhorzinho, com certa insistência, passou a se referir ao seu veículo como caminhãozinho. Precisava dar o troco.

— Meu caminhão não é caminhãozinho. Eu tenho um caminhão. Mas a que rapazes o senhor se refere?

— Aos que seu amigo aqui está esperando. Só um minuto. Seu Bigode, como é mesmo o nome dos ajudantes?

— Pastel e Bolinho de Carne.

Novos risos.

— Pastel e Bolinho de Carne.

— Macacos me mordam, seu Limpa Solas. Eu...

Nessa hora, o sujeito ao ser chamado de Limpa Solas se abalou da base ao cimo, deixando que a cólera o dominasse completamente. Paulo finalmente se vingara do coroa.

— Seu Paulo, por favor. Não gosto de brincadeiras, principalmente com meu nome. Capacho. Capacho. Será que é tão difícil? Tome. Já me aborreci. Fale com seu amigo. Passe bem.

— Fala, mano!

— Imbecil. Tinha que dar o telefone para o tal do Carapátio?

— Paulo, não é Carapátio, é Capacho. Capacho.

Ouvindo essa balela do outro ter lhe alcunhado de Carapátio, o velhote perdeu a esportiva e as estribeiras, de uma só vez. Tomou o telefone do Bigode e explodiu:

— Seu... Seu Paulo, o senhor vá sacanear a sua mãe. Carapátio uma ova. Fui claro? Além de tapete, limpa solas e não sei mais o quê, tem a cachimônia de me comparar ao navio que deu socorro ao Titanic? Vá a @#$#@&%. E de barquinho, que é para chegar mais rápido. Outro detalhe: não é Carapátio, é Carpathio, com “th”.

Paulo ao invés de tentar contornar a situação, já que havia tirado o velho do sério, resolveu continuar com a provocação:

— O senhor deveria é ficar agradecido e lisonjeado. O apelido que lhe arranjei, sem querer, em nenhum momento veio denegrir a sua imagem de cidadão de bem. Como o prezado lembrou aí, Carpathio, com "th", foi o nome de uma embarcação que salvou muitas vidas num dos desastres mais famosos da história. Além de não ter afundado, o que é mais importante.

— Pois fique sabendo que vou afundar a mão na sua fuça tão logo chegue aqui com seu caminhãozinho. Aliás, depois dessa conversa fiada, não vai ter mais mudança. Agora mesmo sairei para contratar outro pessoal. Seu Paulo, passe muito bem... Ou mal.

— Por favor, tenha calma. Vamos esperar então pelo Pastel e o Bolinho...

— Não vamos esperar ninguém. E quer saber? Comerei esses dois assim que pintarem na área... E o senhor e o seu caminhãozinho de lambuja, como sobremesa. Para terminar nosso papo, assim que acabar de tomar meu café palitarei os dentes com o seu comparsa aqui, o Bigode.

Temendo a ira da criatura que parecia atabalhoada e completamente fora de si, Bigode não esperou para ouvir o final da conversação, àquela altura completamente fora de esquadro. Tratou de passar a mão na mochila e dar no pé. Teve sorte. Num ímpeto de raiva, seu Capacho atirou o telefone contra sua cabeça. Não acertou. O velho, ensandecido, e soltando fogo pelas ventas errou a pontaria.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Ed. Sucesso, 2012. Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (Capitú Mandou Flores, de Rinaldo de Fernandes [org.])


Num desafio criativo sem precedentes, 40 autores brasileiros contemporâneos reescrevem contos famosos de Machado de Assis, recontando, à luz de hoje, histórias que o bruxo tornou eternas

No centenário da morte de Machado de Assis, a Geração Editorial lança uma coletânea audaciosa e sem precedentes: um grupo de 40 autores brasileiros de alto nível pratica o exercício original, estimulante e desafiador de recriar, a partir do tema, dez das melhores histórias do maior escritor brasileiro de todos os tempos. O livro – “Capitu mandou flores” surgiu da ideia do premiado contista, doutor em Letras pela Unicamp e professor universitário Rinaldo de Fernandes, autor de antologias de sucesso como “Contos Cruéis” e “O Clarim e a Oração”, da mesma editora.

Na década de 70, o escritor Osman Lins já havia proposto a cinco autores – Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles e Nélida Pinõn –, além dele próprio, recriar o lendário conto “Missa do Galo”, o que fizeram com grande maestria e resultou no livro Missa do Galo – variações sobre o mesmo tema. Ninguém, até agora, havia proposto a empreitada de se recriar 10 histórias e publicá-las juntamente com as recriações.

Na presente antologia, os dez contos reescritos são o próprio “Missa do Galo” e ainda “A Cartomante”, “O Espelho”, “Noite de Almirante”, “A causa secreta”, “Pai contra mãe”, “O Alienista”, “ Uns braços”, “O Enfermeiro” e “Teoria do medalhão”. Para ampliar o projeto, alguns autores recriaram também trechos e situações do romance Dom Casmurro. Além dos contos originais de Machado de Assis – e um resumo de Dom Casmurro – o livro contém também cinco ensaios sobre a obra de Machado.

Para que serve um livro como este? Em primeiro lugar, informa a editora, trata-se de um reencontro com a obra de Machado de Assis, nos cem anos de sua morte. Ler – para as novas gerações – ou reler 10 das melhores histórias de Machado é sem dúvida uma experiência literária e humana muito rica. Ler como autores consagrados, emergentes ou promissores recontaram as mesmas histórias é também exercício intelectual mais do que estimulante.

Entre os autores, estão consagrados como Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Hélio Pólvora e outros, como Daniel Piza,André Sant'Ánna, Fernando Bonassi, Nelson de Oliveira, Antonio Carlos Secchin, Glauco Mattoso, Hélio Pólvora, Nilto Maciel, Regina Zilberman, W. J. Solha entre os 40 escritores participantes desta obra.

Fonte:
Geração Editorial
http://geracaoeditorial.com.br/capitu-mandou-flores/

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 5

 


Hans Christian Andersen (Os Namorados)


O Pião e a Bola achavam-se numa gaveta, junto com outros brinquedos, e o Pião disse a Bola:

- Não vamos ser namorados, já que estamos juntos na mesma gaveta?

A Bola, porém, feita de marroquim, e tão vaidosa como uma senhorita elegante, nem resposta quis dar a semelhante pergunta.

No dia seguinte, veio o menino, dono dos brinquedos. Pintou o Pião de vermelho e amarelo, e pregou-lhe bem no centro um prego de latão. Era muito bonito quando o Pião girava.

- Olhe para mim - disse o Pião à Bola - que diz você agora? Não vamos então ser namorados? Servimos muito bem um para o outro: você pula e eu danço. Ninguém poderá ser mais feliz que nós dois.

- É o que o senhor pensa - disse a Bola - certamente não sabe que meu pai e minha mãe foram chinelos de marroquim, e que tenho dentro de mim uma cortiça.

E eu sou feito de mogno - disse o Pião - o próprio prefeito me torneou em seu torno, o que lhe deu um grande prazer.

- Se eu pudesse acreditar nisso! - disse a Bola.

- Quero nunca mais ver uma fieira em toda a minha vida se for mentira o que eu disse - respondeu o Pião.

– O senhor advoga bem a própria causa - disse a Bola - mas não posso namorar. Estou quase comprometida com um sr. Andorinha. Cada vez que subo ao espaço, ele põe a cabeça fora do ninho e pergunta: "Quer? Quer?" Ora, eu intimamente já disse que sim, o que equivale a um meio compromisso. Mas lhe prometo que nunca o esquecerei!

- E isso vai adiantar muito! - disse o Pião.

E nada mais disseram.

No dia seguinte vieram buscar a Bola. O Pião viu como ela subia a grande altura, como um pássaro, desaparecendo de vista. Voltava todas as vezes, mas dava um grande salto cada vez que tocava o chão. Devia ser por causa das saudades, ou por causa da cortiça que ela tinha dentro dela. A nona vez a Bola subiu ao alto, e não mais voltou. O menino procurou muito, e nada: a Bola sumira.

- Bem sei onde ela está - suspirou o Pião - está no ninho do sr. Andorinha e com ele se casou.

Quanto mais o Pião pensava naquilo, tanto mais se apaixonava pela Bola. Por não poder tê-la, seu amor por ela aumentava. O fato de ter ela ficado com outro, tornava o caso mais apaixonante. O Pião dançava ao redor e zunia, mas sempre pensava na Bola, que em seus pensamentos se foi tornando cada vez mais bonita. Passaram-se assim muitos anos e o amor do Pião transformou-se num velho sonho.

O Pião não era mais moço. Um dia, porém, foi inteiramente pintado de dourado. Nunca fora antes tão bonito. Era agora um Pião de Ouro, e pulava, deixando um zunido pairando no ar. Aquilo sim, era formidável! Mas de repente ele saltou alto demais - e sumiu.

Procuraram por toda a parte, até na adega, mas nada de aparecer o Pião.

- Onde estaria ele?

Pulara para dentro da barrica de lixo, onde jaziam amontoados talos de couve, cisco e entulho caído da calha.

"Estou bem arrumado" - pensou o Pião - "aqui a douração não tardará a sair de mim. E que gentalha é essa em cujo meio vim parar! "

Olhou de esguelha para um longo talo de couve e para um estranho objeto redondo, que parecia uma maçã velha. Mas não era uma maçã. Era uma velha Bola que durante muitos anos estivera caída na calha, embebida de água.

- Graças a Deus, aí vem alguém com quem se pode falar - disse a Bola ao ver o Pião Dourado - eu, para falar a verdade, sou de marroquim, costurada pelas mãos de uma gentil senhorita, e tenho uma cortiça dentro de mim. Mas duvido que se veja isso agora. Eu estava prestes a casar-me com uma andorinha quando caí na calha, e ali estive por cinco anos, encharcada de água. É um longo tempo, pode crer, para uma jovem.

O Pião não respondeu. Pensava em sua antiga namorada, e quanto mais a ouvia, tanto mais certo estava de que era ela.

Nisto chegou a criada e quis virar a lata de lixo.

- Oh! Aqui está o Pião Dourado! - disse ela.

E o Pião retornou à sala, à antiga posição de respeito, mas da Bola nada mais se ouviu. O Pião nunca mais falou em seu antigo amor.

O amor se extingue quando a amada passa cinco anos numa calha, embebendo-se de água. Nem a conhecem mais quando a encontram na lata de lixo.

Fonte:
Contos de Encantar
https://contosencantar.blogspot.com/2012/03/os-namorados.html

Prof. Garcia (Caderno de Trovas) 2

Com meu cinzel afiado,
e o martelo do desgosto,
esculpi, amargurado,
a solidão do meu rosto!
= = = = = = = = = = =

Da sorte, nunca lamente.
Ame a vida com seus ais,
que a sorte de muita gente
cresce em falsos pedestais!
= = = = = = = = = = =

Dizem que a justiça é cega.
Não creio, é falsa premissa;
cega, àquele que se apega,
aos infiéis da justiça!
= = = = = = = = = = =

Em meio às indiferenças,
dar bons exemplos preciso,
jogando fora as ofensas
dentro da fonte do riso!
= = = = = = = = = = =

Em silêncio, a tua rede,
com saudade, chora tanto,
que, do armador da parede,
respingam gotas de pranto!
= = = = = = = = = = =

Enquanto, tu buscas rindo,
a paz do azul desse mar...
Eu busco esse abismo infindo
do verde do teu olhar!
= = = = = = = = = = =

Eu amo as gotas serenas
do orvalho que beija a flor,
porque sei que são apenas
serenas gotas de amor!
= = = = = = = = = = =

Eu ouço em tuas demoras,
vozes de outros rituais...
Na ressonância das horas
do martelar dos meus ais!
= = = = = = = = = = =

Meu sertão não tem floresta,
é pobre o pó deste chão...
Mas esta paz que me empresta
me faz amar meu sertão!
= = = = = = = = = = =

Não reclamo ante os escolhos,
nas trevas, mantenho a calma...
Quem tirou-me a luz dos olhos,
pôs luz e brilho em minha alma!
= = = = = = = = = = =

Nesse casebre sem dono.
tive uma infância tão boa;
mãe, foi rainha sem trono,
papai, um rei sem coroa!
= = = = = = = = = = =

No amor, há tanta afeição,
na família, há tanto bem...
Que os filhos dos filhos, são
netos, e filhos também!
= = = = = = = = = = =

No mosteiro abandonado,
na solidão da clausura,
o silêncio é tão calado
que à solidão se mistura!
= = = = = = = = = = =

Nos momentos mais tristonhos,
das ilusões mal sonhadas...
Sou tropeiro dos meus sonhos
tangidos nas madrugadas!
= = = = = = = = = = =

Nosso amor teve a mistura
na dose certa, e depois...
Fomos viver, na ternura,
do eterno amor de nós dois!
= = = = = = = = = = =

O mundo inteiro se arrasta,
sofre, lamenta e padece;
mas a crise não se afasta,
e em todo canto ela cresce.
= = = = = = = = = = =

Pobreza dói mas não mata,
não faz vergonha a ninguém;
pobre, é quem tem ouro e prata,
mas quer ter mais do que tem!
= = = = = = = = = = =

Por cicatrizes, marcado,
teu rosto guarda a virtude,
de um riso, lindo, poupado,
do tempo da juventude!
= = = = = = = = = = =

Por longa que seja a espera,
calma, que tudo se alcança!
Enquanto houver primavera
não morre a flor da esperança!
= = = = = = = = = = =

Quando acenaste, à distância,
vi, no teu gesto tristonho,
que um sonho de nossa infância
foi simplesmente, outro sonho!
= = = = = = = = = = =

Se a avareza te angustia,
e a humildade te seduz...
Neste Natal que te guia,
tu serás luz de outra Luz!
= = = = = = = = = = =

Sê feliz na caminhada,
esquece o bem que te fiz...
Nem sempre o fim de uma estrada
é o fim de quem foi feliz!
= = = = = = = = = = =

Sei que a velhice me alcança;
e, entre uns sins e outros senões...
Enquanto houver esperança
vou cultivando ilusões!
= = = = = = = = = = =

Toda Trova é linda flor,
flor que perfuma e inebria,
se a Trova é rosa de amor,
sou canteiro de poesia!

Fontes:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livros enviados pelo trovador.

Lima Barreto (Dentes negros e cabelos azuis)

A Edgard Hasselman


Era dos mais velhos, o conhecimento que eu mantinha com esse rapaz. Iniciadas na rua, nos ligeiros encontros dos cafés, as nossas relações se estreitavam dia a dia. Nos primeiros tempos, ele sempre me apareceu como uma pessoa inalteravelmente jovial, indiferente às pequeninas coisas do mundo, cético a seu modo; mas, em breve sob essa máscara de polidez, fui percebendo nele um queixoso, um amargo a quem uma melancolia, provinda de fugitivas aspirações impossíveis, revestia de uma tristeza coesa. Depois o seu caráter e a sua organização muito concorriam para sua dolorida existência. Muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer, Gabriel vivia isolado, bastando-se a si e aos seus pensamentos, como um estranho anacoreta que fizesse, do agitado das cidades, ermo para seu recolhimento.

Às vezes ele nos surgia com uns ares de letrado chinês, lido em Sai-Tsê, calmo, superior, seguro de si e contente de se sacrificar à lógica imanente das coisas. Não dava um ai, não se lamentava, talvez temendo que o alarido de seus queixumes não desassossegasse a viagem do seu espírito “par-delà du soleil, par-delà de l’éther, par-delà des confins de sphères étoilées”.*

Um dia o encontramos, eu e mais alguns da roda, e a um deles que lhe perguntava: “Que tu vais fazer agora?” aludindo às consequências do último desastre da sua vida, Gabriel respondeu:

— Nada! O soberano bem não é agir.

Dias depois confessava-me o contemplativo que seguia idiotamente, pelas ruas e pelos bondes, os belos olhos negros de uma preceptora francesa.

Sua natureza era assim, dual, bifronte, sendo que os seus aspectos, por vezes, chocavam-se, guerreavam-se sem nunca se colarem, sem nunca se justaporem, dando a crer que havia entre as duas partes um vazio, uma falha a preencher, que à sua união se opunha um forte obstáculo mecânico...

Esta maneira biface de sua organização, a sua sensibilidade muito pronta e uma tentação delirante, para as satisfações materiais, tinham transformado a sua vida num acúmulo de desastres; pelo que, em decorrer dela, de todo se lhe fora aquela película cética, faceta, gaiata, ficando-lhe mais evidente a alegria e o sainete do filósofo pessimista, irônico, debicando a mentira por ter conhecimento da verdade, que é uma das povoadoras da imagem sem validade que é o mundo.

Pelos seus trinta e quatro anos, eu o procurava em sua casa, uma pequena casinha, numa rua da ponta do Caju, junto daquele mar de morte que beija as praias desse arrabalde, olhando defronte o cinzelado panorama das montanhas.

Não vivia mal, o emprego exigia pouco e dava relativamente muito; e solteiro, habitava a casinha com um africano velho, seu amigo, seu oráculo e seu cozinheiro; e um desgraçado poetastro das ruas, semilouco e vagabundo.

Era uma colônia de ratés animados pela resignação africana. Quando eu entrei em sua casa naquela tarde, a sua fisionomia irradiava. Pareceu-me que a iluminação interior que há muito sentíamos nele ia afinal exteriorizar-se. Seu rosto afinara-se, sua testa alongara-se, havia pelo seu olhar faiscações novas; era como se a graça descesse até ele, povoasse-lhe a alma e a enchesse de tal modo que se extravasasse pelo seu olhar brilhante, bondoso e agora calmo.

— Que tens hoje, fui lhe dizendo, a tua apaixonada rendeu-se ou achaste... o teu destino?

— Qual paixão, qual destino! interrompeu ele. O sábio não tem paixões para melhor poder contemplar a harmonia do universo.

E depois dessa sentença, não sei de que filósofo hindu ou chinês, ele me leu o seguinte, escrito com letra miúda e irregular em duas dezenas de tiras de papel almaço, cheias de paixão.

Morava eu nesse tempo em rua remota de uma estação de subúrbio afastado. Sem calçamento e mal iluminada, eu a trilhava a desoras em busca da casa reconfortante. Afazeres e, em geral, a exigência do meu temperamento pelo bulício, pela luz da cidade, faziam-me demorar nas ruas centrais. A esmo, por elas à toa, passeava, vagava horas e horas, olhando e conversando aqui, ali; e quando inteiramente fatigado, buscava o trem e durante uma meia hora, tímido, covarde, encostado a um canto, pensava, sofria à menor risota e o mais imbecil dito cortava-me a alma. Era a constante preocupação das minhas ideias passar meu sofrimento, a outra pessoa, evitá-lo detidamente a alguém.

Sob a pressão daquela mágoa eterna, no meu íntimo ficava o seu segredo exigente de comunicação, fosse mesmo a quem não tivesse o refinamento do meu espírito e que a substância imortal lhe animasse a vida, não tivesse sido adivinhado e me sentia impelido a comunicá-lo. Era nessas ocasiões que eu pensava no amor, mas... Bem depressa, porém, meu espírito se perdia, caía em devaneio, não encontrava deleite, sorria. Do homem ia aos cães, aos gatos, às aves, às plantas, à terra, em busca de confidente.

Uma vez, em frente ao mar augusto, verde e translúcido, tive desejos de lhe contar o meu segredo, mas logo o temor me veio de que os ventos voltassem, e trouxessem para a vasta cidade as minhas palavras, tal como a planta que nasceu à confidência feita à terra do feitio das orelhas do rei Midas.

Quando a percepção do meu estado, da maneira da minha existência, era mais clara aos meus olhos, arquitetava planos de fugas para lugares longínquos, livros vibrantes como indignações de Deus; mas nada disso executei. Qualquer coisa muito obscura na minha estrutura mental, talvez mesmo o sentimento da lógica da hostilidade de que me via cercado, impedia-me de reagir ativa ou passivamente. Agachava-me por detrás do meu espírito e então bebia em largos prantos o fogo claro, claro que enche os límpidos espaços e, por instantes, era feliz porque:

Heureux celui qui peut d’une aile vigoureuse
S’élancer vers les champs lumineux et sereins,
Celui dont les pensées comme des alouettes
Vers les cieux le matin prennent un libre essor
Qui plane sur la vie et comprend sans effort
Le langage des fleurs et des choses muettes.**


Depois de ter carinhosamente ouvido essa linguagem, a amargura aumentava. O espírito dirigia, reclamava, queria qualquer coisa, não se bastava a si mesmo, esperava na sua prisão, no seu cárcere; e, para o meu caso, oh! que blasfêmia, o provérbio se modificara: “não é só de espírito que vive o homem...”.

Certa noite, demorando-me mais do que de costume, fui saltar à estação pelas duas horas da madrugada. Tudo era mudo e ermo. Um ventinho constante soprava, inclinando as árvores das chácaras e agitando as amareladas luzernas de gás como espectros aterradores. As casas imóveis, caiadas, hermeticamente fechadas pareciam sepulcros com portas negras. A escuridão aconchegava os morros nas suas dobras. Pus-me a andar rapidamente. A rua pouco larga, bordada de bambuais de um e outro lado, iluminada frouxamente e abobadada no nevoeiro, era como uma longa galeria de museu. Em meio do caminho, alguém saltou-me na frente e, de faca em punho, disse-me:

— Olá! Passe o “bronze” que tem.

Não tinha francamente grande prática desses encontros, contudo me portei na altura da sua delicadeza. Calmamente tirei das algibeiras o pouco dinheiro que tinha e, de mistura com alguns cupons de bonde, pálido, mas sem tremer, entreguei-o ao opressor daquele minuto fugaz.

O gesto foi belo e impressionou o bandido, a tal ponto que nem por sonhos desconfiou que eu poderia ter deixado algum oculto pelos forros. Há, já se disse, mais ingenuidade nos grandes criminosos do que a gente em geral supõe. Quase com repugnância ele recebeu o maço que lhe estendia; e já se retirava quando a uma onda de luz que em um vaivém da chama de gás lançou-me, percebeu alguma coisa nos meus cabelos e com ironia indagou:

— Tens penas? És azul? Que diabo! Estes teus cabelos são especiais.

Ouvindo isso, eu o fitei com as pupilas em brasa e minha fisionomia devia ter tão estranha expressão de angústia que o ladrão fechou a sua e estremeceu. É que as suas palavras relembravam-me toda a minha existência envenenada por aquele singular acidente; as desastrosas hesitações de que ela ficara cheia; o azedume perturbador, ressaibo do ódio e de amarguras de que estava tisnado.

Os suplícios a que meu próprio espírito impunha. E de uma só vez, embaralhado tudo isso se ofereceu aos olhos como uma obsessão demoníaca, algo premente, cruel, vivendo em tudo, em todas as coisas, em qualquer boca, na boca de um ladrão.

— Pois até tu! Que mais queres de mim? disse-lhe eu. Acaso além do dinheiro que trazem nas algibeiras, mais alguma coisa te interessa nos transeuntes? És também da sociedade? Movem-te as considerações dela?

Olhei-o interrogativamente. O homem tinha o ar mudado. Os lábios estavam entreabertos, trêmulos, pálidos, o olhar esgazeado, fixo, cravado no meu rosto. Olhava-me como se olhasse um duende, um fantasma. Contendo porém a comoção, pôde dizer:

— Dentes negros! Meu Deus! É o diabo! É uma alma penada, é um fantasma.

E o rosto dele dilatava-se, as pupilas estendiam-se; tinha os cabelos eriçados o homem que me assaltava; e desandaria a correr se o medo não lhe pusesse pesadas toneladas nas pernas.

Esteve assim minutos até que percebeu que a expressão do meu rosto era de choro e que nele havia a denúncia de uma grande mágoa fatal. O meu interlocutor transmudou as contrações de horror estampadas nas suas feições, abrindo-as num dúlcido sorriso de bondade.

— Desculpa-me. Desculpa-me. Não sabia. Quem não sabe é como quem não vê.

E sem ligação continuou:

— Não me creias um miserável gatuno de estradas, um comum assaltante de ruas. Foi o momento que me fez. Emprego-me em mais altos “trabalhos”, mas preciso de uns “miúdos” e, para obtê-los, o meio se impunha. Se me demorasse, a ocasião perdia-se. Bem sabes, a vida é um combate; se não se fere logo, morre-se. Mas... Deus me ajudará. Toma o teu dinheiro. Arranjarei sem ele como iniciar o meu grande “trabalho”, aquele que é a mira, o escopo da minha existência, que me vai dar, enfim, o descanso (resplandecia), a consideração dos meus semelhantes e o respeito da sociedade. Vai... Tu és sem esperança. Vai-te... Desculpa-me.

Aqueles meus cabelos azuis, cabelos que eram o suplício da minha vida, e aqueles meus dentes negros compuseram-se, dignificaram-se para sorrir ao herói jovialmente, de reconhecimento e ternura.

— Mas quem te faz sofrer, rapaz? perguntou-me o desconhecido.

— Ninguém, falei-lhe eu, ninguém. É o meu espírito, meu entendimento, é a representação que ele faz do mundo circundante.

Íamos nos separar, quando ainda ele insistia:

— Com isso deves sofrer muito?

Dessa vez, antes de lhe responder pensei ligeiramente. Quem seria aquele homem? Vê-lo-ia ainda uma vez? Nunca mais, era certo. Depois daquele minúsculo incidente de sua carreira, continuaria inflexivelmente na sua grande missão sobre a terra. Teria todo o interesse em me fugir, em desaparecer dos meus olhos, ou senão, reconhecido, se eu encontrando não o denunciasse, ligar-se-ia a mim pela gratidão. Por que, sendo assim, não havia eu de lhe contar o meu segredo? Ouviria, não compreenderia bem; se o quisesse contar a outrem as palavras me faltariam. Certo disso e de que naquele indivíduo a ternura não era um jogo de sociedade, nem uma forma de elegância, quase espontaneamente, pus-me a lhe narrar a minha desventura:

— Dói-me, sim! Dói-me muito. É o demônio que me persegue, é o perverso desdobramento da minha pessoa. É uma companhia má, amarga, tenaz que me esporeia e que me retalha. Ela vai junto a mim, bem junto, no caminho que trilho, haja luz ou haja trevas, seja povoada ou deserta a estrada. Não me abandona, não me larga. Dorme comigo, sonha comigo; se me afasto um instante dela ela volta logo, logo, dizendo-me ao ouvido baixinho, com um cício cortante: estou aqui! É um símio irritante que me faz carantonhas e me vai às costas, pula na minha frente, dança, esperneia.

O ladrão tinha agora outra espécie de espanto: era o espanto das palavras, das altas palavras. A sua grosseria nativa, primordial, sem limitações de qualquer educação, ia por elas alto, entendendo-as a meio, seu espírito aguçava-se e penetrava melhor no meu.

— Se, em dia claro e azulado, continuei, vou por entre árvores, crendo-me só, e feliz, o miserável rafeiro que passa deixa a inexorável busca do osso descarnado, para olhar as caretas do símio em que me desdobro, e ri-se de mim, meio espantado, mas satisfeito. Então, como por encanto o caminho se povoa. Há por toda parte zumbidos, alaridos, risotas. Do farfalho das árvores ouço: Olá, tingiste a cabeça no céu; mas onde enlameaste a boca? Os seixos rolam, crepitam, e na sua vileza não escolhem palavras, não ensaiam deboches, gritam: monstrengo, vergonha da terra.

O gatuno analisava-me a fisionomia. Detinha-se nos meus olhos, no meu nariz, nos meus lábios, até as minhas mãos, os meus pés mereceram a análise do seu olhar inquieto. Foi por esse tempo que me lembrou reparar quem estava na minha frente. Era um homem alto, de largas espáduas, membrado, e que em “sotaque” espanhol, me falou ainda:

— Tu és poeta. Fantasias... Vês demais.

— Talvez que a minha sensibilidade... Mas não, não! Meu organismo não mente, fala a verdade: é como o microscópio a descobrir um mundo hostil onde nada se vê, retorqui eu...

— Não andas por aí, pelos teatros, pelos cafés — como então é possível isso? inquiriu ele.

A pergunta me atrapalhava; era da minha natureza, estas contradições ostensivas, entretanto pude lhe responder:

— É verdade..., mas palmilho tais lugares escravo do meu gênio, servo dos meus sentidos, que são inimigos do meu corpo; posso fugir deles, mas muito me custa seguir o curso imperioso dos meus nervos. Não sei... Não sei... Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma coisa ouço: lá vai o homem de cabelos azuis, o homem de dentes negros... É um suplício!

Tudo se apaga em mim. Isso unicamente brilha. Se um amigo quer referir-se a mim em conversa de outros, diz: aquele, aquele dos dentes negros... Os meus sonhos, as minhas leituras são povoados pelos momos do símio. Se escrevo e faltam sílabas nas palavras, se estudo e não compreendo logo, o sagui salta-me na frente dizendo com escárnio: — fui eu que a “cumi”, fui eu que não te deixei compreender...

Meu peito arfava, meus olhos deviam brilhar desusadamente. A animação passava de mim ao ouvinte. Ele todo vibrava às minhas palavras...

— Mas trabalha, sê grande... combate, aconselhou-me.

— Bom conselho, bom... Ah! Como és mau estrategista! Não percebes que não me é dado oferecer batalha; que sou como um exército que tem sempre um flanco aberto ao inimigo? A derrota é fatal. Se ainda me houvesse curvado ao instituído, podia... Agora... não posso mais. No entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e da humildade, não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça triturar-me. Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui; inclino-me dali; e em torno recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso. Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mira me surge recordado pelo berreiro que vem de baixo, em redor aos gritos: homem de cabelos azuis, monstro, neurastênico. E entre todos os gritos soa mais alto o de um senhor de cartola, parece oco, assemelhando-se a um grande corvo, não voa, anda chumbado à terra, segue um trilho certo cravado ao solo com firmeza — esse berra alto, muito alto:

“Posso lhe afirmar que é um degenerado, um inferior, as modificações que ele apresenta correspondem a diferenças bastardas, desprezíveis de estrutura física; vinte mil sábios alemães, ingleses, belgas, afirmam e sustentam”... Assim vivo. É como se todo dia, delicadamente, de forma a não interessar os órgãos nobres da vida, me fossem enterrando alfinetes, um a um aumentando cada manhã que viesse... Até quando será? Até quando? fiz eu exuberante.

Uma rajada mais forte do vento que soprava quase apagava o combustor próximo. Ao cantar dos galos já se juntava a bulha do rolar de carroças na rua próxima. O subúrbio ia despertar.

Despedi-me do salteador. Andara alguns passos e como me parecesse que me chamavam, voltei-me e dei com a figura retangular do ladrão, agitando-se ao meneio de sua cabeça, como a venerável bandeira de misericórdia das execuções.

Pelos anos em fora, pelos dias iguais e monótonos que minha vida presenciou, mais fundo que essa incurável mágoa muito sofrida na mocidade, doeu-me à minha alma mais, muito mais a sincera piedade que inspirei àquele homem.
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Notas: (Versos de “Elévation”, de Charles Baudelaire.)

*Além do sol, além dos éteres, Além dos confins das esferas estreladas, –

**Abençoado é aquele que pode com uma asa vigorosa
Elevar em direção aos campos brilhantes e serenos;

Aquele cujos pensamentos, como cotovias,
Em direção aos céus pela manhã voam livremente,
- Que paira sobre a vida e compreende sem esforço
A linguagem das flores e das coisas silenciosas!



Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Minha Estante de Livros (“Arsène Lupin, o ladrão de Casaca”, de Maurice Leblanc)


Arsène Lupin, Ladrão de Casaca é uma coletânea de nove histórias do escritor francês Maurice Leblanc que constituem as primeiras aventuras de Arsène Lupin. Surgiu em 1907 com o título francês Arsène Lupin, gentleman-cambrioleur — literalmente, Arsène Lupin, ladrão-cavalheiro — por encomenda para a revista francesa Je sais tout: Pierre Lafitte, o editor da revista, encomendou a Maurice Leblanc uma novela policial, cujo herói fosse para a França o que eram para a Inglaterra Sherlock Holmes (de Sir Arthur Conan Doyle) e A. J. Raffles ao mesmo tempo.

Nasceu assim Arsène Lupin, personagem vivo, audacioso, impertinente, desafiando sem cessar o Inspetor Ganimard, arrastando corações atrás de si, zombando das posições conquistadas e ridicularizando os burgueses, socorrendo os fracos, Arsène Lupin é um Robin Hood da Belle Époque.

Como não poderia deixar de ser, Lupin se defronta diversas vezes com o maior detetive de todos os tempos, seu rival "Herlock Sholmes" (nome de Sherlock Holmes na obra de Leblanc; nas primeiras edições não havia tal modificação, mas teve de ser feita após protestos de Conan Doyle), e cria várias situações embaraçosas para o grande detetive de Doyle. Lupin tinha uma característica peculiar: avisava sempre a vítima antes do roubo. Mas, independentemente dos esforços da polícia, Lupin sempre "adquiria" o que queria.

Nas palavras de Pierre Lazareff, "Um Robin Hood bem francês: não se leva muito a sério; sua arma mais mortífera é o engenho; não é um aristocrata que vive como anarquista, mas um anarquista que vive como aristocrata."

A série foi adaptada várias vezes ao cinema: Arsène Lupin détective (1937), com Jules Berry; Les Aventures d'Arsène Lupin (1956) de Jacques Becker, com Robert Lamoureux; Arsène Lupin contre Arsène Lupin (1962) de Édouard Molinaro, sendo também famosa a série televisiva baseada na obra em causa. Ladrão de Casaca, de 1955, do diretor Alfred Hitchcock com Cary Grant e Grace Kelly.

Este livro reúne as nove histórias A prisão de Arsène Lupin, Arsène Lupin na prisão, A fuga de Arsène Lupin, O viajante misterioso, O colar da rainha, O sete de copas, O cofre de Madame Imbert, A pérola negra e outros. Quando Lupin é preso ao descer do navio em Nova Iorque, seu biógrafo já o acompanha, pois Watson sempre acompanhará Sherlock Holmes. A diferença é que aqui é o próprio Maurice Leblanc quem se transforma em personagem para contar as aventuras do protagonista de sua invenção.

A coletânea agrupa as seguintes histórias:

A prisão de Arsène Lupin,
publicação original em 15 de julho de 1905. Ao desembarcar nos EUA de uma viagem no transatlântico Provence, o “ladrão de casaca” Arsène Lupin — “o incansável ladrão cujas proezas enchiam as páginas dos jornais havia meses [...] o caprichoso gentil-homem que só operava nos castelos e nos salões [...] o homem dos mil disfarces” — é preso por seu arqui-inimigo, o inspetor Ganimard. Mas graças ao seu poder de sedução, consegue se desvencilhar antes das “provas do crime”, dinheiro e joias furtados durante a travessia marítima.

Arsène Lupin na prisão,
publicação original em 15 de dezembro de 1905. Mesmo trancafiado atrás das grades, Arsène Lupin, através de um estratagema, consegue surrupiar obras de arte valiosas (dois Rubens, um Watteau etc.) do castelo "inexpugnável" do Barão Cahorn.

A evasão de Arsène Lupin,
publicação original em 15 de janeiro de 1906. Arsène Lupin cria uma expectativa de que fugirá da prisão e, fazendo-se passar por outra pessoa (o pobre-coitado Baudru Désiré), acaba conseguindo sair de lá.

O viajante misterioso,

publicação original em 15 de fevereiro de 1906. Em viagem de Paris a Rouen, Arsène Lupin (sob o pseudônimo Guillaume Berlat) sofre uma agressão e assalto, mas depois ajuda a polícia (embora a rigor ele próprio seja procurado pela polícia!) a prender o ladrão: o assassino Pierre Onfrey.

O colar da rainha,
publicação original em 15 de abril de 1906. Numa noite após uma recepção, o lendário “colar da rainha” (que pertenceu a Maria Antonieta) desaparece misteriosamente da mansão do conde e condessa de Dreux-Soubise. Anos depois, em almoço em casa do casal, um tal de cavalheiro Floriani, que o conde conhecera na Sicília (mas que na verdade é Arsène Lupin sob um de seus muitos disfarces) elucida o mistério.

O cofre-forte da Sra. Imbert,
publicação original em 15 de maio de 1906. Primeiro golpe da "carreira" de Arsène Lupin, verdadeiro "batismo de fogo", e a primeira vez que ele usa este nome. De olho na suposta fortuna do casal Imbert, Lupin trama um ataque noturno contra o Sr. Ludovic e finge salvá-lo. Este, agradecido, contrata Lupin como seu secretário particular, que se aproveita da situação para assaltar o cofre-forte. Só que os títulos lá guardados eram falsos! "Foi a única vez, durante toda a minha vida, que fui logrado. Mas, com todos os demônios, essa vez valeu por muitas e boas!"

Herlock Sholmes chega tarde,
publicação original em 15 de junho de 1906. Observe-se que, entre a publicação no periódico e a publicação na coletânea, Sherlock Holmes tornou-se Herlock Sholmes, em virtude de um protesto de Conan Doyle. Primeiro encontro entre o "ladrão nacional" francês Arsène Lupin e o "grande policial inglês [...] Herlock Sholmes, o mais extraordinário decifrador de enigmas", girando em torno de uma passagem secreta, cujo segredo se perdeu com o tempo, que dá acesso ao castelo de Thibermesnil, cujos tesouros são cobiçados por Lupin (aqui sob o pseudônimo de Horace Velmont).

A pérola negra,

publicação original em 15 de julho de 1906. Arsène Lupin penetra no apartamento da viúva Zalti, condessa de Andillot, com o intuito de roubar a pérola negra, presente de um imperador. Depara com seu corpo, assassinada, e constata que a pérola desapareceu. Tempos depois Lupin extorque a pérola do ladrão e assassino, que havia sido absolvido pela Justiça, por falta de provas.

O sete de copas,
publicação original em 15 de maio de 1907. Fatos estranhos e inexplicáveis ocorrem na casa do narrador (Maurice Leblanc), a qual, à sua revelia, servia de esconderijo dos planos roubados do submarino Sete de Copas. As investigações o levam a descobrir que seu amigo Jean Daspry na verdade é Arsène Lupin, de quem se torna biógrafo. "E eis como conheci Arsène Lupin. [...] Eis como estabeleci laços de amizade muito agradáveis com o nosso grande homem e como, pouco a pouco, graças à confiança com que ele se digna honrar-me, me tornei seu mui humilde, mui fiel e mui reconhecido historiógrafo."

Fonte:
Wikipedia
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ladr%C3%A3o_de_Casaca