domingo, 27 de junho de 2021

Adega de Versos 32: Vanda Fagundes Queiroz

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 31 e 32


ENTRE FLORES


As flores estavam inquietas porque o arquiteto-paisagista havia projetado uma flor diferente de todas as existentes. O projeto fora encaminhado à comissão de notáveis, que deu parecer sugerindo a adoção da nova flor como a primeira do país e seu símbolo oficial.

“Com uma flor diferente de nós todas e erigida em marca nacional — murmuravam a um só tempo os crisântemos, as dálias, os cravos e muitas outras espécies, inclusive a flor de fedegoso, que pelo nome não era muito apreciada — institui-se discriminação no reino vegetal. Além do que, flor sintética não é flor que se cheire.”

A rosa não quis opinar, porque ainda conserva ilusões de rainha.

Uma deputação (comissão) de flores procurou o arquiteto-paisagista, que se recusou a recebê-la, mandando dizer que estava muito ocupado. Seguiu-se a greve floral durante 45 dias, em que ninguém mandava flores ou tinha condições de colhê-las, pois todas passaram a ter espinhos, e algumas, cheiro de enxofre.

Mesmo assim, a flor de proveta foi institucionalizada, e muitas variedades, como a cinerária, o lírio-amarelo e o jacinto, que antes formavam no coro das reclamantes, levaram-lhe cumprimentos no dia de sua glorificação. Os espinhos e o mau odor desapareceram, e até a rosa lhe mandou telegrama de parabéns e votos de eterno florescimento.
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EPISÓDIO VENEZIANO

A duquesa de Arrivabene apaixonou-se por um gondoleiro de Veneza e, para não deixá-lo um só momento, acompanhava-o no trabalho.

Frequentemente manejava o remo, deixando a cabeça do namorado repousar em seu colo alabastrino.

Era ciumenta a duquesa, e Paolo tinha de recusar passageiras cujo sorriso parecia demasiado promissor. Com o tempo, nem mais os homens eram admitidos na gôndola, que vogava ao sabor do capricho feminino, entre beijos que se diria capazes de inflamar a água do canal.

Paolo, exausto, quis fugir, mas sua amante ameaçou afundar com ele e com a embarcação, em derradeiro enlace amoroso.

A gôndola envelheceu, os dois também. Se já não se amavam como antigamente, é porque tinham chegado a formar uma só individualidade, meio carne meio madeira. Um dia o barco afundou, levando consigo os dois amantes, não se sabe se ainda vivos ou mumificados. Desde então os gondoleiros temem o amor das duquesas e preferem não transportá-las, pretextando que a gôndola está com defeito.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Sousândrade (Poemas Escolhidos)

ALABASTRO


Eis um vaso de puro alabastro
Que é a imagem de quem longe está,
Que ao noivado meu dera-me um astro
E que encerra um mistério. Sinhá,

Tenho-o sempre florido na mesa
Do trabalho, ou de amor a canção,
Ou rapsódias cantando do Guesa –
Enche-o hoje tua flor-da-paixão;

Ontem era a do luar, tão amada,
Que fenece do dia ante o albor;
Amanhã – diz tua carta encantada,
Porque vens, que não ponha outra flor.
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EM MEU PODER

Estás em meu poder. Sou vigilante;
Qual o cão velador guardo a muralha
Do meu rico tesouro:
Venturoso às manhãs do alvo semblante,
Quem das nuvens não teme que aura espalha
Ante o seu astro de ouro?

Quero embeber-me, eu só, no olhar de sombras,
Na solidão da mágica brancura
Me atordoar de amor;
Recostada dos luares nas alfombras
Toda sonora, o seio teu fulgura
Risonho, abrasador.

Estás em meu poder. Irradiante
Dessa vida de luzes e d'estrelas
Quer-te o tirano teu,
D'açucenas maviosas, exuberante
De alvor e força – que nas formas belas
Exista o gênio seu.
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SOMBRAS DAS ÁRVORES

– Que divindade! sinto
Uma aura tão gentil
Me acariciando a fronte,
Céus, mares, terra abril!

Ao seio azul profundo
As palmas reluzindo
Auro verdor; urúbis
À imensidão subindo:

Meus bosques luminosos
Às calmas de meio-dia,
Um Deus por toda parte
E n'alma esta harmonia

Do amor! o amor de tudo
Quanto respira e sente,
Das minhas selvas puras
do meu sol candente!

– Que divindade! uma aura
Tão leve, tão gentil
Me acariciando a fronte,
Céus, mares, terra abril!

E as borboletas ouros,
em flor o roseiral,
Longe o mugir dos touros;
este rubi-cristal.

Sempre no coração!
Esta saudade-serva!
Esta humildade-relva
De amor e exaltação!

Lázaros do sepulcro
A levantei! a cruz –
Quebrei-lha! Um riso pulcro
Resta... Apagou-se a luz!
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ZELOS DE LALÁ

Abençoada a hora em que odiei-te
Tão vulgar! abençoada seja a hora
Em que, mais digna de ti mesma, amei-te,
E açoito-te ainda, pois – que linda agora!

Porém... aonde vai-se ela às noites, quando
Ao serão todos brincam reunidos?
Sua mãe enferma, a olhar, petrificando,
Olhos na escuridão e os lábios lívidos.

Olhava, olhava: sombras esgueiraram
Na treva que aos abismos assemelha.
Silenciou-se; entristeceu-se. Uivaram
Os bosques ao trovoar por noite velha.

Só, deserta na sala e sem vir nunca
Quem ajudava a triste a recolher,
Amanheceu qual fosse uma defunta
Que não pôde na campa adormecer.

Fonte:
Sousândrade: inéditos. São Luís/MA: 
Departamento de Cultura do Estado, 1970.

Marcelo Henrique Marques de Souza (O trem)

Há um bom tempo procura um botão, ou outro dispositivo qualquer. Queria fazer sinal, descer do trem. Não achou. Insiste, mas sem sucesso.

Cola o rosto no vidro de uma das janelas. A noite corre estranha, distante. Soberana demais. Não consegue distinguir o pescoço dos postes de luz, devido à densa neblina.

Passa por uma senhora bem vestida, cujo rosto parece familiar. Sabe aonde é a saída? Quero descer... A velha olha-o de cima a baixo, condescendente. Como se já conhecesse a pergunta. Não é assim que as coisas funcionam, meu filho... Devia ser louca, só pode.

Decide questionar o maquinista. Certamente saberia o destino final e o tempo até a próxima estação. Ultrapassa os vagões, um por um, sem parar. Ninguém parece incomodado. Todos agem como quem sabe onde está indo.

De repente, esbarra num vagão diferente. Há pinturas nas paredes e nos assentos, a maioria num estilo renascentista. Excesso de tons claros e temas religiosos impregnam o ambiente. A maioria das pessoas permanece sentada, todas com as mãos no rosto, na posição típica das orações.

Pergunta, então, baixinho, a um dos presentes – o primeiro que levantou os olhos –, aonde poderia encontrar o maquinista.

Recebe de volta um olhar desconfiado, que diz Aqui é o último vagão. Se quiser mesmo falar com o maquinista, é preciso ter fé e orar bastante...

Começa a entrar em desespero. O absurdo da situação o leva a questionar-se acerca da própria sanidade. Teria a sentinela da normalidade caído num sono profundo, desses que sucedem as longas caminhadas?

Fazia o caminho de volta, quando de repente sentiu um leve incômodo nos olhos. Estranhamente, fortes raios de sol invadem o trem, como dia mais alto a substituir a noite mais densa, de uma hora para outra.

Resolve sentar um pouco. Há bancos vazios neste vagão.

Respira fundo e julga apropriado pensar um pouco, sem pressa.

Que trem é esse? Não há trem nessa cidade. Qual seria a estação inicial? E para onde ele vai?

Nesse momento, outro homem senta-se ao seu lado. Tem um aspecto professoral, óculos típicos, barba imponente. Arrisca a pergunta: – Desculpe incomodá-lo, mas sabe para onde estamos indo? O homem massageia a barba por alguns instantes, enquanto formula alguma coisa: – Meu caro, não sei exatamente para onde estamos indo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: estamos indo depressa demais...

Como assim? Então, além de tudo, estamos infringindo as leis de velocidade?

Não que as leis de velocidade sejam padrões inatacáveis...

Mas o fato de não haver um padrão deveria significar uma variação da velocidade. E não é isto que estamos vendo. O velocímetro só aumenta o ritmo...

Apesar do crescente contrassenso da situação, a postura moderada do outro homem acomoda-lhe um pouco o espírito. Talvez seja a sensação da dúvida compartilhada. Sabemos das fobias da natureza humana e sobre como qualquer devaneio dividido por duas ou mais almas acaba sempre recebendo as benesses alucinógenas da mimesis.

Tenta olhar novamente pela janela, mas os raios de sol impedem. O máximo que consegue perceber, muito fosco, é que, de fato, a paisagem parece mesmo cruzar os ares rápido demais. Uma velocidade que realmente preocupa.

Volta os olhos para o banco ao lado. O homem sumiu. O frio dos cumes do desespero retorna a apertar-lhe os ossos. E nota, chocado, que a sua angústia não parece merecer a atenção de ninguém. Nenhum dos outros passageiros sofre o seu sofrimento, que se mostra único, solitário, intransferível.

Apoia os cotovelos nas coxas e abaixa a cabeça. Mãos na testa, esconde o rosto como se buscasse ocultar-se em algum porão inabitado.

E então se lembra do filho. Estão brigados há mais de uma semana. Coisa boba, último pingo de um pequeno copo, incompatibilidade de gerações. Objetivismos não faltam para explicar o que é sempre muito mais amplo do que eles. Mais do que tudo, sente uma repentina e incurável saudade do menino. Dessa saudade, escorre uma lágrima, que vai parar na porta dos olhos. Que não conseguem impedi-la, em sua fome de liberdade.

Enquanto sofre a lágrima a descer pelo rosto, de lá do escuro porão de seus olhos fechados, sente, de repente, um forte solavanco, como se o trem a passar por cima de alguma pedra grande, ou outro tipo de obstáculo.

Abre os olhos assustado, enquanto limpa o rosto. E constata, perplexo, que o trem sumiu. Sumiu! O que antes era o banco do trem, agora é um banco de praça. Algumas nuvens brandas cercam o sol, mas ele resiste, bravo e solene.

O olhar continua pasmo. Como se a buscar, em vão, um corrimão, para apoiar a descida íngreme numa estreita escada. Como viera parar aqui? De onde veio essa praça? E o trem, para onde foi?

De repente, avista o mesmo homem do trem. Passa num andar calmo, a mesma calma no semblante. Mas veste roupas diferentes. Não faz sentido...

Levanta-se rápido, ainda atordoado. E resume suas angústias numa pergunta que escapa distante, apoiada pelos braços, que apontam em todas as direções ao mesmo tempo: – O que é isso??...

O homem retarda o passo, até parar. Olha para cima e inspira fundo, como a alimentar o fundo da alma com todas as células do dia. E responde, saciado, de dentro de seu olhar sereno:

– É a vida, meu amigo. É a vida…
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Marcelo Henrique Marques de Souza, escritor, ensaísta, poeta, pesquisador e professor. Autor de sete livros, sendo dois ensaios, dois de poemas, um de contos, um de artigos científicos e um de aforismos. Graduado em Comunicação Social e integrante do Grupo de Formação da NovaMente – Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Articulista do programa de rádio Debates Culturais, antes na Bandeirantes AM, hoje na internet.

Fonte:
Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (org.). Coletânea de contos & crônicas [recurso eletrônico]. Vitória/ES: EDUFES, 2015. (Coleção II Prêmio Ufes de Literatura)