sábado, 1 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 16 *

 

Hans Christian Andersen (Os sapatos vermelhos)

Era uma vez uma menininha - uma menina muito linda, muito delicada. No verão ela andava descalça, porque era muito pobre. No inverno usava uns sapatos de pau, grosseiros e pesados, de modo que o peito do pé ficou todo vermelho, bem vermelho.

No centro da aldeia morava a mulher do velho sapateiro, uma senhora já muito idosa. Ela se pôs a coser, e fez um par de sapatinhos, de umas tiras de pano vermelho. Esmerou-se e fez o melhor que pode, mas os sapatos eram muito esquisitos. Contudo, foram feitos com boa intenção, e ela os deu a Karen.

A boa mulher deu-lhe os sapatos, e ela teve de calça-los, pela primeira vez, mesmo no dia em que sua mãe foi sepultada. Certamente não eram próprios para o luto; mas a menina não tinha outros, por isso meteu neles os pezinhos nus e foi seguindo atrás do pobre esquife de pinho.

Aconteceu que passou uma grande carruagem, levando uma velha senhora, que ficou com muita pena da menina. E ela disse ao pároco:

- Dê-me essa menina! Eu me encarreguei de educá-la, e serei boa para ela.

Karen pensou que tinha agradado a senhora por causa dos sapatos. mas a velha dama declarou que eram horrorosos, e mandou queimá-los. E a menina recebeu roupas boas e apropriadas, e aprendeu a ler e a coser. Diziam que ela era agradável, mas seu espelho, esse, dizia-lhe:

- És muito mais do que agradável - és linda!

Naqueles dias andava a rainha de viagem pelo país, e levava consigo a filhinha, a princesa. O povo amontoava-se ao redor do palácio para vê-las - e Karen lá estava também. 

A princesa postou-se em uma sacada para que todos a vissem; não tinha comitiva, nem trazia coroa de ouro, vestia um lindo vestido branco, e calçava uns sapatos muito lindos, de verniz vermelho.

Karen recebera um vestido novo, e precisava também de um par de sapatos para completar o traje. O rico sapateiro da cidade encarregou-se de fazê-los. A loja, em que ela foi para que ele tomasse as mediada, estava cheia de vitrines, onde se viam muitos sapatos lindos, de couros brilhantes. Era uma vista encantadora, mas a velha dama, que não enxergava bem, não se interessou em examiná-los, porque não tinha nenhum prazer nisso. Entre os sapatos havia um par vermelho, exatamente como os da princesinha. E que lindos eram! Disse o sapateiro que tinham sido feitos para a filha de um conde, mas que ficaram justos demais.

- Isto deve ser verniz - disse a velha senhora- são tão brilhantes!

- Sim, eles brilham! - replicou Karen.

E ficaram-lhe bem nos pés, e foram comprados. Mas a velha dama não sabia que eram vermelhos.

No domingo seguinte seria celebrada a Sagrada Comunhão, e Karen iria participar dela pela primeira vez. Ela olhou para os sapatos brancos, olhou para os vermelhos, olhou de novo para os vermelhos - e acabou por calça-los.

Era um dia muito luminoso. Karen e a velha dama iam pelos campos, pelo meio dos trigais, e havia muito pó. À porta da igreja estava um velho soldado barbudo, com a sua muleta porque era inválido. A barba do velho era esquisita, mais vermelha do que banca. Era de fato quase completamente vermelha. O velho inclinou-se até o chão e perguntou à velha senhora se podia escovar-lhe os sapatos. E Karen também estendeu o pezinho.

- Vejam que lindos sapatos de dança! - disse o soldado velho. - Não se esqueçam de apertar bem, quando dançarem!

E, dizendo isto, deu palmadinha nas solas. A velha dama  deu-lhe uns cobres e entrou na igreja com Karen.

Todas as pessoa na igreja olhavam para os sapatos vermelhos de Karen. Quando ajoelhou à mesa da Comunhão, ela só pensava nos sapatos vermelhos, parecia-lhe vê-los flutuando diante dos olhos. E ela se esqueceu de rezar as orações.

Saíram todos da igreja, e a velha dama entrou na carruagem. Já Karen ia erguendo o pé para subir também, quando o velho soldado, que ainda estava parado ali, disse:

- Olhem que lindos sapatos de dança!

Karen não pode resistir. Deu alguns passos de dança e, sem poder dominar-se, seus pés continuavam a dançar. Parecia que os sapatos tinham adquirido poder sobre ela. Saiu dançando, rodeou, dançando, a igreja, sem conseguir parar - o cocheiro teve de ir buscá-la e erguê-la nos braços, para metê-la no carro. Mas os pés continuavam dançando, de sorte que ela batia com eles na boa velha, machucando-a. Afinal, tiraram-lhe os sapatos e os pés ficaram quietos.

Quando chegaram na casa, os sapatos foram guardados em um armário, mas Karen não podia deixar de ir olhar para eles.

Um dia a velha dama adoeceu, e disseram que não poderia sarar. Precisava agora que alguém tratasse dela, e ninguém mais do que Karen devia incumbir-se dessa tarefa. Mas ia realizar-se um baile na cidade, e ela foi convidada. Karen olhou para a sua mãe adotiva, que talvez não escapasse da morte, olhou para os sapatos vermelhos, e achou que não tinha obrigação de ficar junto à doente. Calçou-os e foi para o baile - ou antes, eles foram para o baile, e começaram a dançar!  Mas quando Karen queria ir para a direita, eles dançaram para esquerda; quando ela quis dançar em uma ponta, desceram a escada, saíram para a rua, atravessaram as portas da cidade. 

Dançando saíram da cidade, e dançando foram para a floresta sombria - e ela tinha de dançar! Viu então que alguma coisa brilhava acima das árvores, e pensou que fosse a lua, porque parecia uma cara. Mas enganara-se, era o rosto do soldado velho de barba vermelha, e ele acenou-lhe, dizendo:

- Vejam que lindos sapatos de dança!

Ficou a menina muito assustada, e quis lançar fora os sapatos vermelhos, mas eles se lhe apegaram aos pés com tanta força, que não pode tirá-los. Rasgou as meias e arrancou-as, mas os sapatos pareciam enraizados nos pés, e continuavam a dançar, e ela teve de ir dançando pelos campos e pelas pastagens, à chuva e ao sol, de dia e de noite.

Dançou no cemitério, que estava aberto, mas os mortos não a acompanharam na dança, tinham coisa melhor a fazer. Quis sentar-se em um túmulo pobre, onde crescia a losna, mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando ia dançando para a porta da igreja, que estava aberta, viu  que lá estava parado um anjo de longas vestes brancas e de asas tão compridas que chegavam até os pés. O rosto era severo e grave, e tinha na mãos uma espada larga e brilhante.

- Piedade! - gritou Karen.

Mas nem chegou  a ouvir a resposta do anjo, porque os sapatos a arrastaram - levando-a porta afora para os campos, para as estradas, para os caminhos, por cima de tocos e de pedras, por toda a parte era ela obrigada a dançar.

Uma manhã passou dançando pela frente de uma porta aberta, e que ela conhecia muito bem. Vinham trazendo para fora um esquife, coberto de flores. Viu então que a velha dama tinha morrido, e pareceu-lhe que estava agora abandonada de todos, e condenada pelo Anjo do Senhor.

E ela dançava sempre, era compelida a dançar, mesmo dentro da noite negra. Os sapatos arrastavam-na por sobre as sarças e os espinheiros, e ela já tinha os pés escorrendo sangue.

Foi, então, sempre dançando, pelo trigal afora, que chegou a uma linda casinha solitária. Sabia que morava ali o carrasco, e bateu com os nós dos dedos na vidraça e disse:

- Sai, sai cá para fora! Eu não posso entrar, porque tenho de dançar!

O carrasco disse-lhe:

- Acaso não sabes quem sou? Eu sou o homem que corta a cabeça dos malvados, e vê como meu machado está impaciente!

- Não, não me cortes a cabeça! Senão nunca poderei arrepender-me das más ações. Mas peço-te que me cortes os pés, com estes sapatos vermelhos!

Contou, então, o que acontecera. O carrasco cortou-lhe fora os pés com os sapatos vermelhos - e eles lá se foram dançando, para as profundezas das floresta.

Então ele fez para ela um par de pernas de pau, com muletas, e ensinou-lhe um cântico, aquele que os condenados sempre cantavam, e ela beijou a mão que brandia a acha, e foi embora, pelo meio da charneca.

- Muito tenho padecido por causa daqueles sapatos vermelhos! - disse ela. - Irei agora à igreja, para que  todos me vejam!

E foi, o mais depressa que pode, para a igreja. Quando lá chegou, viu os sapatos vermelhos que dançavam na sua frente. Ficou muito assustada, e voltou para casa.

Passou toda a semana muito triste, e chorou muitas lágrima, mas quando chegou o domingo, disse:

- Agora já sofri e lutei tanto... creio que estou tão boa como qualquer daqueles que entram na igreja de cabeça tão erguida!

E lá se foi ela, com ar insolente; mas ainda não tinha passado do portão, e já avistou os sapatos vermelhos que dançavam diante dela! Ficou mais assustada do que nunca, e deu volta - mas desta vez tinha no coração um verdadeiro arrependimento. Foi à casa do pároco, e pediu-lhe que a tomasse como criada, que seria diligente, e faria tudo quanto pudesse, que não fazia questão de salário, pois só queria um teto para se abrigar, e viver com pessoas bondosas. 

A mulher do pastor ficou compadecida da menina e tomou-a ao seu serviço. E ela mostrou-se mesmo diligente e fiel. À noite, quando o pastor lia a Bíblia, ela ouvia atentamente, muito quieta. Todas as crianças gostavam muito dela, mas quando falavam a respeito de vestidos, e de coisas de luxo, ela sacudia a cabeça.

No domingo, ao saírem para a igreja, perguntaram-lhe se ela queria ir com eles. Mas Karen olhou tristemente para as muletas, com os olhos cheios de lágrima, e foram sem ela. Foram ouvir a palavra de Deus, e ela ficou sentada no seu quartinho, sozinha. No quarto só cabiam a cama e uma cadeira. Sentou-se, pois, com o livro de oração nas mãos, e quando estava lendo com um espirito cheio de humildade, ouviu o som do rojão, que o vento trazia da igreja, ergueu o rosto banhado de lágrima, dizendo:

- Oh! Senhor! Ajuda-me!

Então o sol brilhou com todo o esplendor, e o Anjo de vestido branco, aquele mesmo Anjo que ela vira naquela noite, à porta da igreja, estava diante dela. Não tinha a espada afiada na mão, trazia agora um ramo verde, coberto de rosas. Tocou com ele o teto - e o teto foi se erguendo, se erguendo... e onde o Anjo tocava aparecia imediatamente uma estrela de ouro. Tocou então as paredes e elas foram se afastando para longe, para longe... e ela viu o órgão, que ressoava tão belos hinos - porque a igreja tinha vindo ter com a pobre menina, no seu pequenino quarto, ou o seu quarto se havia transformado em igreja. Ela estava, também entre os fieis. Alguém, a seu lado, lhe disse:

- Que bom que vieste, Karen!

- Foi pela graça de Deus! - respondeu ela.

Soou o órgão, espalhado suas notas cheias de alegria. As vozes das crianças ergueram-se, suaves, cantando em coro, o sol, que entrava pela janela, veio direito ao banco onde estava Karen, enchendo-a de fulgor, e seu coração sentiu-se tão cheio de luz, e de paz, e de alegria, que estalou. E sua alma voou para o céu, em um raio de sol.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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Estante de Livros ("O Homem que Adivinhava", de André Carneiro)

"O Homem que Adivinhava" é um conto do autor brasileiro André Carneiro (Atibaia/SP, 1922 – 2014, Curitiba/PR), que explora a vida de um indivíduo chamado João, um homem comum que possui a habilidade extraordinária de adivinhar o que as pessoas estão pensando. João vive em uma cidade onde essa habilidade o torna tanto admirado quanto temido. Sua capacidade de ler mentes gera uma série de situações inusitadas e revela as complexidades das interações humanas.

A narrativa começa a se desenvolver quando João se vê cada vez mais isolado devido ao temor que sua habilidade provoca nas pessoas ao seu redor. Enquanto alguns o buscam para obter conselhos ou soluções para problemas pessoais, outros o evitam, temendo que ele descubra seus segredos mais íntimos. A solidão e a incompreensão se tornam temas recorrentes na vida de João.

Ao longo do conto, ele reflete sobre a natureza da sua habilidade, questionando se é realmente um dom ou uma maldição. A história culmina em uma série de eventos que revelam a dualidade da condição humana, mostrando os desejos, medos e anseios que todos compartilham, mas que muitas vezes ficam ocultos sob a superfície.

No final, João percebe que, apesar de suas capacidades, ele não consegue mudar as pessoas nem salvar a si mesmo da solidão. A história termina de forma melancólica, enfatizando a dificuldade de conexão humana e a fragilidade das relações.

TEMAS

1. Solidão e Isolamento
Um dos temas centrais do conto é a solidão de João. Embora possua uma habilidade extraordinária, ele se torna um parágrafo isolado na sociedade. Isso reflete a ideia de que, muitas vezes, as habilidades ou características que nos tornam únicos também podem nos alienar. A solidão de João é um comentário sobre como as pessoas podem ser vistas como estranhas ou ameaçadoras quando possuem algo que foge ao comum.

2. A Dualidade da Habilidade
A habilidade de João de adivinhar o que as pessoas estão pensando é apresentada como um dom, mas também como uma maldição. André explora essa dualidade ao longo do conto, mostrando que conhecer os pensamentos mais profundos das pessoas pode ser tanto uma vantagem quanto um fardo. João se vê em uma posição em que a verdade que descobre sobre os outros não traz felicidade, mas sim um peso emocional.

3. Relações Humanas e Conexão
A dificuldade de João em se conectar com os outros é um reflexo das complexidades das relações humanas. Sua habilidade deveria, teoricamente, facilitar suas interações, mas, na prática, ele se torna um observador distante. As revelações que ele faz sobre os pensamentos de outras pessoas não resultam em conexões mais profundas, mas sim em desconfiança e medo. A história sugere que o verdadeiro entendimento entre as pessoas vai além do que é visível ou audível.

4. Reflexão sobre a Natureza Humana
O escritor utiliza a habilidade de João para refletir sobre a natureza humana. O conto revela que todos nós temos pensamentos e sentimentos que preferimos esconder, e a ideia de que alguém possa conhecê-los pode ser assustadora. Isso levanta questões sobre privacidade e a forma como nos apresentamos ao mundo. A história convida o leitor a considerar a tensão entre a autenticidade e a fachada que as pessoas constroem em suas vidas.

ESTILO E NARRATIVA

A prosa é clara e envolvente, com uma narrativa que flui de maneira natural. O autor utiliza descrições vívidas para criar uma atmosfera que reflete a solidão de João e o ambiente social ao seu redor. O uso de diálogos e monólogos internos permite que o leitor compreenda a complexidade emocional do protagonista, tornando sua jornada íntima e acessível.

RELEVÂNCIA SOCIAL E CULTURAL

"O Homem que Adivinhava" também pode ser visto como uma crítica social. A habilidade de João de adivinhar pensamentos pode ser interpretada como uma metáfora para a pressão social que as pessoas enfrentam para se conformar a determinadas normas e expectativas. A história questiona a autenticidade das interações sociais em um mundo onde a superficialidade muitas vezes predomina.

CONCLUSÃO

"O Homem que Adivinhava" é um conto que combina elementos de fantasia com uma análise profunda das relações humanas e da solidão. André Carneiro utiliza a figura de João para explorar temas universais que ressoam com a experiência humana, como a busca por conexão e a dificuldade de ser compreendido. A narrativa provoca reflexões sobre a natureza da empatia e a complexidade das interações sociais, tornando-a uma leitura significativa e impactante. Através da habilidade de adivinhar pensamentos, André nos convida a olhar para dentro de nós mesmos e considerar o que realmente significa conhecer e ser conhecido.
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ANDRÉ GRANJA CARNEIRO foi escritor, poeta, fotógrafo, cineasta, artista plástico, publicitário, ensaísta, hipnotizador clínico, entre outras atividades, sendo premiado em todas áreas no Brasil e no exterior, nasceu em Atibaia/SP, em 1922 e faleceu em Curitiba/PR, em 2014, quase totalmente cego. Em 1969, dirigiu os trabalhos no histórico “Simpósio de FC”, um evento integrante do 2º Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro. André Carneiro contava ter assistido ao filme Metrópolis ao lado de Fritz Lang, assim como 2001 – Uma Odisseia no Espaço ao lado de Arthur C. Clark, convidados do Festival, entre outros grandes nomes da literatura mundial de Ficção Científica. Participou do movimento de renovação da poesia do país, como um dos poetas da chamada Geração de 45. Produziu o jornal literário Tentativa (1949), considerado importante representante da terceira geração modernista. Tentativa tinha entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional da época como Oswald da Andrade (que escreveu a apresentação do jornal), Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Teles e muitos outros, Na fotografia, André Carneiro foi um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro. Sua fotografia “Trilhos”, de 1951, um dos marcos do Modernismo fotográfico no Brasil, está no Tate Gallery, em Londres, em exibição permanente e no MoMA, de Nova York. Representou o Brasil, no Concurso Internacional para Filmes Artísticos, realizado na Inglaterra, com o filme “Solidão” (que também foi exibido na França e na Itália). Foi roteirista para as produções de cineastas da envergadura de Abilio Pereira de Almeida, Roberto Santos e Carlo Ponti. Algumas de suas obras literárias foram adaptadas para a TV e o cinema. Como fotógrafo artístico foi premiado em vários salões nacionais e também na Itália e Holanda. Desde 2014, a Prefeitura de Atibaia, de São Paulo e o Coletivo André Carneiro promovem todo mês de maio, a Semana André Carneiro, evento oficial da cidade para homenageá-lo. Em 2018, foi criado o Centro Cultural André Carneiro, para abrigar este evento. E, durante o ano, o espaço tem uma variada programação oferecida pela Secretaria de Cultura como exposições artísticas e culturais, além de espaço para apresentações.

“Conheci André Carneiro em 1991, em uma oficina que ele ministrava na Casa Mário de Andrade, “Ficção científica na literatura e no cinema”, frequentei 3 cursos dele, sendo que no último, em 1994, vim a conhecer quem seria minha esposa. Fiz amizade com ele desde o início, a paixão pela literatura e pela música que nos unia, frequentávamos ora a casa dele, ora a minha, sempre em reuniões com diversos escritores e músicos. Em 1998 eu mudei para o Paraná, mas mantínhamos sempre contato por e-mail, mesmo quando ele se mudou para Curitiba devido a já estar só com 30% da visão. Continuamos nos correspondendo virtualmente até a sua morte. Uma perda irreparável para a literatura brasileira, tinha renome internacional e tão pouco valorizado no Brasil.” (por José Feldman)

Fontes:
José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: Copilot/ Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 09

 

Eduardo Affonso (Propostas afins)

Amigues,

Vocês já se divertiram à beça com a proposta estapafúrdia de se implantar uma linguagem neutra que, trocando um “O” por um “E”, acabaria com todes es problemes de machisme, misoginie, homofobie, transfobie etcétere.

Mas a ideia, em si, não é ruim. O que estraga é ser pouco abrangente e se limitar à questão de gênero. Há várias outras formas de opressão linguística – e a maior delas é… a opressão linguística.  Eu aproveitaria que todos os livros terão que ser reescritos e mandaria ver numa linguagem realmente inclusiva.

Muita gente não entende, por exemplo, a diferença entre “mau” e “mal”. E deve se sentir muito mau contando a história do lobo mal para os filhos, sem saber quando está usando um adjetivo ou um advérbio.

Solução: uniformizamos a grafia, e daqui pra frente será “mao”. Tanto fará ser bom ou mao, andar bem ou mao acompanhado. Isso no singular, porque no plural continuará havendo males que vêm para o bem, e os bons acabarão pagando pelos maus.

De uma penada só, lá se vão 25% dos erros de português.

“Mas” e “mais” são outra desgraça que pode estar com os dias contados se adotarmos a grafia única “maes”.

O corretor ortográfico vai criar caso nos primeiros dias, maes nunca maes teremos dúvidas se é para usar a conjunção adversativa ou o advérbio de intensidade.

Outros 25% de erros eliminados.

“Menos” ou “menas”? Menes.

“Meio” ou “meia”? Meie, seja adjetivo, advérbio, numeral ou substantivo.

“Há” ou “a”? Ah! Seja artigo, verbo, preposição ou interjeição – e ah crase vai fazer companhia ao trema, ah fita para máquina de escrever e ao estado civil de “desquitada” no limbo das coisas que perderam ah razão de existir ah muito tempo.

Ah menes que você seja uma pessoa meie lenta, já terá percebido que ah inúmeras vantagens nessas alterações – ah maior delas sendo outros 25% de correções a menes ah fazer nas provas do Enem, nas matérias dos jornais, nos tuítes de ministros da Educação.

Finalmente, a pergunta que não quer calar: por que o português tem que ser tão complicado? Deve haver um porquê. Talvez porque um monte de filólogos mortos tenha decidido assim – mas por quê?

Não importa. Na reforma contra o preconceito linguístico tudo vai virar “pq”.

Pq? Pq sim. Não tem que ter pq.

E lá se vão os 25% de erros restantes.

Por isso, pensem duas vezes antes de criticar seus amigues progressistes e as fórmulas mirabolantes que eles inventaram para resolver os problemas do mundo com uma canetada. Eles podem ser çem noção mas não estão çem por cento errados. (O “ç” também é uma mão na roda, né não?)
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EDUARDO AFFONSO, arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fonte:
Blog do Eduardo Affonso. 27 outubro 2020.
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/27/propostas-afins/
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AJ Fontes (A primeira ficou)

Nota do blog: Ontem havia sido publicada esta crônica, contudo só vim a perceber hoje que ela estava incompleta, por isso desconsiderem a de ontem, e vale a de hoje.
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A lâmpada na linha da cumeeira clareia as meias paredes que separam do dormitório e da copa, o quarto onde apetrechos de caminhadas e acampamentos cabem numa caixa organizadora, livros, dicionários, agendas antigas em outra e sabão em pó, desinfetante, água sanitária, pasta dental e papel higiênico numa terceira. Juntei a mesa plástica desmontada, o saco de ração, sapatos, retirei roupas penduradas na corda atravessada.

O chão está limpo e coberto por panos, faz dois dias. Passava das oito da noite quando trouxe Amora, a negra e grande cadela. Desde cedo da tarde se mostrava inquieta na área de serviço. Silenciosa, procurava meu olhar, caminhava pelos cantos, raspava o chão e a parede com a pata dianteira.

Instalei uma espreguiçadeira e, sentado, assisto aos movimentos repetidos: vai e vem, rói um canto da parede, deita e dá um grande suspiro e perde o olhar no cansaço.

Não adiantou os cuidados em evitar a prenhez. Um descuido e não a encontrei no quintal. Os dias seguiram, o apetite aumentou; buscava lixo e voltou, após nova escapada, com um bafo terrível. Saltou aos meus olhos o cansaço e o corpo redondo.

O imponderável presenteia o incauto e o cuidadoso. O pacote colorido, laçarote brilhante traz surpresas variáveis no valor, afinal são diferentes os olhos e corações que recebem.

A situação inusitada me excitou, confesso. O desconhecimento do pai não foi problema. Preocupei-me com a saúde dela. Cuido de Amora faz poucos meses. A suposta idade acima de cinco anos e várias barrigas, além do coração aumentado, segundo o veterinário, trouxeram dúvidas quanto a capacidade do corpo suportar mais essa.

Cochilos sucedem às observações da cena repetida. Lembrei das horas angustiantes antes do nascimento do primeiro filho, da correria em busca do anestesista durante o parto do segundo. Será difícil carregar a aquele ser com seus cinquenta quilos até o carro, dirigir até a cidade mais próxima, cerca de vinte e cinco quilômetro do sítio onde estamos.

Ela aparenta estar bem. Sofre as dores, mas o comportamento é de uma conhecedora do assunto. Cabe aguardar.

Impressiona-me a força da mulher. Nós homens não temos como avaliar, embora se diga: expelir uma pedra dos rins pela uretra se aproxima ao sentimento físico, mas é físico. Não conseguimos ao menos imaginar outros sentimentos.

Sentir, em um instante, algo novo acontecendo dentro do corpo e acompanhar as mudanças de ambos até que esse novo se projeta aos nossos olhos, iniciando um caminho só dele, mas com marcas, visíveis ou não, dessa união ímpar.

O canto dos pássaros anuncia a chegada do sol. Abro a janela e recebo os raios, frios ainda. Cuscuz, café, ovos, depois de um suco verde, revigoram.

A amiga querida descansa, diz o ronco peculiar. Os afazeres me dividem entre ficar ou sair, mas o aparente estado de tranquilidade me encoraja. Carrego o medo no bolso da algibeira, de olho para que não se arvore em crescer, rasgar as calças e me arrastar. Otimista, repito: está tudo bem!

Desliguei o carro e procuro algum som vindo da casa... nada ouço. Sem estar certo se é bom ou não desço levando compras. Largo tudo no balcão da área de serviço, e atendo o celular. Uma chamada de vídeo da namorada, buscando notícias da parturiente. Caminho para o quarto. Mostro Amora, surge um pacote translúcido, brilhoso, molhado. Silenciosa a mãe trata de remover a placenta, limpar os vestígios e massagear vigorosamente. O rebento chora.

Nasceu o primeiro!

Uma hora depois chega o segundo e nem bem se recompunha, o terceiro; tempo suficiente para os trabalhos de recebimento, um breve descanso enquanto tateiam e reconhecem o corpo e sons a partir desse novo ângulo e encontram as tetas. A vida se inicia aqui fora.

Não sei qual foi mais difícil de deixar: o ventre de minha mãe ou a casa de meus pais na juventude. Do primeiro sei o que contaram, mas busquei sair de casa desde cedo. Nesses dias o conforto, a segurança da família e a vontade de realizar as proezas imaginadas, eram os dois lados de uma gangorra.

Passa do meio-dia e perco mais uma vez a contagem. As cores variam do creme ao negrume da mãe. Um grito fino e apanho o desgarrado ou desgarrada, não sei. Cheguei a perceber um “o que você pensa que está fazendo?” no olhar e devolvi ao mesmo lugar. Seguiu-se um muxoxo e as lambidas na cria.

À tardinha, deitada, arfando, apenas observa o movimento caótico dos sete ou oito ou nove em busca de uma teta. Ajudei a limpar, juntei, com a permissão devida, todos e todas – aproveitei e fiz uma contagem que defini confiável de nove nascidos – passei panos molhados, troquei por outros secos.

Nos dias seguintes os olhos se abrem. Será que pensam eu ser o pai? Afinal me viram depois da mãe. Limpo a sujeira após as mamadas, correm de mim a esconder sob a casinha de madeira no manejo, fitaram meu rosto, as fêmeas e o macho, sentados no momento que acertava a adoção deles. Confesso que acelerei o processo ou ficaria com todos.

Passados dois meses, resta um cocozinho aqui, um xixizinho ali; sobram latidos, grunhidos, garrafas plásticas amassadas; fujo das mordidas nos calcanhares e Amora brinca; lagartas e o gato correm do assédio. 

Paçoca, a primeira, ficou.
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AJ FONTES (ANTONO JOSÉ DE OLIVEIRA FONTES), pernambucano, contista e cronista, engenheiro aposentado, publicou o livro de contos: Mantas e Lençóis.

Fontes:
Flávia Suassuna (coord.). Rede solidária: coletânea de textos. Recide/PE: 2021. e-book. Enviado por Therezinha D. Brisolla
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Vereda da Poesia = 210


Poema de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

Ars poética

Nesse afago do meu fado afogado
as águas já me sabem nadador.
A rês na travessia marejada
gado da grei de um mar revelador.

Vou e volto lambendo o sal do fardo
língua no labirinto, ardendo em cor
furtiva, enquanto messe temperada,
da tribo das palavras sou cantor.

Procuro em frio exílio tipográfico
o verbo mais sonoro em melodia
o ritmo para a cal de um pasto cáustico.

Sou boi e sou vaqueiro dia a dia
no laço entrelaçado fiz-me prático
catador de capins nas pradarias.
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

A beirada do céu 
sobre a serra desceu
derramando estrelas
pelo caminho,
Que ao balançar do vento
cintilam de mansinho:
brancas, rosas e lilás.
A alma respira energizada! 
Dos anjos,
mensagens perfumadas
encharcam o coração 
de amor e muita paz.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Prisioneiro em prisão de porta aberta
(Augusto Nunes in "Os Espelhos da Água", p. 82)

Prisioneiro em prisão de porta aberta
Nas grades dos teus olhos cumpro a pena
A que este amor tão cego me condena
Mas que faz a minha alma tão liberta.

O mal de que te queixas é uma oferta
E eu dou-te a minha vida tão pequena
Em troca dos teus olhos de açucena
Onde a luz deste mundo se acoberta.

Mas impugno a sentença do juiz
E o que nos autos diz a acusação
E que num pobre réu me transformou

Pois nunca fui na vida tão feliz
E se aqui foi roubado um coração
É o meu!... e foste tu quem m’o roubou!
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Em bando sutil, as garças,
pontilhando o lamaçal,
são quais pérolas esparsas,
adornando o pantanal.
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Vanitas

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,
Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada,
E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada
De gritos de triunfo e gritos de agonia.

Prende a ideia fugaz; doma a rima bravia,
Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada:
“Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada!
Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia!

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,
Arranquei-te da vida ao ádito profundo,
Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives!” E o Poeta
Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,
E cai – vaidade humana! – ao pé de um grão de areia...
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Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Eu, na vida, sou barqueiro 
dos meus sonhos sem destino: 
- sonho bom é o passageiro, 
sonho mau é o clandestino.
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Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

Estrada afora

Ela passou por mim toda de preto,
Pela mão conduzindo uma criança...
E eu cuidei ver ali uma Esperança
E uma saudade em pálido dueto.

Pois, quando a perda de um sagrado afeto
De lastimar esta mulher não cansa,
Numa alegria descuidosa e mansa,
Passa a criança, o beija-flor inquieto.

Também na vida o gozo e a desventura
Caminham sempre unidos, de mãos dadas,
E o berço, às vezes, leva à sepultura...

No coração — um horto de martírios!
Brotam sem fim as ilusões douradas,
Como nas campanhas desabrocham lírios.
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Haicai de
AFRÂNIO PEIXOTO
Lençóis BA, 1876 - Rio de Janeiro RJ, 1947

Comparação

Um aeroplano
Em busca de combustível...
Oh! é um mosquito.
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Poema de
ELINALDO VENCESLAU DA COSTA JUNIOR
Manaus/AM

Gelo em chamas

Por que meus olhos marejam
A cada vez que penso em ti?
E o mundo, preto em branco
Vai colhendo, num tom brando
As belas flores do jardim

Tens ideia do quanto isso é bom pra mim?

Me perguntas, ocasionalmente:
Mas o que foi que eu te fiz?
E eu não sei, verdadeiramente...
Só sei que tu me fazes feliz!

Por que teus beijos me marcam como cicatriz?

Em mente grito sem parar
E no teu carro, eu me calo
Pois só quero aproveitar
Ao teu lado, cada embalo

Seria isso ilusão ou início de paixão latente?

Quisera eu, sinceramente
Em grandes versos, te adorar
Só que me vêm estes singelos
Mas acredite, são tão sinceros
Quanto o ar que foge de mim...
Ao te olhar.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Desce a lágrima insistente,
e há sempre alguém que a maldiz!
Mas a verdade é que a gente
chora até quando é feliz!...
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Hino de 
BALSA NOVA/ PR

Tua gente sempre acolhedora,
Tem no peito a semente da amizade,
Tem nos olhos luz reveladora
De um povo feliz de verdade.

Balsa Nova cidade criança,
teu futuro é riqueza e bonança.

O teu gado e toda a plantação
Dos teus campos compõem novo desenho
E revelam nobre coração:
De paz, de esperança, de empenho.

Balsa Nova cidade criança,
teu futuro é riqueza e bonança.

O teu chão fecundo, abençoado
O Iguaçu e Papagaio vem banhar,
E tuas matas trazem bom recado:
"Progresso é da vida cuidar".

Balsa Nova cidade criança,
teu futuro é riqueza e bonança. 
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

O trem (abrindo o baú)

À beira da estrada férrea
Ficava nossa escolinha.
Bem alegre a garotada
Corria pra lá e vinha.

Com todo aquele barulho
eu acabava ansiosa.
Ficava sempre à espera
E às vezes até manhosa.

Barulho ensurdecedor
Com ranger de ferro e apito
 faísca  no corredor.

Da janela da salinha
Podia se ouvir o grito
Do doido que nele vinha.
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Uma Lengalenga de Portugal
Eco
  
É suposto que cada frase desta lengalenga seja repetida por outra pessoa depois de uma a dizer.
 
 - Ó que eco que aqui há!
 - Que eco é?
- É o eco que cá há.
- O quê? Há cá eco?
- Há eco, há.
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Estudante, deixe os livros, 
e volte-se para mim; 
mais vale um dia de amores 
que dez  anos de latim.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Esquina

Fim de tarde,
Dilui-se tua imagem na esquina
Tento chamá-lo, mas minha voz se dispersa
Na chuva que começa...
Dilui-se tua imagem na esquina
E, em gotas d’água
A saudade  cintila. 
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Estante de Livros ("A Terra do Velho Chefe", de Doris Lessing)

"A Terra do Velho Chefe" é uma das histórias mais conhecidas de Doris Lessing, publicada em sua coleção "Histórias Africanas" de 1965. A narrativa é uma reflexão sobre a descolonização e a desintegração das estruturas sociais tradicionais na África, vista através dos olhos de uma jovem garota branca que cresce em uma fazenda na Rodésia do Sul (atual Zimbabwe).

Resumo

A história segue a vida de uma menina de 14 anos, filha dos donos de uma fazenda europeia em uma região outrora tribal da África. A narradora descreve suas interações com o velho chefe tribal Mshlanga, que representa a resistência cultural e a tradição em um mundo em rápida mudança. A relação entre a menina e o chefe é marcada por um respeito mútuo, mas também por uma clara divisão cultural e social.

Temas Principais

Desenraizamento e Desintegração Cultural: 
A história aborda a desintegração das estruturas sociais tradicionais e a perda de identidade cultural devido à colonização e à modernização. O velho chefe Mshlanga simboliza a resistência à mudança e a preservação das tradições ancestrais.

Racismo e Desigualdade: 
Lessing explora as crueldades do racismo e da segregação racial nas fazendas europeias da Rodésia do Sul. A narradora, apesar de ser uma criança branca, começa a questionar as injustiças e desigualdades que observa ao seu redor.

Relação entre Culturas: 
A história destaca a complexidade das relações entre as culturas colonizadora e colonizada. A narradora desenvolve um respeito profundo pelo chefe Mshlanga, que lhe ensina sobre a importância da terra e da tradição.

Personagens

A Narradora: 
Uma garota de 14 anos que cresce em uma fazenda europeia na Rodésia do Sul. Sua visão da vida muda ao longo da história, à medida que ela começa a questionar as normas sociais e raciais ao seu redor.

Velho Chefe Mshlanga: 
Um líder tribal que representa a resistência cultural e a tradição. Sua relação com a narradora é marcada por um respeito mútuo, mas também por uma clara divisão cultural e social.

Estilo e Técnica

Narrativa em Primeira Pessoa: 
Lessing utiliza a perspectiva em primeira pessoa para proporcionar uma visão íntima e pessoal das experiências da narradora. Isso permite que o leitor se identifique com a protagonista e compreenda suas mudanças internas.

Descrições Detalhadas: 
Emprega descrições ricas e detalhadas para criar uma atmosfera autêntica e envolvente. As paisagens da África e a vida na fazenda são retratadas com precisão e profundidade.

Simbolismo: 
O velho chefe Mshlanga e a terra são símbolos poderosos de resistência e tradição. A narrativa utiliza esses símbolos para explorar temas mais amplos de desenraizamento e desintegração cultural.

Impacto e Relevância:
"A Terra do Velho Chefe" é uma obra-prima da literatura pós-colonial que continua a ressoar com os leitores devido à sua exploração profunda dos temas de desenraizamento, desintegração cultural e racismo. A habilidade de Lessing em criar personagens complexos e uma narrativa envolvente faz desta história uma leitura obrigatória para quem deseja entender as complexidades da história e da cultura africana.
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Doris Lessing (1919-2013) foi uma escritora britânica nascida em Kermanshah, Irã, em 22 de outubro de 1919. Seus pais eram britânicos, e a família se mudou para a Rodésia do Sul (atual Zimbabwe) quando ela tinha cinco anos2. Doris cresceu em uma fazenda, onde foi exposta às duras realidades da vida rural e às complexidades das relações raciais.

Ela começou a escrever cedo e publicou seu primeiro romance, "The Grass Is Singing", em 1950. Este livro abordava a relação entre um casal branco e seu servo africano, e já mostrava o interesse de Lessing pelas questões sociais e raciais2.

Lessing é mais conhecida por seu romance "O Carnê Dourado" (1962), que é considerado um marco do feminismo na literatura. A obra explora a vida de uma escritora feminista e suas lutas pessoais e políticas2. Ao longo de sua carreira, ela escreveu mais de 50 livros, incluindo romances, contos, ensaios e até mesmo ficção científica.

Em 2007, Doris Lessing foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se a pessoa mais idosa a receber o prêmio até então. O comitê do Nobel descreveu sua obra como "uma épica da experiência feminina, que com ceticismo, fogo e poder visionário, submeteu uma civilização dividida a uma análise"1.

Lessing faleceu em 17 de novembro de 2013, em Londres, aos 94 anos. Sua obra continua a ser amplamente lida e estudada, e ela é lembrada como uma das grandes vozes da literatura do século XX.

José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: Copilot. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Edy Soares (Fragata da Poesia) 72

 

Luís da Câmara Cascudo (Maria Gomes)

Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir convenientemente. Quase sempre, na hora das refeições, uma das crianças ficava com fome. O Pai lastimava-se de sua miséria e, na falta de outro auxílio, deliberou abandonar um dos filhos na floresta. Tirou a sorte e recaiu na filhinha Maria que era muito inteligente, bonita e trabalhadora.

O homem levou a mocinha para a floresta e a deixou debaixo de uns pés de araçá, recomendando que se orientasse pelas pancadas do machado com que ele ia derrubar uma árvore para tirar uns favos de mel de abelhas.

Maria ficou, ficou, ficou. As horas passavam e o dia estava escurecendo quando ela ouviu umas pancadas. Procurou caminhar na direção do som e encontrou apenas o cabaço amarrado a um galho. O vento é que o fazia bater e provocava o barulho.

Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. Desceu e caminhou até deparar um casarão muito velho quase em ruínas, num descampado que metia medo aos mais corajosos.

Muito cansada e faminta, Maria rodeou a casa, entrou por uma porta larga e viu que as paredes estavam cheias de instrumentos de música e havia uma rede armada a um canto. A moça segurou um violino e tocou, tocou, tocou. De repente apareceu uma mesa coberta de iguarias fumegantes e apetitosas.

Uma voz misteriosa disse:

– Maria Gomes? O jantar está na mesa!

Maria jantou à vontade. Quando acabou, a voz se ouviu:

– Maria Gomes? Seu quarto é o último, no corredor!

A moça encontrou um quarto preparado de tudo, muito confortável, com roupa para mudar e objetos de uso. Deitou-se e dormiu tranquilamente.

Passaram-se muitas semanas. A moça tocava música; durante o dia, arranjava a casa, limpando-a. Não via pessoa alguma. Apenas a voz misteriosa dirigia o serviço.

Numa noite, a voz informou:

– Maria Gomes? Seu pai está doente. Quer ir vê-lo?

– Quero! – disse Maria Gomes.

A voz continuou:

– Amanhã pela manhã estará um cavalo branco selado esperando à porta. Dentro daquela gaveta há muito dinheiro. Leve quanto desejar para sua família. Tenha todo cuidado em obedecer a duas condições: primeira é não dizer onde e como está vivendo. A segunda é atender aos relinchos do cavalo. Quando ele der o primeiro relincho, despeça-se de todos. Ouvindo o segundo, esteja no meio do caminho e ao terceiro meta o pé no estribo. Se perder o cavalo nada mais posso fazer. Não esqueça!...

No outro dia tudo sucedeu como a voz ensinara. Maria encontrou o cavalo, com sela, montou-o e num minuto estava em casa do pai. 

O velho melhorou logo que a viu e recebeu muito dinheiro, ficando todos satisfeitíssimos com a visita da moça que julgavam morta e devorada pelas feras da mata.

No meio da conversa, Maria ouviu o relincho do cavalo branco. Imediatamente abraçou o pai, os irmãos e as irmãs, recusando todos os oferecimentos, e correu para a estrada. Nada dissera de sua vida, embora fosse muito interrogada. 

Ao segundo relincho do cavalo, a moça estava bem perto do animal e, mal este deu o terceiro sinal, Maria meteu o pé no estribo e foi transportada velozmente para o casarão misterioso no meio da floresta.

Assim outros tempos correram. Duas vezes Maria Gomes visitou seu pai. Na última ocasião o velho, já bem alquebrado pela idade e doença, faleceu. Maria chorou muito, agarrada com os irmãos. Soluçava tão alto que não ouviu o primeiro relincho do cavalo branco. Percebendo o segundo, correu como uma bala mas o terceiro relincho não a alcançou em ponto de montar. 

O cavalo partiu e Maria Gomes continuou correndo atrás do cavalo, gritando, chamando e chorando. Já estava exausta quando o animal voltou, coberto de espuma e se deteve esperando que ela o montasse.

– Se você não corresse atrás de mim eu voltaria para matá-la à força de coices –, disse o cavalo encantado.

No outro dia a voz explicou:

– Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar você e completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.

A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.

Aí procurou empregar-se e, sendo robusto, benfeito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.

O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por quê, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas joias. O príncipe dizia à rainha velha: Minha Mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não!

A rainha velha dissuadia o filho dessa impressão, mas o príncipe teimava, teimava, teimava cada vez mais inseparável do Gomes.

Maria Gomes colocara o cavalo numa manjedoura vizinha ao seu quarto e não saía sem ele. Nunca montou outro animal apesar dos oferecimentos do príncipe.

Este vivia repetindo que os olhos de Gomes eram de mulher. A rainha velha aconselhou-o:

– Leve Gomes para uma caçada. Na hora de dormir arme as redes debaixo do jasmineiro grande que é encantado. As flores caem em cima das mulheres e as folhas em cima dos homens. Pela manhã, bote reparo onde ficaram as flores...

O príncipe foi com Gomes caçar. Armaram as redes, pela tardinha, debaixo do jasmineiro. O príncipe adormeceu logo e Gomes depois. As flores caíam na rede de Maria e as folhas em cima do príncipe. O cavalo branco que estava perto aproximou-se, relinchou e as flores caíram no príncipe e as folhas em Gomes.

Pela manhã o príncipe estava que parecia uma noiva ou um anjo, todo vestidinho de jasmins. Ficou decepcionado e voltou ao palácio sem saber da verdade.

A rainha velha deu outra orientação:

– Leve Gomes para um banho no rio. O jeito é você ficar sabendo...

Foram os dois. O príncipe caiu logo n’água e Gomes começou a despir-se lentamente, conforme o cavalo lhe dissera. Quando ficou apenas com a camisa, o cavalo começou a pular, a piafar, atirando patadas e desembestou pelo campo, obrigando Gomes e o príncipe, este nu em pelo, a correrem para aquietá-lo. Quando o conseguiram, Gomes estava molhado de suor e o príncipe cansadíssimo.

A rainha velha escolheu outro caminho:

– Convide ele para almoçar no palácio. Se for mulher sentar-se-á em cadeira baixa e esperará que a sopa esfrie.

O príncipe convidou Gomes e este foi ouvir o cavalo que lhe explicou tudo. No almoço, Gomes escolheu uma cadeira alta e tomou a sopa bem quente.

A rainha velha não desanimou:

– Quando estiverem conversando, em roda, sacuda uma laranja para ele. Se for mulher, habituada com a saia, abrirá as pernas para ter maior espaço e melhor aparar a fruta. Se for homem, juntará as pernas.

O cavalo, que adivinhava, avisou a Gomes. Sacudiram a laranja e Gomes apertou as pernas.

A rainha velha falou ainda:

– Só resta uma forma. Durma uma noite no mesmo quarto.

O príncipe convidou Gomes para um trabalho no palácio e o prolongou tanto que o falso rapaz foi obrigado a ficar para dormir nos aposentos do amigo. O príncipe esperou que Gomes adormecesse mas a moça resistiu toda a noite. Assim ainda a segunda, mas, na terceira, não podendo com as pálpebras, dormiu. O príncipe passou a mão pelo busto do amigo e encontrou a saliência dos seios.

– Eu bem sabia que você era mulher e não homem. Como estou apaixonado, prepare-se para casar comigo.

Pela manhã Maria Gomes foi onde estava o cavalo e contou tudo.

– Sei perfeitamente. Já chegou meu tempo de liberdade. Daqui a dias é 13 de junho, dia de Santo Antônio, meu padrinho. Peça ao Rei velho que marque umas cavalhadas para esse dia, convidando todo mundo. Eu comparecerei e te levarei comigo porque teu noivo sou eu!

Maria Gomes ficou radiante e foi pedir ao Rei velho que anunciasse umas cavalhadas, com jogo de argolinhas, para o dia de Santo Antônio. O Rei velho, que era muito influído para essas festas, convidou toda a gente e preparou um terreiro enorme, com arquibancadas para os fidalgos e as famílias assistirem.

No dia de Santo Antônio o terreiro ficou negrejando de gente. Cavaleiros sem conta compareceram, vestindo luxuosamente. Logo ao começar a justa surgiu um cavaleiro desconhecido, coberto de prata, magnificamente montado e correu argolinhas com todos os outros vencendo-os facilmente. Trouxe todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do Rei muito lisonjeado.

O príncipe achou o cavaleiro muito antipático e não o aplaudiu.

No segundo dia, o cavaleiro voltou, vestindo roupa de ouro, e venceu a todos, entregando as argolinhas à rainha velha.

No último dia o cavaleiro, vestindo diamantes, derrotou todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do príncipe, que virou o rosto para não fazer a vênia de agradecimento.

Nesse momento o cavaleiro atirou uma fita azul em Maria Gomes. Esta segurou uma ponta com o bico do pé e a outra com os lábios, fechando os olhos, como lhe dissera o cavalo, dias antes. Instantaneamente encontrou-se na garupa do cavalo que o cavaleiro montava.

Rei, rainha, príncipe, povo, todos correram para prender o raptor mas ninguém viu senão a poeira.

O cavaleiro galopou até o casarão velho. Parou e desceu Maria Gomes. Assim que esta pisou no chão, ouviu-se um estrondo e o casarão transformou-se num lindo palácio, resplandecente de luzes e cheio de criados, fidalgos e camareiros. Maria Gomes casou-se com o cavaleiro que era o cavalo encantado, e foram felizes como Deus com os anjos.
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LUÍS DA CÂMARA CASCUDO nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes> 
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing