O Recife, como as metrópoles do mundo, vem experimentando nos últimos 50 anos o que tenho chamado de metamorfose do tudo, isto é, mudanças e transformações que ultrapassam o simplesmente físico e o apenas urbano, para ter também uma natureza sociológica ou antropológica.
A paisagem da cidade contemporânea é diferente, inteiramente diferente daquela de meio século atrás, desde as periferias, nas quais proliferam favelas e palafitas ocupadas por migrantes e seus descendentes, tantas vezes desempregados e deseducados. Na selva de pedra e cal aglomeram-se os prédios de apartamentos, apertando as famílias em quatro paredes. O ser humano mudou também e hoje as relações de amizade ou de vizinhança não reconhecem mais a proximidade dos anos que ficaram encantados nas brumas do tempo. E quando há aproximação, nota-se o exagero e a ausência de limites. Prova disso está nos namoros e nos filhos de mães adolescentes.
Desapareceram as antigas moradias, tangidas pelos enormes edifícios, arranha-céus do presente. Com isso, levaram as cadeiras da calçada, postas em fins de tarde pelos netos, para que sentassem as avós e fiassem conversa com os parentes e os vizinhos. O mascate, que passava vendendo a matéria prima da costura, do crochê e do bordado, muito do agrado das senhoras idosas, afastou-se do cotidiano, do mesmo jeito e agora tudo está disponível nos shoppings e nas lojas que proliferam em galerias dos bairros finos, ao lado da verticalidade das residências. O vendedor de amendoim, torrado e cozinhado, mestre-cuca da deliciosa farinha do grão, encostou os balaios, deixou de gritar chamando a garotada para degustar aquela preciosidade artesanal. Foi substituído pelos meninos que nos bares da vida ofertam o produto sem gosto, faltando o tempero do bem-querer.
Nos bancos assusta, às vezes, a quantidade de máquinas que fazem o serviço do estabelecimento. Assim, é possível sacar, depositar e cumprir os compromissos do mês. Há uma luz que sabe ler, dispensando as antigas filas, de voltas e voltas no salão, as quais nem sempre fluíam com a desejada rapidez. Estão dispensadas as cenas que vi na infância, dos grandes livros sendo abertos no balcão, para o funcionário identificar o nome do correntista e fornecer o saldo do dia.
E foram demitidos os empregados considerados excedentes, com a estreia do computador e a automação das operações, dessa forma com outras empresas, na indústria e no comércio. De tal maneira que no tempo do hoje, quem não tem uma especialização, uma profissão, está fadado à perda, ao desemprego ou ao subemprego.
E o comércio do centro, tão movimentado no pretérito, com lojas e mais lojas à disposição da clientela: a Sloper, a Viana Leal, as Lojas Seta para homens, a Personal e muitas outras? Era na Viana Leal que íamos escolher os presentes de aniversário ou do Natal, adquiridos com todo o sacrifício por meu pai. Ali, também, visitávamos o Papai Noel e nos embalávamos nas fantasias do velhinho, absolutamente crentes em sua passagem na noite do nascimento de Jesus. Sumiram, da mesma forma, as vendas que abasteciam os bairros de classe média e vendiam fiado, usando uma caderneta, na qual se anotavam as despesas a serem cobradas no final do mês. Era um ponto de encontro dos passantes, onde se podia provar o bacalhau e o fígo de alemão, comidas não recomendáveis aos remediados da sorte. Os supermercados ganharam a concorrência!
Frequentava-se o cinema São Luiz ou o Moderno, o Trianon ou o Art Palácio, de seletos espectadores. Esperava-se a namorada à porta e assistia-se o filme do dia. La Violetera fez sucesso e era repetidamente visto pela rapaziada, uma outra película, cujo nome não me ocorre, na qual a trilha sonora incluía a música Relógio - “Por que não paras relógio/Não me faças padecer/...” -, abalou os corações da moçada.
Depois das duas horas sentado, o sorvete no Gemba era indispensável e muitos amores nasceram assim, diante de um casquinho do gelado de ameixa ou de graviola. Agora, os cinemas estão embutidos no corre-corre dos shoppings, para que todos se protejam da violência.
Eis o Recife de agora ou eis aqui a metamorfose do tudo!
******************************************
Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.
Fontes:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Nenhum comentário:
Postar um comentário