O administrador do cemitério de S. Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia, há anos, à rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo, logo, sem circunlóquios:
- O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis contos de réis de "luvas".
Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para se não ver, de uma hora para outra, lançado à rua com a família.
Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a ideia de uma represália: chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e, recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da sepultura.
Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.
- Pronto! - apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. - Que desejam?
- A chave, - explicou um parente do defunto.
- Suspendam a tampa do esquife, - ordenou o administrador.
Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado capitalista.
Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:
- E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as "luvas"?
E não entregou a chave!
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.
Fontes: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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