terça-feira, 31 de julho de 2018

Trova 317 - Paulo Walbach (Curitiba/PR)


Prof. Garcia (Trovas do Meu Cantar) I


1
A infância, já tão distante,
não me angustia a distância,
ao reviver cada instante
da primavera da infância!
2
Algo que em ti, me seduz,
que às vezes, me faz sonhar,
são ternas gotas de luz
que há na luz do teu olhar!
3
Em meio a tantas esperas
e esse silêncio dos sós…
Vi passar muitas quimeras,
dizendo adeus entre nós!
4
Em tons vermelhos, me acena
o sol da tarde morrente,
mostrando a pele morena
do entardecer do poente!
5
Enquanto a mamãe cantava,
a rabeca, por magia…
Nas mãos do cego chorava,
com dó do cego de guia!
6
Essa luz enfraquecida
que, ao pôr do sol, ainda aquece,
tem a cor da despedida,
mas o fervor de uma prece!
7
Nada tem mais luz, mais brilho…
Dos dois, não sei quem mais ama:
Se a mãe que amamenta o filho
ou o filho amado que mama!
8
Não lamente por ser pobre,
quem ama, não se maldiz…
Ser feliz não é ser nobre;
nobre é ser pobre e feliz!
9
Numa foto, em preto e branco,
tão antiga!… E, mesmo assim…
Mamãe, teu sorriso franco,
é fonte de amor sem fim!
10
Num mundo de desiguais
onde há tantos desenganos…
Perdem-se, cada vez mais,
os sentimentos humanos!
11
O pão, sem amor, não cura,
nem mata a fome e o cansaço!…
Melhor que o pão, sem ternura,
é a ternura de um abraço!
12
O poeta encontra meios
de ser feliz onde for!…
Quem planta o bem, sem receios,
enche os celeiros de amor!
13
O rancor sempre me diz,
num tom de quem não caçoa:
Se quem se vinga é feliz,
mais feliz é quem perdoa!
14
Plantei, no lar onde eu vivo,
tua semente!… Ó, Senhor!
E até hoje, ainda cultivo
esta semente de amor!
15
Quando um jardim perde as flores,
a mão de Deus recupera…
Pintando as mais lindas cores
nas flores da primavera!
16
Quantas lições primorosas,
num pequeno beija-flor,
que oscula todas as rosas
com, beijos puros de amor!
17
Que tristeza e desencanto,
naquele instante do adeus:
Ao ver dobrado o meu pranto,
no pranto dos olhos teus!
18
Se há uma luz que se defende,
que te ilumina e te afaga,
é a luz que o destino acende
e o próprio destino apaga!
19
Se o destino deu-me as costas,
resoluto, eu me defino,
mesmo não tendo as respostas
para o meu próprio destino!
20
Sinto-Te tanto, ó, meu Deus,
na fé, no sinal da cruz…
Que as sombras dos dias meus
têm ternas gotas de luz!
21
Suspira a fonte sofrida,
já sem voz, ao pé do monte!
Que pena!… A musa da vida,
chorando a morte da fonte!
22
Tatuei com tintas da alma,
nas cordas do coração…
Teu olhar, mãe!… Que me acalma,
nas horas de solidão!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar.
Natal/RN: CJA Edições, 2017.

Olivaldo Júnior (Sobre um velho escritor)

(Para 25 de julho: Dia do Escritor)

Homem, velho e inevitável, impensável, irremediavelmente sozinho. Sim, era um velho escritor. Alguém a quem o Tempo, a Vida ou Deus tocou e concedeu a capacidade de enxergar e de escrever o que via, sem se importar se as visões eram reais ou não. Afinal, o que é que é mesmo realidade? Não sei, pois acredito que a vida é dentro. Vivemos alguns poucos anos e, como se fosse apertado um botão, desligam-nos do corpo e aterrissamos em outro lugar. Será que podemos pensar que a tal realidade é mesmo algo para se levar a sério? Não, um velho escritor também não poderia acreditar nisso. E, de fato, não acreditava mesmo. Era livre.

Liberdade. Eis um substantivo abstrato que o velho escritor sempre quis concreto. Assim, ao fim da vida, a cada dia mais perto do voo para o cerne do azul, o velho escritor se questionava se a liberdade a que tanto almejara lhe tinha sido conquistada em algum momento da vida. Pensou, meditou, repensou e, num átimo, numa espécie de vislumbre, de um só golpe, viu que nunca havia sido livre e que nenhum homem poderia jamais ser livre de verdade.

A verdade. Será que o velho escritor tinha encontrado a verdade? Para além da verdade cristã e de qualquer outra verdade filosófico-religiosa, nosso amigo descobriu que a verdade é sempre relativa a algum fato que a contradiz. E o peso de um e de outro podem sempre variar. Dessa forma, recolheu-se à significância de sua própria verdade e descreveu o mundo conforme os olhos da peregrina essência que o animava. Foram textos e mais textos sobre a estrada.

Sobre a estrada, diria que lhe fora até suave demais. Jamais tivera uma doença grave. Conhecera o amor, mesmo que mal ou nunca correspondido. Não, não tivera nenhum filho, nem plantara nenhuma árvore. Mas escrevera livros, lançara folhas dentre as folhas já lançadas e que permeiam a penumbra das bibliotecas, o sem-fim dos sebos, dos sites e dos blogs da internet, sua casa mais profícua ultimamente. Aliás, ultimamente, comunicava-se bastante por e-mail, via web, sem rostos familiares, só palavras com as quais se relacionava como se as conhecesse melhor do que as pessoas que encontrava todo dia pela rua. Rua... Qual seria mesmo a Rua dos Cataventos que o mestre Quintana cantou e que tanto o comovera? Era escritor.

Fonte: O Autor

segunda-feira, 30 de julho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 29


Vinícius de Moraes (Contemplações do poeta ao cair da noite)


Ainda há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo, também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres, além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária dos emolumentos consulares. 

E como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar "pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo mal conhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)". Entregava-me a uma profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim. 

E não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é claro, "dês da primeira idade feito hábito neste santo exercício". Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em ternura e querer-bem. E se nele "este antigo costume lhe trazia a viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos prazeres do divino ócio", eu por mim tinha sempre bem afinado o meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem, que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia em que nunca mais nos haveríamos de separar. 

De outros turnos - como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo os negócios, "subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto sobre um raminho canta descansadamente", - também eu deixava-me estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e feito ele que, à imagem da avezinha, "depois de alargar os olhos pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando em quando alegres Hinos" - eu por minha vez, ante a ideia de compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa única, o meu antes triste e multifário coração.

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para viver um grande amor.

Alvarenga Peixoto (Caldeirão Poético)


A MARIA IFIGÊNIA
Em 1786, quando completava sete anos.

Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha acesa
vem conduzir a simples natureza,
é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,
despreza ofertas de uma vã beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são ideias delirantes;
procura ser feliz na eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.

“AO MUNDO ESCONDE O SOL SEUS RESPLENDORES”

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.

Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.

Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.

Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!

“EU VI A LINDA JÔNIA E, NAMORADO”

Eu vi a linda Jônia e, namorado,
fiz logo voto eterno de querê-la;
mas vi depois a Nise, e é tão bela,
que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se, neste estado,
eu não sei distinguir esta daquela?
Se Nise agora vir, morro por ela,
se Jônia vir aqui, vivo abrasado.

Mas ah! que esta me despreza, amante,
pois sabe que estou preso em outros braços,
e aquela me não quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:
ou faze destes dois um só semblante,
ou divide o meu peito em dois pedaços!

“DE AÇUCENAS E ROSAS MISTURADAS”

De açucenas e rosas misturadas
não se adornam as vossas faces belas,
nem as formosas tranças são daquelas
que dos raios do sol foram forjadas.

As meninas dos olhos delicadas,
verde, preto ou azul não brilha nelas;
mas o autor soberano das estrelas
nenhumas fez a elas comparadas.

Ah, Jônia, as açucenas e as rosas,
a cor dos olhos e as tranças d'ouro
podem fazer mil Ninfas melindrosas;

Porém quanto é caduco esse tesouro:
vós, sobre a sorte toda das formosas,
inda ostentais na sábia frente o loiro!

“EU NÃO LASTIMO O PRÓXIMO PERIGO”

Eu não lastimo o próximo perigo,
Uma escura prisão, estreita e forte;
Lastimo os caros filhos, a consorte,
A perda irreparável de um amigo. 

A prisão não lastimo, outra vez digo, 
nem o ver iminente o duro corte, 
que é ventura também achar a morte 
quando a vida só serve de castigo. 

Ah, quão depressa então acabar vira 
este enredo, este sonho, esta quimera, 
que passa por verdade e é mentira! 

Se filhos, se consorte não tivera 
e do amigo as virtudes possuíra, 
um momento de vida eu não quisera.

domingo, 29 de julho de 2018

Trova 316 - Octávio Serrano (João Pessoa/PB)


Laurindo Rabelo (Caldeirão Poético)


ÚLTIMO CANTO DO CISNE

Quando eu morrer, não chorem minha morte,
Entreguem meu corpo à sepultura;
Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha
Os andrajos que deu-me a desventura.

Não mintam ao sepulcro apresentando
Um rico funeral d'aspecto nobre:
Como agora a zombar me dizem vivo,
Digam-me também morto - aí vai um pobre!

De amigos hipócritas não quero
Públicas provas de afeição fingida;
Deixem-me morto só, como deixaram-me
Lutar contra a má sorte toda a vida.

Outros prantos não quero, que não sejam
Esse pranto de fel amargurado
De minha companheira de infortúnios,
Que me adora apesar de desgraçado.

O pranto, açucena de minh'alma,
Do coração sincero, d'alma sã,
De um anjo que também sente meus males,
De uma virgem que adoro como irmã.

Tenho um jovem amigo, também quero
Que junte em minha Essa os prantos seus
Aos de um pobre ancião que perfilhou-me
Quando a filha entregou-me aos pés de Deus

Dos meus todos eu sei que terei preces,
Saudades, lágrimas também;
Que não tenho a lembrança de ofendê-los
E sei quanta amizade eles me têm.

E tranquilo, meu Deus, a vós me entrego,
Pecador de mil culpas carregado:
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,
E o muito que também tenho chorado.

A MINHA RESOLUÇÃO

O que fazes, ó minh'alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
Às raízes lhe é veneno,
Ela vai noutro terreno 
As raízes esconder. 

Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um'alma fida
Minha vida e meu amor.

MODINHAS

Foi em manhã de estio
De um prado entre os verdores,
Que eu vi os meus amores
Sozinha a cogitar.

Cheguei-me a ela,
Tremeu de pejo...
Furtei-lhe um beijo,
Pôs-se a chorar.

Eram-lhe aquelas lágrimas
Na face nacarada
Per'las da madrugada
Nas rosas da manhã.

Santificada
Naquele instante,
Não era amante,
Era uma irmã.

Dobrados os joelhos
Os braços lhe estendia,
Nos olhos me luzia
Meu inocente amor.

Domina a virgem
Doce quebranto,
Seca-se o pranto,
Cresce o rubor.

Nestes teus lábios
De rubra cor,
Quando tu ris-te
Sorri-se amor.

Dos lindos olhos,
Tens o fulgor,
Se pra mim olhas
Raios de amor.

De teus cabelos
De negra cor,
Forjam cadeias
Brincando amor.

Neles pra sempre,
Servo ou senhor,
Viver quisera
Preso de amor.

Rosas que tingem
Fresco rubor
Nas tuas faces
Espalha amor.

Se de minh'alma
Com todo o ardor,
Chego a beijá-las
Morro de amor.
Tua alma é pura
Celeste flor,
Só aquecida
Por sóis de amor.

Já em ternura,
Já em rigor,
Dá vida e morte,
Ambas de amor.

Quando a perturba
Casto pudor,
Encolhe as asas
Tremendo amor.

Se do ciúme
Sente o fulgor,
Em mar de chamas
Se afoga amor.

Se me concedes
Terno favor
Terei por lume
Somente amor.

Porém no templo
Mandarei pôr
O teu retrato
Em vez de amor.

AS DUAS REDENÇÕES
Ao batismo e liberdade de uma menina

Inda uma vez tanjamos
A lira, e mais um hino
Consinta-me o destino
Erguer nos cantos meus;
Que vá, de sons profanos
Despido e desquitado
Em voo arrebatado,
Voando aos pés de Deus.

Da liberdade a estrela
No berço da inocência 
Derrama a providência
De duas redenções;
Mostrando um'alma limpa
Do crime primitivo
No corpo de um cativo
Que quebra os seus grilhões.

Que assunto mais merece
Um hino de poesia?
Que dia tem mais dia?
Que feito tem mais Luz?
Do cativeiro um anjo
Quebrando infames laços,
À cruz estende os braços
E os braços lhe abre a cruz.

Perfilha Deus o anjo
Na filiação da graça,
E o ser que o crime embaça
Puniu a redenção!
E o homem, dissipando
Do berço insano agravo,
Em menos um escravo
Abraça um novo irmão!

Que foras, inocente,
Que foras, nesta vida,
Da escravidão perdida
No bárbaro bazar!?
Pobre rola ferida
Da infâmia pelo espinho,
Em que ramo, em que ninho
Te havias de aninhar?

Infante, sem afagos,
Temendo-te altiveza,
Querendo-te a vileza
Plantar no coração,
Dariam-te nos gestos,
Nas vestes, no aposento,
Na mesa, no alimento,
Somente - escravidão!

Donzela (oh! sacrilégio!)
Amor, qual flor sem viço,
Mil vezes é serviço
Que fero senhor quer!
É dor que o fel requinta,
Que a ímpia sorte agrava
Daquela que é escrava
Depois de ser mulher!

Se mãe (é mãe escrava!)
Quem sabe se verias
Teu filho mãos ímpias
Do seio te arrancar?
E surdos ao teu pranto
Mandarem-te com calma
Do seio da tua alma
A outro alimentar?!

Criança mas sem veres
Da infância as verdes cores,
Donzela sem amores,
Talvez alam sem Deus!
Não foras arrastada
Da vida pelos trilhos,
Nem tu, e nem teus filhos
Seriam filhos teus. 

Ó vós que hoje lhe destes
O dom da liberdade,
Que junto à divindade
Matais a escravidão,
Ao trovador propícios
De ação tão excelente
Em culto reverente...
Guardai esta canção.

Eu sei que haveis guardá-la,
Que em tão santa amizade
Não vem a variedade
Deitar veneno atroz.
Sou vosso desde a infância:
Da vida até o fim
Sereis tanto por mim
Como serei por vós!

Contos e Lendas do Mundo (Inuit: Pássaro negro, Céu resplandecente)

Hoje, a terra dos esquimós canadianos (Inuit) tem luz do dia durante metade do ano e noite durante a outra metade. Porém, segundo um mito esquimó, não foi sempre assim. Era um lugar de noite eterna.

Outrora, na bruma do tempo, a terra dos esquimós era um lugar de completa escuridão. Era um local ermo de desertos gelados, onde o frio cortante trespassava as peles usadas pelos esquimós e cravava os seus dentes até ao tutano. Mas pior do que o frio era a interminável noite. Meia-noite ou meio-dia, o céu era negro como os vultos das focas a nadar por baixo do gelo.

Nesta escuridão, nasciam crianças, construíam-se iglus e caçavam-se animais. O tempo parecia não ter significado, porque não havia dias para contar. O povo deste deserto terrível tinha apenas as suas lamparinas de óleo de foca para iluminar a escuridão.

Para passar o tempo, os esquimós passavam a maior parte das suas vidas dentro dos iglus a contar histórias uns aos outros, mas um dos mais populares contadores de histórias não era um humano. Era um corvo.

Ao contrário dos esquimós, este pássaro viajara por toda a parte. Numa hora, as suas asas podiam levá-lo a uma distância que um homem ou uma mulher só conseguiam cobrir ao fim de um dia de caminhada sobre o gelo traiçoeiro sem a luz do Sol para os guiar. No entanto, as horas e os dias não significavam nada para os esquimós canadianos.

O Corvo falava-lhes de todas as outras terras que vira e de uma coisa chamada Luz do Dia.

–  O que é essa Luz do Dia de que falas? - indagou um jovem caçador. - Não compreendo.

–  E mais brilhante do que o relâmpago que ilumina o céu numa trovoada - disse o Corvo. - Porém, ao contrário do relâmpago, não desaparece num piscar de olhos.

–  Queres dizer que o céu fica brilhante? - perguntou o jovem caçador.

–  Sim - disse o Corvo. - Em vez do céu ser escuro como as pupilas dos teus olhos, é claro como o branco que as rodeia.

 –  Como é que isso é possível? - perguntou uma velhota. - Já vivi mais do que qualquer um que está sentado neste círculo, e nunca vi essa coisa a que chamas Luz do Dia.

 –  Nunca nenhum de nós viu algo com nitidez! - gritou o jovem caçador. - Vivemos num mundo de sombras... num mundo iluminado pelo brilho amarelado das nossas lamparinas de óleo de foca. Sem isso, seríamos completamente cegos.

 –  Então traz-nos um pouco dessa Luz do Dia, Corvo, para nos ajudar nas nossas vidas diárias - suplicou a velhota. - Não para provar a verdade do que dizes, pois não duvidamos da tua palavra, mas para nos ajudar.

 O Corvo estava sempre ansioso por ajudar os esquimós. Não tinha nenhum motivo para visitar a terra deles, mas eles eram seus amigos e era por isso que voltava sempre para eles.

 –  Sim - acrescentou o jovem caçador. - Importas-te de ir até ao mundo da Luz do Dia e de nos trazer um pouco dela?

 –  Vou tentar - disse o Corvo.

 Na manhã seguinte - embora ninguém pudesse afirmar que era manhã, pois o céu ainda estava negro - o Corvo partiu para a sua viagem. Uma multidão de pessoas juntara-se na escuridão para o ver partir.

 –  Boa sorte! - gritaram, mas no momento em que ele voou para o céu, deixaram de ver o seu amigo, pois as suas penas eram tão negras como o ar que o rodeava.

 Voou até avistar uma luz bruxuleante no horizonte. Chegara finalmente à terra da Luz do Dia e então - e só então - pousou, completamente esgotado, para dormir.

 Quando o Corvo acordou, pensou na missão que tinha pela frente. Os esquimós eram boas pessoas. Como a comida era escassa na sua terra, partilhavam sempre com prazer o pouco que tinham entre si. O Corvo sabia que nem todas as pessoas se comportavam assim, e que aqueles que possuíam a Luz do Dia não estariam dispostos a dar-lhe um pouco dela, por mais pequeno que fosse esse pouco. Teria de a roubar.

 O Corvo voou até uma aldeia e procurou a casa do chefe, porque sabia que a pessoa mais importante da aldeia estaria encarregue da Luz do Dia. Pousou no peitoril da janela e viu uma criança a engatinhar em cima de um tapete de pele de urso, sob a vigilância do seu amado avô, o chefe.

 O Corvo viu pela expressão do chefe que adorava o seu neto e que faria tudo por ele. O rapaz poderia pedir qualquer coisa que o avô, para o fazer feliz, lha daria - o Corvo não tinha qualquer dúvida a esse respeito.

 Uns dizem que o Corvo se transformou num grão de poeira e entrou na orelha do rapazinho. Outros dizem que o Corvo falou com o rapaz quando o chefe saiu de casa para ajudar a filha a transportar um balde de água. Fosse como fosse, o Corvo suspirou para o rapaz:

 –  Pede ao teu avô um bocado de Luz do Dia... um bocadinho chegará, com um fio para a segurar.

 O rapaz, excitado, gritou:

 –  Vovô! Vovô! Deixe-me brincar com um bocadinho de Luz do Dia. Mas a Luz do Dia era demasiado preciosa para se poder brincar com ela, por isso o chefe tentou distrair o neto.

 –  Agora não, criança - disse ele. - Deixa-me contar-te a história de Nanook, o urso branco.

Pegou num pequeno urso feito de dente de morsa e pô-lo num tapete ao lado do rapaz. Depois, começou a contar ao neto a sua história favorita - o conto esquimó de como um urso-polar salvou a vida de um homem aquecendo-o com o seu corpo e pescando peixe para ele comer, e de como ele ensinou ao homem que os ursos e os homens eram irmãos.

Porém, pela primeira vez, a história perdeu a sua magia. O rapaz só pensava na Luz do Dia. Era só um bocadinho de Luz do Dia que ele queria para brincar e, depois de começar a chorar, foi um bocadinho de Luz do Dia que lhe foi dado - com um fio para a segurar.

–  Obrigado, vovô! - O rapaz sorriu, segurando a brilhante orbe.

Antes que alguém soubesse o que estava a acontecer, o Corvo bateu as asas desde o sítio onde estivera escondido e agarrou no fio.

Fugiu então pela porta que fora aberta pelo pai do rapaz, que regressava de uma caçada.

O Corvo voou em direção ao céu, esquivando-se a uma torrente de setas disparadas contra ele pelo chefe e os seus aldeões. Com ele, levava o bocado de Luz do Dia, brilhante como uma bola cor de laranja. Continuou a voar, sem nunca se atrever a parar, enquanto levava a Luz do Dia aos seus amigos, os esquimós.

Era apenas um bocadinho, naturalmente, porque o Corvo não teria conseguido transportar algo muito maior, mas era suficientemente grande para fornecer luz e calor aos seus amigos durante meio ano. Pela primeira vez, tinham luz natural. A velhota, o jovem caçador e todos os outros esquimós ficaram muito gratos por aquilo que o Corvo fizera, arriscando a vida para lhes trazer a Luz do Dia.

–  Obrigado - disseram. - Nunca esqueceremos o que fizeste por nós. As tuas façanhas serão contadas em histórias pelos nossos filhos e netos. O teu nome perdurará entre o nosso povo para sempre.

Numa terra onde a caça é ainda difícil e a comida é ainda escassa, os esquimós canadianos nunca matam corvos. São amigos dos pássaros, e agora sabeis porquê.

Fonte:

Os Inuit (Esquimós)

Durante séculos, os Inuit sempre foram chamados de "esquimós" por aqueles que não são Inuit. Os Inuit não mais consideram este termo aceitável. Preferem o nome pelo qual eles próprios sempre se identificaram, Inuit, que significa "povo" em seu próprio idioma, o inuktitut.

Os Inuit habitam vastas áreas em Nunavut, nos Territórios do Noroeste, na costa norte de Labrador e em aproximadamente 25% do norte de Quebec. Tradicionalmente, eles habitavam acima da área arborizada na região onde se encontra a fronteira com o Alasca, no oeste, a costa de Labrador à leste, a ponta sul da Baía de Hudson ao sul e as ilhas do alto Ártico ao norte.

Cerca de 55.700 Inuit vivem em 53 comunidades em todo o norte canadense. A população Inuit cresceu rapidamente nas últimas décadas. De acordo com a agência governamental de estatísticas "Statistics Canada", se a tendência continuar, haverá cerca de 84.600 Inuit no norte canadense por volta de 2016.

Os Inuit são um dos três povos aborígines do Canadá, conforme definido pela constituição canadense. Os outros dois povos aborígines são denominados "Primeiras Nações" e "Métis".

Uma cultura enraizada na terra

As origens dos Inuit no Canadá datam de pelo menos 4.000 anos atrás. Sua cultura é profundamente enraizada na vasta terra em que habitam. Por milhares de anos, os Inuit observaram atentamente o clima, as paisagens terrestres e marítimas, e os sistemas ecológicos de sua vasta pátria. Com base nesse conhecimento íntimo da terra e de suas formas de vida, os Inuit desenvolveram habilidades e tecnologias peculiares e adaptadas a um dos ambientes mais inóspitos e exigentes do planeta.

Os Inuit tratavam com o mesmo respeito os seres humanos, a terra, os animais e as plantas. Hoje, continuam tentando manter este relacionamento harmonioso. Tentam utilizar os recursos da terra e do mar com sabedoria para preservá-los para as gerações futuras.

Na caça, seguem tradições e regras rigorosas para ajudar a manter este equilíbrio.

Para os Inuit de Labrador, por exemplo, é proibido matar qualquer animal em sua época de reprodução.

Antes da criação das colônias permanentes nas décadas de 1940 e 1950, os Inuit migravam conforme as estações. Eles estabeleciam acampamentos de verão e de inverno, aos quais retornavam anualmente.

Estes campos sazonais permitiam que os Inuit usassem os recursos da terra e do mar nas épocas do ano em que eram mais abundantes.

Eram transmitidos de geração a geração os conhecimentos tradicionais sobre a história dos Inuit, suas terras e plantas, e sobre os animais selvagens.A família é o centro da cultura Inuit, e cooperação e compartilhamento são princípios básicos na sociedade Inuit.

Eles compartilham os alimentos que trazem da caça, e cada um faz a sua parte para ajudar aos necessitados.

A cultura Inuit foi exposta a muitas influências externas durante o último século. Entretanto, os Inuit conseguiram reter seus valores e cultura.O inuktitut ainda é falado em todas as comunidades Inuit. Ele é também o principal idioma utilizado em programas de rádio e televisão originados no norte canadense, e faz parte do currículo escolar.

Muitas comunidades Inuit continuam a praticar as danças e canções tradicionais, que incluem dança de tambores e canto gutural (canto tradicionalmente executado por mulheres Inuit, que produzem sons guturais). A tradição oral e a narração de estórias ainda permanecem bem vivas na cultura Inuit, com lendas passadas entre as gerações ao longo dos séculos. Tais estórias frequentemente falam de espíritos poderosos que habitam a terra e o mar, e têm sido uma contínua fonte de inspiração para artistas Inuit, cujas gravuras e esculturas são apreciadas por colecionadores e galerias de arte em todo o mundo.

Os primeiros contatos regulares entre os Inuit e os europeus começaram em meados do século XVII, quando os navios baleeiros europeus chegaram ao Ártico. No fim do século XVIII, a indústria da caça à baleia declinava, e foi substituída pelo comércio de peles. Nas décadas seguintes, um relacionamento econômico baseado no comércio de peles se desenvolveu entre os Inuit e os europeus.

Exceto pelos encontros com os negociantes de peles e alguns exploradores, os Inuit tiveram pouco contato com o resto do Canadá até a década de 1940. Nesta época, o governo canadense já havia começado a marcar presença no Ártico.

O governo encorajou os Inuit a morar em colônias permanentes, ao invés de em seus acampamentos sazonais. As colônias logo começaram a serem apoiadas por destacamentos da Polícia Montada do Canadá (RCMP, Royal Canadian Mounted Police), por serviços de saúde e de assistência social, e por um programa habitacional.

Na década de 1960, os Inuit começaram a formar cooperativas de mercado para facilitar a venda de produtos locais, incluindo gravuras artísticas e esculturas entalhadas que se tornariam famosas em todo o mundo. No fim da década de 1970, as novas colônias centralizadas haviam se tornado uma característica permanente na vida Inuit, com novas escolas e melhores instalações para assistência médica. As rotas aéreas regulares e as telecomunicações ajudaram a conectar as colônias umas às outras e ao resto do mundo.

As comunidades Inuit são governadas por conselhos municipais eleitos. Apoiando estes conselhos existem comitês que tratam de assuntos como caça, pesca, uso de armadilhas, saúde e educação. As escolas Inuit de hoje oferecem um sistema educacional moderno que inclui matérias culturais, como o ensino do idioma inuktitut.

Atualmente os Inuit trabalham em todos os setores da economia, incluindo mineração, petróleo e gás, construção, no governo e em serviços administrativos. Muitos Inuit ainda complementam suas rendas por meio da caça.

O turismo é uma indústria crescente na economia Inuit. Guias Inuit levam turistas em passeios com trenós puxados por cães e em expedições de caça, e trabalham em hospedarias para caçadores e pescadores. Cerca de 30% dos Inuit obtêm ganhos trabalhando meio período com suas esculturas, entalhes e gravuras.

A colonização de terras reivindicadas nos territórios do Nordeste canadense e norte de Québec resultaram em recursos financeiros para os Inuit e proveram uma estrutura para iniciar e expandir atividades de desenvolvimento econômico. Os novos negócios emergentes incluem imóveis, turismo, empresas aéreas e empresas pesqueiras em alto mar.

Desde meados da década de 1970, os Inuit negociaram várias reivindicações de terras de grande abrangência com o governo federal, com o governo dos Territórios do Nordeste e com o da província de Québec. Tais reivindicações incluem a Baía James e o Acordo do Norte de Québec, assinado em 1975, o Acordo Final de Inuvialuit, assinado em 1984 pelos Inuit do Ártico Ocidental, o Acordo de Reivindicações de Terras de Nunavut, concluído em 1993, e o Acordo de Reivindicações de Terras Inuit de Labrador, assinado em 2005. Cada um destes acordos atende as necessidades de uma região específica. Em todos os casos, o pacote de colonização inclui compensação financeira, direitos às terras, direitos de caça e oportunidades de desenvolvimento econômico. No Acordo de Reivindicações de Terras de Nunavut o governo federal também se comprometeu com a divisão dos Territórios do Nordeste e a criação do território de Nunavut em 1o de abril de 1999.

A empresa Makivik, que representa os Inuit do norte de Québec, rubricou o Acordo de Reivindicações de Terras Inuit de Nunavik com o governo de Nunavut e o governo do Canadá, em preparação às assinaturas.

Até a década de 1970, os Inuit não tinham organizações regionais nem nacionais para representá-los politicamente. Entretanto, nos primeiros anos da década de 1970, emergiu um grupo de novos líderes. Eles fundaram a organização Inuit Tapiriit Kanatami (ITK) em 1971. Os líderes da ITK trabalharam como lobistas para obter mudanças em políticas que afetavam os Inuit e seu papel no Canadá. O resultado de seus esforços foi que o governo federal forneceu financiamentos a longo prazo para ajudá-los a estabelecer organizações Inuit regionais e nacionais. Usando estes financiamentos, as organizações Inuit se concentraram em temas tais como governo autônomo, reconhecimento constitucional dos direitos de aborígines, questões ambientais e reivindicações de terras.

A Inuit Broadcasting Corporation é a organização nacional encarregada dos serviços de transmissão de rádio e TV dos Inuit. Por meio da Television Northern Canada, a organização transmite programas de televisão Inuit nas regiões de Nunavut, Territórios do Nordeste, Norte de Québec e Labrador, bem como no território Yukon.

Além das organizações nacionais e regionais Inuit, os Inuit do Canadá trabalham para apoiar grupos culturais Inuit que cruzam fronteiras internacionais. Em 1977 a Conferência Circumpolar Inuit foi criada para representar os interesses dos Inuit do Canadá, Groenlândia, Chukota (Rússia) e Alasca. A organização trabalha para fortalecer a união entre os Inuit nessas regiões e promove o desenvolvimento sustentável e os direitos e interesses dos Inuit em nível internacional.

A Conferência também dá aos Inuit do Canadá a oportunidade de participarem em projetos e parcerias de desenvolvimento econômico em toda a região circumpolar, e com povos indígenas em outras partes do mundo.

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