sábado, 25 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Surrão

Recolhido no Algarve

Era uma vez uma pobre viúva, que tinha só uma filha que nunca saía da sua beira; outras raparigas da vizinhança foram-lhe pedir, que na véspera de S. João deixasse ir a sua filha com elas para se banharem no rio. A rapariga foi com o rancho; antes de se meterem no banho, disse-lhe uma amiga:

– Tira os teus brincos e põe-os em cima duma pedra, porque te podem cair na água.

Assim fez; quando estavam a brincar na água passou um velho, e vendo os brincos em cima de uma pedra, pegou neles e deitou-os para dentro do surrão.

A rapariga ficou muito aflita quando viu aquilo, e correu atrás do velho que já ia longe. O velho disse-lhe que entregava os brincos, com tanto que ela os fosse buscar dentro ao surrão. A rapariga foi procurar os brincos, e o velho fechou o surrão, com ela dentro, botou-o às costas e foi-se de vez. Quando as outras moças apareceram sem a sua companheira, a pobre viúva lamentou-se sem esperança de tornar a achar a filha. O velho, ao passar a serra, abriu o surrão e disse para a pequena:

– Daqui em diante hás de me ajudar a ganhar a vida; eu ando pelas ruas, a pedir, e quando disser:

Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

– Tens de cantar por força. Toma tento.
   
Por toda a parte onde o velho passava todos ficavam admirados daquela maravilha. Chegou a uma terra, aonde já chegara a notícia de um velho que fazia cantar um surrão, e muita gente o cercou para se certificar. O velho depois que viu que já estavam bastantes curiosos, levantou o pau e disse:

– Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

Ouviu-se então um canto que dizia:

– Estou metida neste surrão,
Onde a vida perderei;
Por amor dos meus brinquinhos
Que eu na fonte deixei.

As autoridades tiveram conhecimento daquele caso, e trataram de ver onde é que o velho pousava; foram ter com uma vendeira, que se prestou a deixar examinar o surrão quando o velho estivesse dormindo. Assim se fez; lá encontraram a pobre rapariga, muito triste e doente, que contou tudo, e então é que soube do caso da viúva a quem tinham furtado a filha. A pequena saiu com as autoridades, que mandaram encher o surrão de todas as porcarias, de sorte que quando o velho foi ao outro dia mostrar o surrão, este não cantou; deu-lhe com o bordão, e então derramou-se pelo chão toda aquela porcaria que o povo lhe obrigou a lamber, sendo dali levado para a cadeia, e a menina foi para casa de sua mãe.
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Notas Comparativas

A lenda cristã de Sta. Margarida, engolida por um Dragão, representa a luz solar escondida pela noite. Pertence a este ciclo, como observa Tylor, a história do Petit Chaperon rouge, em França e Inglaterra: «Na Alemanha as velhas conservam-no com toda a sua pureza. Segundo a sua narrativa, o lobo engole a encantadora criança, vestida com o seu brilhante manto de cetim vermelho, e a sua avó; mas elas saem incólumes da barriga do animal que um caçador abriu enquanto ele dormia. Acha-se um conto parecido na coleção de Grimm, em que se pode igualmente reconhecer o mito do sol. Como no Petit chaperon rouge, abre-se a barriga do lobo e enche-se-lhe de pedras». Tylor, Civilisation Primitive, t. I, p. 390.

Aparece em francês nos Contes populaires lorrains de Emm. Cosquin, L'homme au pois; e em Fernán Caballero, El zurrón que cantaba. Sobre o caráter mítico deste conto, aplicamos o dito de Gubernatis:

«O saco representa um importante papel na tradição do herói escondido ou perseguido; este saco é a Noite, ou a nuvem (o inverno), etc.» Mythologie Zoologique, t. I, p. 255 e seg. E em outra passagem, acrescenta: «Achamos aqui não somente a heroína é a Aurora...» (p. 259).

Nos romances populares portugueses há donzelas metidas em esquifes de vidro ou deitadas ao mar em cofres. Nos costumes domésticos, as crianças são intimidadas com a ameaça de um velho que as leva em um saco. O surrão é o saco de couro das tradições indo-europeias e dos costumes jurídicos da penalidade simbólica medieval.


Fonte:
Wikisource

Irmãos Grimm (Rapunzel)

Era uma vez um casal que há muito tempo desejava inutilmente ter um filho. Os anos se passavam, e seu sonho não se realizava. Afinal, um belo dia, a mulher percebeu que Deus ouvira suas preces. Ela ia ter uma criança!

Por uma janelinha que havia na parte dos fundos da casa deles, era possível ver, no quintal vizinho, um magnífico jardim cheio das mais lindas flores e das mais viçosas hortaliças. Mas em torno de tudo se erguia um muro altíssimo, que ninguém se atrevia a escalar. Afinal, era a propriedade de uma feiticeira muito temida e poderosa.

Um dia, espiando pela janelinha, a mulher se admirou ao ver um canteiro cheio dos mais belos pés de rabanete que jamais imaginara. As folhas eram tão verdes e fresquinhas que abriram seu apetite. E ela sentiu um enorme desejo de provar os rabanetes.

A cada dia seu desejo aumentava mais. Mas ela sabia que não havia jeito de conseguir o que queria e por isso foi ficando triste, abatida e com um aspecto doentio, até que um dia o marido se assustou e perguntou:

- O que está acontecendo contigo, querida?

- Ah! - respondeu ela. - Se não comer um rabanete do jardim da feiticeira, vou morrer logo, logo!

O marido, que a amava muito, pensou: "Não posso deixar minha mulher morrer… Tenho que conseguir esses rabanetes, custe o que custar!"

Ao anoitecer, ele encostou uma escada no muro, pulou para o quintal vizinho, arrancou apressadamente um punhado de rabanetes e levou para a mulher. Mais que depressa, ela preparou uma salada que comeu imediatamente, deliciada. Ela achou o sabor da salada tão bom, mas tão bom, que no dia seguinte seu desejo de comer rabanetes ficou ainda mais forte. Para sossegá-la, o marido prometeu-lhe que iria buscar mais um pouco.

Quando a noite chegou, pulou novamente o muro mas, mal pisou no chão do outro lado, levou um tremendo susto: de pé, diante dele, estava a feiticeira.

- Como se atreve a entrar no meu quintal como um ladrão, para roubar meus rabanetes? - perguntou ela com os olhos chispando de raiva. - Vai ver só o que te espera!

- Oh! Tenha piedade! - implorou o homem. - Só fiz isso porque fui obrigado! Minha mulher viu seus rabanetes pela nossa janela e sentiu tanta vontade de comê-los, mas tanta vontade, que na certa morrerá se eu não levar alguns!

A feiticeira se acalmou e disse:

- Se é assim como diz, deixo você levar quantos rabanetes quiser, mas com uma condição: irá me dar a criança que sua mulher vai ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria mãe, e nada lhe faltará.

O homem estava tão apavorado, que concordou. Pouco tempo depois, o bebê nasceu. Era uma menina. A feiticeira surgiu no mesmo instante, deu à criança o nome de Rapunzel e levou-a embora.

Rapunzel cresceu e se tomou a mais linda criança sob o sol. Quando fez doze anos, a feiticeira trancou-a no alto de uma torre, no meio da floresta.

A torre não possuía nem escada, nem porta: apenas uma janelinha, no lugar mais alto. Quando a velha desejava entrar, ficava embaixo da janela e gritava:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Rapunzel tinha magníficos cabelos compridos, finos como fios de ouro. Quando ouvia o chamado da velha, abria a janela, desenrolava as tranças e jogava-as para fora. As tranças caíam vinte metros abaixo, e por elas a feiticeira subia.

Alguns anos depois, o filho do rei estava cavalgando pela floresta e passou perto da torre. Ouviu um canto tão bonito que parou, encantado.

Rapunzel, para espantar a solidão, cantava para si mesma com sua doce voz.

Imediatamente o príncipe quis subir, procurou uma porta por toda parte, mas não encontrou. Inconformado, voltou para casa. Mas o maravilhoso canto tocara seu coração de tal maneira que ele começou a ir para a floresta todos os dias, querendo ouvi-lo outra vez.

Em uma dessas vezes, o príncipe estava descansando atrás de uma árvore e viu a feiticeira aproximar-se da torre e gritar: "Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!." E viu quando a feiticeira subiu pelas tranças.

"É essa a escada pela qual se sobe?," pensou o príncipe. "Pois eu vou tentar a sorte…."

No dia seguinte, quando escureceu, ele se aproximou da torre e, bem embaixo da janelinha, gritou:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

As tranças caíram pela janela abaixo, e ele subiu.

Rapunzel ficou muito assustada ao vê-lo entrar, pois jamais tinha visto um homem.

Mas o príncipe falou-lhe com muita doçura e contou como seu coração ficara transtornado desde que a ouvira cantar, explicando que não teria sossego enquanto não a conhecesse.

Rapunzel foi se acalmando, e quando o príncipe lhe perguntou se o aceitava como marido, reparou que ele era jovem e belo, e pensou: "Ele é mil vezes preferível à velha senhora…." E, pondo a mão dela sobre a dele, respondeu:

- Sim! Eu quero ir com você! Mas não sei como descer… Sempre que vier me ver, traga uma meada de seda. Com ela vou trançar uma escada e, quando ficar pronta, eu desço, e você me leva no seu cavalo.

Combinaram que ele sempre viria ao cair da noite, porque a velha costumava vir durante o dia. Assim foi, e a feiticeira de nada desconfiava até que um dia Rapunzel, sem querer, perguntou a ela:

- Diga-me, senhora, como é que lhe custa tanto subir, enquanto o jovem filho do rei chega aqui num instantinho?

- Ah, menina ruim! - gritou a feiticeira. - Pensei que tinha isolado você do mundo, e você me engana!

Na sua fúria, agarrou Rapunzel pelo cabelos e esbofeteou-a. Depois, com a outra mão, pegou uma tesoura e tec, tec! cortou as belas tranças, largando-as no chão.

Não contente, a malvada levou a pobre menina para um deserto e abandonou-a ali, para que sofresse e passasse todo tipo de privação.

Na tarde do mesmo dia em que Rapunzel foi expulsa, a feiticeira prendeu as longas tranças num gancho da janela e ficou esperando. Quando o príncipe veio e chamou: "Rapunzel! Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!," ela deixou as tranças caírem para fora e ficou esperando.

Ao entrar, o pobre rapaz não encontrou sua querida Rapunzel, mas sim a terrível feiticeira. Com um olhar chamejante de ódio, ela gritou zombeteira:

- Ah, ah! Você veio buscar sua amada? Pois a linda avezinha não está mais no ninho, nem canta mais! O gato apanhou-a, levou-a, e agora vai arranhar os seus olhos! Nunca mais você verá Rapunzel! Ela está perdida para você!

Ao ouvir isso, o príncipe ficou fora de si e, em seu desespero, se atirou pela janela. O jovem não morreu, mas caiu sobre espinhos que furaram seus olhos e ele ficou cego.

Desesperado, ficou perambulando pela floresta, alimentando-se apenas de frutos e raízes, sem fazer outra coisa que se lamentar e chorar a perda da amada.

Passaram-se os anos. Um dia, por acaso, o príncipe chegou ao deserto no qual Rapunzel vivia, na maior tristeza, com seus filhos gêmeos, um menino e uma menina, que haviam nascido ali.

Ouvindo uma voz que lhe pareceu familiar, o príncipe caminhou na direção de Rapunzel. Assim que chegou perto, ela logo o reconheceu e se atirou em seus braços, a chorar.

Duas das lágrimas da moça caíram nos olhos dele e, no mesmo instante, o príncipe recuperou a visão e ficou enxergando tão bem quanto antes.

Então, levou Rapunzel e as crianças para seu reino, onde foram recebidos com grande alegria. Ali viveram felizes e contentes.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/rapunzel

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 28 – 20 de setembro de 1887


Quando tudo em paz corria
Cai uma nuvem prenhada
De chuva e de ventania,
De saraiva e trovoada.

E cai lá naquela banda
Do paço dos senadores,
O melhor paço da Holanda,
Boa pedra, arminho e flores.

Inda se fosse no paço
Dos deputados, vá feito;
Embora sendo embaraço,
Caía no próprio leito.

Pois se este paço figura
Ao pé do velho senado,
Que afigura e transfigura,
Como ele, o que lhe é levado,

Certo é que é mais dada a zona
Aos temporais desabridos;
Quem lá vai mete-se em lona,
Oleado e outros tecidos.

Mas, no senado, em verdade,
Posto não seja o primeiro
Exemplo de tempestade,
Nem talvez o derradeiro,

Causa espanto, porque tudo
Parecia que ia andando,
Não inteiramente mudo,
Mas lentamente calando.

Vai então, como eu buscasse
Saber por algum amigo,
Maneira com que explicasse
Este singular perigo,

Achei um vizinho, um magro,
Um que não tem este olho;
Chamá-lo-ia Meleagro,
Di-lo-ia autor de algum molho,

Se não parecesse abuso
Esse recurso mofino,
Mofino, mas não escuso...
Os versos têm seu destino!

Tenho sido belo, às vezes,
Só por exigi-lo a rima;
Chama-se a um homem Menezes
Quando não passa de um Lima.

Mas, qualquer que seja o nome
Do vizinho consultado,
Fui lá p'ra matar a fome
E saí esfomeado.

Procurei-o, como disse,
E no meio da palestra
Aconteceu que surgisse
Uma questão grave e mestra:

Se o senado é que governa
Ou a câmara. O sujeito,
Querendo passar-me a perna,
Tira estas vozes do peito:

“— Dizem que a câmara baixa,
Conforme a prática inglesa,
Assim como tem a caixa
Da receita e da despesa,

“Rege a política, e forma
Os homens à sua imagem,
Que é essa a única norma
Da parlamentar viagem.

“Sendo, porém, cousa certa
Que os ingleses querem antes
Achar sempre a porta aberta.
Dos comuns representantes.

E comuns há que padecem,
Se a boa sorte lhes falta,
E após os pais que falecem
Vão para a câmara alta,

“Onde é menor o trabalho,
Sessões curtas, pouca vida,
Galho do poder, mas galho
De folha amarelecida;

“Cá buscamos o senado;
E se o que há mais forte e fino
Tem ali lugar marcado
É que ali mora o Destino”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Paulo de Tarso Pardal (O Dorso do Livro)

Comi uma barata inteira. Ouvi o estado da morte quando a esmaguei com o pé. Juntei os pedaços na palma da mão, separei pata por pata e distribui-as pelas bordas do prato. A gelatina amarela e as asas ficaram no centro, formando um girassol, que girava com o meu olhar na solitária escura.

Estou aqui a trinta e dois milhões de traços. Tenho uma terrível angústia quando percebo que não existe mais espaço para fazer um só risco na parede. Conto o tempo por esses traços. Cada sono é um risco. Existem trinta e dois milhões de traços que conto a cada quatro sonos. É o que posso fazer para não ficar doido. Não sei a quantos dias equivalem os trinta e dois milhões de traços. Nos primeiros trinta e dois mil, eu ainda sabia o equivalente em dias. Mas tive que me abster de contá-los porque os traços, a partir de um certo sono, passaram a ser mais vitais para mim do que os dias. Por isso, não sei há quantos anos estou. Sei que há trinta e dois milhões de riscos.

Os traços na parede são a minha vida. Lembro que nos dez mil traços recordei a última rua por onde passei antes de vir para cá. Todos os acontecimentos que ocorreram naquele dia eu marquei com um risco. Tenho uma traço para o poste, outro para o ônibus, outro para a calçada, outro para o cigarro, outro para dono do bar, outro para uma mulher que bebeu comigo, outro para o balcão, outro para o sangue. Com eles fiz o meu universo – o mundo são riscos. Não posso ficar sem eles. Acho que ainda sei pensar porque tenho os traços, por isso eles são mais importantes do que os dias, que não sei mais como são. Não sei o que fiz para estar aqui. Sei que existe um traço no meio da parede, maior do que os outros, que deve significar algo importante, mas não me lembro mais. Devo ter, agora, só um pedaço do cérebro – aquele que sabe contar os trinta e dois milhões de riscos a cada quatro sonos: não sei pensar além disso.

Depois que eu comer a barata, vou dormir pensando no prazer de fazer mais um traço na parede.

Eles pensam que já morri: há trinta e dois traços que não me mandam comida: por isso comi uma barata inteira: azar dela!

Eles têm medo de mim. Acham que virei bicho, que não precisam mais gastar comida com um bicho.

Acho que daqui a trinta e dois riscos eles vão abrir a porta que há trinta e dois não abrem e, neste momento, vou mordê-los e engoli-los, como faço com esta barata. Daqui a trinta e dois traços, vou ficar livre de gritos do meu pensamento que ecoam desesperadamente nestas paredes, e eles vão notar que ainda não morri.

Daqui a trinta e dois gritos, depois que eu comer o primeiro homem, vou fazer o segundo contar os trinta e dois milhões de traços trinta e duas milhões de vezes. Só assim, poderei matá-lo também.

Enquanto os trinta e dois riscos não chegam, vou mastigar a última perna da barata que está no prato: trinta e duas milhões de vezes.

 (Paulo de Tarso Pardal, Margem Oculta)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Paulo de Tarso Pardal

Paulo de Tarso Vasconcelos Chaves (Russas, 1955) é contista, artista plástico, crítico literário e músico. Licenciado em Letras e mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Professor de literatura em colégios e faculdades, atua na imprensa cearense como ficcionista e crítico literário. Tem editados os livros de contos Margem Oculta (Fortaleza: Edição Gráfica Oficina, 1995), Difícil Enganar os Deuses (Sobral: ASEL, 1999) e Do Pitoco (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2006); além da dissertação de mestrado O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto (Fortaleza: UFC Edições, 1999), dos ensaios Pensaios (Fortaleza: O Curumin Sem Nome, 2000), Discurso do Imaginário (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2003) e Autores do Vestibular da UFC (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2005 e 2006), dos livros Sonetos (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2000), de poesias, e Pirralho (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2002), de partituras.

Os temas mais frequentes nas 27 composições das duas primeiras coleções de Paulo de Tardo Pardal são a loucura, a solidão, a passagem do tempo. O protagonista de “A asa que ri” se vê perseguido por asas-de-fogo. O narrador de “O dorso do livro” está preso “numa solitária escura”. O tom da narração, embora haja lógica na elaboração das frases, é o de quem raciocina pelas linhas tortas da loucura: “Comi uma barata inteira”; “Estou aqui há trinta e dois milhões de traços”; “Eles têm medo de mim”; “depois que eu comer o primeiro homem”. O ser fictício de “(Re)Verso” é chamado ora de poeta, ora de louco: “Anda pelo banheiro como uma barata tonta”. Cercado de sombras, vaga pela solidão da casa.

Há uma galeria ampla de personagens solitários nas peças ficcionais de Pardal. Além dos já mencionados, destacam-se o pintor de “Ludo ou lapidação do branco”, o ser fictício da obra intitulada “?”, o de “Água salgada” (“Tive a impressão de que só eu existia no mundo”.)

Em algumas composições o tempo é caótico; noutros, congelado, parado ou apenas lento. Há também um tempo acelerado. Nestes casos, os tempos verbais se misturam, se enredam, como se passado, presente e futuro fossem um só tempo. Em “O olhar” os dois personagens (Dona Maria José e ele) se perdem num labirinto de tempos verbais diversos: “Talvez ele nunca esqueça”; “ela entenderia”; “se ela precisasse”; “ele ficaria ali”; “teve vontade”; “talvez dormisse”; “estava quieta”. Há elaborações frasais curiosas, como no segundo parágrafo de “O sonho do gato”, em que os verbos não aparecem, como se o tempo tivesse parado: “O gato branco em cima do muro de três tipos de tinta: o branco do gato: o branco do cinza do muro: o branco da sombra brilhante dos pontos vermelhos”. Como se fosse uma pintura.

Às vezes a trama se dilata no tempo, como na peça “Margem oculta”: “de vez em quando”, “nunca teve”, “passou a percebê-lo”, “Kátia não foi bonita a vida toda”, “quando a conheci”, “quanto tempo durou”, “demorou anos”, “depois de algum tempo”. Há, ainda, o caso especial de “Camile”, cuja protagonista tem dúvidas até sobre o próprio nome: “Acho que me chamo Camile”. Sua dúvida maior, no entanto, é quanto à idade: “Devo ter dezessete anos”; “Quando ouço essa voz, disso eu tenho certeza, tenho cinco anos”.

Alguns seres fictícios de Pardal estão sempre sonhando, lembrando sonhos, vivendo em função deles ou do passado. Veja-se o poético conto “A menina do sonho azul”, no qual “todos tiveram o mesmo sonho”. Em “Difícil enganar os Deuses”, Mariana ora sonha com escuridão e vozes, ora “com todos os sonhos passados”. Nos seus sonhos estão as respostas para as suas dúvidas e dos outros. Finalmente “sonhou que ia morrer no sétimo dia”. Outro protagonista que vive em razão dos sonhos é o mendigo-louco Chico Galo Preto, de “O homem que conheceu o Inferno”. Após pedir um cafezinho ao padre, revela: “O meu sonho vai ser com o Galo Preto que vem me beliscar toda noite”. Há até uma narrativa intitulada “Sonho”. E gatos que sonham.

Os seres fictícios de Paulo de Tarso Pardal são prisioneiros da sociedade ou de si mesmos. Uns são mendigos; outros, maníacos e assassinos. O narrador de “O dorso do livro” vai enlouquecendo a cada risco que grava na parede, para significar um ato, um momento, “algo importante”. A protagonista de “Rastros de uma serpente” está presa e fala a advogado, provavelmente: “Sabe doutor, eu nunca matei ninguém não”. Camile está presa a uma pedra, no meio da porta da casa, agarrada a uma boneca. Como se não quisesse deixar de ser criança. O protagonista de “Mania”, sem nome explícito, se aprisionou a Mariana, se anulou, se perdeu de si mesmo: “Quando estou com Mariana, não penso, não sei onde estou”.

Há, ainda, pintores, que são retratistas dos outros, de paisagens, como se quisessem paralisar o tempo. Estão sós num mundo de cores e traços, como o narrador de “O mito da caverna” ou o de “Ludo ou lapidação do branco”.

O vento e a chuva, às vezes, são quase personagens, como fantasmas a rondarem os seres vivos. Camile insiste em ver a chuva, embora tenha medo de trovão. Da janela vê a chuva engrossar e um clarão no céu.  Em “A cidade mais eterna do mundo” Seu Salomão chorou tanto, quando soube da morte de Safira, que suas lágrimas aguaram todos os campos. Mais tarde, “um vento verde invadiu a sala, tomou conta de toda a casa, espalhou-se pela cidade inteira”. Em “A vida perdida de Lu” certa vez “caiu uma chuva de rosas vermelhas. Passaram três dias chovendo flores vermelhas”. Em “Difícil enganar os deuses” “o vento era cortante e forte”.

Os dramas se desenrolam em cidade grande ou lugarejos do Nordeste brasileiro, como o pequeno povoado de Nossa Senhora do Bom Parto, em “A visita de Sara”. Aqui e ali narradores pintam trechos de paisagens dessa região. E não esquecem o vocabulário regional (vassoura e uru de palha de carnaúba, siriguela, incelência, gasguito, embiocado), os costumes do sertão (plantações de milho, feijão e mandioca), sem que haja nisto nenhuma concessão ao velho regionalismo.

E, assim, tudo levaria o escritor a se apegar somente a esquemas neonaturalistas. Mas Pardal trafega também, e com muita competência, pelo realismo mágico, sobretudo no segundo volume.  Em “A cidade mais eterna do mundo”, ambientada no sertão, havia um homem de cento e oitenta e seis anos. Quando morreu Safira, a prostituta mais querida da cidade, o ancião chorou tanto que “não precisou inverno para as plantações”. O insólito se estabelece de vez, quando “um vento verde invadiu a sala” e “os meninos começaram a flutuar, a um palmo do chão: – Pai, eu estou voando!” Em “A menina do sonho azul” o clima estranho se instaura desde o início da narração: “Todos pressentiram que alguma coisa ia acontecer naquela noite”. O leitor é preparado para ler uma história estranha: “Naquela noite, todos tiveram o mesmo sonho: o mundo estava ficando azul”. Em “A vida perdida de Lu” o personagem-narrador se dirige a um ouvinte anônimo, um jornalista, chamado de senhor. Refere-se sempre à personagem Lu: “Quando os homens fazem amor com ela, eles se transformam em passarinhos”. E, como se também se dirigisse ao leitor, explica: “Sei que o senhor não acredita nisso, mas é verdade”. Isto é, o fantástico se mostra na primeira frase e se explica na segunda: um fato estranho à realidade, impossível de se realizar, mas real para o narrador. Mais adiante o personagem faz outra afirmação absurda: “Eu gosto mesmo é de me transformar em beija-flor. Fico bitocando (sic) as flores vermelhas”. Em “A visita de Sara” também desde o início o leitor pressente o fantástico, quando um imenso balão colorido caiu perto da igreja. E se encorpa a seguir: “Na hora em que Sara chegou em seu imenso balão de fogo, os homens sentiram uma necessidade imensa de fazer amor com suas mulheres”. O final da narrativa é o inverso do início: “Sara entrou no balão, no meio do fogo” e partiu. Em outra composição, Pardal presta homenagem ao contista Moreira Campos, citando exatamente o seu mais fantástico conto: “Dizem que os cães veem coisas”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 16


Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O velho Querecas

Eram três irmãs, muito pobres, que viviam do seu trabalho aturado. Naquela terra havia uma casa em que ninguém queria morar porque lá dentro ouviam-se de noite grandes gritos e terrores; as raparigas, para pouparem o aluguel, foram pedir para as deixarem morar naquela casa. A mais nova, como mais animosa, foi morar para o último andar.

Uma noite, mal ela se tinha acabado de deitar, ouviu uma voz gritar:

– Eu caio!

– Pois cai! – respondeu-lhe a rapariga. De um buraco do teto caiu uma perna. Depois soou de novo o mesmo grito:

– Eu caio!

– Pois cai! – repetiu a rapariga; e assim foram caindo os braços, o tronco, até que ela achou diante de si um homem já muito velho e calvo. O velho chegou-se próximo da rapariga, e perguntou-lhe:

– Não tens medo de mim?

– Não.

– Fazes muito bem; és a primeira e única pessoa que resiste ao medo de me ver. Em paga da tua coragem toma lá esta bolsa, e quando te vires nalguma aflição diz sempre: Valha-me aqui o velho Querecas.

O dinheiro da bolsa nunca se acabava, e as três irmãs começaram a viver com largueza. No entanto a mais nova começou a sentir que por mais que se fechasse no seu quarto parecia-lhe que sentia meter-se alguém na cama com ela. Lembrou-se se seria o velho Querecas, e teve uma certa repugnância; mas para certificar-se, uma noite acendeu de repente a luz, e viu deitado ao pé dela um mancebo formoso, que estava adormecido. Estava tão embebida a olhar para ele, que lhe caiu um pingo de cera na cara. O mancebo acordou de repente, e disse:

– Ah! Desgraçada, o que fizeste; dobraste-me o encantamento, que estava quase no fim! Agora não me tornas mais a ver.

A menina chorou muito, e ainda mais quando conheceu o estado em que se achava. Lembrou-se então do segundo dom, e disse:

– Valha-me aqui o velho Querecas.

– Aqui estou já, e bem sei porque me chamas. Há só um modo de remediar o mal que a ti mesma fizeste. Toma lá estes três novelos, e vai andando sempre, sempre até onde eles se acabarem; onde quer que seja pede que te deem aí pousada do ar da noite.
   
A rapariga chorou por ter de deixar as irmãs, mas o que ela queria era quebrar o encantamento daquele moço; foi andando, andando até ir dar ao fim de muito tempo a um palácio cercado de um rico jardim. Espreitou pelo buraco da chave, e viu lá dentro uma sala com muitas mulheres trabalhando em lindos vestidos de noivado, e fazendo as roupinhas de uma criança. Teve receio de bater àquela porta, e foi rodeando o palácio, até que encontrou o hortelão, a quem pediu pousada. O hortelão respondeu-lhe:

– Você sabe em casa de quem está para vir assim pedir pousada?

– O que sei é que já me não tenho de cansada; e é por uma esmola.

O hortelão teve dó da rapariga e deu-lhe um canto no palheiro; ela deitou-se mais morta que viva, e ali mesmo deu um menino à luz. Tudo aquilo se transformou num quarto muito asseado e rico. Quando o hortelão veio ao outro dia, ficou pasmado com o que viu. Foi dar logo parte à rainha, que também quis certificar-se da maravilha. Quando chegou ao lugar em que estava a menina deu um grito ao ver a criança:

– Oh senhora! Quem é o pai deste menino?

A rapariga ficou muito envergonhada por não poder logo dizê-lo; no meio da sua confusão contou o caso do velho Querecas. Foi então que a rainha se lembrou:

– Esse menino é o retrato de meu filho, que me desapareceu, sem nunca mais saber dele nova má nem boa.

A rainha levou a rapariga para o palácio, tratou de lavar a criança, e quando a despiu achou-lhe nas costas um grande sinal. Reparou, e viu que era um pequeno cadeado com uma chavinha. Quis ver se o abria, mas com receio disse à mãe que experimentasse a ver se dava volta àquela chavinha. Logo que a mãe pegou na chave abriu o cadeado, e imediatamente se quebrou o encantamento do príncipe que deveu a sua liberdade ao ânimo daquela rapariga com quem casou logo.
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Notas Comparativas

À parte os episódios comuns a muitos contos, é este uma das formas do mito de Psique.

Gubernatis, na Mythologie zoologique (t. I, p. 437), traz uma variante deste conto coligida em Fucecchio, na Toscana, em que o desencantamento do príncipe é devido à coragem da donzela. As circunstâncias episódicas divergem e pertencem a outro ciclo novelesco.

Um conto coligido em Cosenza, na Calábria, por Greco, traz o episódio do ruído noturno, do pingo de cera que acorda o mancebo, e do novelo que deve guiar a menina à busca do amante. (Gubernatis, op. cit., t. II, p. 301, nota 2).

Estas uniões misteriosas acham-se ainda com carácter mítico, no Harivansa, entre Urvasi e Pururavas, e no Mahabahrata, entre Çantana e a ninfa das águas; na lenda grega de Psique, Eros desaparece, quando acorda por causa do pingo de azeite que caiu da lâmpada a cuja luz foi visto.

Bruyere, nos Contes populaires de la Grande Bretagne, p. 183, cita contos pertencentes a este ciclo na coleção sueca de Cavallius e Stephens, Svenska Folksagor och äventyr, traduzida por Thorpe, e na coleção norueguesa de Asbjørnsen e Moe, traduzida por George Webbe Dasent, aparece o episódio do pingo de cera.

Sobre o evidente caráter mítico destas tradições, acrescenta Bruyere: «Em todas estas narrativas a felicidade dos amantes não é de longa duração, porque, apesar da fé jurada, a promessa é sempre violada, e aquele dos amantes a quem o outro faltou à palavra, é forçado a desaparecer, apesar do ardente amor que o consome. M. Cox demonstra que as lendas desta natureza são a representação do mito celeste do Sol seguindo a Aurora, ou reciprocamente. Muitas vezes depois da violação da promessa e da separação dos amantes o mito continua.» (Op. cit., p. 184).

Em um artigo sobre a História do Japão, cita-se também a lenda análoga à de Psique: «Uma parenta do imperador era a esposa do deus Omonomichi. Ele jamais aparecia aos olhos da princesa, pois não se encontrava com ela senão nas trevas. Uma noite ela lhe disse: — Ainda me não foi dado olhar para a tua face; rogo-te que fiques comigo até pela manhã, para eu ter a felicidade de te contemplar.

«Tanto lhe rogou, com tal ternura e tais carinhos, que o esposo cedeu e prometeu-lhe que ficava. Por fim, as primeiras claridades da Aurora entraram no aposento da impaciente princesa, mas qual foi o seu espanto quando ela descobriu, no leito, uma serpente enroscada! Soltou um grito de pavor, e a serpente transformou-se logo num jovem formosíssimo, que lhe disse com expressão de dolorosa melancolia: — Nunca mais, agora, hei de poder estar contigo. E desapareceu. Abatida por tristeza incurável a esposa solitária foi pouco a pouco decaindo até falecer de paixão.» (Do viajante português Mesnier, Actualidade, n.º 241, do IX ano).

O despertar por meio de um raio de luz é frequente, como na Bella Aurora (Spoleto) e La Bella Rosalinda dai capelli d'ori e na novela dinamarquesa de Grandtovig. (Stanislao Prato, Quattro novelline, pp. 156 e 157).

Sobre as origens míticas indo-europeias deste conto, vide Gubernatis, Piccola Enciclopedia indiana, p. 175, em que discute a simultaneidade da representação da Aurora e da Nuvem que desaparecem quando o Sol se mostra. Este ciclo do Amor e Psique foi estudado por F. Liebrecht, Zur Volkskunde (Amor und Psyche).

Na versão do Algarve há o episódio do corpo que cai aos pedaços, para experimentar a coragem da menina; é comum a vários contos, e acha-se na lenda de Atenodoro (ap. Alexander ab Alexandro, lib. III, cap. 12), que o padre Manuel Consciência traduziu na sua Academia Universal de Erudição, p. 545.


Fonte:
Wikisource

Irmãos Grimm (Os Doze Irmãos)

Era uma vez um rei e uma rainha que viviam felizes e em harmonia e que tinham doze filhos, sendo todos garotos. Então, o rei disse para a sua esposa:

- "Se a décima terceira criança que você está para trazer ao mundo for uma garota, os doze meninos devem morrer, para que os bens dela sejam maiores, e para que o reino possa ser dela somente."

Então, ele ordenou que doze esquifes fossem fabricados, os quais já estavam cheios de pedaços de madeiras, e em cada um havia um pequeno travesseiro para o morto, e os caixões tinham sido levados para uma sala fechada, e ele deu a chave para que a rainha guardasse, e pediu para que ela não falasse sobre isso com ninguém.

A mãe todavia, se sentava e lamentava o dia todo, até que o filho mais jovem, que estava sempre com ela, e a quem ela chamava de Benjamin, nome esse que foi tirado da Bíblia, disse a ela:

- "Querida mamãe, porque você está tão triste?"

- "Querido filhinho," respondeu ela, "Não posso lhe dizer." Mas ele não a deixava sossegada até que ela foi e abriu a sala, e mostrou a ele os doze caixões que estavam terminados e cheios de pedacinhos de madeiras. Então, ela disse:

- "Meu querido Benjamin, teu pai mandou fazer estes caixões para ti e para os teus onze irmãos, pois, se eu trouxer uma garotinha no mundo, você será morto e sepultado com eles."

E enquanto ela ia dizendo isso, ela chorava, e o filho a consolava e dizia:

- "Não chore, querida mãezinha, nós vamos nos salvar, e sairemos daqui." Mas ela disse:

- "Vai para a floresta com os teus onze irmãos, e faça com que um fique permanentemente sobre a árvore mais alta que puder ser encontrada, e fique atento, olhando para a torre aqui do castelo.

Se eu der a luz a um filhinho, eu colocarei uma bandeira branca, e então, vocês poderão se arriscar a voltar, mas se eu der a luz a uma menina, eu levantarei uma bandeira vermelha, e então, vocês deverão fugir o mais rápido que puderem, e que Deus possa proteger todos vocês. E eu todas as noites levantarei e farei uma oração para vocês - no inverno, para que vocês possam se aquecer perto de uma fogueira, e no verão, para que vocês não desfaleçam com tanto calor."

Depois que ela abençoou os filhos, eles seguiram para a floresta. Todos eles, no entanto, ficavam atentos, e se sentavam no pé de carvalho mais alto da floresta e ficavam olhando em direção à torre. Quando onze dias tinham se passado, e tinha chegado a vez de Benjamin, ele viu que uma bandeira tinha sido hasteada. Não era, no entanto, uma bandeira branca, mas uma bandeira vermelha, a qual anunciava que todos eles deviam morrer.

Quando os seus irmãos souberam daquilo, eles ficaram muito bravos, e disseram:

- "Todos nós devemos sofrer por causa de uma garota? Juramos que todos nós iremos nos vingar! - quando encontrarmos uma menina, o sangue vermelho dela deve jorrar."

Então, eles penetraram mais fundo na floresta, e no meio dela, que era a parte mais escura, eles encontraram a pequena cabana abandonada de uma feiticeira, onde não havia ninguém. Então, eles disseram:

- "Vamos ficar aqui, e tu, Benjamin, que és o menor e o mais fraco, tu ficarás em casa e cuidarás dela, nós outros vamos sair para conseguir alimento."

Então, eles foram para a floresta para caçar lebres, cervos selvagens, pássaros e pombos, e qualquer coisa que houvesse para comer, eles levavam um pouco para Benjamin, que tinha de arrumar a casa para eles, para que eles pudessem matar a fome. Juntos viveram eles na pequena cabana durante dez anos, e o tempo não parecia longo para eles.

Apequena garota, que a rainha, a mãe deles, tinha dado a luz, já tinha crescido, ela era boa de coração, e tinha um rosto encantador, e na testa dela havia uma estrela de ouro. Uma vez, quando houve uma grande arrumação no palácio, ela viu doze camisas de homens entre as coisas que estavam lá, e perguntou a sua mãe:

- "A quem pertencem estas doze camisas, porque elas são pequenas demais para serem do papai? Então, a rainha respondeu com o coração dolorido:

- "Querida filhinha, estas camisas são dos teus doze irmãos." Disse a garota, então:

- "Onde estão meus doze irmãos, nunca ouvi falar deles?" A mãe respondeu:

- "Só Deus sabe onde eles estão, eles estão andando pelo mundo." Então, ela pegou a pequena e abriu a sala para a garota, e lhe mostrou os doze caixões cheios de pedaços de madeiras e com os travesseiros para a cabeça.

- "Estes caixões," disse ela, "estavam destinados para os teus irmãos, mas eles foram embora escondidos antes que tu nasceste," então, a garotinha disse:

- "Querida mãezinha, não chore, eu irei procurar os meus irmãos."

Então, ela pegou as doze camisas e partiu, e seguiu direto para a grande floresta. Ela caminhou o dia todo, e a noitinha ela encontrou a casinha da feiticeira. Então, ela entrou na casa, e encontrou um jovem garoto, que perguntou:

- "De onde você veio, e para onde você vai?" e ficou atônito como ela era linda, e usava trajes reais, e tinha uma estrela na testa.

E ela respondeu:

- "Eu sou filha da rainha, e estou procurando meus doze irmãos, e eu irei até o fim do céu azul para encontrá-los." Ela também mostrou a ele as doze camisas que um dia havia pertencido a eles. Então, Benjamin compreendeu que ela era sua irmã, e disse:

- "Eu sou Benjamin, teu irmão caçula." E ela começou a chorar de alegria, e Benjamin chorou também, e eles beijaram e se abraçaram um ao outro como muita ternura.

Depois disto ele disse:

- "Querida irmãzinha, há ainda mais um problema. Nós fizemos um acordo que toda garota a quem encontrássemos deveria morrer, porque nós fomos obrigados a deixar o nosso reino por causa dela!"

Então, ela disse:

- "Morrerei com prazer, se morrendo puder salvar os meus doze irmãos."

- "Não," respondeu ele, "tu não morrerás, fique sentada aqui debaixo deste barril até que os nossos doze irmãos cheguem, e então, eu conseguirei entrar num acordo com eles."

Ela fez o que ele pediu, e quando a noitinha os outros irmãos chegaram da caça, o jantar deles estava pronto. E quando eles estavam todos sentados na mesa, e estavam comendo, eles perguntaram:

- "Quais são as novidades?"

Benjamin respondeu: - "Vocês não souberam de nada?"

- "Não," responderam eles. Ele continuou:

- "Vocês foram para a floresta e eu fiquei em casa, no entanto, eu sei mais do que vocês."

- "Diga-nos, então," exclamaram eles.

Ele respondeu: - "Me prometam primeiro que a primeira garota que nós encontrarmos não irá morrer."

- "Sim," exclamaram todos eles, "ela terá misericórdia, mas, conte-nos logo."

Então, ele disse:

- "A nossa irmã está aqui," e ele levantou o barril, e a filha do rei apareceu com seus trajes reais e com uma estrela na testa, e ela era linda, delicada e meiga. Então, todos eles ficaram felizes, e a abraçaram, e a beijaram e a amaram de todo o coração.

Agora ela ficava em casa com Benjamin e o ajudava no trabalho doméstico. Os onze foram para a floresta para caçar veados, pássaros e pombos, para que eles pudessem se alimentar, e a irmãzinha junto com Benjamim cuidavam da preparação da caça para eles.

Ela procurou na floresta ervas e vegetais para cozinhar, e colocou as panelas no fogo para que o jantar ficasse pronto quando os onze chegassem. Ela também mantinha a ordem na pequena casa, e colocava lindos lençóis limpos e brancos nas caminhas, e os irmãos estavam sempre felizes e viviam em grande harmonia com ela.

Um dia os dois que ficavam em casa, haviam preparado uma bela surpresa, eles se sentaram e comeram e beberam e estavam todos felizes. Havia, porém, um pequeno jardim que pertencia à casa da feiticeira onde ficavam doze pés de lírios, os quais também são chamados de "estudantes." Ela queria fazer uma surpresa para os seus irmãos, e colheu as doze flores, e pensou em presentear cada um deles com uma flor durante o jantar.

Mas no exato momento que ela colheu as flores os doze irmãos se transformaram em doze corvos, e voaram pela floresta, e a casa e o jardim desapareceram também. E agora, a pobre garota estava sozinha na floresta virgem, e quando ela olhava ao redor, uma velhinha estava sentada perto dali e disse:

- "Minha criança, o que você fez? Porque você não deixou que as doze flores brancas crescessem? Eles eram teus irmãos, que agora para sempre foram transformados em corvos." A garota disse, chorando:

- "Não existe uma maneira de libertá-los?"

- "Não," disse a mulher, "só existe uma maneira no mundo todo, e isso é tão difícil que você jamais conseguirá libertá-los desse jeito, porque você precisa ficar muda durante sete anos, e não pode falar nem rir, e se você falar uma palavra, e somente uma hora dos sete anos estiver faltando, tudo estará perdido, e os teus irmãos serão mortos por causa dessa palavra."

Então, a garota falou de coração:

- "Eu tenho certeza de que libertarei os meus irmãos," e foi e procurou uma árvore bem alta e se sentou no topo dela e ficava tecendo, e não falava nem ria. Ora, aconteceu que um rei estava caçando na floresta, ele tinha um grande cão galgo que correu até a árvore onde a garota estava sentada, e pulava em torno da árvore, ganindo e latindo para ela.

Então, o rei se aproximou e viu a bela princesa que tinha uma estrela de ouro na testa, e ficou tão encantado com sua beleza, que ele a convidou para que fosse sua esposa. Ela não respondia, mas fazia pequenos acenos com a cabeça. Então, ele mesmo subiu na árvore, trouxe-a para baixo, colocou-a em seu cavalo e a levou para o seu palácio. Então, o casamento foi festejado com grande festa e muita alegria, mas a noiva não falava nem sorria.

Quando eles tinham vivido felizes juntos durante alguns anos, a mãe do rei, que era uma criatura perversa, começou a difamar a jovem rainha, e disse ao rei:

- "Ela é uma mendiga vulgar que trouxeste da caça contigo. Quem sabe que coisas horrorosas ela não faz às escondidas!"

Ainda que ela seja muda, e não consiga falar, ela poderia sorrir pelo menos, mas aqueles que não riem, tem consciências pesadas." A princípio, o rei não quis acreditar nela, mas a velha falava disso o tempo todo, e a acusava de coisas tão assustadoras, que por fim o próprio rei se deixou convencer e ela foi condenada a morte.

E aconteceu que uma grande fogueira foi acesa no pátio do palácio, onde ela deveria ser queimada, e o rei ficou em cima na janela e via tudo com lágrimas nos olhos, porque ele a amava muito. E quando ela foi amarrada bem forte à fogueira, e o fogo começou a lamber as suas roupas com sua língua vermelha, o último momento dos sete anos havia se expirado. Então, um ruflar de asas foi ouvido no ar, e doze corvos vieram voando em direção à fogueira, e pousaram, e quando eles tocaram a terra, eis que eram os doze irmãos dela, que ela tinha libertado.

E lhes apagaram totalmente a fogueira, extinguiram as chamas, libertam a irmã que amavam tanto, e beijaram e a abraçaram. E agora, que ela podia abrir a boca para falar, ela contou ao rei porque ela tinha ficado muda, e nunca podia ter dado um sorriso. O rei dava pulos de alegria ao saber que ela era inocente, e todos eles viveram em grande harmonia até o fim da vida deles. A madrasta má foi levada para o tribunal, e colocada dentro de um tonel com óleo fervente e cobras venenosas, e teve uma morte cruel.

Fonte:

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 27 – 13 de setembro de 1887

Se Deus me dissesse um dia:
— Que desejas tu, Malvólio?
Castelos na Normandia?
Uma biblioteca in-fólio?

“Um punhado de brilhantes,
Grandes como ovos de pomba?
Um batalhão de elefantes,
Marfim puro e extensa tromba?

“Moças, com as quais cantasses
A vida, e pelo estio,
Cantigas velhas que achasses,
Como esta, no peito frio:

“Cajueiro pequenino,
“Carregadinho de flores
“Eu também sou pequenino,
“Carregadinho de amores.

“Ou tendo espíritos altos,
Ir correr desejarias
Perigos e sobressaltos
De Rússias e de Turquias,

“Pegando, com alma icária
E braços impacientes
A coroa da Bulgária,
E defendê-la das gentes?”

Responder-lhe-ia eu, contrito:
— Não desejo, ó verdadeiro
Deus grande, Deus infinito,
Ser castelão nem livreiro,

Nem ter pedras preciosas,
Nem legiões de tamanhas
Alimárias pavorosas,
Vindas de terras estranhas,

Nem bonitas raparigas
Com quem eu cantar pudera
Algumas velhas cantigas,
Cantigas de primavera,

Menos inda, muito menos,
Correr sem mais nada, à toa,
Pequeno entre os mais pequenos,
A apanhar uma coroa.

Não, o que eu quisera, ó divo
Senhor, que mandais a tudo,
O meu desejo mais vivo,
Que me corrói, longo e mudo,

Era entrar pela janela
Do senado... Olhai, não digo
Pela porta. A porta é bela,
Porém já não vai comigo.

A porta, traz como agora,
Obrigações superfinas;
Li-as em prosa canora,
Sobre as eleições de Minas.

A primeira é que resida
O candidato na terra,
Pois se acaso a própria vida
A outra terra o desterra,

Perca as tristes esperanças
De conservar eleitores.
Se há exemplos, são carranças,
Outra quadra, outros amores.

Olindas, Celsos, Correias,
Nabucos e Zacharias,
São estragadas candeias,
De outros homens e outros dias.

Agora, quanto à segunda
Obrigação do diabo,
É igualmente profunda...
Não se quer nenhum nababo,

Que ande assim, como um tesouro,
Em carruagens de prata,
Cavalos ferrados de ouro,
Um jantar em cada pata;

Mas se o candidato é pobre
E passa a vida lidada,
Não entra em funduras. Dobre,
Amigo, dobre a parada.

Ora, eu que há muito suspiro
Pelo senado, e aqui moro,
Lidando, que mal respiro,
Sem o vil metal que adoro,

Uma noite adormecia
Lendo alguma velha história
De Veneza ou da Turquia,
E acordava em plena glória,

Diante do presidente
Aparecia sentado.
Ai, Deus justo, ai, Deus clemente...
Janela... curul... senado...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Dimas Carvalho (O Manuscrito)

Epaminondas Pitágoras da Cunha trabalhava numa livraria decrépita, um prédio velho de dois andares, situado numa ruazinha decadente do centro da cidade. Era o único empregado, além de dono, seu Eleutério, muito idoso, surdo, reumático, quase cego. De modo que Epaminondas se via quase que como proprietário absoluto daqueles milhares de livros velhos e empoeirados, perfilados em estantes antigas, e aos quais praticamente ninguém procurava. Porque os clientes, como era de se esperar de tal estabelecimento, eram raros, e também eles antigos, decrépitos e decadentes.

                Os dias se passavam numa monotonia de rio amazônico… Epaminondas, entediado, dava grandes bocejos enquanto folheava páginas esquecidas. Seu Eleutério cochilava na espreguiçadeira, por trás do balcão, o jornal caído entre as pernas, a boca aberta, babando.

                Além dos dois andares, o prédio possuía um pequeno sótão, onde Epaminondas subia, quando estava mais disposto, para fazer a limpeza. Numa dessas vezes, notou que, num canto, havia uma pilha de livros, coisa que nunca antes observara. Aproximou-se e começou a verificar os títulos, manuseando com todo o cuidado as folhas amareladas. A poeira fazia com que espirrasse. Alguns livros estavam roídos pelas traças, outros eram quase ilegíveis. Mas o que chamou mesmo a sua atenção foi um manuscrito encadernado, datado do século XVII, vazado em uma língua que lhe era completamente estranha. Um pequeno texto em Português, que parecia servir de introito, dizia ser a língua o sumério, e que o felizardo capaz de traduzi-lo alcançaria a imortalidade, assim como se tornaria imensamente rico.

                Epaminondas era um homem prático, nada sonhador, bem terra a terra. Riu com desdém daquelas promessas mirabolantes. O absurdo do que lia levava-o a crispar os lábios em um sorriso irônico. Porém, alguma coisa, que ele não saberia explicar o que era, puxava-o para o manuscrito, como o ímã faz com o ferro. Quando desceu do sótão, já estava determinado a aprender o sumério, custasse o que custasse.

                A partir deste dia, a vida de Epaminondas mudou radicalmente. O que era fascinação transformou-se em mania, obsessão, delírio. Tornou-se estudioso. Consagrava todas as horas de lazer ao seu objetivo único. Esqueceu-se de viver, absorveu-se e foi absorvido pelos caracteres mágicos que o enfeitiçavam.

                Foram anos a fio de dedicação, em casa e na livraria. Era com impaciência que atendia os fregueses cada vez mais raros. Comprou livros, pesquisou na internet, fez contatos com sábios do outro lado do mundo. Assinou revistas especializadas. À medida em que prosseguia naquela viagem sem volta, os indícios de que o manuscrito dizia a verdade se avolumavam. Citações milenares, pistas criptográficas, as peças do imenso quebra-cabeças iam se encaixando. Seus olhos adestrados passaram a ver, em coisas aparentemente desconexas, relações profundas e sutis. No final de nove anos de estudos, sentiu que estava a um passo de dar o grande salto, de penetrar enfim a grande porta que guardava o Mistério.

                Foi por esse tempo que o Seu Eleutério morreu, exatamente ao meio-dia, sentado na espreguiçadeira, o jornal dobrado nos joelhos. Como o velho fosse viúvo, e não tivesse filhos ou parentes conhecidos, Epaminondas, herdeiro presuntivo, organizou o velório. A casa do velho ficava num bairro afastado, onde grandes árvores ladeavam as ruas largas, enchendo de sombras e silvos os espaços da noite. Pôs-se a velar, sozinho, o morto. Quase madrugada, a fome o levou a abandonar a câmara mortuária, onde as velas tristes eram a sua única companhia.

                Encaminhou-se a uma churrascaria, onde fez um lanche breve, biscoitos e guaraná. Pediu ainda um sanduíche, para fazer o desjejum, quando o dia nascesse.

                Ao voltar para casa, o susto foi enorme. Rodeando o caixão, quatro de cada lado, oito anciãos, vestidos de preto, murmuravam palavras estranhas em uma língua extinta. E mais ainda aumentou seu espanto quando, trêmulo e suando frio, viu o antigo patrão erguer-se e, lenta e solenemente, pronunciar, com uma voz alta e cheia de vitalidade:

                – Caríssimo Epaminondas, é nossa obrigação agradecermos; o Segredo do Manuscrito é nosso, meu e dos meus oito companheiros, há muitos milênios. Realmente, ele nos dá a imortalidade e nos cumula de incalculáveis riquezas. No entanto, tudo tem um preço. E o preço que o manuscrito exige é o sangue de uma pessoa que por nove anos completos se dedique à tarefa de decifrá-lo, vencendo todos os obstáculos e tendo chegado às raias de desvendá-lo. De cem em cem anos repetimos este ritual, e tantas vezes já o fizemos que perdi a conta.

                Então Epaminondas Pitágoras da Cunha sentiu que garras aduncas rasgavam-lhe as vestes e a pele, e enquanto a escuridão se apossava dos seus olhos, uma lâmina fria penetrou no seu ventre, atingindo-lhe o coração, rasgando-lhe as vísceras, perfurando-lhe o pulmão, ao som de litanias e imprecações sussurradas naquela língua arcaica e quase que completamente esquecida.

(Dimas Carvalho, Fábulas Perversas)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Dimas Carvalho

José Dimas de Carvalho Muniz (Acaraú, 1964), licenciado em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Professor de Teoria da Literatura na Universidade Vale do Acaraú, em Sobral. Tem os livros de poesia Poemas (1988), Flauta Ruda, Agreste Avena (1993), Mínimo Plural (1998) e Marquipélogo (2004); o ensaio biográfico Nicodemos Araújo, poeta e historiador, em parceria, sobre seu avô; e no gênero conto publicou Itinerário do Reino da Barra (1993), Histórias de Zoologia Humana (2000), Fábulas Perversas (2003) e Pequenas Narrativas (2006).  Vencedor de vários concursos literários, como o Prêmio Literário Cidade do Recife (1996 e 2002), Prêmio Ideal Clube de Literatura (2001 e 2002) e Prêmio Literário Cidade de Fortaleza (2001, 2003 e 2004). Tem contos nas revistas Literapia, Almanaque de Contos Cearenses, Continente Multicultural, Literatura, Caos Portátil: um almanaque de contos, dentre outras, além de participar da Antologia do Conto Cearense, org. Túlio Monteiro, pela Fundação Cultural do Ceará.

            Alguns críticos opõem ao que chamam de “conto tradicional” o denominado “conto moderno”. Para Assis Brasil (A Nova Literatura – III O Conto, Ed. Americana, Brasília, INL, 1973), “Só com a quebra do episódio, com a abolição – parcial ou total – do enredo, do descritivo narrativo linear, o conto foi se libertando das outras narrativas de ficção e adquirindo sua própria forma.” Na verdade, o termo literário “conto” é genérico, serve para designar todo texto literário curto que não seja poema ou crônica. Para certos escritores, até alguns tipos de poema e crônicas são postos na categoria geral denominada conto. Há, porém, textos literários curtos que somente são classificados como conto em razão dessa “noção didática” de se chamar conto todo texto de ficção curto que não seja poema ou crônica. No Ceará este tipo de conto vem sendo praticado há alguns anos, como no livro Pluralia Tantun (1972), de Gilmar de Carvalho. Mais tarde surgiu Jorge Pieiro, com seus “contemas”. Verifica-se também nos livros de Dimas Carvalho.

Em “Os Ilustres Assassinos” (quase prefácio do próprio autor) lê-se espécie de lema literário, que se repete ou se resume em “Conto curtíssimo”. O personagem é o menos importante no conto. Mais vale a história, embora nem sempre haja enredo e muito menos ação. Ou literatura não passa de pura erudição de desocupados? Leiam-se “Esboço de um relatório”, “Oráculo para principiantes”, “O prisioneiro”. Onde está o personagem? O personagem às vezes nem é personagem, isto é, o narrador é somente narrador, não chegando a personagem (“Messias, ou os filhos do limbo”). Como se fosse apenas cronista, observador, sem nenhuma vinculação com a trama, com a história. Essa “desimportância” do personagem (ser humano) pode ser vista em “Desaniversário”, no qual animais e seres inanimados tomam o lugar do homem. Fábula? Sim, mas não somente por isto. Em “Odisseia de Bernardo Tracajá” não há personagens.

Muitos dos personagens de Dimas não são de carne e osso. Seriam simples imagens, representações, impressões de personagens, como em “O Toureiro”. Em outros contos, os personagens se transformam continuamente ou sofrem constantes mutações, metamorfoses. Há também personagem indefinido (“Âncora”): “Nunca se soube ao certo quem era: um conde russo, um pintor renascentista, um pirata levantino, um mágico, um cantor, um arquiteto, um vigarista qualquer.” Personagem “vindo do nada”. Narrador indefinido ou não identificado percebe-se também em “Nossa fronteira ao sul”.

Às vezes o personagem quer se conhecer, se descobrir, e se inventa. Dá-se a auto-invenção, como se o narrador-autor não tivesse domínio do personagem (“Glosa a uma história antiga”). Há ainda personagens “ocultos”, como em “O irmão do grande homem”, embora haja uma história, ação, tempo e lugar definidos. O mesmo se vê em “Chamado”. Quem chama? O personagem oculto? Outros são apenas vislumbrados, como se vistos de muito longe, quase envoltos em bruma, ou há muito tempo, como em “O Vidente”. Algumas formas verbais na narração dão ideia dessa distância do personagem aos olhos do leitor: “profetizava”, “cresceu sua fama”, “se propagou” sua alcunha, enquanto uma águia “soltava gritos”, até que “no dia seguinte” apareceu morto.

Os personagens são sempre emblemáticos ou simbólicos. Em “A Árvore” o homem só é uma árvore; o jardineiro é a rotina, vista como o mau; a mulher bela e atraente é o novo, o progresso, o bem. O protagonista de “O Profeta” é, ao mesmo tempo, humano e divino, pois os comerciantes o insultam, as crianças lhe jogam merda de cavalo, se deita na piçarra, ou seja, é visível, tem corpo, e, no entanto, “quando caminha pela superfície, torna-se invisível”. Em “O Gato” o narrador fala de todos os gatos, poeticamente, até contar uma historinha ou uma fabulazinha, com direito a “moral da história”: “tende cuidado com os gatos cor-de-rosa. De todos os tipos, é o mais perigoso. Não porque nos minta, ou nos iluda, ou nos roube o queijo. Mas pelo contrário”.

O personagem-escritor Eulálio Modesto Nicanor é, ao mesmo tempo, real e irreal. Real porque tem biografia e deixou vasta obra literária, impressa em jornais, almanaques e revistas. Irreal porque esta mesma obra desapareceu e o poeta (e sua obra) não passa de obra coletiva e anônima. Personagem e obra se confundem.

Há na obra de Dimas uma visível preocupação do narrador com a criação literária. Veja-se “O livro inexistente”, em que o personagem é um escritor que não escreve, diferente de Eulálio, que escreveu, mas a obra se perdeu. No fundo, a mesma coisa.  E ainda “Aqui, do meu quarto”, no qual o narrador é um escritor (maluco), um criador de fantasias, enclausurado num quarto, preso entre quatro paredes, solitário, imune aos ruídos do mundo, fechado num casulo. Leia-se “Finnegans wake”, homenagem a Domingos Olímpio ou todo escritor relegado ao esquecimento.

As personagens de Dimas Carvalho agem em espaços ilimitados ou etéreos, quando elas mesmas nem aparecem. A casa, o curral, o bosque, as igrejas, as torres das igrejas, as torres góticas, as ruas estreitas, todos os espaços são meros nomes. Para o contista não tem nenhuma importância este ou aquele lugar. Tudo é apenas adereço. Assim, que território habitam os personagens de “Os gêmeos”? Seria o espaço bíblico, homérico, indígena, indiano? Como se todos os dramas não passassem de sonhos, alucinações, visões, delírios. Os narradores e os protagonistas são seres delirantes, quase sempre, como o de “Um Sonho”, a vagar por uma cidade coberta de névoa, entre casarões antigos, com figuras de górgonas e dragões esculpidas nas portas. Em “Os quatro dragões azuis” o espaço é apenas “aquela cidade”, cheia de “grandes estátuas”, “sentinelas taciturnas” e, logicamente, os dragões azuis.

Embora delirantes, os narradores e protagonistas de Dimas são sempre pequenos, frágeis diante da vida e da trama da narrativa. “Um militar da reserva” é um exemplo dessa fragilidade. Parece até que mais importante do que o personagem, mesmo o protagonista, é o objeto ou o mistério a envolver um e outro. Em “O manual de prestidigitação” o narrador chegou à casa de poderoso feiticeiro, o qual presenteou o visitante com um livro. O feiticeiro desaparece, porque não tem mais importância na trama. O livro assume lugar de destaque. E se mantém “fechado” (misterioso), até que um dia alguém chegue “para recebê-lo”. Em “O Herdeiro” o próprio Rei “não passa de uma peça, talvez a menos importante”.

Dimas Carvalho não raras vezes abole o uso do prisma dramático univalente ou simplesmente faz do conflito apenas um esboço, como se ação não houvesse. Em “Este lugar” a ação é tão-somente expectativa – do dia fatal – pois “nada acontece”, embora o dia da resposta se aproxime e cresçam o medo e a esperança do narrador. Essa ausência de ação – esse nada acontece – é claríssima em “Nada, sempre”. Esse não-acontecer está também em “C’est la vie”. A ausência de enredo, às vezes, leva a se pensar se o enredo é apenas um enredado de ações, como em “Os doze trabalhos de Gabriel” e “A Coisa”.

Os mais variados recursos expressivos se mostram na linguagem de Dimas Carvalho, às vezes num mesmo conto curtíssimo, como em “A Vingança”, no qual se podem ver descrição (“A casa fica num alto, batida pelos ventos.”), narração (“Meia noite quase, a voz:”), fala (“– Água, por favor.”) e desenlace (“A porta que se abre, o tiro, o galope dos cavalos.”), com a presença clara de elipses de narração, preenchidas e resumidas no título. O uso do epílogo-resumo é uma constante em Dimas, como “Último ato”. Há até um conto de um só parágrafo, sem pontos (“Recordações da cidade do sol”).

                Eclético, o escritor cearense utiliza as mais diversas formas da ficção curta: da narrativa inspirada na tradição do conto linear, com enredo claro (“Grau Zero”, “Tango em Itapemba”), à fábula curta, breve, sem trama, à parábola de feição bíblica. No mais das vezes, porém, o primeiro tipo dá lugar ao segundo, este ao terceiro, na mesma “narrativa”. É o que se pode verificar em “As tartarugas”. A princípio se trata de uma narrativa linear. Logo, porém, aparece o misterioso, a quebrar a “racionalidade” do enredo, isto é, a desmontar o urdidura verificada no início da “história”.

                No mais das vezes Dimas foge do realismo e se envolve nas brumas do supra-realismo, do surrealismo, (“Encantos”) ou do realismo mágico. O realismo se apresenta aqui e ali, como em “Um dia ainda serei feliz”, com uma anti-heroína urbana. Ou em “Zé tatu”, história do sertão, “Sertão” e “Meu amigo Valenciano”, com heróis sertanejos e seus misticismos. O ambiente rural ou não-urbano se mostra ainda em “História de avô”, embora o realismo se vá aos poucos desfazendo, para dar lugar ao mistério. Mas o que é real para Dimas? Em “O Peixe” o animal era reflexo de uma imagem (quadro) irreal. A ilusão da imagem reaparece em muitos outros contos, como em “Diógenes”. Ou tudo é real ou tudo é ilusório? (“A descoberta”). Em “Visões” a mesma dúvida: Quem é? O que é? E em “A dúvida”: Quem sou?

                 Na maioria dos contos de Dimas o ponto de vista é do narrador onisciente, algumas vezes do narrador-protagonista. Em “O Sonho” o narrador está só no mundo. Em “A estátua de bronze” o narrador se vê diante de uma estátua, que seria o segundo personagem. E é, porque, no epílogo, “começa a abrir cautelosamente os olhos impassíveis”.

O narrador às vezes é plural (“Em memória de K”). Há também contos em que o foco narrativo é múltiplo, como em “Três rezas para Fortunato”: as criaturas (personagens de uma autora) e a criadora (suposta autora). Ocorre ainda o tratamento na segunda pessoa, em que o narrador ou interlocutor da segunda pessoa não se manifesta com clareza, como se fosse apenas uma voz (a consciência?). É o caso de “O Sobrevivente”. Em “Mostrando as armas” o narrador (o falante, o escritor) se dirige a outro personagem, a quem trata por “você”, e que é simplesmente “um homem”. Essa segunda pessoa pode ser protagonista ou o símbolo do homem universal (“Instruções para o fim do mundo”). Há um conto (“O dia seguinte”) em que o narrador é o morto (o que não é novidade na literatura), invertendo-se o ponto de vista narrativo. Espécie de monólogo interior do defunto, enquanto os personagens vivos se deixavam observar por ele.

Edgar Allan Poe está muito manifesto na obra de Dimas Carvalho, sem imitação. Porque também presentes estão os narradores bíblicos (Adão e Eva, o pecado e o castigo, como em “O Manuscrito”), Homero, Ovídio (metamorfoses, “Ovídio”), Dante, Kafka (“Francisco”, “O Castelo”, “Tratado da neblina”), Borges, contos de fadas (“Branca de Neve e os sete gigantes”) e toda a melhor tradição na arte de narrar.

Em suma, a linguagem de Dimas Carvalho é trabalhada, cinzelada, apurada, como se a frase surgisse depois de horas a fio de cuidados. Não se percebe, no entanto, a frase ornamentada, cheia de floreios, atavios inúteis.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Trova 266 - Dorothy Jansson Moretti (Sorocaba/SP)

Trova formatada enviada pela trovadora

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Cara de Boi

Recolhido em Faro, Algarve

Era um rei, que tinha três filhos. Um dia disse:

— Pois, filhos, vão correr o mundo, e aquele que trouxer a mulher mais formosa é que há de ficar com o reino.

Partiram todos; os dois mais velhos acharam logo duas raparigas muito formosas, com quem se casaram. Uma era filha de uma padeira e a outra de um ferreiro. O mais novo andou por muitas terras, sem encontrar mulher que lhe agradasse.

Indo um dia por um escampado, cheio de fadiga, desceu do cavalo e deitou-se a uma sombra. Deu-lhe então na vista uma casa muito alta sem porta nenhuma, e só lá bem alto é que tinha uma janela. Esteve ali muito tempo, até que viu vir uma velha, que chegou ao muro da casa, bateu na parede e disse:

— Arcelo, arcelo,
Deita o teu cabelo
Cá abaixo de repente,
Quero subir imediatamente.

Foi então que ele viu aparecer à janela uma trança de cabelo tão comprida, que ficou espantado com a sua beleza. A velha pegou-se a ela como se fosse uma corda e subiu para dentro de casa. Pouco tempo depois a velha tornou a sair, e o cavaleiro tendo desejo de ver de quem seria a trança, chegou-se à parede, bateu, e repetiu as palavras:

— Arcelo, arcelo,
Deita o teu cabelo
Cá abaixo de repente,
Quero subir imediatamente.

A trança desceu pela janela abaixo, e o rapaz subiu. Ficou pasmado quando viu diante de si a cara mais linda do mundo. A menina deu um grande ai de aflição:

— Vá-se embora, senhor, que pode vir minha mãe, e tem artes de lhe causar todos os males que há.

— Não vou, sem a menina vir comigo, porque eu assim ganho o reino de meu pai. E se não quiser vir, boto-me desta janela abaixo.

Desceram ambos pela parede, e fugiram a toda a pressa no cavalo que estava folgado à sombra. Ainda não iam longe, quando ouviram uma voz:

— Para, para, filha cruel, não me deixes só no mundo.

E como a filha fosse sempre fugindo com o príncipe, a velha disse-lhe:

— Olha para trás ao menos, para receberes a bênção de tua mãe.

Assim que a menina se virou para trás, ela disse-lhe:

— Eu te fado, que essa cara linda que tens se torne em uma cara de boi.

Coitadinha, ficou logo com cara de boi.

Assim que o príncipe chegou à corte puseram-se todos a rir daquela figura horrenda, sem saber como ele se tinha apaixonado por coisa tão feia, que fazia fugir. O príncipe contou a sua desventura aos irmãos, mas quem é que se fiava? Estava quase a chegar o dia em que os três irmãos haviam de apresentar as suas mulheres diante de toda a corte, para se assentar qual era a mais linda, e qual deles é que havia de ficar com o reino.

A rainha velha tinha muita pena do filho, e lembrou-se de fazer demorar a cerimônia, para ver se a velha com o tempo perdoava a menina e lhe restituía a sua formosura.

Disse a rainha, que queria que antes da cerimônia da corte cada uma das suas três noras lhe bordasse um lenço. A filha da padeira e a do ferreiro não sabiam bordar, e trataram de enganar a rainha, arranjando quem lhes fizesse os bordados; a que tinha cara de boi pôs-se a chorar, e tanto chorou que lhe apareceu a velha, e disse:

— Não te rales mais; no dia em que tiveres de entregar o lenço à rainha eu cá to virei trazer.

Chegou o dia, e a velha veio entregar-lhe uma noz muito pequenina. A cara de boi foi levá-la à rainha, dizendo que ali estava o seu lenço. A rainha quebrou a noz e ficou pasmada com a mais fina cambraia, bordada com flores e ramos e aves.

Chegou o dia de irem à corte para serem apresentadas as três noras do rei; a cara de boi pôs-se a chorar, a chorar, até que lhe apareceu a velha que era mãe dela:

— Não chores mais; trago-te aqui um vestido para a festa. – Desdobrou-o; era todo bordado de ouro e pedrarias; a filha vestiu-o, mas quando o vestido era lindo, tanto ela ficava mais horrenda. E pôs-se a chorar, a chorar cada vez mais.

Quando já todos tinham entrado para a sala, faltava só ela; a velha disse-lhe:

— Vai agora tu.

A filha obedeceu, mais ia muito triste por ver-se tão medonha. Quando ia pelo corredor do palácio, a mãe disse-lhe cá de longe:

— Olha para trás. – E assim que a filha virou a cara, continuou: – Fica com a tua formusura. Mas não te esqueças de meteres nas mangas do vestido todos os bocadinhos de toucinho que puderes para me dar.

Então ela entrou na sala pelo braço do marido, e todos ficaram pasmados. A corte toda confessou que ela é que era a mais linda, e dali foram todos para a mesa do banquete. Enquanto estiveram jantando a menina não fazia senão meter bocadinhos de toucinho nas mangas do vestido; as outras duas, que a viam fazer aquilo, trataram de fazer o mesmo pensando que era moda. Acabado o jantar, começaram as danças, e a rainha ao ver o chão todo besuntado de gordura, e que a cada passo se escorregava em bocados de toucinho, perguntou quem é que fizera aquela porcaria. As damas disseram que o viram fazer à princesa herdeira, e por isso fizeram o mesmo. Começou cada uma a sacudir as mangas dos vestidos, e das mangas da menina começaram a cair aljofres e diamantes misturados com flores; as outras envergonhadas botaram-se pelas janelas fora, pelas escadas, corridas, e a que chamavam cara de boi é que veio a ser a rainha, porque o rei entregou a coroa ao filho.
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Notas Comparativas

A donzela é evidentemente o mito da Aurora, como se comprova pelo estribilho Arcelo, Arcelo, em um romance popular do Algarve, intitulado D. Carlos de Montalvar, coligido pelo nosso amigo Reis Dâmaso, lê-se o verso: «Não permita Deus d’Arcelo» por Deus del cielo. (Enciclopédia republicana, p. 204, Lisboa, 1882).

A velha, que torna feia a menina é a Noite, e o jovem amante que a arrebata é o Sol. Consiglieri Pedroso diz-nos que também encontrou uma versão deste conto.

No Catalogo de Barrera y Leyrado, cita-se um auto [perdido][1] de Gil Vicente, intitulado A Donzela da Torre, porventura baseado sobre este tema mítico comum aos outros povos românicos.

Nos XII Conti pomiglianesi, ilustrati da Vittorio Imbriani, Nápoles, 1877, acha-se este conto desenvolvido sob o título de Persilette, no qual a donzela fechada na torre, a madeixa que serve de escada e a fuga com o namorado são simples episódios. A tradição portuguesa está mais pura na sua simplicidade, enquanto que o conto de Pomigliano é formado pela confusão de diferentes contos, como o da Filha do rei Mouro (n.º 6).

O tema do filho de um rei que vai procurar uma mulher formosa, condição essencial para suceder no reino do pai, acha-se na novela monferrina La bella d’ l’isoule Fourtiuna, publicada por Stanislao Prato (Como, 1882) com notas de abundantíssimos paradigmas.

Nas Quattro novelline popolari Livornese, do mesmo escritor, a terceira Il rè e su tre figlioli, há também este mesmo tema, em que a encantada é uma rã que depois aparece numa mulher bonita. Pertence a um vastíssimo ciclo novelesco comum a toda a Europa, o que coincide com o seu evidente sentido mítico.

Nos povos germânicos, eslavos e escandinavos, este ciclo novelesco é extensíssimo, como se infere dos estudos comparativos do Dr. Reinhold Köhler, o que mais profundamente tem investigado estes assuntos; ele encontrou paradigmas fundamentais nas coleções de contos de Bürching, Hyltén-Cavallius, Grimm, Beauvois, Jonson, Kattan, Asbjørnsen, Töppen, Schwartz, Ey, Stefanović, Radloff, Colshorn, Hahn, Zingerle, Benfey, Chavannes, Afanasieff, Böhmer, Peter e outros.

Nos Portuguese folk-tales, coleção de Consiglieri Pedroso, e tradução de Ralston, vem com o título A filha da feiticeira, n.º IV, muito desenvolvido, e contendo no seu sincretismo, os n.ºs 1, 6, 17 e 32, que coligimos separadamente e em diferentes lugares. Ralston compara esta versão com o conto The story of Sringabhuja and the Daughter of the Rackshasa, que vem no VII livro do Kathá Sarit Ságara (vol. I, pp. 335-367), tradução de Tawney.

Na versão do Algarve cita-se uma noz dentro da qual cabe o lenço bordado para a rainha; Gubernatis, diz: «A noz que esconde a fazenda de que se faz o vestido do noivado para a esposa do príncipe solar, a Aurora, parece ser propriamente a Lua. Por influência dela a donzela perseguida escapa ao poder mágico da mãe-bruxa e apresenta-se vestida com vestes esplêndidas na festa do príncipe. O vestido luminoso, imagem do céu, é tão tênue, tão sutil, que pode desdobrar-se sem fim.» (Myth. des Plantes, t. I, p. 145).


Fonte:
Wikipedia

Jangada de Versos do Ceará (6)

NIRTON VENÂNCIO 
Crateús (1955)
-
UNIDADE


Cada dia
tem sua porção de vida
tem sua imensidão de luz
tem sua solidão de gente
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem na terra
a colheita e a semente.

Cada dia
tem seu ontem e amanhã
tem seu silêncio de espera
tem sua largura de saudade
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no continente
a distância e a cidade.

Cada dia
tem seu mar e os peixes
tem seus barcos e as viagens
tem seus remos e mãos fortes
cada dia
cabe em si mesmo
como cabe no porto
o rumo do sul e do norte.

PER SI

Não quero teu verso enteado
na minha poesia.
Não se meta onde é chamado.
Faça de conta
que não escuta os meus apelos
e me deixe encontrar
esse endereço errado.

Quero meu desencanto legítimo
e esse beijo desfazendo a azia.

Não me venha com tradução
simultânea
para música que me castiga.
Não me meta onde sou cantado.
Faça de conta
que não entende esse estrangeiro
e me deixe desencontrar
esse futuro passado.

Quero o ronco do meu íntimo
e este coração que a alma mastiga.

O GATO

Sob as estrelas
o gato é místico.
Passeia na noite
sobre os telhados de vidro
com suas patas silenciosas
como se tivesse planos e segredos
no percurso das suas sete vidas.

O gato vagueia nos telhados
e no meu coração,
pousa leve em cada passo
como pássaro
conspirador
misterioso
salta por cima dos que dormem
e não sonham comigo.

VIÉS
 

O poeta percebe
de forma
estranha.
Por isso percebe.

GALOPE
 

O corpo do homem
é um cavalo
onde
a alma põe a sela
e dispara no mundo
- o galope da existência
é um fato mágico
um mistério profundo
uma revolução eterna.

As esporas dos dias
atiçam o meu corpo
pelo sertão do mundo
e com as rédeas dos braços
cavalgo
pela trajetória contínua do sol
com a vida ferrada
nos olhos
e os segredos nos alforjes do peito.

Jogado no mundo
não há como se escapar:
todo passo
é decisivo
todo caminho
dá para o norte
todo corpo
é um gibão sobre a alma
toda a vida
é o lado externo da morte
todo peito
é um roçado
para toda safra
ser das rosas.

TRANSITIVO
 

A minha fala
só é
fala
quando
muda.
A minha fala
não é
fala
quando não move.
- aí
ela é muda.

A minha mudez
só é
mudez
quando
fala.
A minha mudez
não é
mudez
quando
não estala
- aí
ela cala.

PRAZO
 

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui
aguarda um sentimento ali,
avista-se uma cidade acolá.

E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira…

Fonte:
http://nirtonvenancio.blogspot.com.br

Irmãos Grimm (O Lobo e os Sete Cabritinhos)

Era uma vez uma velha cabra que tinha sete cabritinhos e os amava, como uma boa mãe pode amar os filhos. Um dia, querendo ir ao bosque para as provisões do jantar, chamou os sete filhinhos e lhes disse:

- Queridos pequenos, preciso ir ao bosque; cuidado com o lobo; se ele entrar aqui, come-vos todos com uma única abocanhada. Aquele patife costuma disfarçar-se, logo o reconhecereis, porém, pela voz rouca e pelas patas negras.

Os cabritinhos responderam:

- Podeis ir sossegada, querida mamãe, ficaremos bem atentos.

Com um balido, a velha cabra afastou-se confiante. Pouco depois, alguém bateu à porta, gritando:

- Abri, queridos pequenos; está aqui vossa mãezinha que trouxe um presente para cada um!

Mas os cabritinhos perceberam, pela voz rouca, que era o lobo.

- Não abrimos nada, - disseram - não é a nossa mamãe; a mamãe tem uma vozinha suave; a tua é rouca; tu és o lobo!

Então o lobo foi a um negócio, comprou um grande pedaço de argila, comeu-o e assim a voz dele tornou-se mais suave. Em seguida, voltou a bater à porta, dizendo:

- Abri, queridos pequenos; está aqui a vossa mãezinha que trouxe um presente para cada um!

Mas havia apoiado a pata negra na janela; os pequenos viram-na e gritaram:

- Não abrimos, nossa mamãe não tem as patas negras como tu; tu és o lobo.

O lobo correu, então, até o padeiro e lhe disse:

- Machuquei o pé, queres esparramar-lhe em cima um pouco de massa?

Quando o padeiro lhe espargiu a massa na pata, correu até o moleiro e disse:

- Espalha um pouco de farinha de trigo na minha pata.

O moleiro pensou: "Este lobo está tentando enganar alguém" e recusou-se a atendê–lo. O lobo, porém, ameaçou-o:

- Se não o fizeres, devoro-te!

O moleiro, então, se assustou e polvilhou-lhe a pata. Aliás, isso é comum entre os homens. O malandro foi, pela terceira vez, bater à porta dos cabritinhos, dizendo:

- Abri, pequenos, vossa querida mãezinha voltou do bosque e trouxe um presente para cada um de vós!

Os cabritinhos gritaram:

- Mostra-nos primeiro a tua pata para que saibamos se és realmente nossa mamãezinha.

O lobo não hesitou, colocou a pata sobre a janela e, quando viram que era branca, acreditaram no que dizia e abriram-lhe a porta. Mas foi o lobo que entrou.

Os cabritinhos, amedrontados, trataram de se esconder. O primeiro escondeu-se debaixo da mesa, o segundo meteu-se embaixo da cama, o terceiro correu para dentro do forno, o quarto foi para a cozinha, o quinto fechou-se no armário, o sexto dentro da pia e o sétimo na caixa do relógio de parede.

Mas o lobo encontrou-os todos e não fez cerimônias; engoliu-os um após o outro. O último, porém, que estava dentro da caixa do relógio, não foi descoberto.

Uma vez satisfeito, o lobo saiu e foi deitar-se sob uma árvore, no gramado fresco do prado e não tardou a ferrar no sono. Não tardou muito e a velha cabra regressou do bosque.

Ah, o que se lhe deparou! A porta da casa escancarada; mesa, cadeiras, bancos, tudo de pernas para o ar. A pia em pedaços, as cobertas, os travesseiros arrancados da cama.

Procurou logo os filhinhos, não conseguindo encontrá-los em parte alguma. Chamou-os pelo nome, um após o outro, mas ninguém respondeu. Ao chamar, por fim, o menor de todos, uma vozinha sumida gritou:

- Querida mamãezinha, estou aqui, dentro da caixa do relógio.

Ela tirou-o de lá e o pequeno contou-lhe que viera o lobo e devorara todos os outros. Imaginem o quanto a cabra chorou pelos seus pequeninos!

Saiu de casa desesperada, sem saber o que fazer; o cabritinho menor saiu-lhe atrás. Chegando ao prado, viram o lobo espichado debaixo da árvore, roncando de tal maneira que fazia estremecer os galhos. Observou-o atentamente, de um e de outro lado e notou que algo se mexia dentro de seu ventre enorme.

- Ah! Deus meu, - suspirou ela - estarão ainda vivos os meus pobres pequenos que o lobo devorou?

Mandou o cabritinho menor que fosse correndo em casa apanhar a tesoura, linha e agulha também. De posse delas, abriu a barriga do monstro; ao primeiro corte, um cabritinho pôs a cabeça de fora e, conforme ia cortando mais, um por um foram saltando para fora; todos os seis, vivos e perfeitamente sãos, pois o monstro, na sanha devoradora, os engolira inteiros, sem mastigar.

Que alegria sentiram ao ver a mãezinha! Abraçaram-na, pinoteando felizes como nunca. Mas a velha cabra lhes disse:

- Ide depressa procurar algumas pedras para encher a barriga deste danado antes que ele desperte.

Os cabritinhos, então, saíram correndo e daí a pouco voltaram com as pedras, que meteram, tantas quantas couberam, na barriga ainda quente do lobo. A velha cabra, muito rapidamente, coseu-lhe a pele de modo que ele nem chegou a perceber.

Finalmente, tendo dormido bastante, o lobo levantou-se e, como as pedras que tinha no estômago lhe provocassem uma grande sede, foi à fonte para beber; mas, ao andar e mexer-se, as pedras chocavam-se na barriga, fazendo um certo ruído. Ele então pôs-se a gritar: Dentro da pança, que é que salta e pula? Cabritos não são; parece pedra miúda!

Chegando à fonte, debruçou-se para beber; entretanto, o peso das pedras arrastou-o para dentro da água, onde se acabou afogando miseravelmente.

Vendo isso, os sete cabritinhos saíram correndo e gritando:

- O lobo morreu! O lobo morreu!

Então, juntamente com a mãezinha, dançaram alegremente em volta da fonte.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/o_lobo_e_as_sete_criancas