sábado, 20 de outubro de 2012

Mário Quintana (Cartaz para uma Feira do Livro)


Conto Tradicional do Algarve/Portugal (As Tres Nuvens)


Era uma vez um lavrador muito rico e tinha três filhos: dois, os mais velhos, eram muito estimados pelos seus pais e andavam ricamente vestidos; o mais novo era desprezado. 

 Tinha o lavrador uma rica propriedade, onde aparecia um medo. 

 Caseiro que lá se deixava dormir numa noite era encontrado morto no dia seguinte. Vendo o pai que a propriedade estava muito estragada, porque os vizinhos metiam nela os seus gados, resolveu mandar o filho mais novo guardá-la. Aceitou o mancebo a incumbência, pois era muito bom e obediente, mas pediu ao pai que mandasse no dia seguinte buscar o seu cadáver para não permanecer por muito tempo insepulto. 

 Despediu-se do pai e dos irmãos e foi para o seu desterro, levando consigo uma cítara, seu instrumento favorito. 

 O prédio onde o caseiro costumava dormir ficava no centro da propriedade. O rapaz chegou ali e tirou do prédio uma cama que colocou sobre um parque, de bonita vista, através do prédio. Logo que escureceu foi deitar-se, entretendo-se muito tempo a tocar o seu instrumento. Alta noite adormeceu. Tinha pegado no sono, sentiu-se afogado sob um grande peso; sentou-se na cama, pegou na cítara e disse em voz alta: 

 - Que peso é o que sinto? Olhem que parto a cabeça seja a quem  for. 

 E pôs-se a fazer um grande sarilho com a cítara, como se fora um alfange. 

 Então ouviu o mancebo uma voz: 

 - Não me mates, dizia a voz, porque te faço bem. Eu sou a nuvem negra, e, quando tiveres necessidade de alguma coisa, chama por mim. 

 No dia seguinte ergueu-se ele da cama e dirigiu-se para casa, onde era esperado por quatro homens com uma tumba para o levar ao cemitério. 

 - Podem retirar-se: ainda não foi desta, disse o mancebo. 

 Na noite seguinte repetiu-se a mesma cena com a diferença da resposta: 

 - Não me mates: eu sou a nuvem parda e, quando queiras alguma coisa, chama por mim. 

 Na terceira noite, e depois da mesma cena das noites antecedentes, ouviu: 

 - Não me mates: sou a nuvem branca. Sempre que te seja preciso, chama por mim. Eu e as minhas irmãs estávamos aqui encantadas, foste tu que nos desencantaste com os maviosos sons do teu instrumento. 

 E a nuvem branca desapareceu como tinham desaparecido as outras. 

 Conservou-se o mancebo por algum tempo na propriedade, sendo raríssimas vezes visitado pelo pai e isso no mero intuito de examinar como o filho a administrava. 

 Um dia teve saudades da família e foi visitá-la. Logo que entrou na casa paterna viu muitos alfaiates ocupados em talhar e fazer riquíssimos fatos de homem; soube então que o rei mandara anunciar que casaria com a princesa o cavalheiro que se saísse vitorioso de três torneios a seguir. 

 Entretida a família nos arranjos dos dois irmãos, que aspiravam à mão da princesa, nenhum caso fizeram do irmão mais novo. Este demorou-se pouco tempo em casa dos seus e retirou-se para a propriedade. 

 Nessa noite pensou que ele poderia entrar nos torneios, e quando foram marcados os dias para as lutas já tinha formada a tenção de lá se apresentar. 

 Na manhã do dia do primeiro torneio disse o mancebo: - Valha-me a nuvem preta. 

 Apareceu logo uma nuvem e dela saiu uma jovem. - O que me queres? perguntou. 

 - Entrar no torneio e sair vencedor. 

 A jovem ergueu uma pequena vara, proferiu algumas palavras, e apareceu um cavalo negro, trazendo pequena mala, onde vinham riquíssimas vestes e armas de cavaleiro da mesma cor do cavalo. 

 O mancebo vestiu-se, empunhou as armas, montou no cavalo e entrou no torneio, saindo vencedor. Logo que saiu da cidade desapareceram o cavalo, as vestes e as armas. 

 No dia seguinte disse: 

 - Valha-me a nuvem parda. 

 Apareceu outra nuvem, de onde saiu uma Jovem que perguntou ao mancebo o que queria. 

 - Entrar no torneio e sair vencedor. 

 E sucedeu como no dia antecedente. Quando ele entrou na praça percebeu que a princesa o atendia com especial agrado. Ainda outra vez saiu vencedor, retirando-se logo para fora da cidade e desaparecendo o cavalo, as vestes e as armas. 

 No terceiro dia invocou a nuvem branca e entrou no torneio montado em cavalo branco e com armas brancas bordadas a ouro. Ficou vencedor, e então viu-se cercado das pessoas da corte que o convidaram a ir à presença do rei. O mancebo foi. 

 Na presença do rei e da princesa, tirou a viseira. E o rei e a princesa agradaram-se do jovem e logo foi ali resolvido o seu casamento. 

 Os dois irmãos do mancebo conservavam-se a certa distância e, quando viram que estava resolvido o casamento com o seu irmão, tiveram grande desespero. Um deles lançou-se da janela à rua, morrendo despedaçado, o outro atravessou-se no próprio alfange. 

 Houve grandes festas no palácio e em todo o reino por ocasião daquele casamento. 

Fonte:
Xavier Ataíde de Oliveira. Contos tradicionais do Algarve. edição Vega. Disponível no Estudio Raposa. 

Pedro Bandeira (Lado a lado, bem bolado)


(Da série Contos para trabalhar em sala de aula )

Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes seguidas, perderia todas.

O caso é que ele tinha aprendido que “em cima” se escreve separado e “embaixo” se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.

Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de todas as coisas.

– É fácil, Ricardinho – ensinou a Vovó. – Levante a mão esquerda, bem aberta.

– Assim?

– Não. Essa é a direita.

– Então é essa?

– É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.

– E de que lado fica o coração?

– Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.

– Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com “em cima” e “embaixo”?

– Veja, querido: seus dedos, “em cima”, estão separados e, “embaixo”, eles estão juntos, grudados na palma, não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! “Em cima” é sempre separado e “embaixo” é sempre junto!

Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque para o Adriano, seu melhor amigo na 1ª série.

– Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e...

– Não vai dar certo – respondeu o amigo.

– Por que não?

– Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!

– Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.

– E como é que eu sei qual é a direita?

– É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho na cara.

– Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara – discordou o Adriano.

Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fácil saber que a mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era... bom, era a outra! 

Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 702)


Uma Trova do Ademar

Uma Trova Nacional 

De costas, nua, atraente, 
vi seu retrato, gamei! 
Vi outra foto de frente... 
decepção... era um “gay”! 
–Francisco José Pessoa/CE– 

Uma Trova Potiguar  

Eu e o sapo temos tosca 
maneira de encher o papo: 
feliz, ele engole mosca 
e, eu, à força, engulo sapo. 
–José Lucas de Barros/RN– 

Uma Trova Premiada  

1996   -   Pouso Alegre/MG 
Tema   -   VERÃO   -   2º Lugar 

No verão ela anuncia
que o nudismo é a sensação
e o que só o marido via,
agora todos verão!
–Arlindo Tadeu Hagen/MG– 

..E Suas Trovas Ficaram  

A cova do falecido 
tinha tranca e cadeado. 
Por ciúme desmedido 
da viúva do coitado. 
–Cesar Torraca/RJ– 

U m a   P o e s i a  

Mamãe dizia a papai: 
se estiver aborrecido, 
me avise logo com tempo, 
pode ficar prevenido: 
da forma que eu mudo a saia, 
mudo também o marido. 
–Leandro Gomes de Barros/PB– 

Soneto do Dia  

MINHA PESCARIA. 
–Francisco Macedo/RN– 

Eu decidi fazer a pescaria 
aproveitando um bom dia de sol. 
peguei a vara, a isca e um anzol, 
e saí no “pingo do meio dia”. 

Pus a vara no fundo com maestria 
e a linha foi fazendo caracol, 
quando arrastei, era uma lata de Skol, 
se não gelada mas bastante fria. 

Segunda vez, pesquei um peixe frito, 
o meu anzol, confesso, era esquisito, 
continuei naquele maior pique. 

Lancei de novo minha vara ao mar, 
sei que o leitor não vai acreditar, 
mas, arrastei um disco de Waldick.

João Anzanello Carrascoza (E vem o Sol)


(Da série Contos para trabalhar em sala de aula )

Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo dia, o homem foi trabalhar, a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para não ficar só num espaço que ainda não sentia seu, a acompanhou.

Entrou na casa atrás da mãe, sem esperança de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros. Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o relógio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do pêlo agradando. E a mão desceu numa carícia.

O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. Já se sentia menos solitário. Não vigorava mais nele, unicamente, a satisfação do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o começo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na árvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o momento da jogada emocionante. Vinha lá do fundo da casa o convite. O gato continuava afofando-se nas suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pássaro, o menino se desprendeu da mãe. Ela não percebeu, nem a dona da casa. Só ele sabia que avançava, tanta a sua lentidão: assim é o imperceptível dos milagres.

Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O ruído lúdico novamente atraiu o menino. A voz o chamava sem saber seu nome.

Então chegou à porta do quarto – e lá estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presença. Miraram-se, os olhos secos da diferença. Mas já se molhando por dentro, se amolecendo. O outro não lhe perguntou quem era nem de onde vinha. Disse apenas: quer brincar? Queria. O Sol renasceu nele. Há tanto tempo precisava desse novo amigo.

Fonte:

Manuel Bandeira (Estrela da vida inteira)


A obra Estrela da vida inteira é a reunião das poesias completas de Manuel Bandeira. Neste livro é possível compreender toda a genialidade deste poeta, que fez com que sua obra seja eterna e passível de ser compreendida e sentida em qualquer época. Seu estilo lírico e ao mesmo tempo despojado certamente continuará atraindo milhares de gerações. Neste livro se encontram poemas que povoam o imaginário brasileiro e que são essenciais para a formação de qualquer leitor.

 O livro é, na verdade, um conjunto de livros do poeta recifense. São eles:

Cinza das Horas (1917): Nele podemos perceber que o poeta, vindo da tradição simbolista e parnasiana, mantém com ela profundos laços e caminha, paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição.

O que tu chamas tua paixão
 É tão somente curiosidade.
 E os teus desejos ferventes vão
 Batendo as asas na irrealidade...

 Curiosidade sentimental
 Do seu aroma,sua pele.
 Sonhas um ventre de alvura tal,
 Que escuro o linho fique ao pé dele

 (...)

 E acima disso, buscas saber
 Os seus instintos,suas tendências...
 Espiar-lhe na alma por conhecer
 O que há sincero nas aparências. (trecho de “Poemeto Irônico”) 

Carnaval (1919): Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica especializada. É um livro sem unidade. Sob pretexto de que no carnaval todas as fantasias se permitem, segundo o próprio poeta, admitiu na coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos, e isto ao lado das alfinetadas dos `Sapos´. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao parnasianismo e foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. O poema seria considerado uma espécie de hino nacional dos modernistas.

 Outro poema deste livro:

Na velha torre quadrangular
 Vivia a Virgem dos Devaneios...
 Tão alvos braços... Tão lindos seios...
 Tão alvos seios por afagar... (em “Baladilha Arcaica”). 

O Ritmo Dissoluto (1924): Neste livro Bandeira começa a explorar mais sistematicamente a simplicidade popular e um certo prosaísmo. É um livro, como o próprio poeta via, de transição entre dois momentos de sua poesia. 

A doce tarde morre. E tão mansa
 Ela esmorece,
 Tão lentamente no céu de prece,
 Que assim parece, toda repouso,
 Como um suspiro de extinto gozo
 De uma profunda, longa esperança 
 Que, enfim cumprida, morre, descansa... (em “Felicidade”). 

Libertinagem (1930): Com a publicação deste livro, pode-se dizer que a poesia de Bandeira amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais freqüência as cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: "Não Sei Dançar", "Pneumotórax", "Poética", "Evocação do Recife", "Poema tirado de uma Notícia de Jornal", "Teresa" e "Vou-me Embora para Pasárgada".

Uns tomam éter,outros cocaína.
 Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
 Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
 Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... (em “Não Sei Dançar”).

Recife
 Não a Veneza americana
 Não a Mauritstadt dos armadores das Índias Ocidentais
 (...) 
 Mas o Recife sem história nem literatura
 Recife sem mais nada
 Recife da minha infância. (em “Evocação do Recife”)

Estrela da Manhã (1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou, sem ter recursos financeiros, 50 exemplares (papel doado e impressão custeada por subscritos). Alguns músicos como Jaime Ovall e Radamés Gnatali, entre outros, interessaram-se por seus textos. Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de canções, a pedido do maestro Villa-Lobos, que queria composições tipicamente brasileiras para serem cantadas em ocasiões festivas. Foram reunidas com o nome de Canções de Cordialidade (“Trem de Ferro”, ”Berimbau”, "Cantiga”, “Dona Janaína”, ”Irene no CÉU”, ”Na Ruia do Sabão”, “Macumba do Pai Zuzé”, “Boca de Forno”, “O Menino Doente” e “Dentro da Noite”, publicados em outras obras. 

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.
 Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
 O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

 Que outros, não eu, a pedra cortem
 Para brutais vos adorarem, ”Ó brancaranas azedas,
 Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
 Ou celestes africanas
 (...)
 Meu Deus, serão as três Marias?

 A mais nua é doirada borboleta
 Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra e nunca mais telefonava
 Mas, se a terceira morresse... Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim. (em “Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”) 

Lira dos Cinqüent'Anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite que o poeta recebeu de uma editora. Bandeira candidatou-se à Academia Brasileira de Letras. 

Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
 Ribeirão trepidante e de cada recosto
 De montanha o metal rolou na cascalhada
 Para o fausto d´El-Rei, para a glória do imposto

 Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
 Pedras... templos que são fantasmas do sol-posto. (em “Ouro Preto”) 

Vi uma estrela tão alta,
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia

 Era uma estrela tão alta!
 Era uma estrela tão fria!
 Era uma estrela sozinha
 Luzindo no fim do dia (em “A Estrela”) 

Lapa-Lapa do Desterro-,
 Lapa que tanto pecais!
 (Mas quando bate seis horas,
 Na primeira voz dos sinos,
 Como anunciava
 A conceição de Maria,
 Que graças angelicais! (em Última Canção do Beco”) 

Belo Belo (1948): Esse título foi tirado de um poema da Lira dos Cinqüent'Anos. Numa edição posterior, de 1951, foram acrescentados alguns poemas. 

Vamos viver no Nordeste, Anarina.
 Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha
 Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante.
 Aqui faz muito calor.
 No Nordeste faz calor também.
 Mas lá tem brisa”.(em “Brisa”) 

Belo belo minha bela
 Tenho tudo que não quero
 Não tenho nada que quero
 Não quero óculos nem tosse
 Nem obrigação de voto
 (...)
 Belo belo
 Mas basta de lero-lero
 Vida noves fora zero (em “Belo Belo”) 

Mafuá do Malungo (1948): Livro publicado na Espanha por iniciativa de João Cabral de Melo Neto. Mafuá significa feira popular, malungo é um africanismo, significando companheiro. Nesse livro, Bandeira faz jogos com as primeiras letras das palavras, faz também sátiras políticas, brinca “à maneira de” outros poetas.

Olhei para ela com toda a força.
 Disse que era boa.
 Que ela era gostosa,
 Que ela era bonita pra burro:
 Não fez efeito (...)
 Virei pirata (...)
 Então banquei o sentimental (...)
 Escrevi cartinhas (...)
 Perdi meu tempo: não fez efeito.
 Meu Deus que mulher durinha!
 Foi um buraco na minha vida.
 Mas eu mato ela na cabeça:
 Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas,
 Pastilhas purgativas:
 É impossível que não faça efeito! (em “Dois Anúncios”: “I-Rondó de efeito”) 

Opus 10 (1952-1955): A expressão do título vem do universo da música. A palavra latina Opus indica genericamente obra, composição, e o número indica a posição de determinada peça num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a partir de uma expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a importância da música e da musicalidade em sua obra. 

Como em turvas águas de enchente
 Me sinto a meio submergido,
 Entre destroços do presente
 Dividido, subdividido,
 Onde rola, enorme, o boi morto
 (...) 
 Morto sem forma ou sentido
 Ou significado. O que foi
 Ninguém sabe. Agora é boi morto. (em “Boi Morto”) 

Grilo toca aí um solo de flauta.
 - De flauta? Você me acha com cara de flautista?
 - A flauta é um belo instrumento. Não gosta?
 - Troppo dolce! (em "O Grilo"). 

Estrela da Tarde (1960): Reeditado em 1963, com novos poemas. É a maturidade do poeta completo que Bandeira já é ao tempo deste livro, onde ele tanto retorna ao soneto tradicional (reinventado na sua poética), como se utiliza de recursos gráficos – talvez inspirados nas vanguardas contemporâneas - na montagem de poemas como “O Nome em Si”. 

Vejo mares tranqüilos,que repousam,
 Atrás dos olhos das meninas sérias.
 Alto e longe elas olham,mas não ousam
 Olhar a quem as olha, e ficam sérias. (em “Variações Sérias em Forma de Soneto”). 

Lira do Brigadeiro

Depois de tamanhas dores,
 De tão duro cativeiro
 às mãos dos interventores,
 Que quer o Brasil inteiro?
 - O Brigadeiro!
 (...)
 Brigadeiro da esperança,
 Brigadeiro da lisura
 Que há nele que tanto afiança
 A sua candidatura?
 - Alma pura!
 (...)
 Abaixo a politicalha!
 Abaixo o politiqueiro!
 Votemos em quem nos valha:
 Que nos vale, brasileiro?
 - O Brigadeiro!
 (...)
 O Brigadeiro é católico
 (...)
 Comunga, mas não comunga
 Com os impostores ateus
 E os ricos do Estado Novo:
 Comunga só com o seu Deus
 E com o povo!
 (...)
 - Não voto no militar; voto no homem escandaloso.
 - Ué, compadre, quem é o homem escandaloso?
 - O Brigadeiro
 (...)
 Não zunzuna
 Nem não fala atoamente;
 Será nosso presidente
 Estava no seu destino
 Desde que ele era tenente
 Desde que ele era menino 

OUTROS POEMAS

O SUPLICANTE

Padre Nosso, que estás no céu santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pó nosso de cada dia nos dá hoje...

 O SENHOR (interrompendo enternecidíssimo) - Toma lá, meu filho. Afinal tu és pó e em pó te converterás!” (em “Sonho de uma noite de coca”) 

"Casa Grande e Senzala”
 Grande livro que fala
 Desta nossa leseira
 Brasileira

 Mas com aquele forte
 Cheiro e sabor do Norte
 - Dos engenhos de cana
 (Massangana!)
 (...)
 Se nos brasis abunda
 Jenipapo na bunda,
 Se somos todos uns
 Octoruns
 Que importa? E lá é desgraça?
 Essa história de raça,
 Raças más, raças boas
 (...)
 É coisa que passou
 Pois o mal do mestiço não está nisso.

 Está em causas sociais,
 De higiene e outras que tais:
 Assim pensa, assim fala
 Casa Grande e Senzala.

 Livro que à ciência alia
 A profunda poesia
 Que o passado revoca
 E nos toca

 A alam de brasileiro,
 Que o portuga femeeiro
 Fez e o mau fado quis
 Infeliz!.

Fonte:
Moisés Neto - Pós-graduado em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco). Disponível em Passeiweb

Marcia Paganini Cavéquia (A Menina e o Sapo)


(Da série Contos para trabalhar em sala de aula )

Nina, menina airosa, formosa como ela só.
Bonito era ver Nina correr.
Ora corria rápido, feito tufão, ora devagar, parecendo brisa.

Nina corria pelo jardim.
Nina caía no gramado.
Nina fazia folia. E ria.

À noite, cansada das travessuras do dia, a menina dormia.

Certa vez, enquanto passeava pelo jardim, Nina viu um sapo.
Sapo também viu Nina.
"Será que, se Nina beijar o sapo, sapo vira príncipe?"
Nina não sabia, mas ficava imaginando como isso seria.

Nina beijou o sapo.
Sapo continuou sapo.
Não virou príncipe.
Mas se apaixonou por Nina.

Agora, onde Nina está, lá se vê o sapo apaixonado suspirando pela menina.

Na cabeça do sapo, Nina é uma princesa-sapa, transformada em menina por uma terrível feiticeira.

Fonte:
Profa. Elaine Lourenço

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Maria Amália Camargo (A Origem das Revespécies)


(Da série Contos para trabalhar em sala de aula )

Você já deve ter quebrado muito a cabeça pra responder aquela velha pergunta sobre o ovo e a galinha... Ora, convenhamos, desde que os cientistas anunciaram o parentesco entre a dita cuja e os dinossauros, não é preciso ser nenhum Charles Darwin pra matar essa charada...

Por um capricho da natureza, ficou decidido que os dinossauros pulariam de grandalhões para a categoria peso-pena, passariam a acordar com as galinhas e seriam bichos muito bons de bico. Daí, foi só uma tiranossauro botar um ovo com um pintinho dentro, para dar início à era das galináceas no planeta. Pronto, o ovo veio primeiro!

E já que estamos falando sobre as transformações no reino animal, é bom lembrar que a evolução não é privilégio apenas das cocoriquentas. Tempos depois de um cavalo amarelo-malhado ter tomado chá de trepadeira e ficado com as folhas entaladas na garganta, transformou-se numa girafa. Quando um camundongo gigante cansou de levar seus filhos a tiracolo e amarrou uma bolsa na barriga, virou um canguru. Já a gelatina, que teve a sorte de ser resgatada do mar Morto por um salva-vidas, ah, virou uma água-viva!

E os reveses nas espécies não param por aí. Tem exemplo de revespécie pra dar e vender. Veja só:

Quem já era devagar quase parando virou preguiça.
Quem tinha samba no pé, uma cuíca.

Virou solitária quem vivia jogada às traças.
Um tremendo furão, quem nunca dava o ar da graça.

Quem era bicho-papão ficou barrigudo.
Quem era cheio de pneuzinhos, borrachudo.

Quem não conseguiu pegar jacaré virou mergulhão.
Quem era nervosinho pacas, um zangão!

Quem gostava de madeira virou bicho-carpinteiro.
Quem dirigia mal pra burro, barbeiro!

Quem não comprava no atacado, virou varejeira.
Quem lavava roupa suja em casa, lavadeira.

Virou quero-quero quem era pidão.
E serelepe, um mexilhão.

Virou maria-fedida quem vivia cheia de craca.
Quem não entrava em barca furada, uma fragata.

O calombo na cachola virou galo.
E quem vivia enrabichado, namorado.

Virou beija-flor quem namorou a rosa no quintal.
Quem pisou na concha acústica, um coral.

Virou truta aquele camarada, grande amigo.
Quem soltava fogo pelas ventas, maçarico.

Virou centopeia o cheio de dedos.
Mas quem vivia pregado continuou percevejo!

Fonte:
Imagem = http://investigacao-filosofica.blogspot.com

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 701)



Uma Trova de Ademar  

Eu sinto a brisa do vento 
como se fosse magia, 
soprando em meu pensamento 
os versos que Deus me envia... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Potiguar  

Não sei se por falsidade, 
vaidade ou coisa assim, 
minha ex-cara-metade 
levou metade de mim. 
–Zé de Sousa/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012   -   Clube Trov. Capixabas/ES 
Tema   -   PESCADORES   -   7º Lugar 

Foram pobres Pescadores 
Por Jesus os escolhidos 
Seus primeiros seguidores 
E da “palavra” incumbidos. 
–Ruth Farah Nacif/RJ– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Nosso grande encantamento,
quando a julgar eu me ponho,
é o encanto do momento
do nosso primeiro sonho.
–Fernando Vasconcelos/PR– 

Uma  Poesia  

A magia predileta 
de quem semeia poesia 
é ser um pouco profeta 
em cada verso que cria 
e sentir que Deus completa 
a força desta magia. 
–Milton Souza/RS– 

Soneto do Dia  

A I N D A ... A P R I M A V E R A. 
–Dorothy Jansson Moretti/SP– 

O tempo corre em compasso inclemente, 
levando pais, amigos, mocidade; 
e um dia percebemos que saudade 
é agora a sombra única e presente. 

Não resistiram à fragilidade 
os nossos sonhos bons de adolescente, 
e outros de fase ainda não descrente, 
há quanto tempo jazem na orfandade! 

As estações sucedem-se, entretanto; 
não as atinge o nosso desencanto... 
Verão, Outono, Inverno... Ah quem me dera 

que abrindo essas janelas do passado, 
eu sentisse que nada foi mudado, 
e que lá fora... ainda é Primavera.

Ivan Jaf (A Gata Apaixonada)


(Da série Contos para trabalhar em sala de aula )

Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir Martins. O pintor famoso.

Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro. Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.

A mãe morreu há uns quatro anos. O pai é superciumento, não a deixa satir de casa nunca.

– Oi, Rodrigo... Você tem um gato grande, malhado?

– Tenho. O nome dele é Sorvete.

– Sorvete?

– Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.

– Ele briga com a minha gata, a Tati. Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.

– De outro gato?

– Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.

Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.

– Você vai ver – ela disse.

– É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?

– Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.

– Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros, revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...

– Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho...

– Minha mãe comprava tudo que podia. A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes, cortina de banheiro...

Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme, mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.

– Minha mãe adorava esse quadro.

Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.

Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado. Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete. O gato mais descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto e não gostou nada do que viu.

Carla segurou no meu braço.

Sorvete pulou pro beiral.

Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim, com o Sorvete atrás.

– Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo. Não gostei daquilo.

– Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... têm de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.

– Mas o Sorvete é meio selvagem...

– Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço? Eu como o tomate inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!

Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como eu era selvagem, mas a cortina se abriu de repente e o pai dela apareceu.

O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até deixando a filha sair comigo.

Eu e a Carla estamos namorando. Juro.

Fontes:
Imagem = http://www.tomieoshiro.blogger.com.br

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 700)



Uma Trova de Ademar  

Saudade... dor cruciante 
que nos maltrata demais; 
palavra sempre constante 
nas Trovas que a gente faz! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Passa a brisa e satisfeito 
sentindo-a relembro quando 
tu repousada em meu peito 
fechava os olhos sonhando... 
–Gilvan Carneiro da Silva/RJ– 

Uma Trova Potiguar  

Geme, ao pelourinho, aflito, 
um pobre velho africano, 
de olhar preso no infinito, 
num plantão de desengano! 
–Sebastião Soares/RN– 

Uma Trova Premiada  

1998   -   Ribeirão Preto/SP 
Tema   -   SONHO   -   2º Lugar 

Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombro os fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos...
e eis-me a sonhar outra vez! 
–Dorothy Jansson Moretti/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Morte!... No termo das provas,
Senhor, agradeço a luz
Com que adornaste de trovas
As trevas de minha cruz! 
–Adelmar Tavares/PE– 

Uma  Poesia  

Quem entra nela pressente
um sopro de nostalgia,
na casa velha que um dia
já abrigou tanta gente,
ao passar do teu batente
se escuta logo a zoada
de um morcego em disparada
querendo dela escapar;
tem muito o que se contar
de uma casa abandonada. 
–Júnior Adelino/PB– 

Soneto do Dia  

EU E O GALO DE CAMPINA.
–Vinícios Gregório/PE– 

Triste sina de um Galo-de-Campina
Que era alegre bem antes da prisão,
Mas foi preso nas grades do alçapão
E hoje chora no canto a triste sina.

Eu também tive a sina repentina,
Pois um dia fui livre e hoje não.
Na tristeza, esse Galo é meu irmão:
Minha sina da dele é copia fina.

Hoje a casa do Galo é a gaiola.
Notas tristes no canto é que ele sola.
A saudade do Galo - a vastidão.

O meu canto é um canto de lamento.
A gaiola é o meu apartamento.
E a saudade que eu sinto é do sertão.

Edy Lima (Acontece para quem acredita)


(Da série Contos para trabalhar em sala de aula )

Era um jovem pescador muito pobre, que vivia sozinho numa praia distante. Tinha um pequeno barco em que saía à noite para pescar e, no dia seguinte, vendia os peixes no povoado mais próximo. Certa vez uma onda enorme tragou o barquinho, mas, na manhã seguinte, acordou em sua cabana miserável e viu que tudo era como sempre tinha sido. Veio à sua lembrança uma bela moça que o socorrera em meio às águas e o carregara para seu palácio no fundo do mar. Nesse momento, riu de si mesmo e disse alto:

– Você sonhou com a Mãe D’Água. Foi só.

Levantou-se para ir tomar água, sua garganta queimava de sede. Quando ergueu a caneca para beber viu um anel brilhando em seu dedo.

– Que é isso?

De repente se lembrou de uma cerimônia em que ele recebera aquele anel, no palácio no fundo do mar.

Uma coisa dessas não podia ter acontecido. Mas o anel continuava um mistério.

Em seguida sentiu uma dúvida terrível: e se estivesse morto?

O jeito era se olhar no espelho, pois ouvira contar que fantasmas não refletem imagem. Claro que era tão pobre que nem tinha espelho em casa.

E se quando fosse vender o peixe no povoado, se olhasse no espelho da barbearia?

Será que tinha pescado alguma coisa? Só se lembrava daquela onda gigante que engolira seu barco. Correu até a praia e não viu o barco. Quem estava lá era a linda moça que o salvara na hora do naufrágio.

Ela sorriu e disse:

– Você não quis ficar na minha casa, vim morar na sua, afinal agora somos casados. Disse isso e estendeu a mão para ele.

Ele viu então que ela usava um anel igual ao que brilhava em seu dedo.

Respondeu:

– Venha.

Caminharam abraçados e, ao chegarem ao lugar onde ficava a cabana, ela não existia mais. Lá, agora, erguia-se um palácio e havia gente entrando e saindo.

A moça disse:

– É o meu povo das águas.

De repente, ele notou que estava vestido com roupas luxuosas em vez dos trapos de antes.

Sem dúvida a Mãe D’Água o escolhera para marido e não havia força humana que pudesse mudar isso.

Viveram felizes por algum tempo. Mas, se ele não tinha gostado de morar no palácio no fundo do mar, ela começou a se cansar de viver em terra firme.

Ficava horas diante do mar rodeada por seu povo das águas. O palácio permanecia abandonado. Ninguém cuidava de nada, tudo era deixado na maior desordem.

Um dia ele pronunciou as palavras fatais que ela o proibira de dizer em qualquer circunstância.

– Arrenego o povo do mar!

Era o que todos esperavam para voltar às profundezas do oceano. Suas palavras valeram como sinal para a debandada.

A moça e todos os serviçais foram cantando para dentro do mar e sumiram nas águas.

O pescador olhou para si mesmo e viu que suas roupas de luxo também tinham sumido. Estava outra vez vestido de trapos. Quando voltou para casa, só encontrou o casebre de antes, não havia nem rastro de algum palácio.

Ao entardecer, sentiu saudades da Mãe D’Água e foi até a beira da praia. Lá estava seu velho barquinho, antes desaparecido. O pescador entrou nele e tomou o rumo do quebra-mar.

De repente uma grande onda o envolveu e seu pensamento foi:

– Será que tudo vai acontecer de novo?

Fontes:
Imagem = http://www.imagick.org.br/ 

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 699)



Uma Trova de Ademar  

Quase toda madrugada, 
Já vendo raiar o dia, 
faço um verso à minha amada 
num orvalhar de poesia... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Nos limites da loucura, 
trapaceira da razão, 
minha saudade procura 
teu vulto na multidão. 
–Divenei Boseli/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Embora sejam, bisonhos, 
e esperanças me leguem, 
eu não persigo meus sonhos; 
são eles que me perseguem... 
–Pedro Grilo/RN– 

Uma Trova Premiada  

2006   -   CTS/Caicó/RN 
Tema   -   PONTE   -   1º Lugar. 

Aquela ponte que unia 
nossas vilas ribeirinhas, 
une, ainda, por magia, 
tuas saudades e as minhas. 
–Gislaine Canales/SC– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Na madrugada indormida, 
juntei ternura aos pedaços, 
cada remendo de vida 
tinha linha de teus traços.. 
–Graziela Lydia Monteiro/MG– 

Uma  Poesia  

Quando eu tinha a idade molequeira 
pesquei muita piaba num açude; 
joguei finca, pião, bola de gude; 
soltei pipas, cacei de baladeira; 
enterrei muita faca em bananeira. 
Meus brinquedos não tinham nem patente, 
mas com eles brincava alegremente. 
Já que o tempo tornou isso lembrança, 
“Eu queria de novo ser criança 
pra brincar de criança novamente”. 
–Tarcísio Fernandes/RN– 

Soneto do Dia  

S O N E T E A N D O. 
–J. B. Xavier/SP– 

Ele começa no verso primeiro, 
passa ao segundo, de poesia farto, 
e adentra afoito já pelo terceiro, 
enquanto escrevo mais um verso – o quarto! 

E passo ao quinto, verso alvissareiro, 
depois ao sexto bem ligeiro eu parto, 
e neste sétimo me atiro inteiro 
já que este oitavo contigo reparto. 
São só catorze, e já vou indo ao nono! 

No verso dez não quero mais parar, 
pois este onze vai tirar meu sono; 

Mas vou ao doze, falta só um terceto... 
Este não digo, pois dá muito azar. 
Décimo quarto: fim deste soneto!

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Antonio Carlos de Faria (O Marceneiro e o Super-homem)


O Freitas devia ter desconfiado quando o marceneiro respondeu sua pergunta recorrendo a um ser imaginário, usando uma figura de linguagem.

- Como diria o The Flash, nós dois somos primos.

A única coisa que interessava ao Freitas era saber se o marceneiro poderia cumprir o prazo de 30 dias para a entrega do armário. No lugar de uma resposta direta, o contratado preferiu alegar parentescos célebres.

No dia marcado para a entrega, o marceneiro telefonou e pediu mais uma semana de prazo, enumerando uma série de contratempos. O Freitas ficou enfurecido, pois aquilo iria atrasar seu cronograma para a reforma do apartamento.

- O senhor não disse que era primo do The Flash?

- Não, o senhor entendeu mal. Disse que ambos somos primos, no sentido matemático. Divisíveis por nós mesmos e pelo número um, compreende?

A gracinha era descabida, reagiu o Freitas, que despejou algumas amabilidades, com a intenção de dividir ao meio aquele cara-de-pau. Mas no final da discussão, combinaram uma extensão do prazo para mais uma semana.

No dia marcado, o sujeito não apareceu e, novamente por telefone, explicou que precisava de mais três dias. O Freitas destratou o tratante com mais vigor. Mas ambos sabiam que estavam mutuamente presos. Para sossego do marceneiro, não havia mais tempo para substituí-lo sem atrasar o prazo final da obra.

Anteontem, o marceneiro apareceu, mas só trouxe metade do que haviam combinado. O resto, só na segunda-feira. Disposto a acabar de uma vez com aquele sofrimento, o Freitas esbravejou que iria chamar outra pessoa, que não se importava mais se a reforma fosse atrasar. O outro sujeito pediu licença para falar.

- O maior mal é necessário para o maior bem do homem.

Aquelas palavras deixaram o Freitas congelado. Estarrecido, constatou que tinha diante de si um marceneiro seguidor das idéias de Nietzsche. Calado, imaginava as conseqüências daquela descoberta. Foi o outro quem o despertou do torpor.

- Que tal se combinarmos para eu voltar na segunda-feira? Aí, sem falta, eu trago tudo e termino o serviço.

O Freitas reagiu com alguns palavrões, que mesmo enfáticos mostravam-se inofensivos naquela situação. O marceneiro voltou a falar.

- É melhor eu ir embora e só voltar na segunda-feira. Afinal nós não queremos que seja assim o nosso eterno retorno, não é?

O Freitas resolveu contra-atacar.

- O senhor disse que era primo do The Flash, não do super-homem nietzschiano.

- De certa forma, todos somos primos do super-homem.

O marceneiro tinha recursos para manter um bate-boca de longo curso, mas não era isso o que interessava ao Freitas. Ele só precisava de um armário.

- Não se preocupe, concluiu o marceneiro. Vou terminar o serviço na segunda-feira. Quanto ao resto, lembre-se que é virtuoso ter somente inimigos dignos de ódio e não de desprezo. Disso o senhor pode se orgulhar.

Fonte:
Folha On Line. 13 de setembro de 2004.

Jean Lorrain (Os Buracos da Máscara)


De Jean Lorrain (1855-1906), escritor maldito da Paris fim-de-século (homossexual e bebedor de éter — nos tempos em que a ostentação desses costumes era bem mais escandalosa do que hoje), este conto sobre as máscaras e sobre o nada tem uma força incomum de pesadelo, sobretudo porque o narrador consegue contemplar a desaparição de si mesmo.
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“Você quer ver", meu amigo De Jakels me dissera, "está bem, arranje uma fantasia de dominó e uma máscara, um dominó bem elegante de cetim preto, calce uns escarpins e, desta vez, meias de seda preta, e espere-me em casa na terça-feira. Irei pegá-lo por volta das dez e meia."

Na terça-feira seguinte, envolto nas pregas farfalhantes de uma longa cama-lha, com a máscara de veludo e barba de cetim presa atrás das orelhas, esperei meu amigo De Jakels na minha garçonnière da rua Taitbout, enquanto esquentava nas brasas da lareira meus pés arrepiados pelo contato irritante da seda; lá de fora, chegavam-me do bulevar, confusamente, o som das cometas e os gritos desesperados de uma noite de Carnaval.

Pensando bem, era um tanto estranha e até inquietante, a longo prazo aquela festa solitária de um homem mascarado afundado numa poltrona, no claro-escuro de um térreo atulhado de bibelôs, ensurdecido por tapeçarias, e com espelhos pendurados nas paredes, refletindo a chama alta de uma lamparina de querosene e o bruxulear de duas velas compridas muito brancas, esbeltas, como que funerárias; e De Jakels não chegava. Os gritos dos mascarados espocando ao longe agravavam mais ainda a hostilidade do silêncio, as duas velas queimavam tão retas que acabei tomado por um nervosismo e, de súbito apavorado com aquelas três luzes, levantei-me para ir soprar uma delas.

Nesse momento um dos cortinados da porta se abriu e De Jakels entrou.

De Jakels? Eu não tinha ouvido tocar a campainha nem alguém abrir. Como ele se introduzira no meu apartamento? Desde então pensei muito nisso; mas finalmente De Jakels ali estava, na minha frente. De Jakels? Bem, uma longa fantasia de dominó, uma grande forma escura, velada e mascarada como eu:

"Está pronto?", interrogou sua voz, que não reconheci. "Meu carro está aí, vamos embora."

Eu não tinha ouvido seu carro chegando nem parando defronte das minhas janelas.

Em que pesadelo, em que sombra e em que mistério eu começara a descer?

"É o capuz que está tapando os seus ouvidos, você não está acostumado com a máscara", pensava em voz alta De Jakels, que havia penetrado no meu silêncio: ou seja, naquela noite ele tinha o dom da adivinhação. E, levantando meu dominó, verificava a delicadeza de minhas meias de seda e de meus finos sapatos.

Esse gesto me serenou, era mesmo De Jakels e não outra pessoa que, de dentro daquele dominó, falava comigo; um outro não estaria sabendo da recomendação que De Jakels me fizera uma semana antes.

"Pois bem, vamos embora", a voz ordenava, e, num farfalhar de seda e de cetim sendo amassado, nos embrenhamos no corredor até a porta-cocheira, bastante parecidos, tive a impressão, com dois enormes morcegos, pelo esvoaçar de nossas camalhas subitamente levantadas acima de nossos dominós.

De onde vinha aquele vento forte? Aquele sopro do desconhecido? O clima naquela noite de terça-feira de Carnaval estava ao mesmo tempo tão úmido e tão ameno!

II.

Por onde andávamos agora, encolhidos no escuro daquele fiacre extraordinariamente silencioso, cujas rodas não faziam mais barulho do que os cascos do cavalo pelas ruas calçadas de madeira e pelo macadame das avenidas desertas?

Aonde íamos ao longo daqueles cais e daquelas margens desconhecidas mal iluminadas aqui e ali pela lanterna embaçada de um velho poste? Já havia muito tempo que tínhamos perdido de vista a fantástica silhueta da Notre-Dame delineando-se do outro lado do rio contra um céu de chumbo. Quai Saint-Michel, Quai de la Tournelle, e até mesmo Quai de Bercy, estávamos longe da avenida de l'Opéra, das ruas Drouot, Le Peletier e do centro. Não íamos nem sequer ao Bullier, onde os vícios vergonhosos costumam fazer suas assembléias, e, escapando de trás das máscaras, turbilhonam quase demoníacos e cinicamente às claras nas noites de Terça-Feira Gorda. E meu companheiro mantinha-se calado.

À beira daquele Sena taciturno e pálido, sob o arco de pontes cada vez mais raras, ao longo daqueles cais com grandes árvores mirradas de galhos afastados como os dedos da morte, invadia-me um medo insensato, um medo agravado pelo silêncio inexplicável de De Jakels; cheguei a duvidar de sua presença e a acreditar que estava ao lado de um desconhecido. A mão de meu amigo havia segurado a minha, e, ainda que mole e sem força, agarrava-a num tornilho que esmigalhava meus dedos... Essa mão de força e vontade imobilizava minhas palavras na garganta e sob seu aperto eu sentia se derreter e dissolver qualquer veleidade de revolta; agora rodávamos fora das fortificações, por estradas largas margeadas de cercas e de lúgubres vitrines de vendedores de vinho, biroscas havia muito tempo fechadas, nos arredores da cidade; andávamos à luz da lua que, finalmente, acabava de morder um bando de nuvens e parecia espalhar na ambígua paisagem de subúrbio uma camada crepitante de mercúrio e de sal; nesse momento tive a impressão de que as rodas do fiacre, deixando de ser fantasmas, gritavam entre as pedras do calçamento e o cascalho do caminho.

"É aqui", murmurou a voz de meu companheiro, "chegamos, podemos descer." 

E quando balbuciei um tímido: "Onde estamos?" 

"Barreira d'Italie, fora das fortificações, pegamos o caminho mais longo, mas o mais seguro, amanhã voltaremos por outro." 

Os cavalos pararam e De Jakels me largou para abrir a portinhola e me dar a mão.

III.

Uma ampla sala muito alta, de paredes caiadas, e nas janelas postigos internos hermeticamente fechados; em todo o comprimento da sala, mesas com copinhos de estanho presos por correntes, e, no fundo, três degraus acima, o balcão de zinco abarrotado de licores e garrafas com os rótulos coloridos dos lendários comerciantes de vinho; ali em cima o gás assobiando alto e claro. Em suma, a sala banal, se não mais espaçosa e mais limpa, de uma taverna das barreiras, cujos negócios iriam bem.

“Acima de tudo, nem uma palavra com quem quer que seja, não fale com ninguém e responda menos ainda; eles veriam que você não é dos deles e poderíamos passar por um mau momento. A mim, eles conhecem." E De Jakels me empurrou para a sala.

Algumas pessoas com máscaras ali bebiam, espalhadas. Quando entramos, o dono do estabelecimento se levantou e, pesadamente, arrastando os pés, veio até a nossa frente como para impedir nossa passagem. Sem uma palavra, De Jakels levantou a barra de nossos dois dominós e lhe mostrou nossos pés calçando finos escarpins!

Com certeza era o "abre-te sésamo" daquele estranho estabelecimento; o patrão voltou pesadamente para o seu balcão e percebi, coisa estranha, que também usava máscara, mas uma feita de papelão grosseiro burlescamente iluminada, imitando um rosto humano.

Os dois garçons, dois colossos peludos com as mangas de camisa arregaçadas até seus bíceps de boxeadores, circulavam calados, eles também invisíveis, com a mesma máscara horrorosa.

Os raros fantasiados, que bebiam sentados em volta das mesas, estavam com máscaras de cetim e veludo, com exceção de um enorme couraceiro fardado, espécie de brutamontes de maxilar pesado e bigode fulvo, sentado à mesa perto de dois elegantes dominós de seda malva, e que bebia de rosto descoberto, com os olhos azuis já vagos; nenhuma criatura que ali se encontrava tinha um rosto humano.

Num canto, dois grandalhões com blusas e bonés de veludo, máscaras de cetim preto, intrigavam por sua elegância suspeita; pois suas blusas eram de seda azul-clara e, de suas calças novas em folha, escapuliam dedos finos de mulher, envoltos em seda e dentro de escarpins. E, como que hipnotizado, eu ainda estaria contemplando aquele espetáculo se De Jakels não tivesse me arrastado para o fundo da sala, para uma porta envidraçada fechada por uma cortina vermelha. "Entrada do baile" estava escrito no alto dessa porta, em letras rebuscadas de um aprendiz de pintura; aliás, um vigia municipal montava guarda ali do lado. Era, quando nada, uma garantia, mas, ao passar, esbarrei na mão dele e percebi que era de cera, de cera assim como seu rosto rosa eriçado por bigodes postiços, e tive a horrível certeza de que a única criatura cuja presença iria me sossegar naquele local de mistério era um simples manequim.

IV.

Quantas horas fazia que eu perambulava sozinho no meio das máscaras silenciosas, naquele galpão abobadado como uma igreja? E era de fato uma igreja, uma igreja abandonada e secularizada, aquela vasta sala de janelas ogivais, a maioria delas muradas até o meio, entre suas colunas de arabescos pincelados com um reboco espesso amarelado, no qual se afundavam as flores esculpidas dos capitéis.

Estranho baile, onde não se dançava e onde não havia orquestra. De Jakels tinha desaparecido, eu estava sozinho, abandonado no meio daquela turba desconhecida.

Um lustre velho de ferro batido flamejava forte no alto, pendurado na abóbada, iluminando as lajes empoeiradas, algumas das quais, cheias de inscrições, talvez cobrissem túmulos. Ao fundo, no lugar onde certamente devia ter reinado o altar, havia, penduradas a meia altura na parede, manjedouras e grades, e nos cantos, pilhas de arneses e cabrestos esquecidos; o salão de baile era uma estrebaria.

Aqui e ali grandes espelhos de barbearias emoldurados de papel dourado refletiam um no outro o silencioso passeio das máscaras, bem, quer dizer, já não refletiam, pois agora todos estavam sentados, enfileirados e imóveis dos dois lados da igreja, enterrados até os ombros nas velhas estalas do coro.

Ali ficavam, mudos, sem um gesto, como que recolhidos no mistério debaixo de cogulas compridas de lã prateada, um prateado fosco sem reflexos; pois não havia mais dominós, nem blusas de seda azul, nem Arlequins nem Colombinas, nem fantasias grotescas. Mas todas aquelas máscaras eram parecidas, envoltas no mesmo traje de um verde-desbotado tirante ao amarelo-enxofre, com grandes mangas pretas, e todos encapuzados de verde-escuro, e no capuz de suas cogulas prateadas, os dois buracos para os olhos.

Davam a impressão de faces de leprosos, cor de giz, e suas mãos enluvadas de preto erguiam uma longa haste de lírios pretos com folhas verde-claras, e seus capuzes, como o de Dante, eram coroados de flores-de-lis pretas.

E todas aquelas cogulas se calavam numa imobilidade de fantasmas, e, acima de suas coroas fúnebres, a ogiva das janelas recortando-se claramente contra o céu branco do luar cobria-os como uma mitra de bispo.

Eu sentia minha razão soçobrar no pavor; o sobrenatural me embrulhava! A rigidez, o silêncio de todos aqueles seres mascarados. O que eram? Um minuto de incerteza a mais, seria a loucura! Eu já não agüentava, e, com a mão crispada de angústia, adiantei-me para uma das máscaras e levantei abruptamente sua cogula.

Horror! Não havia nada, nada. Meus olhos apavorados só encontraram o oco do capuz; a túnica e a camalha estavam vazias. Aquele ser que outrora viveu não era mais que sombra e nada.

Alucinado de terror, arranquei a túnica do mascarado que se sentava na estala vizinha, o capuz de veludo verde estava vazio, vazio o capuz das outras máscaras sentadas ao longo das paredes. Todos tinham faces de sombra, todos eram nada.

E o gás queimava mais forte, quase assobiando na sala alta; pelas vidraças quebradas das ogivas o luar cegava; então me invadiu um horror no meio de todos aqueles seres vazios, de aparências vãs, diante de todas aquelas máscaras vazias uma dúvida atroz confrangeu meu coração.

E se eu também fosse parecido com eles, se também tivesse deixado de existir, e se sob a minha máscara não houvesse nada, nada senão o nada! Precipitei-me para um dos espelhos. Uma criatura de sonho ergueu-se diante de mim, encapuzada de verde-escuro, com uma máscara de prata, coroada de flores-de-lis pretas.

E aquela máscara era eu, pois reconheci meu gesto na mão que levantava o capuz e, boquiaberto de pavor, dei um grito imenso, pois não havia nada sob a máscara de tela prateada, nada no oval do capuz, a não ser o buraco de tecido arredondado no espaço vazio. Eu estava morto e eu...

"E você bebeu éter novamente", repreendia em meu ouvido a voz de De Jakels.

"Curiosa idéia para enganar o tédio enquanto me esperava." Eu estava estirado no meio de meu quarto, meu corpo arrastado para o tapete, a cabeça encostada numa poltrona, e De Jakels, de traje a rigor debaixo de uma túnica de monge, dava ordens febris a meu mordomo horrorizado; em cima da lareira as duas velas acesas, chegando ao fim, estalavam nas arandelas e me acordaram... Já era tempo.

Fonte:
CALVINO, Ítalo (organizador). Contos fantásticos do século XIX : o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.