sábado, 4 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 311


Arthur de Azevedo (Puelina)


Por causa do Sr. Artur Leivas, desmanchou-se anteontem um casamento!

O caso, conto como o caso foi:

Na Rua de Santo Amaro (o número da casa não importa) mora a família Castanheira, composta de pai, Sr. João Castanheira, empregado público; da mãe, D. Fulgência Castanheira; e da filha, senhorita Paulina Castanheira, moça de dezoito anos, inteligente, bonita e prendada.

O Pacheco, o Pachequinho da Alfândega, durante um ano inteiro namorou Paulina, ele da rua, ela da sacada, mas ultimamente achou meios e modos de penetrar na praça, e poucos dias depois pedia solenemente a mão da moça, que lhe foi concedida.

Ficou assentado que o casamento se realizaria em março próximo, e até lá o Pachequinho visitaria a noiva todas as quintas-feiras e domingos, à noite.

Anteontem era quinta-feira. O noivo lá foi, e, ao entrar na sala, dirigiu-se à noiva e cumprimentou-a pela seguinte forma:

- Boa noite, Puelina Paulina!

- Como? perguntou a moça.

- Puelina Paulina, repetiu ele.

- Puelina! exclamou o pai Castanheira. Que diabo vem a ser isso?

- Puelina, explicou, sorrindo, o Pachequinho, é o tratamento que Artur Leivas propõe, na Notícia de hoje, para substituir senhorita.

- Pois sim, mas eu não quero que minha filha seja puelina, disse, do seu canto, D. Fulgência.

- Nem eu! acudiu a moça. Puelina! Credo! Não sei o que me parece! Faça o favor de me chamar senhorita, como sempre me chamou!

- Sim, senhorita é preferível, opinou o velho.

- Puelina é delicioso, contrariou o Pachequinho. A palavra parece esquisita porque é nova, mas quando tiver algum uso, verão! Olhe o que escreve Artur Leivas! Ele sabe latim como gente! Parece até Castro Lopes!.

E dirigindo-se à noiva:

- De hoje em diante, quer queira, quer não queira, há de ser tratada por puelina!

- Já lhe disse que não aceito esse tratamento!

- Perdão; quero, exijo que o aceite! Tenho a minha autoridade de noivo! Se não a fizer respeitar, serei um marido sem autoridade!

- Quer saber de uma coisa, Sr. Pacheco? disse o velho Castanheira. Não seja tolo! Se é para fazer imposições dessa ordem que o senhor vai usar da sua autoridade, boa noite!

- O senhor chamou-me tolo!

- Chamei, sim senhor!.

- Pois tolo será ele!.

- O senhor insulta meu pai!

- O senhor insulta meu marido!

- Não insulto: retalio!

- Pois vá retaliar para o diabo que o carregue! Rua.

- Perdão, mas a puelina Paulina ainda não se pronunciou...

- Mas me pronuncio: está desmanchado o casamento!

- Hem?

- Desmanchado, ouviu? gritou o pai. Rua, já disse!.

O Pachequinho pegou no chapéu e saiu.

Um moleque da casa, que tinha ouvido tudo no corredor, chegou à porta e gritou:

- Puelino! Fiáu!.
* * *

E ora aqui está como, por causa do Sr. Artur Leivas, ontem se desmanchou um casamento!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Luiz Damo (Trovas do Sul) IX


A dor não se perpetue
no rosto do sofredor,
mas a graça sempre atue
na vida do vencedor.
- - - - - -

A vida não nos dá tudo,
razão de ser estudante.
Quem quiser ter o "canudo"
terá que estudar bastante.
- - - - - –

Chegando ao fim da corrida
o homem será convidado,
a prestar contas da vida
colhendo o que foi plantado.
- - - - - –

Com o nosso ecossistema
todos têm envolvimento,
ninguém agrave o problema
do superaquecimento.
- - - - - –

Da videira dos anseios,
cachos de felicidade,
colheremos em passeios
na vindima da saudade.
- - - - - –

Desperta a linda manhã,
o sol desponta no cume,
qual gigante talismã
trazendo vida e perfume,
- - - - - –

Doces frutos de harmonia,
vão pro celeiro do amor
e os amargos, sem valia,
ao fogo eterno da dor.
- - - - - –

Eu não sei se sei quem sou,
ou se quem já foi, sou eu,
só sei que se não fui, vou
ver quem sou, no lar que é meu.
- - - - - –

Frondosa planta, o saber,
bons frutos ela nos dá,
na sombra do entardecer
sempre ao nosso lado está.
- - - - - –

Indesejáveis visitas
muitos dispensam de ter,
consideram "parasitas"
que fingem amigos ser.
- - - - - –

Lenta e calma se mantenha
a caminhada da vida,
se possível nunca venha
ser no seu final perdida.
- - - - - –

Luta acirrada e ferrenha
a das nossas sociedades,
talvez o que falte, tenha,
demais em necessidades.
- - - - - –

Não só São Francisco tem
o poder que a vida traz,
eu posso e devo também
ser instrumento de paz.
- - - - - –

No alvo dos nossos projetos
a vida esteja presente
e os que não forem adjetos
possam ser futuramente.
- - - - - –

No Brasil, o Corcovado,
nosso Cristo Redentor,
Pão de Açúcar elevado,
maravilhas do Senhor.
- - - - - –

No semblante fica escrito
o que está dentro do peito,
tem um pouco do infinito
e muito do nosso jeito.
- - - - - –

Num solo rico e fecundo
ontem, só mata existia,
hoje, produz para o mundo,
vinhos, uva e simpatia.
- - - - - –

O alimento que ingerimos,
nos renove as energias
e tudo o que digerimos
seja fonte de alegrias.
- - - - - -

O brilho da madrugada
vai cedendo o seu lugar,
na manhã toda enfeitada
que também sonha brilhar.
- - - - - -

O fulgor da madrugada
tendo a lua à noite inteira,
transforma-a em meio a noitada
numa dama seresteira.
- - - - - –

Ontem, à luz da fogueira,
brilhava a festa junina,
por não termos mais madeira
hoje, resta a lamparina...
- - - - - –

O passarinho cantando
nova jornada anuncia
e o galo também vai dando
no cantar o seu bom-dia!
- - - - - –

Paris é a cidade-luz
pelo Sena contemplada,
Eiffel, marco que a traduz,
numa vista iluminada.
- - - - - –

Percalços, pedras roliças,
que atravancam os caminhos,
deturpam muitas premissas
e machucam como espinhos.
- - - - - –

Pra se ter democracia
liberdade deve haver,
gerir com diplomacia
na alternância do poder.
- - - - - –

Quando andares pela estrada
controla a velocidade,
porque a próxima parada
pode ser à eternidade.
- - - - - –

Que a vida se torne emblema
e não cruzes nas estradas,
o amanhã chega e condena
quaisquer decisões erradas.
- - - - - –

Quem não temer o perigo
nele pode perecer,
se tiver a mão do amigo
bem melhor será vencer.
- - - - - –

Roma que é cidade-eterna
orgulha cada romano,
guarda sob a luz materna
as bênçãos do Vaticano.
- - - - - –

Se os ramos forem rompidos
por qualquer banalidade,
sobrarão frutos caídos
sem nenhuma utilidade.
- - - - - –

Tantos momentos cruciais
que atormentam nossos dias,
ferem porque são demais
assassinos de alegrias.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) NP e A Tribuna de Maringá


Minha atividade principal em Maringá, até o final dos anos 1955, era uma lojinha de autopeças, porém nas horas vagas fui me envolvendo cada vez mais na imprensa local, publicando crônicas na “A Hora”, do Chico de Souza, e no “O Jornal de Maringá”, do Ivens Lagoano Pacheco. Mas peguei mesmo, para valer, quando Manuel Tavares lançou “A Tribuna de Maringá”. Nas primeiras edições o redator principal era o Ary de Lima, que, entretanto, muito ocupado com os seus compromissos de professor, não pôde continuar. Por insistência do bravo Tavares, aceitei a chefia de redação e iniciamos um trabalho jornalístico que marcou época. Ali se revelaram alguns dos mais brilhantes jornalistas maringaenses da época, entre os quais Ademar Schiavone, Luís Carlos Borba, Ademaro Barreiros, Pedro Granado Martainez, Divanir Braz Palma, João Amaro Faria.

Ao mesmo tempo em que atuava na “A Tribuna”, assumi com Aristeu Brandespim o desafio de produzir a primeira revista da cidade, “Maringá Ilustrada”, cuja edição inaugural chegou às bancas em agosto de 1957. Hoje, quem tem um exemplar dessa edição sabe que tem um tesouro.

A publicação trazia a lista dos primeiros pioneiros; uma reportagem sobre a festa dos 10 anos de Maringá, inclusive mostrando o acidente em que dois aviões da Esquadrilha da Fumaça caíram em cima da caixa d’água da antiga estação ferroviária; textos sobre os primeiros políticos locais, fotos de homens e mulheres de destaque na sociedade, e uma preciosidade: a cobertura da chegada do primeiro bispo da diocese, Dom Jaime Luiz Coelho.

Na primeira edição os redatores éramos Ary de Lima e eu. A partir da segunda, que trouxe na capa a maquete da nova Catedral em desenho de Edgar Osterroht, fiquei como redator-chefe. Mas Brandespim era um homem arrojado e achou que o nome “Maringá Ilustrada” restringia o âmbito da publicação. Mudou então para “NP” – “Norte do Paraná em Revista”, e no ano seguinte outra vez mudou, passando ao nome definitivo: “NP” – “Novo Paraná”.

Aos poucos fomos formando uma pujante equipe de colaboradores. Cito alguns, incluindo jornalistas de Maringá, Londrina e Curitiba: Ademar Schiavone, Frank Silva, Ademaro Barreiros, Túlio Vargas, Luís Carlos Borba, Clóvis de Freitas, Correia Júnior (Zitão), Emílio Germani, Altino Borba, Wilson Silva, Ênnio Monção Pires, Milton Cavalcanti, Samuel Guimarães da Costa, Luiz Geraldo Mazza, Bacila Neto, Pedro Dória, Helê Velozo Fernandes, Alceu Chichorro. Os principais fotógrafos eram Edgar Taboranski e Jasson Figueiredo.

“A Tribuna de Maringá” e a revista “NP” circularam enquanto vivos foram seus valorosos diretores (Manuel Tavares e Aristeu Brandespim). Os pesquisadores encontram raríssimos exemplares no museu da UEM, no Patrimônio Histórico do Município e no Museu Esportivo do jornalista Antonio Roberto de Paula.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-3-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 310


Monteiro Lobato (Cavalinhos)


Elsa entrou da rua repuxando com o dedo a gola da blusa de seda carmesim, para refrescar com abanos frenéticos de leque o pescoço afogueado. Falou da procissão, que estivera linda — povaréu, muitas palmas. Disse que nunca vira tanta gente na igreja; que nem se podia respirar, que estava assim! (e apinhava os dedos). Que a filha de nhá Vica fizera um berreiro dos demônios; que não sabe por que levam crianças à igreja. Depois interpelou o primo:

— Por que não foi, Lauro?

— Eu... — ganiu o rapaz derreado na cadeira de balanço.

Não terminou. Entrava dos fundos dona Didi. Elsa, sua filha casada, beijou-lhe a mão, abraçou-a.

— Por que não foi, mamãe, aos cavalinhos, ontem? Esperei-a lá. Não imagina o que perdeu! A companhia é ótima.

— Não pude, passei mal o dia — dor de cabeça, visitas...

— Pois perdeu. Há lá um menino que é um prodígio — pouco maior que o Juquinha, completamente desengonçado. Faz trabalhos pasmosos, que contados ninguém acredita. Pega nas duas perninhas, cruza-as na cabeça, aqui na nuca, e com as mãos pula como um sapo. Depois desengonça a cabeça e gira com ela como se a tivesse presa por um barbante. Uma coisa extraordinária! O sujeito do trapézio não trabalha mal. Achei muita graça no Juquinha — era a primeira vez que ele ia ao circo:

“De que é que você gostou mais, meu filho?”—, perguntei.

“Gostei mais do homem que se balança na rede e cai na peneira.”

A rede é o trapézio e a peneira é a rede de malhas...

Todos riram; a vovó, com delícias; Lauro, complacente — e Juquinha, que estava à janela cuspilhando nos transeuntes, recebeu olhares cheios de amorosa admiração.

Elsa parolou ainda um bocado. Depois, voltando-se para o primo:

— Que horas são, Lauro?

— Sete e meia — expectorou o moço, com um pigarro que foi cuspir à janela.

— Quase horas!... Começa às oito. Não vai, mamãe? Vá, a senhora precisa de distrações. É por causa desse aferrolhamento em casa que anda assim magra e amarela. Saia, espaneje-se!

Nisto espocaram foguetes. Elsa contou-os, de dedo para o ar.

— Três! É o sinal. E você, Lauro, vai ou...

— Pode ser que sim, pode ser que não — gemeu o filósofo.

— Diabo de rapaz este! “Pode ser!...” Ó velho de cem anos! Ó caramujo! Desate isso, vá!

— Fazer? Ver trapézios? Meninos desossados? Palhaços?... Iria, se não houvesse lá nenhuma dessas coisas, nem a moça que corre no cavalo, nem o homem do arame, nem...

— Mas que é então que havia de haver?

— Nada. Gente nas prateleiras, cochilando, e no picadeiro um gato morto... a cheirar.

— Só? Ai, que já é mania de originalidade! Pois vou eu. Não tanto pelos trabalhos como pela troça, o farrancho. Bole-se com um, atira-se uma casca de pinhão noutro, e assim corre a noite alegremente. E quem não fizer isto neste cinismo de terra morre encarangado, cria orelha-de-pau.

Ajeitou sobre o penteado o fichu de sedinha vermelha, deu diante do espelho uns retoques à cara e, com um “Até logo, corujas!”, saiu com o Juquinha pela mão.

Dona Didi recolheu.

Lauro ficou outra vez só na saleta, uma perna sobre o braço da cadeira, fumando pensativamente. Zoava-lhe ao ouvido a parolice trêfega da prima. Consultou o relógio: quase oito! Ergueu-se, tomou do chapéu e saiu.

Noite linda. No alto, a lua cheia apascentando um rebanho de nuvenzinhas acarneiradas.

Lauro deambulou a esmo, de mãos cruzadas às costas, batendo o calcanhar com o ponteiro da bengala. Famílias deslizavam pelas ruas, de rumo ao circo; deslizavam como sombras, à luz baça dos lampiões de querosene. Magotes de pretas passavam, taralhando, num rufo de saias engomadas. Iam com pressa, numa açodada ânsia pelas molecagens do palhaço.

E Lauro rememorou os tempos em que também ele se tomava daquela sofreguidão, nos dias magníficos em que o pai anunciava ao jantar: “Aprontem-se que hoje vamos aos cavalinhos”. Com longa antecedência já ele e os irmãos vestiam a roupa nova, punham o gorro de marinheiro e de bengalinha de junco na mão sentavam-se à porta da rua à espera do anoitecer.

Lauro reviu nitidamente o Laurinho de outrora, trotando para o circo à frente do farrancho, e depois sentado na terceira fila das arquibancadas, com olhadelas gulosas para a última, rente ao pano, onde se repimpavam os moleques. Lá é que era a pândega!

Soava a sineta. O povo pedia o “paiaço”. Vinha um “casaca de ferro” espevitar os lampiões. Grosso berreiro: “Arara! Arara! Ó caradura!”.

Impassível, o homem graduava a luz dos belgas, um por um, sem pressa; depois pegava da corda e içava aquela coroa de lampiões acesos, aos goles, até meio mastro.

Rompia a música. Bem maçante a música. Dava sono...

Afinal, começava a função e o palhaço entrava como um bólide, rolando às cambalhotas. Tão engraçado!... O relógio dos fundilhos do calção marcava meio-dia. Na cabeça, inclinado para a orelha, o chapelinho de funil, microscópico. Bastava ver o palhaço e Lauro desandava a espremer risos sem fim. A cara caiada, as enormes sobrancelhas de zarcão, os modos, a roupa, tinha tudo tanta graça...

Mas o melhor eram as micagens e as histórias. “Vem cá, seu cara de burro: quem de vinte tira dois quanto fica?” O “casaca de ferro” respondia: “Dezoito, naturalmente”. “Ó asno! Fica zero!” O povo estourava de riso — e Lauro com ele...

Vinham depois os trabalhos. Não gostava. O arame, que caceteação! O trapézio, maçante... Mas gostava dos cavalos porque com eles reaparecia o palhaço e mais o Tony. Oh, como era bom quando havia Tony! A gente estava distraída e de repente plaf! Que foi? Foi o Tony que caiu! E cada tombo...

No melhor da festa aparecia um idiota com uma tabuleta: INTERVALO. Era um desmancha-prazeres e por isso objeto de ódio. Todos saíam. Ficava só a mulherada. Lauro cochilava então e às vezes dormia recostado na tábua dura. Ao termo dum quarto de hora voltavam todos, e o papai trazia embrulhos de doces, empadas, pastéis.

A pantomima! Era o melhor. Os salteadores da Calábria, A estátua de carne...

E a Maria borralheira? Vira-a duas vezes, e nunca havia de esquecer aquele desfile de figurões históricos — Garibaldi de muletas, o general Deodoro, Napoleão...

Suas recordações estavam em Napoleão, quando Lauro chegou à praça onde zumbia o circo. Reviu a clássica barraca iluminada por dentro, deixando ver, desenhada no pano, a silhueta dos espectadores repimpados nos bancos de cima. Em redor, tabuleiros com lanternas dúbias a alumiarem as cocadinhas queimadas, os pés de moleque, os bons-bocados; e mulatas gordas ao pé, vendendo; e baús com pastéis, cestas de amendoim torrado, balaios de pinhão cozido. E, grulhantes em torno, os pés-rapados de bolso vazio, que namoram as cocadas, engolindo em seco, e admiram com respeito os “peitudos” que chegam à bilheteria e malham na tábua um punhado de níqueis, pedindo com entono:

— Uma geral!

O encanto de tudo aquilo, porém, estava morto, tanto é certo que a beleza das coisas não reside nelas senão na gente.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 4


parar de escrever
bilhetes de felicitações
como se eu fosse camões
e as ilíadas dos meus dias
fossem lusíadas,
rosas, vieiras, sermões
****************************************

o soneto a crônica o acróstico
o medo do esquecimento
o vício de achar tudo ótimo
e esses dias
longos dias feito anos
sim pratico todos
os gêneros provincianos
****************************************

Minha cabeça cortada
Joguei na tua janela
Noite de lua
Janela aberta

Bate na parede
Perdendo dentes
Cai na cama
Pesada de pensamentos

Talvez te assustes
Talvez a contemples
Contra a lua
Buscando a cor de meus olhos

Talvez a uses
Como despertador
Sobre o criado-mudo

Não quero assustar-te
Peço apenas um tratamento condigno
Para essa cabeça súbita
De minha parte
****************************************

nada que o sol
não explique

tudo que a lua
mais chique

não tem chuva
que desbote essa flor
****************************************

a perda do olfato
eu não lamento
afinal o olfato
só serve pra cheirar
os quatro elementos
vamos ao fato

o paladar eu perdi
mas não porque o perdesse
tirei da cabeça
o gosto do abacaxi

do ouvido não olvido
pois tendo desenvolvido
a guerra dos sentidos
me voltei pro silêncio
o som não faz sentido

uma consequência
toma conta de mim
como se fosse um barato
****************************************

objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja
****************************************

não creio
que fosse maior
a dor de dante
que a dor
que este dente
de agora em diante
sente

não creio
que joyce
visse mais numa palavra
mais do que fosse
que nesta pasárgada
ora foi-se

tampouco creio
que mallarmé
visse mais
que esse olho
nesse espelho
agora
nunca
me vê

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1987.

Machado de Assis (Um Capitão de Voluntários)


Indo a embarcar para a Europa, logo depois da proclamação da República, Simão de Castro fez inventário das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou a um amigo para imprimi-la quando ele estivesse barra fora. O amigo não cumpriu a recomendação por achar na história alguma coisa que podia ser penosa, e assim lhe disse em carta. Simão respondeu que estava por tudo o que quisesse; não tendo vaidades literárias, pouco se lhe dava de vir ou não a público. Agora que os dois faleceram, e não há igual escrúpulo, dá-se o manuscrito ao prelo.

Éramos dois, elas duas. Os dois íamos ali por visita, costume, desfastio, e finalmente por amizade. Fiquei amigo do dono da casa, ele meu amigo. Às tardes, sobre o jantar, — jantava-se cedo em 1866, — ia ali fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janela, onde se via um morro com casas em cima. A janela oposta dava para o mar. Não digo a rua nem o bairro; a cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Ocultarei o nome do meu amigo; ponhamos uma letra X... Ela, uma delas, chamava-se Maria.

Quando eu entrava, já ele estava na cadeira de balanço. Os móveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X... estendia-me a mão larga e forte; eu ia sentar-me ao pé da janela, olho na sala, olho na rua. Maria, ou já estava ou vinha de dentro. Éramos nada um para o outro; ligava-nos unicamente a afeição de X... Conversávamos; eu saía para casa ou ia passear, eles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogávamos cartas, às noites, e, para o fim do tempo, era ali que eu passava a maior parte destas.

Tudo em X... me dominava. A figura primeiro. Ele robusto, eu franzino; a minha graça feminina, débil, desaparecia ao pé do garbo varonil dele, dos seus ombros largos, cadeiras largas, jarrete forte e o pé sólido que, andando, batia rijo no chão. Dai-me um bigode escasso e fino; vede nele as suíças longas, espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos habituais, pensando ou escutando, era passar os dedos por elas, encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não só por serem grandes e belos, mas porque riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a idade; X... era homem de quarenta anos, eu não passava dos vinte e quatro. Depois da idade, a vida; ele vivera muito, em outro meio, donde saíra a encafuar-se naquela casa, com aquela senhora, eu não vivera nada nem com pessoa alguma. Enfim, — e este rasgo é capital, — havia nele uma fibra castelhana, uma gota do sangue que circula nas páginas de Calderón, uma atitude moral que posso comparar, sem depressão nem riso, à do herói de Cervantes.

Como se tinham amado? Datava de longe. Maria contava já vinte e sete anos, e parecia haver recebido alguma educação. Ouvi que o primeiro encontro fora em um baile de máscaras, no antigo Teatro Provisório. Ela trajava uma saia curta, e dançava ao som de um pandeiro. Tinha os pés admiráveis, e foram eles ou o seu destino a causa do amor de X... Nunca lhe perguntei a origem da aliança; sei só que ela tinha uma filha, que estava no colégio e não vinha à casa; a mãe é que ia vê-la. Verdadeiramente as nossas relações eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de aceitar a situação sem a examinar.

Quando comecei a ir ali, não tinha ainda o emprego no banco. Só dois ou três meses depois é que entrei para este, e não interrompi as relações. Maria tocava piano; às vezes, ela e a amiga Raimunda conseguiam arrastar X... ao teatro; eu ia com eles. No fim, tomávamos chá em sala particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabávamos a noite indo de carro a Botafogo.

A estas festas não ia Barreto, que só mais tarde começou a frequentar a casa. Entretanto, era bom companheiro, alegre e rumoroso. Uma noite, como saíssemos de lá, encaminhou a conversa para as duas mulheres, e convidou-me a namorá-las.

— Tu escolhes uma, Simão, eu outra.

Estremeci e parei.

— Ou antes, eu já escolhi, continuou ele; escolhi a Raimunda. Gosto muito da Raimunda. Tu, escolhe a outra.

— A Maria?

— Pois que outra há de ser?

O alvoroço que me deu este tentador foi tal que não achei palavra de recusa, nem palavra nem gesto. Tudo me pareceu natural e necessário. Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu três anos, mas tinha a idade conveniente para ensinar-me a amar. Está dito, Maria. Deitamo-nos às duas conquistas com ardor e tenacidade. Barreto não tinha que vencer muito; a eleita dele não trazia amores, mas até pouco antes padecera de uns que rompera contra a vontade, indo o amante casar com uma moça de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a almoçar, veio anunciar-me que recebera uma carta dela, e mostrou-me.

— Estão entendidos?

— Estamos. E vocês?

— Eu não.

— Então quando?

— Deixa ver; eu te digo.

Naquele dia fiquei meio vexado. Com efeito, apesar da melhor vontade deste mundo, não me atrevia a dizer a Maria os meus sentimentos. Não suponhas que era nenhuma paixão. Não tinha paixão, mas curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda calor e vida, sentia-me tomado de uma força nova e misteriosa; mas, por um lado, não amara nunca, e, por outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo isto, não para explicar escrúpulos, mas unicamente para fazer compreender o meu acanhamento. Viviam juntos desde alguns anos, um para o outro. X... tinha confiança em mim, confiança absoluta, comunicava-me os seus negócios, contava-me coisas da vida passada. Apesar da desproporção da idade, éramos como estudantes do mesmo ano.

Como entrasse a pensar mais constantemente em Maria, é provável que por algum gesto lhe houvesse descoberto o meu recente estado; certo é que, um dia, ao apertar-lhe a mão, senti que os dedos dela se demoravam mais entre os meus. Dois dias depois, indo ao correio, encontrei-a selando uma carta para a Bahia. Ainda não disse que era baiana? Era baiana. Ela é que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pôr o selo e despedimo-nos. À porta ia a dizer alguma coisa, quando vi ante nós, parada, a figura de X...

— Vim trazer a carta para mamãe, apressou-se ela em dizer.

Despediu-se de nós e foi para casa; ele e eu tomamos outro rumo. X... aproveitou a ocasião para fazer muitos elogios de Maria. Sem entrar em minúcias acerca da origem das relações, assegurou-me que fora uma grande paixão igual em ambos, e concluiu que tinha a vida feita.

— Já agora não me caso; vivo maritalmente com ela, morrerei com ela. Tenho uma só pena; é ser obrigado a viver separado de minha mãe. Minha mãe sabe, disse-me ele parando. E continuou andando: sabe, e até já me fez uma alusão muito vaga e remota, mas que eu percebi. Consta-me que não desaprova; sabe que Maria é séria e boa, e uma vez que eu seja feliz, não exige mais nada. O casamento não me daria mais que isto...

Disse muitas outras coisas, que eu fui ouvindo sem saber de mim; o coração batia-me rijo, e as pernas andavam frouxas. Não atinava com resposta idônea; alguma palavra que soltava, saía-me engasgada. Ao cabo de algum tempo, ele notou o meu estado e interpretou-o erradamente; supôs que as suas confidências me aborreciam, e disse-me rindo. Contestei sério:

— Ao contrário, ouço com interesse, e trata-se de pessoas de toda a consideração e respeito.

Penso agora que cedia inconscientemente a uma necessidade de hipocrisia. A idade das paixões é confusa, e naquela situação não posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, não é fora de propósito que buscasse dissipar no ânimo de X... qualquer possível desconfiança. A verdade é que ele me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de criança envolveram-me todo, e quando nos despedimos, apertou-me a mão com energia. Creio até que lhe ouvi dizer: “Obrigado!”

Não me separei dele aterrado, nem ferido de remorsos prévios. A primeira impressão da confidência esvaiu-se, ficou só a confidência, e senti crescer-me o alvoroço da curiosidade. X... falara-me de Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma alusão às suas prendas físicas, mas a minha idade dispensava qualquer referência direta. Agora, na rua, via de cor a figura da moça, os seus gestos igualmente lânguidos e robustos, e cada vez me sentia mais fora de mim. Em casa escrevi-lhe uma carta longa e difusa, que rasguei meia hora depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui à casa de X...

Eram ave-marias. Ele estava na cadeira de balanço, eu sentei-me no lugar do costume, olho na sala, olho no morro. Maria apareceu tarde, depois das horas, e tão anojada que não tomou parte na conversação. Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da sala.

— Maria acordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me ele. Já lhe fiz notar que nem todos quererão parecer que... Você sabe... A posição dela... Felizmente, a ideia há de passar; tem dessas fantasias...

— E por que não?

— Ora, porque não! E depois, a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas, palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos.

— Eu não. Prefiro os argentinos.

— Também gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o López.

— Não; olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntário da pátria.

— Eu, nem que me fizessem coronel, não me alistava.

Ele disse não sei que mais. Eu, como tinha a orelha afiada, à escuta dos pés de Maria, não respondi logo, nem claro, nem seguido; fui engrolando alguma palavra e sempre à escuta. Mas o diabo da moça não vinha; imaginei que estariam arrufados. Enfim, propus cartas, podíamos jogar uma partida de voltarete.

— Podemos, disse ele.

Passamos ao gabinete. X... pôs as cartas na mesa e foi chamar a amiga. Dali ouvi algumas frases sussurradas, mas só esta me chegaram claras:

— Vem! é só meia hora.

— Que maçada! Estou doente.

Maria apareceu no gabinete, bocejando. Disse-me que era só meia hora; tinha dormido mal, doía-lhe a cabeça e contava deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e começamos a partida. Eu arrependia-me de haver rasgado a carta; lembrava-me alguns trechos dela, que diriam bem o meu estado, com o calor necessário a persuadi-la. Se a tenho conservado, entregava-lhe agora; ela ia muita vez ao patamar da escada despedir-se de mim e fechar a cancela. Nessa ocasião podia dar-lhe; era uma solução da minha crise.

Ao cabo de alguns minutos, X... levantou-se para ir buscar tabaco de uma caixa de folha-de-flandres, posta sobre a secretária. Maria fez então um gesto que não sei como diga nem pinte. Ergueu as cartas à altura dos olhos para os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava à esquerda, e arregalou-os tanto e com tal fogo e atração, que não sei como não entrei por eles. Tudo foi rápido. Quando ele voltou fazendo um cigarro, Maria tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as como se calculasse. Eu devia estar trêmulo; não obstante, calculava também, com a diferença de não poder falar. Ela disse então com placidez uma das palavras do jogo, passo ou licença.

Jogamos cerca de uma hora. Maria, para o fim, cochilava literalmente, e foi o próprio X... que lhe disse que era melhor ir descansar. Despedi-me e passei ao corredor, onde tinha o chapéu e a bengala. Maria, à porta da sala, esperava que eu saísse e acompanhou-me até à cancela, para fechá-la. Antes que eu descesse, lançou-me um dos braços ao pescoço, chegou-me a si, colou-me os lábios nos lábios, onde eles me depositaram um beijo grande, rápido e surdo. Na mão senti alguma coisa.

— Boa noite, disse Maria fechando a cancela.

Não sei como não caí. Desci atordoado, com o beijo na boca, os olhos nos dela, e a mão apertando instintivamente um objeto. Cuidei de me pôr longe. Na primeira rua, corri a um lampião, para ver o que trazia. Era um cartão de loja de fazendas, um anúncio, com isto escrito nas costas, a lápis: “Espere-me amanhã, na ponte das barcas de Niterói, a uma hora da tarde”.

O meu alvoroço foi tamanho que durante os primeiros minutos não soube absolutamente o que fiz. Em verdade, as emoções eram demasiado grandes e numerosas, e tão de perto seguidas que eu mal podia saber de mim. Andei até ao Largo de S. Francisco de Paula. Tornei a ler o cartão; arrepiei caminho, novamente parei, e uma patrulha que estava perto talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a respeito da comoção, tinha fome e fui cear no Hotel dos Príncipes. Não dormi antes da madrugada; às seis horas estava em pé. A manhã foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos antes de uma hora cheguei à ponte; já lá achei Maria, envolvida numa capa, e com um véu azul no rosto. Ia sair uma barca, entramos nela.

O mar acolheu-nos bem. A hora era de poucos passageiros. Havia movimento de lanchas, de aves, e o céu luminoso parecia cantar a nossa primeira entrevista. O que dissemos foi tão de atropelo e confusão que não me ficou mais de meia dúzia de palavras, e delas nenhuma foi o nome de X... ou qualquer referência a ele. Sentíamos ambos que traíamos, eu o meu amigo, ela o seu amigo e protetor. Mas, ainda que o não sentíssemos, não é provável que falássemos dele, tão pouco era o tempo para o nosso infinito. Maria apareceu-me então como nunca a vi nem suspeitara falando de mim e de si, com a ternura possível naquele lugar público, mas toda a possível, não menos. As nossas mãos colavam-se, os nossos olhos comiam-se, e os corações batiam provavelmente ao mesmo compasso rápido e rápido. Pelo menos foi a sensação com que me separei dela, após a viagem redonda a Niterói e S. Domingos. Convidei-a desembarcar em ambos os pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos metêssemos numa caleça fechada: “Que ideia faria de mim?” perguntou-me com gesto de pudor que a transfigurou. E despedimo-nos com prazo dado, jurando-lhe que eu não deixaria de ir vê-los, à noite, como de costume.

Como eu não tomei da pena para narrar a minha felicidade, deixo a parte deliciosa da aventura, com as suas entrevistas, cartas e palavras, e mais os sonhos e esperanças, as infinitas saudades e os renascentes desejos. Tais aventuras são como os almanaques, que, com todas as suas mudanças, hão de trazer os mesmos dias e meses, com os seus eternos nomes e santos. O nosso almanaque apenas durou um trimestre, sem quartos minguantes nem ocasos de sol. Maria era um modelo de graças finas, toda vida, toda movimento. Era baiana, como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro encontro com X... no Teatro Provisório, dançando ao som de um pandeiro, disse-me que era verdade, fora ali vestida à castelhana e de máscara; e, como eu lhe pedisse a mesma coisa, menos a máscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo:

— Você poderia ficar doido.

— Mas X... não ficou doido.

— Ainda hoje não está no seu juízo, replicou Maria rindo. Imagina que eu fazia isto só...

E em pé, num maneio rápido, deu uma volta ao corpo, que me fez ferver o sangue.

O trimestre acabou depressa, como os trimestres daquela casta. Maria faltou um dia à entrevista. Era tão pontual que fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez, quinze minutos; depois vinte, depois trinta, depois quarenta... Não digo as vezes que andei de um lado para outro, na sala, no corredor, à espreita e à escuta, até que de todo passou a possibilidade de vir. Poupo a notícia do meu desespero, o tempo que rolei no chão, falando, gritando ou chorando. Quando cansei, escrevi-lhe uma longa carta; esperei que me escrevesse também, explicando a falta. Não mandei a carta, e à noite fui à casa deles. Maria pôde explicar-me a falta pelo receio de ser vista e acompanhada por alguém que a perseguia desde algum tempo. Com efeito, haviam-me já falado em não sei que vizinho que a cortejava com instância; uma vez disse-me que ele a seguira até à porta da minha casa. Acreditei na razão, e propus-lhe outro lugar de encontro, mas não lhe pareceu conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas entrevistas, até fazer calar as suspeitas. Não sairia de casa. Não compreendi então que a principal verdade era ter cessado nela o ardor dos primeiros dias. Maria era outra, principalmente outra. E não podes imaginar o que vinha a ser essa bela criatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que ninguém.

Quando me entrou a convicção de que tudo estava acabado, resolvi não voltar lá, mas nem por isso perdia a esperança; era para mim questão de esforço. A imaginação, que torna presentes os dias passados, fazia-me crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei; não podia viver sem ela.

X... recebeu-me com o seu grande riso infante, os olhos puros, a mão forte e sincera; perguntou a razão da minha ausência. Aleguei uma febrezinha, e, para explicar o enfadamento que eu não podia vencer, disse que ainda me doía a cabeça. Maria compreendeu tudo; nem por isso se mostrou meiga ou compassiva, e, à minha saída, não foi até ao corredor, como de costume. Tudo isto dobrou a minha angústia. A ideia de morrer entrou a passar-me pela  cabeça; e, por uma simetria romântica, pensei em meter-me na barca de Niterói, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da baía, atirar-me ao mar. Não iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado casualmente o meu amigo Barreto, não vacilei em lhe dizer tudo; precisava de alguém para falar comigo mesmo. No fim pedi-lhe segredo; devia pedir-lhe especialmente que não contasse nada a Raimunda. Nessa mesma noite ela soube tudo. Raimunda era um espírito aventureiro, amigo de entrepresas e novidades. Não se lhe dava, talvez, de mim nem da outra, mas viu naquilo um lance, uma ocupação, e cuidou em reconciliar-nos; foi o que eu soube depois, e é o que dá lugar a este papel.

Falou-lhe uma e mais vezes. Maria quis negar a princípio, acabou confessando tudo, dizendo-se arrependida da cabeçada que dera. Usaria provavelmente de circunlóquios e sinônimos, frases vagas e truncadas, alguma vez empregaria só gestos. O texto que aí fica é o da própria Raimunda, que me mandou chamar à casa dela e me referiu todos os seus esforços, contente de si mesma.

— Mas não perca as esperanças, concluiu; eu disse-lhe que o senhor era capaz de matar-se.

— E sou.

— Pois não se mate por ora; espere.

No dia seguinte vi nos jornais uma lista de cidadãos que, na véspera, tinham ido ao quartel-general apresentar-se como voluntários da pátria, e nela o nome de X..., com o posto de capitão. Não acreditei logo; mas eram os mesmos, na mesma ordem, e uma das folhas fazia referências à família de X..., ao pai, que fora oficial de marinha, e à figura esbelta e varonil do novo capitão; era ele mesmo.

A minha primeira impressão foi de prazer; íamos ficar sós. Ela não iria de vivandeira para o Sul. Depois, lembrou-me o que ele me disse acerca da guerra, e achei estranho o seu alistamento de voluntário, ainda que o amor dos atos generosos e a nota cavalheiresca do espírito de X... pudessem explicá-lo. Nem de coronel iria, disse-me, e agora aceitava o posto de capitão. Enfim, Maria; como é que ele, que tanto lhe queria, ia separar-se dela repentinamente, sem paixão forte que o levasse à guerra?

Havia três semanas que eu não ia à casa deles. A notícia do alistamento justificava a minha visita imediata e dispensava-me de explicações. Almocei e fui. Compus um rosto ajustado à situação e entrei. X... veio à sala, depois de alguns minutos de espera. A cara desdizia das palavras; estas queriam ser alegres e leves, aquela era fechada e torva, além de pálida. Estendeu-me a mão, dizendo:

— Então, vem ver o capitão de voluntários?

— Venho ouvir o desmentido.

— Que desmentido? É pura verdade. Não sei como isto foi, creio que as últimas notícias... Você por que não vem comigo?

— Mas então é verdade?

— É.

Após alguns instantes de silêncio, meio sincero, por não saber realmente que dissesse, meio calculado, para persuadi-lo da minha consternação, murmurei que era melhor não ir, e falei-lhe na mãe. X... respondeu-me que a mãe aprovava; era viúva de militar. Fazia esforços para sorrir, mas a cara continuava a ser de pedra. Os olhos buscavam desviar-se, e geralmente não fitavam bem nem longo. Não conversamos muito; ele ergueu-se, alegando que ia liquidar um negócio, e pediu-me que voltasse a vê-lo. À porta, disse-me com algum esforço:

— Venha jantar um dia destes, antes da minha partida.

— Sim.

— Olhe, venha jantar amanhã.

— Amanhã?

— Ou hoje, se quiser.

— Amanhã.

Quis deixar lembranças a Maria; era natural e necessário, mas faltou-me o ânimo. Embaixo arrependi-me de o não ter feito. Recapitulei a conversação, achei-me atado e incerto; ele pareceu-me, além de frio, sobranceiro.

Vagamente, senti alguma coisa mais. O seu aperto de mão tanto à entrada, como à saída, não me dera a sensação do costume.

Na noite desse dia, Barreto veio ter comigo, atordoado com a notícia da manhã, e perguntando-me o que sabia; disse-lhe que nada. Contei-lhe a minha visita da manhã, a nossa conversação, sem as minhas suspeitas.

— Pode ser engano, disse ele, depois de um instante.

— Engano?

— Raimunda contou-me hoje que falara a Maria, que esta negara tudo a princípio, depois confessara, e recusara reatar as relações com você.

— Já sei.

— Sim, mas parece que da terceira vez foram pressentidas e ouvidas por ele, que estava na saleta ao pé. Maria correu a contar a Raimunda que ele mudara inteiramente; esta dispôs-se a sondá-lo, eu opus-me, até que li a notícia nos jornais. Vi-o na rua, andando: não tinha aquele gesto sereno de costume, mas o passo era forte.

Fiquei aturdido com a notícia, que confirmava a minha impressão. Nem por isso deixei de ir lá jantar no dia seguinte. Barreto quis ir também; percebi que era com o fim único de estar comigo, e recusei.

X... não dissera nada a Maria; achei-os na sala, e não me lembro de outra situação na vida em que me sentisse mais estranho a mim mesmo. Apertei-lhes a mão, sem olhar para ela. Creio que ela também desviou os olhos. Ele é que, com certeza, não nos observou; riscava um fósforo e acendia um cigarro. Ao jantar falou o mais naturalmente que pôde, ainda que frio. O rosto exprimia maior esforço que na véspera. Para explicar a possível alteração, disse-me que embarcaria no fim da semana, e que, à proporção que a hora ia chegando, sentia dificuldade em sair.

— Mas é só até fora da barra; lá fora torno a ser o que sou, e, na campanha, serei o que devo ser.

Usava dessas palavras rígidas, alguma vez enfáticas. Notei que Maria trazia os olhos pisados; soube depois que chorara muito e tivera grande luta com ele, na véspera, para que não embarcasse. Só conhecera a resolução pelos jornais, prova de alguma coisa mais particular que o patriotismo. Não falou à mesa, e a dor podia explicar o silêncio, sem nenhuma outra causa de constrangimento pessoal. Ao contrário, X... procurava falar muito, contava os batalhões, os oficiais novos, as probabilidades de vitória, e referia anedotas e boatos, sem curar de ligação. Às vezes, queria rir; para o fim, disse que naturalmente voltaria general, mas ficou tão carrancudo depois deste gracejo, que não tentou outro. O jantar acabou frio; fumamos, ele ainda quis falar da guerra, mas o assunto estava exausto. Antes de sair, convidei-o a ir jantar comigo.

— Não posso; todos os meus dias estão tomados.

— Venha almoçar.

— Também não posso. Faço uma coisa; na volta do Paraguai, o terceiro dia é seu.

Creio ainda hoje que o fim desta última frase era indicar que os dois primeiros dias seriam da mãe e de Maria; assim, qualquer suspeita que eu tivesse dos motivos secretos da resolução, devia dissipar-se. Nem bastou isso; disse-me que escolhesse uma prenda em lembrança, um livro, por exemplo. Preferi o seu último retrato, fotografado a pedido da mãe, com a farda de capitão de voluntários. Por dissimulação, quis que assinasse; ele prontamente escreveu:

“Ao seu leal amigo Simão de Castro oferece o capitão de voluntários da pátria X...” O mármore do rosto era mais duro, o olhar mais torvo; passou os dedos pelo bigode, com um gesto convulso, e despedimo-nos.

No sábado embarcou. Deixou a Maria os recursos necessários para viver aqui, na Bahia, ou no Rio Grande do Sul; ela preferiu o Rio Grande, e partiu para lá, três semanas depois, a esperar que ele voltasse da guerra. Não a pude ver antes; fechara-me a porta, como já me havia fechado o rosto e o coração.

Antes de um ano, soube-se que ele morrera em combate, no qual se houve com mais denodo que perícia. Ouvi contar que primeiro perdera um braço, e que provavelmente a vergonha de ficar aleijado o fez atirar-se contra as armas inimigas, como quem queria acabar de vez. Esta versão podia ser exata, porque ele tinha desvanecimentos das belas formas; mas a causa foi complexa.

Também me contaram que Maria, voltando do Rio Grande, morreu em Curitiba; outros dizem que foi acabar em Montevidéu. A filha não passou dos quinze anos. Eu cá fiquei entre os meus remorsos e saudades; depois, só remorsos; agora admiração apenas, uma admiração particular, que não é grande senão por me fazer sentir pequeno. Sim, eu não era capaz de praticar o que ele praticou. Nem efetivamente conheci ninguém que se parecesse com X... E por que teimar nesta letra? Chamemos-o pelo nome que lhe deram na pia, Emílio, o meigo, o forte, o simples Emílio.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias da Casa Velha. Publicado originalmente pela Editora Garnier (RJ) em 1906.

A Literatura Portuguesa (Cronicões e Hagiografias; Humanismo)

CRONICÕES E LIVROS DE LINHAGEM

Além da poesia e das novelas de cavalaria no trovadorismo, ainda foram cultivados outras manifestações literárias: os cronicões, as hagiografias e os nobiliários ou livros de linhagem.

Os cronicões, de pouco valor literário, deram origem à historiografia portuguesa e serviram de material de suporte para Herculano compor sua Portugaliae Monumenta Historica. Crônicas Breves do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Crónica Geral de Espanha (1344), provavelmente elaborada por D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis.

As hagiografias (= vidas de santos), escritas em Latim, possuem ainda menos significado literário.

Os livros de linhagens eram relações de nomes especialmente de nobres, com o objetivo de estabelecer graus de parentesco que serviam para dirimir dúvidas em caso de herança, filiação ou de casamento em pecado (= casamento entre parentes até o sétimo).

Ao lado de informações tipicamente genealógicas revelam veleidades literárias: nas referências às ligações genealógicas se intercalam, com realismo colorido e naturalidade, narrativas breves, mas de especial interesse, como a da Batalha do Salado.

HUMANISMO (1418-1527)

Em Portugal, o Humanismo inicia-se quando Fernão Lopes, guarda-mor da torre do Tombo desde 1418, é encarregado por D. Duarte (filho de D. João I) de “por em crônica as histórias de seus antepassados. e ou da sua promoção a Cronista-Mor do Reino, em 1434, e encerra-se em 1527, quando Sá de Miranda regressa da Itália trazendo a medida nova (ou o decassílabo).

Pela primeira vez, é demonstrada uma preocupação com a História documentada, envolvendo a descrição dos fatos sociais fora dos parâmetros da Corte.

OS CRONISTAS:

FERNÃO LOPES

Autodidata, de origem humilde, foi um dos legítimos representantes do saber popular, embora já no seu tempo um novo tipo de saber começava a surgir: de cunho erudito-acadêmico e humanista.

Das várias crônicas que teria escrito sobre os reis portugueses da primeira dinastia (Dinastia de Avis) e do começo da segunda, várias se perderam, só restando três de autoria indiscutível: Crônica d'El Rei D. Pedro, Crônica d'El-Rei D. Fernando e Crônica d'El-Rei D. João I. Outras, ainda lhe são atribuídas, como a Crônica do Condestável (publicada em 1526).

Decididamente vocacionado para a historiografia, Fernão Lopes tem sido considerado o "pai da História" em Portugal. Sua visão abrangente e lúcida de Fernão Lopes torna possível o “nascimento” da História documentada de Portugal compilando fatos como a Dinastia de Avis, a expansão marítima portuguesa.

Seu valor como historiador reside acima de tudo no fato de procurar ser "moderno", desprezando o relato oral em favor dos acontecimentos documentados.

Do ponto de vista da forma, o seu estilo representa uma literatura de expressão oral e de raiz popular. Ele próprio diz que nas suas páginas não se encontra a formosura das palavras, mas a nudez da verdade. “(...) nosso desejo foi em esta obra escrever verdade, sem outra mistura, deixando nos bons aquecimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao povo, quaisquer contrárias coisas, da guisa que avieram."

Fernão Lopes enquadra-se nitidamente nas estruturas culturais da Idade Média. Todavia, alguns pormenores fazem dele um homem avançado para o seu tempo. Dotado dum estilo maleável, coloquial, primitivo, saborosamente palpitante e vivo, não escondia o seu gosto acentuado pelo arcaísmo, talvez em decorrência de sua origem plebeia e seu amor ao povo, à "arraia-miúda".

Fernão Lopes possui incomum sentido plástico da realidade, procurando oferecer ao leitor um instantâneo "vivo", "atual", dos acontecimentos. Incorporou em sua obra alguns recursos da novela, como por exemplo, nos retratos psicológicos das personagens, a cerrada cronologia, o emprego dos diálogos, constituem soluções estruturais que trouxe da novela e construiu com seu próprio pendor literário.

Sua carreira como historiador é provavelmente a mais longa, sendo sucedido por Gomes Eanes de Zurara após a aposentadoria.

continua…

Fontes: 
Textos obtidos em
Célio Antonio Sardagna. Literatura Portuguesa. UNIASSELVI, 2010.
Massaud Moisés. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 309


Cláudio de Cápua (Aspectos Curiosos da Vida de Euclydes da Cunha)


Euclydes da Cunha, nascido em 20 de janeiro de 1866, na fazenda de Santa Rita do Rio Negro, município de Cantagalo, RJ, morreu assassinado por motivos passionais no dia 15 de agosto de 1909.

Considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, ora não analisaremos sua obra e, sim, alguns fatos e aspectos curiosos da sua personalidade.

Se Euclydes estivesse, por exemplo, interessado em anotar algum fato do seu interesse e não dispusesse de papel suficiente, continua a tarefa normalmente, escrevendo nos punhos brancos e engomados de sua camisa.

Seu sentimento cívico, de fidelidade à República, era indiscutível levando-o mesmo a atos de ousadia como quando quebrou o sabre e o lançou aos pés do Ministro Thomaz Coelho, negando-se desfilar diante dele para não ferir seus íntimos ideais republicanos. Isto lhe custou a expulsão da Escola Militar na qual, mais tarde, com o advento da República, foi readmitido.

Euclydes detestava ser colocado em evidência. Gostava de trabalhar sem alarde. Assim, insurgiu-se contra o horário do lançamento da pedra fundamental do primeiro Grupo Escolar de São Carlos, obra que deveria executar na qualidade de engenheiro. O evento deveria acontecer às 13h de um determinado dia, com a presença do maior número possível de pessoas. Euclydes exigia que a pedra fosse colocada de madrugada, sem foguetório. Conciliados os interesses, o Presidente da Câmara concordou que a cerimônia fosse efetuada às 8h da manhã.

Inimigo de exibicionismos, Euclydes recusava-se a vestir casaca e, certa vez, quando as circunstâncias não lhe deram alternativa, desabafou, resignado: "Com isto, eu até pareço um gafanhoto!".

Como não podia deixar de ser, Euclydes da Cunha era apaixonado pelos livros. Dizem que, vendo alguém a ler, não resistia à tentação de arriscar um olho para descobrir o nome do livro e o seu autor e, se tivesse oportunidade, sem a menor cerimônia, pedia permissão para folheá-lo.

Viajava, certa vez, para Descalvado, rumo à fazenda de seu pai; notando que alguém à sua frente lia um livro, com muito interesse, a curiosidade de Euclydes entrou em ebulição. Conteve--se. Em Santa Rita do Passa Quatro, o referido leitor desembarcou apressadamente, esquecendo o livro sobre o banco. Euclydes não perdeu tempo. Apossou-se do livro. Ao folheá-lo, percebeu, porém, que se tratava de obra obscena. Indignou-se ao ver inúmeras anotações deprimentes, assinalando certos trechos. E comentou com o cunhado, que o acompanhava, ter vontade de reencontrar o tal viajante, para ter o prazer de atirar-lhe no rosto o livro imoral,

E, por último, esta lição que nos deixa o autor de "Os Sertões", bastante útil para os dias atuais. Regressava Euclydes do seu trabalho no território do Acre, onde recebia um ordenado de 4 contos de réis. E o Barão do Rio Branco o comissionou a seguir, em confiança, no Ministério do Exterior, no departamento de engenharia, com o mesmo salário que recebia no Acre. Euclydes recusou-se a aceitar, contentando-se com a metade dessa quantia justificando que, no Acre, o trabalho era árduo e exposto a vários perigos. Na Capital Federal, no conforto das dependências do Ministério do Exterior, achava abusivo tal salário - um rombo para os cofres públicos! Sem comentários.

(Publicado na Revista Santos Arte e Cultura - Setembro 2008)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 19 - Fraternidade


O termo fraternidade tem origem no latim frater, que significa irmão, portanto parentesco entre irmãos. Mas almejamos a fraternidade universal, laço de união entre todos os homens, fundado no respeito pela dignidade da pessoa humana e na igualdade de direitos entre todos.

Fraternidade - eu bendigo,
pois sinto, de coração,
em cada ser um amigo,
em cada amigo um irmão!
Luiz Otávio

Fraternidade é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a dividir
até mesmo o que nos falta!
Renata Paccola - SP

Fraternidade é guarida   
aos excluídos da sorte;
leva o amor onde haja vida,
leva vida onde haja morte...
João Paulo Ouverney - SP

Somente a fraternidade,
a nos trazer rumos novos,
dará paz à humanidade,
pelo amor unindo os povos.
Wilson Correia Dantas - RN

Só se salva de verdade,
nesta enchente de amargor,
quem faz da fraternidade
o seu barco salvador,
Flávio Roberto Stefani - RS

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Aparecido Raimundo de Souza (Talho Veneno)


DESLIGUEI CORRENDO  A TELEVISÃO, joguei o controle no sofá  e saí da sala, meio que às carreiras. Entrei no banheiro. Nele, um odor indigesto, mas preciso, regido orquestralmente por contornos quadrados, ocupava a habitação. O espelho, colocado sobre o lavatório, devido à pequenez do espaço, cumpria um trabalho inquisitivo, delimitado pela película desgastada do reduzido retângulo antigo. Com tédio comecei a me despir. Primeiro arranquei os sapatos, depois a calça jeans. Em seguida a camisa, e, por fim, a cueca. O surdo rumor que as roupas instalavam no minúsculo cômodo, delimitou o lugar. A um lado, o vaso sanitário emergia sisudo, enfático e silencioso, quieto como uma beluga* estéril, indefesa, sufocada pela estreiteza de sua lapa artificial.

Finalmente, me inclinei sobre o cetáceo*, na espera dos surdos sons que inaugurariam o fluxo do meu começo de dia. Depois disso, o chuveiro frio. Uma vez sob ele,  fechei os olhos. O cubículo se ampliou no tempo em que o vapor do meu corpo se propagava, só que um pouco escuro e quase carente de oxigênio, reticulado em um de seus extremos pelas sonoras estilhas* aquáticas que, por momentos, pareciam inundar o piso. Como de costume, minha cabeleira, precedida por um leve calafrio, se rendeu ante o peso da água, formando um instantâneo casco que cercou minhas orelhas e me arrastou a uma nova dimensão sonora.

A essa hora do dia me era difícil saber com exatidão como ou mediante o que aquele cômodo parecia iluminado e sedoso. Possivelmente uma luz diurna, inicial ou, talvez, se tratasse da velha lâmpada fixada a uma das paredes laterais, cujos filamentos simulavam um pequeno inseto de âmbar ou palha. Ou será que aquela claridade, apenas suficiente, se constituía graças à multiplicidade de pequeninos reflexos provenientes das partículas  de água que se depositavam matemática e delicadamente sobre as paredes para aveludá-las? Não posso precisar a origem da luz, mas sei que o espaço se reduzia sob a claridade fragmentada e nebulosa.

Agora o ar possuía o recente cheiro de urina, parecendo se materializar nas nervuras dos mosaicos quase irreverentes em seu perfeito alinhamento. Não me lembro se em algum momento de minha vida encontrei na cotidiana tarefa do arranjo pessoal certo prazer, porém, faz tempo que sua indiferença me ajuda a decidir rapidamente o tom e a suavidade de minhas roupas. Renunciei sem me dar conta de todo tipo de detalhes, pois nem sequer me permito botões ligeiramente grandes ou de cores inusitadas. Habito familiares urdimentos* que se encarregam de definir meu contorno e apenas outorgam mínimas variações avermelhadas ou cinzentas.

Aceitar minha elegância me resulta acidental. Pode ser que isso tenha a sua origem no aborrecimento quase amável que lentamente me cerca. Escolhi um suéter pressentindo a frialdade* das ruas. Quando cheguei, o gélido e o cheiro de lápis me escoltaram até o lugar habitual. Ao meu redor, a luz estava quase a nascer. As lâmpadas alógenas, através de uma lâmina de plástico cuja superfície possuía um múltiplo desenho hexagonal, como se tratasse de favos elétricos, emanavam uma brancura cirúrgica. As leves cortinas ofuscavam a paisagem metálica da cidade e apagavam os detalhes das varandas vizinhas que, como desarticuladas caixas de sapatos, umas sobre as outras, pareciam se precipitar sobre a calçada.

A rigidez da cadeira, unida ao estreito espaço que havia entre esta e a escrivaninha, me obrigou a dispor do reduzido lugar como se eu fosse um incômodo caracol, ensimesmado e concêntrico, em uma atitude voluntariamente introspectiva que me dava apenas um pouco de segurança. Minha chegada não passou despercebida. Os alunos ocuparam seus lugares maquinalmente e iniciei, ausente e triste, meu discurso cotidiano. Frequentemente me pergunto: como experimento o passar do tempo? Meu trabalho docente me dá uma perspectiva cíclica e vazia dos dias? Talvez seja como uma sensação de permanência em um ponto atemporal e interrompido.

Meus interlocutores, sempre múltiplos e diversos, preconcebidos desde os seus nomes, são na realidade uma só presença que, ao longo dos anos, formula a mesma pergunta, desde o mesmo lugar, a propósito de algo que se repete até se fazer real: "quais os componentes da sinóvia*?". Essa dúvida une o passado e o futuro e faz do presente um hábito, uma ferida única e rotineira, ante a qual tenho logrado sentir indiferença. É por isso que para mim,  março  é sempre março, mas não só isso, se não, também, o exame sobre as agenesias* e os hiatos ósseos*. Carina, minha secretária, traz consigo os tarsos*, segunda parte.

Essa certeza que, como bola de bilhar, se dirige tensa e programática até mim, me produz duas sensações: a comodidade que me lega a predição e o fastio que essa predição implica. Quando me pergunto quem são eles, só consigo recordar riscos que permanecem, algo assim como pernas suaves que, depois de ligeiras vacilações, se firmam sobre a barra da cadeira em frente: como ombros alinhados que se rendem conforme o quadro negro persiste e denuncia; como pares de sapatos brancos, níveos. Quantas vezes devem ter se  insurgido o ruído das carteiras contra o som metálico da campainha escolar.

Quantas canetas sucumbiram tímidas ante a dúvida? Só tenho vivido um dia, que pode ser reduzido a um momento perene. Então, dei a aula perpétua à minha aluna, tudo pairando sob o peso luminoso das lâmpadas e da realidade. À borda do medo, lembrei do que disse uma vez um certo pedagogo de renome: "o professor é alguém que chega e dá resposta a uma série de perguntas que ninguém lhe fez". E o contista? Menos mal que o ensino não é tudo para mim: se não fosse pelo meu turno no hospital, como clínico geral, essa frase deixaria cair impunemente seu gume sobre minha cabeça  e, de roldão, derrubaria a  minha desvanecida existência.

Situar-me-ia no hall do sem sentido. Saí da sala com resignação, mas triste, enquanto a palidez do corredor que leva aos fundos do necrotério me devorava firmemente. Só faltava o dia seguinte para que este pequeno ciclo semanal terminasse. O ferrolho cedeu docilmente. A chave, cuja superfície desenhava um baixo-relevo reticular, se ajustou à fechadura e, como de costume, a abriu. Atravessei o umbral e nesse momento recordei algo que já havia pensado antes: que poder nos oferecem  as coisas capazes de redimensionar uma e outra vez o mesmo espaço! Como influem emocionalmente em nós, cada um de nossos fiéis objetos do dia a dia?

Que significam o sofá suave, a estante lúgubre e a lâmpada aérea? Agora creio que posso lhes ser indiferente, mas se não existissem, se em algum momento como esse deixassem de estar aqui, pressinto que minha consciência se inclinaria, incoerente, até elas (Que parte de nós é todas as coisas?). Um homem ancestral pensou: "esta é minha pedra"; desde esse dia não temos parado de construir e conquistar; só assim poder-me-ia explicar a existência do copo e do pires, da fivela e da caneta, do teclado do computador e da Internet, da chave e do cabide. Fechei a porta. A terrível proximidade do fim de semana me abateu, enquanto caminhava até a cadeira.

Notei que a pequena begônia na varanda agonizava. Que ironia! Os dias no hospital têm transcorrido imperceptivelmente. Sei que esta semana vai morrer o velhinho da enfermaria 22. Vai bater as botas de velhice mesmo.  Se não me engano é o  Sivuca (aquele do acordeon) Em compensação, nasceram duas crianças, todavia isso não muda as coisas. Depois de tudo, a sala de cirurgia, quase aquática, o oxidado purê de maçã que servem no refeitório e a máscara cirúrgica me silenciaram; tenho terminado por me parecer a um de tantos corredores do hospital: desvelado, estéril e simples. Sou isso. Hoje, recebi uma pessoa que havia sido ferida numa briga.

Por momentos a lividez de seu rosto suave, de seus lábios de amêndoa tirou minha atenção. Quando os assistentes investiram furiosamente em suas calças com as tesouras, que multiplicavam com força a luz da lâmpada, assomou uma pele delicada, sob a qual se adivinhava a harmoniosa articulação dos quadris e do fêmur; o sangue se espargia sobre a claridade cutânea como um desfile de suaves e doces cerejas em volta da fragmentada negrura de si. Conforme consegui controlar a hemorragia, a respiração se normalizou e o maxilar inferior foi cedendo até lhe devolver a expressão de descanso ao rosto.

Quando o condutor da maca a levou ao final da sala de observações, senti um forte esgotamento e comecei a tirar as luvas de látex, que pareciam se adelgaçar* devido ao insistente suor de minhas mãos. Eu agonizava. Agora volto às minhas coisas, me aferro à magia da mesa ou à presença vital e latejante do televisor. É tarde e a chuva persiste; a noite, como um pulmão de barro fresco, aspira o silêncio amedrontado e úmido das artérias. O banheiro, agora livre de artifícios luminosos, exala um cheiro de caracol gigante. O espaço (onde durmo) aguarda com a paciência do pó nos armazéns, quieto: no centro, o grande volume aberto tenta me seduzir com suas páginas de arroz e borboleta.

Minhas roupas alegóricas caem como pétalas abatidas junto à sua escrivaninha, de onde me observa como se fosse real, como se sua solidão pendesse, oscilando de um fio de seda sustentado pelos meus dedos de açucena hipotética; miro o enfermo, embalsamado na pele de cera torpemente envolvida pelo pardo cachecol; sua debilidade me invade, me desborda, o que me permite compreender o tédio esmagador de meus dias no colégio e no hospital; lanço minha repreensão às suas orelhas de morcego agonizante, descarrego meu ódio sobre seu cabelo de equino assustado e a pergunta acode como bumerangue.

Por que me manténs aqui,  por que,  por que te desdobras e intentas viver de mim, de nosso inacessível coração de cebola? Por Deus, me deixe ficar em paz e quieto, sossegado e só nesse lugar que imaginei existir num ponto bem distante do meu eu ausente. Não me toques, não me desnudes com tuas metáforas de pétala para evidenciar a minha ausência, para exibir meu corpo entorpecido  pela covardia de tua caneta que não concebe o amor. Estás só e o advertes em meus olhos de tinta, em meus dedos de prosa, em minha boca, que cerras de golpe com a tua assinatura mal parida.
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Glossário (Dicionário Houaiss):
ADELGAÇAR – tornar(-se) delgado, estreito; diminuir a espessura de.
AGENESIA – atrofia de um órgão ou tecido por parada do desenvolvimento na fase embrionária
BELUGA – baleia branca.
CETÁCEO – ordem de mamíferos aquáticos, que inclui as baleias, botos e golfinhos
ESTILHAS – pedaço, fragmento de qualquer coisa; estilhaço
FRIALDADE – friagem.
HIATOS ÓSSEOS – Espaço delimitado por extremos livres de ossos próximos.
SINÓVIA – humor transparente e viscoso que lubrifica as articulações e que é secretado pela membrana sinovial
TARSO – esqueleto da parte posterior do pé; planta do pé.
URDIMENTOS – enredos, tramoias.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Agatha Christie (Resenhas) 12, final


CAI O PANO
Curtain: Hercule Poirot’s Last Case

Hercule Poirot encerra o círculo de sua vida na Grã-Bretanha. Sabendo que o fim está próximo, muda-se para Styles, tentando solucionar seu último caso, e o mais difícil, no mesmo lugar onde havia resolvido o primeiro. Um dos hóspedes daquela casa sinistra - na qual se respira o ar maligno de um antigo crime - é um assassino em série, diabolicamente inteligente, que matou cinco pessoas e está disposto a continuar. Transformado num pobre inválido, imóvel numa cadeira de rodas, Poirot parece inferiorizado frente a um astucioso e sutil matador, que precisa ser descoberto e também castigado, porque a justiça oficial nunca o condenaria. Poirot cumpre com o seu duplo propósito e morre, embora sua morte seja apenas aparente, pois os personagens de ficção não desaparecem, e sempre poderemos ler novamente as aventuras de um Sherlock Holmes, o Padre Brown, o delegado Maigret, Philipp Marlowe…, integram a mais seleta galeria dos detetives imortais.

É um dos livros mais intrigantes de Agatha Christie, porque chega a um ponto em que você pensa que é o fim de Poirot. Ele se vê cercado de ameaças do próprio assassino, que o desafia em cada caso, e Poirot, de mãos atadas, apenas assiste os crimes, desesperado. Ao final, com um cérebro digno de um gênio, Poirot entende toda a história, como sempre faz e descobre o tão misterioso homem.

Poirot está de volta a Styles mas não é a passeio. Agora inválido, o detetive encontra em seu último caso o assassino perfeito, aquele que nunca seria condenado e com muita classe encerra sua carreira definitivamente e faz deste o melhor livro de Agatha Christie.

O Capitão Hastings viaja à uma casa em que ele e seu velho amigo Hercule Poirot desvendaram crimes há alguns anos atrás. Quando chega lá, vê que seu velho amigo está muito doente, sem andar e quase morrendo. Hercule Poirot, se encontra num estado deplorável. Velho e em uma cadeira de rodas. Quando novos crimes acontecem na casa, Hastings pede a ajuda de Poirot para tudo.

No final, nem tudo era o que parecia ser …
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UM CRIME ADORMECIDO

Sleeping Murder

Frases pronunciadas numa peça de teatro causam uma reação inesperada e aparentemente inexplicável na jovem Gwenda. O mistério aumenta quando, em sua nova residência no sul da Inglaterra, ela experimenta uma estranha sensação de familiaridade ao entrar em cada cômodo, onde passa a ver o cadáver de uma mulher estrangulada. Loucura? Miss Marple acredita que não. Para a simpática velhinha - que desvenda aqui seu último mistério - Gwenda pode ter vivido a infância na casa e presenciado um terrível assassinato. As duas partem, então, em busca da verdade.
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A MORTE DO ALMIRANTE
The Floating Admiral

Uma das obras mais importantes do gênero policial. A Morte do Almirante foi escrita por treze dos maiores autores de livros de mistério e de suspense, todos membros do Detection Club. Escrito por partes, cada escritor se encarregou de um capítulo, passando-o ao colaborador seguinte, que deveria resolver o mistério apresentado e criar outros. Agatha Christie contribuiu de modo brilhante para o sucesso dessa obra.
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A RATOEIRA E OS DEZ INDIOZINHOS

The Mousetrap and Ten Little Indians

Ninguém melhor que a própria Agatha Christie para adaptar suas histórias para o teatro. Neste livro são apresentadas duas peças da autora. O argumento de A Ratoeira, que já foi encenada mais de 9 mil vezes em dez anos, é inspirada no conto “Os três ratos cegos”, no qual um assassino se diverte com os hóspedes de uma pensão isolada pela nevasca com uma cruel brincadeira de gato e rato. Já a peça Os Dez Indiozinhos é inspirada no famoso livro O Caso dos Dez Negrinhos. Convidadas por um homem misterioso, dez pessoas chegam para passar um fim de semana numa ilha remota e não demoram a descobrir que tudo não passa de um diabólico plano de vingança.
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ENCONTRO COM A MORTE E O REFÚGIO
Appointment with Death and The Hollow

Além dos romances, Agatha Christie foi autora teatral. Neste livro são reunidas duas peças daquela que é universalmente conhecida como “a rainha do crime”. Com a ação passada em Jerusalém, Encontro com a morte apresenta uma das personagens mais cruéis da literatura policial e um crime igualmente perverso. Do quarto de um hotel, um homem ouve um diálogo curioso. Mas um assassinato é cometido e ele percebe que aquelas palavras continham um significado macabro. Encenada pela primeira vez em 1951, a peça O refúgio alia o refinado humor inglês a um final surpreendente.
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TESTEMUNHA DA ACUSAÇÃO E A HORA H
Witness for the Prosecution and Towards Zero

Testemunha da acusação é uma das peças mais famosas de Agatha Christie. Leonard Vole, um sujeito tranquilo e amável, é um dia acusado do assassinato de uma solteirona que morava com a governante e oito gatos. No testamento, ela fazia dele seu único herdeiro. Os fatos são simples e incontestáveis, e Leonard está prestes a ir para a prisão. Um detalhe, porém, pode mudar os rumos do seu julgamento. O argumento de A hora H é inspirado no livro A casa do penhasco, com uma diferença: a autora substitui Hercule Poirot pelo sagaz superintendente Battle por considerar que este personagem tem “uma personalidade mais apropriada para os palcos” do que a do detetive belga.
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DESENTERRANDO O PASSADO
Come, Tell Me How You Live

Este livro nasceu do casamento de Agatha Christie com seu segundo marido, o jovem e brilhante arqueólogo Max Mallowan. Ao seu lado, a escritora percorreu todo o Oriente Médio. Desenterrando o passado é resultado de suas observações dos fatos ocorridos em quatro expedições arqueológicas à Síria e ao Iraque - sempre usando e abusando do típico senso de humor inglês. Agatha Christie jamais se limitou a ser uma espectadora aguda e privilegiada dos fatos: colaborou com prazer em todas as tarefas do seu marido. Afinal, um arqueólogo, de certa forma, não deixa de ser um detetive dedicado a desenterrar e solucionar os enigmas de um passado distante.

Ao narrar os fatos reais, utiliza as suas habilidades de romancista para tornar extremamente interessantes os acontecimentos cotidianos, os lugares exóticos e os personagens inusitados que cercavam o casal. Com a grande virtude de não se levar a sério todo o tempo, Agatha Christie mostra que sabe rir, com uma ironia generosa, de tudo e de todos. Principalmente de si.
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VEREDICTO E RETORNO AO ASSASSINATO
Verdict and Go Back For Murder

Na peça Veredicto, Agatha Christie cria uma trama diabólica. Agitada e doente, Anya Hendryk conserva traços do antigo encanto e beleza, mas, entrevada numa cadeira de rodas, tornou-se uma mulher amargurada. Um dia, é encontrada morta por envenenamento. Mas os fatos ainda não foram esclarecidos e uma dúvida paira no ar: foi suicídio ou assassinato? Encenada pela primeira vez em 1960, a peça Retorno ao Assassinato é inspirada no livro Os Cinco Porquinhos. Uma mulher é julgada e condenada pelo assassinato do marido, morrendo pouco tempo depois na prisão. Passados 16 anos, a filha deles quer reconstituir o passado e descobrir a verdade.
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A MINA DE OURO
The Golden Ball and Other Stories

É um gesto de boa vontade ou uma armadilha sinistra que seduzem Rupert St. Vincent e sua família para uma propriedade magnífica? O quão desesperada está Joyce Lambert, uma jovem viúva despossuída cujo único recurso é se casar com um homem que ela despreza? Que circunstâncias inesperadas levam Theodora Darrell, uma esposa infiel para fugir com seu amante? Nesta coleção de pequenas histórias, as respostas são inesperadas a medida que vão aparecendo. A rainha do crime leva encontros românticos bizarros, visitações sobrenaturais, e assassinatos clássicos à novos níveis inventivos.
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O CADÁVER ATRÁS DO BIOMBO E UM FURO JORNALÍSTICO
The Scoop and Behind The Screen

A vida de Wilfred Hope, estudante de medicina, é tudo o que sempre sonhou. Tem pela frente uma carreira promissora e está noivo da encantadora Amy Ellis. Mas a partir do momento em que o sombrio Paul Dudden aluga um quarto na casa dos Ellis, a vida da família desmorona. Todos vivem sempre nervosos e apreensivos, como se temessem o misterioso hóspede. Um dia, quando visita a namorada, Wilfred descobre, atrás de um biombo na sala de estar onde todos se encontravam, o corpo ensanguentado de Dudden.

O cadáver atrás do biombo foi escrito por Agatha Christie e outros cinco mestres da ficção policial: Hugh Walpode, Dorothy L. Sayers, Anthony Berkeley, E. C. Bentley e Ronald Knox. Walpode apresentou a trama no primeiro capítulo. Seus colegas ficaram com a difícil missão de encontrar a solução para um mistério aparentemente insolúvel. Valeria a pena descobrir o assassino, ou Dudden merecia realmente morrer?

Um furo jornalístico, outro mistério presente nesta edição, é mais uma maravilhosa criação coletiva na qual sobressai o talento de Agatha Christie. Ao lado de outros gênios do gênero, fica ainda mais evidente a criatividade da grande Dama do Crime.
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OS PERSONAGENS

Hercule Poirot
Poirot estreou junto com Agatha Christie no livro O Misterioso Caso de Styles. Desde então, foram vários os livros em que Poirot esteve presente, sendo o último deles Cai o Pano. Esteve presente também em muitos filmes. O primeiro a interpretá-lo foi Austin Trevor no começo dos anos 30 em três produções: O Assassinato de Roger Ackroyd, Black Coffee e Treze à Mesa.

Outros atores que também interpretaram Hercule Poirot no cinema foram Peter Ustinov em Morte no Nilo, Morte na Praia, Encontro com a Morte e algumas pequenas séries de TV, Tony Randall em Os Crimes ABC no ano de 1965 e Albert Finney em O Assassinato no Expresso do Oriente que acabou ganhando o prémio de melhor filme da Academia onde os suspeitos eram atores mundialmente famosos como Sean Connery, Ingrid Bergman, John Gielgud e Lauren Bacall. Muitos fãs acreditam que David Suchet (de uma série de TV) foi o melhor ator que representou Poirot.

Mas Poirot será sempre lembrado pelas suas inconfundíveis características: a habilidade de resolver mistérios bastante complicados com a ajuda de suas “pequenas células cinzentas”, pelo seu bem tratado bigode, pela sua cabeça em forma de ovo e pela opinião que tem sobre si próprio. E falando em Hercule Poirot, não podemos deixar de falar sobre o Capitão Hastings. Com sua ingenuidade, Hastings foi um dos grandes companheiros de Poirot e o acompanhou em diversos casos.
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Miss Marple
A primeira aparição de Miss Marple foi no livro Assassinato na Casa do Pastor em 1930. Ela é uma senhora que vive vila inglesa de St. Mary Mead. Bem diferente de Poirot, ela não se vangloria de suas deduções, sendo bastante humilde. Em vez de procurar por pistas ela se concentra no instinto e no seu conhecimento sobre a natureza humana. Uma famosa frase de Miss Marple diz o seguinte: “A natureza humana é a mesma em qualquer lugar”. Agatha Christie escreveu uma dúzia de livros de Miss Marple como Um Corpo na Biblioteca, Convite para um Homicídio, Mistério no Caribe, Nemesis, O Caso do Hotel Bertram, Um Crime Adormecido entre outros.

No cinema, algumas atrizes tiveram o privilégio de interpretar Miss Marple: Margaret Rutherford atuou em algumas séries no início dos anos 60, Helen Hayes e Angela Lansbury também atuaram como Miss Marple. Mas Joan Hickson foi a mais famosa, tendo aparecido em séries de TV e outros papéis em outros filmes de Agatha Christie.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 308


Malba Tahan (A Ciência da Vida)


Naquele ano um acontecimento inesquecível perturbou a secular tranquilidade da pequena vila de Anadir. Assinalemos o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do cheique Omar Iruã, depois de longa ausência, regressava ao seu torrão natal, trazendo o diploma que lhe fora conferido pela famosa Universidade de Bagdad.

E o inteligente Namedin não perdera tempo na capital; segundo o dizer das pessoas cultas, era o nosso herói motivo de orgulho para a sua terra, e de glória para a sua família. Aprendera, durante seis anos, com sábios muçulmanos, a ciência imensa que vem nos livros. Estudara, além do mais, a Filosofia, a Matemática cheia de fórmulas, a Lógica com seus belos princípios, a Retórica, a Astronomia e vários outros ramos fecundos do conhecimento humano.

O rico cheique Omar Iruã, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos amigos:

— Meu filho, senhores, pela cultura incomparável que possui, é capaz de discutir trinta dias com os “ulemás” do Egito e da Palestina!

Ulemá — como todos sabem — é sinônimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos seus concidadãos com o honroso título de “ulemá”. E em Anadir, afinal desde a mesquita até o hamã (1) não se comentava outra coisa. As lendas mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin conhecia os cento e trinta mil segredos do Corão; garantia outro que o jovem sabia de cor todas as páginas de Ibn Batuta, o sociólogo; afirmava um terceiro que o mancebo resolvia equações e fazia cálculos com letras. E não havia, é certo, muito exagero nessas indicações. O recém-formado era douto entre os mais doutos.

Ao cair da tarde, em meio dos festejos, o xeique Omar Iruã chamou o jovem bacharel e disse-lhe:

— A tua fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. É preciso porém que, em prova pública, possas justificar o alto conceito em que és tido pelos nossos conterrâneos.

— Que devo fazer, meu pai? — perguntou ele.

— Nada mais simples — explicou o velho. — Hoje, à noite, depois da prece, haverá uma reunião na mesquita. Lá estarão presentes os homens mais ricos de Anadir e também o nosso venerável mufti Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus conselheiros, cadis e secretários. Farás, nessa ocasião, um eloquente discurso no qual demonstrarás que és um conhecedor profundo da verdadeira Ciência da Vida. Com esse discurso deverás impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre chefe e judicioso amigo.

— Assim farei, meu pai — volveu com segurança o moço. — Asseguro-te que o povo ficará deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.

E, nessa mesma noite, realizou-se na mesquita a reunião solene. Ao templo compareceram os elementos mais representativos da sociedade muçulmana: cheiques com seus turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores etc.

O jovem Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rápido olhar examinou o público que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti (2), imponente, com suas veneráveis barbas derramadas sobre o peito.

Ditas as palavras do ritual: “Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso”, o nosso herói iniciou um vibrante discurso de apresentação. Discorreu, a princípio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos pelas correntes irresistíveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da eloquência, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das tendências sociais.

— Por Allah! Que talento! — murmuravam os ouvintes.

— E, amigos — continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente — o mundo, queiram ou não queiram os espíritos tacanhos, marcha para a frente levado por um ideal invencível de aperfeiçoamento. E a nossa infeliz Anadir fica imóvel, abandonada à margem do progresso, como se fora uma cidade morta e esquecida. E quereis saber por quê? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra está entregue ao velho mufti, homem decrépito, incapaz de compreender as tendências modernas da sociedade. Como pode um espírito rotineiro inculto, arcaizante, admitir as transformações impostas pelo progresso? Jamais há de prosperar uma cidade cujos destinos estão nas mãos de um ancião sem a indispensável energia e sem a necessária capacidade administrativa.

Essas palavras, que feriram o homem de maior prestígio na cidade, causaram aos muçulmanos um escândalo nunca visto.

O mufti ouviu impassível a parlenda do moço como se nada tivesse compreendido; fez, apenas, um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este murmurou:

— Logo, ao sair, veremos.

E quando Namedin, orgulhoso pela sensação causada, deixava a mesquita, foi de súbito agarrado por três capangas e espancado impiedosamente. A sova foi tão violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por alguns amigos para a casa de seus pais.

Muitos dias depois, quando já se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatário da bárbara agressão.

Disse-lhe, então, o velho cheique: — O mufti assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que, apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por completo, a Ciência da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente para Bagdad e estudarás mais um ano com os sábios filósofos. Veremos depois se findo esse novo prazo terás adquirido os conhecimentos indispensáveis sobre a verdadeira Ciência da Vida.
* * *

Namedin, obrigado a obedecer à resolução paterna, voltou para Bagdad e durante vários meses frequentou os cursos da Universidade. Quando regressou outra vez ao seu torrão natal foi festivamente recebido por seus antigos camaradas.

Houve, como da primeira vez, sob a presidência do mufti, uma grande reunião na mesquita e o jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso. Ao tomar lugar na tribuna, o nosso herói avistou a figura imponente do mufti que, rodeado de seus íntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do orador.

Namedin, em longos e eloquentes períodos, fez o elogio do povo fiel de sua terra natal que ele qualificou de “próspera e progressista”. Falou, em seguida, da figura do mufti, esse ancião venerável, “modelo de virtudes”, “cheique dos cheiques”, “amparo da justiça”, “inspirado de Allah” e mil outros elogios que deixaram o mufti sensibilizado e comovido.

E, com um brilho incomparável, Namedin assim falava:

— E devo dizer ainda, ó irmão dos árabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, é um verdadeiro santo! E qual é a homenagem que os fiéis muçulmanos devem prestar aos grandes santos do Islã? Determina o Corão, o Livro de Deus: “Conservai dos homens dignos os bons exemplos e venerai as suas relíquias”. Cumpre-nos, pois, como um dever sagrado, conservar do nosso santo mufti uma relíquia qualquer. E das relíquias dos santos as mais preciosas são constituídas pelos fios de barba. Que cada um dos fiéis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas veneráveis barbas.

E, depois de proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti, inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das longas barbas do ancião.

O mufti, lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinária homenagem, agradeceu e abraçou risonho o nosso herói.

O exemplo de Namedin foi logo seguido por várias pessoas que se achavam perto. Ao fim de alguns minutos, verdadeira legião de fanáticos atirava-se sobre o velho mufti que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos. Os fiéis faziam empenho em obter uma relíquia do “santo”.

Com o rosto a sangrar e as vestes em farrapos, conseguiu o mufti fugir dos exaltados muçulmanos. E o inteligente Namedin rejubilava-se da lembrança que tivera. Estava vingado da sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.

E, nessa noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:

— Agora sim, meu filho, já conheces perfeitamente a verdadeira Ciência da Vida.
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Notas:
(1) Hamã - Casa de banhos.
(2) Mufti — Espécie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma cidade.


Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.