sábado, 26 de outubro de 2019

Luiz Carlos Felipe (Aqui Del Rey!)

                       
                                                  PARTE  I

Arrumou os livros, ajeitou  o gorro e dirigiu-se à porta.

Um último olhar à sala vazia.  As carteiras em fila... a mesa do professor sobre um estrado - o quadro negro, limpinho.  Na parede um  crucifixo.

Jesus tinha um braço quebrado.

O professor Queiroz sempre se referia a isto, dizendo:

- Como se ao Senhor não lhe bastassem todos os padecimentos... ainda mais este  - um braço quebrado!  E isto, há quanto tempo! Quase cinco anos! Precisamos dar um jeito!

José lembrava-se bem de quando ali chegara: - delgado, tímido... com o bornal a tiracolo...  Fora  sentar-se ao fundo.

Mestre Queiroz captou-lhe a timidez:

- Aqui na frente, meu rapaz!

Lá se fora ele sentar-se no primeiro lugar, passando ruborizado entre os meninos, que o observavam. E ali estava, até hoje.

Aplicara-se bastante naqueles anos. Estudava muito. Até já arriscava o Francês.

- “Bonjour Monsieur - Quelle heure est-il, s’il vous plâit? Il est midi. Merci, monsieur.  Au revoir. ” (*)

Ficava sempre mais um pouco, após as aulas, para aprontar as lições. Na aldeia, a chama do candeeiro turvava a vista.

Mestre Queiroz dissera ao sair:

- Apague a luz.

Retornara, pouco depois, abrindo  a porta, metera cabeça pela fresta e advertira:    

- Não te esqueças da luz.

Lá fora, os latidos o sacudiram.

Apagou a luz e saiu.

                                              PARTE II

 O pátio estava vazio, as folhas rolavam pelo chão.

 Agitando os galhos desnudos a aura noturna fazia soar melodia monótona.

 No céu escuro brilhavam, esparsas, algumas estrelas.  Montes delineavam-se  ao longe.

Sob um carvalho, preso à corrente, Quinteiro latia.

José aproximou-se, repartia sempre o seu farnel com o cão.

- Toma Quinteiro, aqui está o teu bocado.

- Opa!... devagar, malandro! Assim, me levas a mão!

O animal rosnava baixinho.

- Não queres conversa enquanto comes?!

- Ingrato, divido contigo a merenda e nem escutas o que te digo.

O cão, agora, espojava-se na terra.

- Tens razão em estar satisfeito. Já comeste... estás em casa... eu, porém, tenho que andar uma légua para alcançar a minha aldeia, o meu Bizarril (**).

- E se assim é...  Já é tarde...  vou andando.

O cão lambia-lhe as mãos.

- Até amanhã.

Ao chegar à porteira, virou-se. O prédio da escola destacava-se na escuridão.

Nunca aquele lugar lhe parecera tão amigo e acolhedor.

Pensou em voltar. Não o fez.

Deixou cair a aldrava e pôs-se a caminho.
 
                                                           PARTE III
 
Noite fria.   A vegetação úmida exalava um cheiro forte.

José respirou fundo e abotoou o abrigo. Tinha já caminhado mais de meia légua e uma sensação estranha o acompanhava.
         
Entretanto, não sabia explicar o que sentia.

Conhecia tão bem aquelas várzeas e, agora, tudo parecia diferente. Olhava para os lados e... nada via, apenas a  escuridão soturna.

O cascalho rinchava às suas passadas, único ruído audível naquela imensidão.

De súbito, parou, virando-se num repente.

Quatro pupilas o fitavam com fria agudeza. Tinham o fulgor de duas tochas ladeando a estrada.

Ao firmar a vista, distinguiu corpos fortes e peludos, caudas baixas, orelhas atentas,  em riste...  bocas enormes, abertas num sorriso lúgubre:

- Lobos !

O primeiro ímpeto - correr ... anulado pelas pernas rígidas e o estômago convulsionado. Continuou a caminhar, enquanto  sentia  o suor viscoso  escorrer- lhe pelo corpo.

Os olhos ardiam, a respiração opressa... José buscava controlar-se.

Seu pensamento correu até a aldeia, onde o avô, àquele tempo, já  o estaria  a esperar, ao pé do lume crepitante.

Lembrava-se de suas palavras:

- Quando te deparares com algum perigo, reflete e não temas! Controla-te! O medo é o pior dos  inimigos!

Tais palavras  ajustavam-se perfeitamente àquela situação! E o avô ainda  calcara no alerta:

- Reflete! - O que distingue o homem do animal é a sua inteligência. 

Por ouvir dizer, pelos homens da aldeia, que os lobos gostavam de conversar, José começou a falar em voz alta:

- Olá amigos. Como estão os camaradas?

Ato contínuo,  passou a assobiar, buscando acalmar-se.

Parecia-lhe estranho que aqueles animais se aventurassem por tais lugares, àquela época do ano. Iniciava-se o outono.  E ainda havia muita  caça nas serras distantes.

Certamente, os lobos não estariam famintos, ou já o teriam acossado.

Olhou para trás... Os lobos continuavam a segui-lo, a guardar sempre a mesma distância.

As faces abertas, pareciam sorrir, sinistramente.

Próximo à entrada do povoado, José apressou o passo.

 Já via as primeiras luzes dos lampiões  nas janelas das casas de sua pequenina aldeia.

Lembrou que restara um pouco do alimento que levara... Abriu o bornal e lançou as sobras no chão, na esperança de aplacar a voracidade dos lobos.

Em vão. As feras, indiferentes ao seu gesto, mais e mais se aproximavam.

Quase à entrada da aldeia, lembrou-se do grito de socorro lançado pela personagem de uma das  muitas histórias, contadas por seu avô.

Acelerou o passo, quase a correr e, já a adentrar a aldeia, pôs-se a gritar, com todas as  forças que tinha: -   AQUI DEL REY, AQUI DEL REY! (***)

Com alívio, viu os aldeões movendo-se em sua direção.  Vinham-lhe em socorro, com tochas acesas, ancinhos  e facões, num alarido forte  para enfrentar e espantar  as feras,  quase aos calcanhares de José que, por sua vez, já  sem forças, quase a cair, viu-se  amparado pelos primeiros conterrâneos.

 Os demais arremeteram com suas armas contra os lobos que rapidamente,  recuaram fugindo  pela várzea escura.

Conduzido à casa do avô, José, ao vê-lo à porta a sorrir, correu a abraçá-lo,  demoradamente.

Sentados, agora, ao calor da lareira, no aconchego de uma casa repleta de amor, o neto deixou que as lágrimas lavassem o seu rosto cansado, enquanto ouvia do avô aquelas palavras que jamais haveria de esquecer:

-  Teu rogo de ajuda  foi ouvido, José. Deus sempre esteve contigo!  
_________________
Notas do Blog:
(*) Olá senhor - Que horas são, por favor? É meio dia. Obrigado senhor. Tchau.

(**) Bizarril – fica em Portugal, situado a 9 km de Figueira de Castelo Rodrigo, na freguesia de Colmeal. É um lugar encaixado entre as Serras do Cerejal e da Marofa, do lado direito da estrada que segue para Pinhel.

(***) “Aqui Del Rey!” Antigamente, um pedido para ser acudido pelos homens (soldados) do Rei. Usava-se, unicamente, em casos onde havia reais ou pretensas infrações à lei. Tem o sentido de gritos de pedido de socorro. Equivale a «(venham) aqui (da parte) del-rey»


Fonte:
Conto enviado pelo autor.

Heitor Stockler de França (Poemas Avulsos) II


AO ARREBOL DA TARDE
A casa onde ela mora fica à beira
De um bosque de pinheiros e rosais…
Tem na porta da entrada uma roseira
E glicínias nas cercas laterais.

Quando à tardinha, nuances augurais
Marcam no poente a hora derradeira
De um dia que se foi como outros mais,
Levando a mágoa, os sonhos, a canseira.

Ela, a desabrochar, botão de rosa
Abrindo para a vida tumultuosa
As pétalas de seda cor de opala,

Medita, na alma excêntrica do amor,
Que quanto mais nos causa dissabor,
Tanto mais prende e ao coração nos fala!…

CRISÁLIDAS

Crisálidas? Oh! não. Borboletas do amor,
Borboletas ideais
Que têm nas asas de ouro, pólen sedutor.

Borboletas que quando adejam nos florais
De um sonho encantador,
Parece que se vão, entoando madrigais…

Crisálidas? Oh! não.
Borboletas azuis de antenas perfumadas
Como um cravo em botão!...

Borboletas douradas,
Tão douradas, talvez, como a nossa ilusão,
Borboletas douradas ...

De asas feitas de paina e pétalas de rosas,
Numa manhã de sol e brisas odorosas.

Volitai, volitai, ó lindas borboletas,
Entre festões de palmas e violetas!

Que este belo festim, faça em alacridade
A velhice vibrar, vibrar a mocidade!...

DELICIOSO ANSEIO

Que bom estar contigo, além, distante,
Num recanto propício a namorados;
Onde se possa andar de braços dados,
Na asa de um sonho casto e delirante.

Que bom sentir a estuar teu colo arfante,
Ouvir tua voz de arpejos modulados,
Beijar os teus cabelos ondulados,
Embevecido — aventurado amante.

Enfim, que bom poder guardar comigo,
O veludo do teu olhar amigo,
Na volúpia de tua sedução.

Para depois, na minha soledade,
Fazer dessa ventura uma saudade,
Perene, viva no meu coração!…

E SÓ PORQUE TE ESPERO

Canto as horas, minutos, conto os dias
Que faltam para vires, ó Setembro,
E quase desespero.
E só porque te espero
Se me     afigura que te distancias
E ainda, estás mais longe que Dezembro!

Entanto, estás tão perto, à nossa porta
Sente-se o hálito da Primavera
Embalsamando os ares.
E logo que chegares,
Ressurgirá toda a verdura morta,
Na floração de gala que se esmera,

Bizarro mês dos poentes de rubi
E enluaradas noites vaporosas.
É sob o teu condão,
De eterna sedução,
Que a natureza vigorosa ri
Pela boca dos cravos e das rosas.

E só porque te espero
Se me afigura que te distancias
E, ainda, estás mais longe que Dezembro!
Mas, me conforto e já não desespero,
Porque hás de vir na pompa de áureos dias,
O rútilo Setembro!…

PRIMAVERA DO POETA

Nestas lindas manhãs edênicas de outubro,
De aroma de rosais e firmamento rubro,

Como é imponente o sol pelo infinito afora,
Após haver pintado o rosicler da aurora,

A Primavera é como uma mulher de gosto
Que aprimora o seu traje e a beleza do rosto . ..

É uma noiva feliz que desconhece a mágoa,
A espelhar-se no azul da transparência d'água.

Veste-se de esmeralda, ama o vivo das cores
E como pó de arroz usa o pólen das flores.

Banha-se de manhã no rócio perfumado
E traz sobre a cabeça a coifa de noivado.

Ela é o filtro do poeta e as tintas do pintor,
As cambiâncias da luz e os fascínios do amor.

Ó Primavera ideal, como vibro ao chegares,
Ao sentir-te no olor puríssimo dos ares,

Ao lembrar-me de ti, pensando que te vejo,
Parece-me que vou seguindo o teu cortejo.

E nessa ânsia febril de ver-te e de adorar-te,
Julgo que estou contigo aqui e em toda a parte.

Ó Primavera em flor! Neste justo alvoroço,
Eu deponho aos teus pés, meu coração de moço!…

  SONHO NUPCIAL
Manhã sublime aquela... que saudade!…
Como tocou minh'alma essa manhã.
O céu de anil se fez cor de romã,
Num arrebol de estranha claridade.

Julguei me, então, ria Hélade pagã...
Vi a aurora assistir com majestade
Romper o dia e ouvi, na imensidade,
Ecoar a flauta mágica de Pã.

E que vontade de partir...     Parti,
Para onde estavas a buscar-te, a ti,
Como quem busca um luminoso ideal.

E ao encontrar-te, que ventura imensa!...
Senti que dominei tua indiferença
E vislumbrei meu sonho nupcial!...

TEU CHALEZINHO
Teu chalezinho é um cromo, uma aquarela,
Mago arrebol que emerge da verdura...
Nele o teu fino gosto se revela,
Na estesia, na graça e na ventura.

Bem como a mim, a todos se afigura,
Que ali o teu sonho alcandorado vela,
Ante a maciez da calma e da doçura
De um céu azul que à noite se constela.

E é um bálsamo a quietude dos jardins,
Onde há essências de cravos e jasmins,
Narcóticos de estranha suavidade.

Vives, assim, no mais gracioso enlevo,
Como que à sombra de um enorme trevo,
Sob o fascínio da felicidade.

VENDEDOR DE JORNAIS

Olha o DIA, a GAZETA... olha o DIÁRIO
Em gritos estridentes anuncia
O garoto irrequieto, extraordinário,
Apenas o arrebol debuxa o dia.

Incauto, ao léu da sorte, pelo estuário
Da vida incerta, mesmo sem um guia,
É o sol da rua, o arauto-legionário
Do que a imprensa da terra noticia.

E embora caia a chuva, açoitem ventos
E frio glacial lhe tolha os movimentos
Do corpo forte, enérgico e jovial,

Corre a cidade em seu mister honroso,
Voltando à casa, à noite, vitorioso,
Como um Cruzado estoico do jornal!

Fonte:
Heitor Stockler de França. Curitiba e o sol: poesias. Curitiba/PR: Senai, 1983.
Livro enviado por Vânia Ennes.

David Martins (Frei João Sem Cuidados)


Frei João Sem Cuidados era, como pelo seu nome facilmente se depreenderá, um alegre fradinho simpático, despreocupado e um tudo-nada preguiçoso. Era anafado (gordo), tinhas as faces coradas e uns grandes olhos azuis de criança onde não havia lugar para a malícia. Quer chovesse, quer trovejasse, para Frei João todos os dias eram bons para louvar o Senhor Deus.

Um dia, o rei mandou que o trouxessem à sua presença.

- Ouvi dizer que tu és uma pessoa sem preocupações na vida - disse-lhe o rei.

- É verdade, Majestade! - respondeu o fradinho de sorriso prazenteiro, as mãos cruzadas sobre a barriga, pensando já nalguma moeda de ouro ou, melhor ainda, nalgum leitão assado com que o rei iria certamente presenteá-lo, depois de o ter feito vir até ao palácio.

- Não é justo - retorquiu o rei, decepcionado. - Tu, um simples frade, és tão feliz, e eu então, pela parte que me toca nesta vida, tenho tantas preocupações!

Enquanto o rei assim falava, o sorriso de Frei João ia esmorecendo.

- Pois, fica sabendo que amanhã terás que voltar aqui ao palácio e terás que me responder a três perguntar que te vou fazer.

- E que perguntas são essas, Majestade? - inquiriu Frei João, já apreensivo.

- A primeira pergunta é: «Quanta água tem o mar?». A segunda é: «Quanto pesa a Lua?» e a terceira: «O que é que eu estou a pensar?».

Frei João Sem Cuidados despediu-se e saiu, desta vez não fazendo jus ao nome por que era conhecido, já que o rei tinha efetivamente conseguido deixá-lo muito preocupado, pois não fazia a menor ideia das respostas que deveria dar no dia seguinte. Ele, habitualmente tão alegre e bem disposto, estava com um semblante tão infeliz que metia dó. Pelo caminho encontrou o moleiro, seu amigo desde sempre.

- Que tens tu, Frei João? Estás com uma cara que parece que te morreu alguém.

Frei João contou ao moleiro a conversa que tinha tido com o rei, as perguntas que Sua Majestade lhe fizera e a aflição em que estava por não saber o que responder.

- Ah, então, é só isso? Ora deixa cá ver o teu hábito que amanhã quem vai ao palácio sou eu, e não te preocupes, que o rei não há de ficar sem respostas para as suas perguntas.

No dia seguinte, o moleiro apresentou-se no palácio vestido de frade, com o capuz pela cabeça. O rei nem se apercebeu da troca de personagens, e logo perguntou:

- Ah, já cá estás! Então vamos lá a saber:  quanta água tem o mar?

- Saiba Vossa Majestade que será muito fácil saber-se quanta água existe no mar, mas primeiro terá Vossa Majestade que mandar tapar todos os rios que nele desaguam.

- Essa é boa! Então, e quanto é que pesa a Lua? - continuou o rei a perguntar.

- Saiba Vossa Majestade que a Lua pesa um quilo certinho, porque eu sempre ouvi dizer que ela tem quatro quartos - respondeu o moleiro.

- Está bem. Isso é verdade. E já agora, também me saberás dizer em que é que eu estou a pensar...? - voltou o rei à carga.

- Vossa Majestade pensa que está a falar com Frei João Sem Cuidados, mas está a falar com o seu moleiro - e dizendo isto despiu o hábito.

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Antonio Carlos de Barros ("Queixinho de Merência")


 Palavras em negrito itálico, o significado está no vocabulário no final do texto.
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Em tempos distantes, nos verdes Pampas Gaúchos, eram meados do Século 19, o Brasil passava de Monarquia para República, a desigualdade tomava conta de tudo, e de todos.

Rosário do Sul tremeu, no lendário Touro Passo. Arroio Saicãnzinho, serviu de cenário para um “causo” maldito, de triste matiz. 

Na Serra do Caverá, Rosário do Sul, o Sol se escondeu de vergonha, e fugiu, ante ao fato infeliz entre os jovens, Thiago e Merência.

Eles iniciaram um namoro às escondidas do Patriarca, que ditava as normas, e possuía um coração de pedra.

Um amor escondido, mas um amor verdadeiro.

Merência, menina humilde, pobre, mas uma grande garota.

Thiago, filho de um rico Estancieiro moço bem sucedido com um grande sentimento por Merência.

Pai de Thiago assim que soube do namoro, não aceitou. Thiago respondeu o Pai e enfrentando o Patriarca disse que o namoro era sério e que iria se casar com a Merência.

Enfurecido o Pai e Patriarca, certo dia, mandou o filho para uma grande tropeada. Em seguida, contratou dois capangas e mandou matar Merência.

Merência estava na porta da fazenda, quando foi atacada e sequestrada. Os capangas levaram-na para um mato fechado, abusaram sexualmente dela, e logo depois a esquartejaram. A primeira facada foi no rosto, o queixo saltou e fixou-se em uma forquilha de uma figueira.

Com o passar das horas, os Pais de Merência, deram por falta da filha e juntamente com amigos, começaram a procurar nas sangas próximas, lagoas, peraus e canhadas, sem obterem sucesso nas buscas. Com o passar dos dias, notaram que o fiel cachorro da casa, todo dia entrava matagal adentro e voltava horas depois chorando para a casa. Começaram a desconfiar da atitude do cachorro. Até que resolveram chamar o Delegado de Polícia e em equipe, seguiram o cachorro. Tiveram sucesso na busca. Infelizmente o corpo foi encontrado, já em estado de decomposição. O vestido foi a única coisa que restou.

Quando Thiago voltou da tropeada, desesperado soube da triste notícia do desaparecimento da Merência. E enfrentando o seu Pai, acusa-o do desaparecimento da Merência. O Patriarca muito raivoso confessou o mando do crime ao filho, que acabou enlouquecendo, pois via assim, o seu grande amor terminado e não sentia mais o porquê de viver.

Três anos depois o queixo da Merência foi encontrado. O povo colocou o queixo em uma caixinha, e com muita devoção era velado de casa em casa, com rezas e pedidos para a Merência.

A Igreja Católica, através do seu representante local, não gostando da atitude do povo, e de todo o cerimonial, proibiu essa devoção e solicitou que o “Queixinho da Merência”, colocado dentro de uma pequena caixa, fosse sepultado no Cemitério local. Foi confeccionado então, uma pequena sepultura, e o Queixinho da Merência, finalmente sepultado.

Ele encontra-se, no Cemitério Municipal São Sebastião, na Cidade de Rosário do Sul, Rio Grande Do Sul, e ainda hoje é motivo de muitas visitas, rezas e pedidos de muita fé, para o Queixinho da Merência.

"E num triste amanhecer, a poesia abandonou o campo. O amor nem sempre é sorriso no rosto, às vezes traz dor, agonia e desgosto".
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OBSERVAÇÕES:

O Queixinho de Merência – foi um acontecimento real, filmado e apresentado pela RBS (Globo) com alguns artistas locais, como: Histórias Extraordinárias (2005) - Rosário do Sul. O vídeo está disponível no Youtube.
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Este “causo” foi editado pela Martins Livreiro, no Livro: “Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul”, da autoria de Antonio Augusto Fagundes.
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GLOSSÁRIO:

Arroio: riacho, rio pequeno.
Canhadas: vale, baixadas.
Caverá – Distrito de Rosário do Sul.
Pampas: denominação dada as vastas planícies Gaúchas.
Peraus: precipício, declive que dá para um rio.
Sangas: pequeno curso d’água, menor que um arroio.
Touro Passo – Distrito de Rosário do Sul.
Tropeada: conduzir tropa de gado, cavalos, etc.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Luís Delfino (Poemas Escolhidos) 1


A ARANHA

Quando na fina, complicada teia
A mosca prende as asas rutilantes,
E sente em cada pé uma cadeia,
Que ao céu lhe furta os voos iriantes,

‘Stringe... que quase o ergástulo baqueia:
Tempesteia, reluta alguns instantes:
Porém de longe a aranha escura e feia
Lhe alteia o muro, aos gritos lacerantes;

‘Stringe... revoa, cai: ’stringe, desata
As asas da esmeralda, e ouro, e prata,
Como lutara uma águia emaranhada,

E Prometeu: mas cede à força estranha.
Move-se então, caminha, chega a aranha.
E, antes que a empolgue, para inda aterrada.

A CEGA

A vida... quem a fez, fez a dor: punhalada;
Fez-se o mar, pôs-se nele um crime: a tempestade;
Inventou-se o terror servindo à crueldade;
Fez-se a flor, nela dorme o veneno: emboscada.

Fez-se a rosa, o que é bom, para o espinho: cilada;
Fez-se o céu, um abismo; outro, o inferno: maldade;
Fez-se o verme, um horror, torpe inutilidade;
Enfim o homem fez Deus: Deus fez isto, e mais nada.

Deus não ama a ninguém, como a ninguém odeia;
Do seu nome, isto só, toda a terra está cheia;
Como nós, qualquer vício ele em si mesmo traz.

A força será sempre essa louca, essa cega
Que tudo deixa, e logo em tudo outra vez pega,
E, Penélope eterna, anda, faz e desfaz?...

A COISA ESPANTOSA

Parar devemos dentro do universo:
Nele o humano saber tem seu limite...
Não há mais nada que a alma exalte, e irrite,
E torne o ser, que pensa, um ser perverso.

Helena, acaso Deus nos é adverso?
Quem pois nos farta o indômito apetite?
O mundo além do túmulo é diverso?
Julga alguém que esse mundo o nosso imite?

E o que é essência, causa, eternidade?
E essa causa sem causa, esse infinito,
Isso que não começa, nem acaba?

Em tudo está presente a Divindade...
Crê: adora... — Isso basta? Oh! sonho! oh! mito!...
Isso, Helena, isso tudo oprime, esmaga!...

A COVA

Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro;
Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito?
É preciso que caiba um longo travesseiro,
Para dormirem face a face, peito a peito.

Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito
Sem que nos braços meus a carregue primeiro:
Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito;
Que é muito longo sempre o sono derradeiro

Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica,
Quero roseiras só, quero muitas roseiras;
Que ardam rosas em que seu corpo multiplica.

Que os pássaros aqui cantem horas inteiras:
Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica,
Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras.

A DEUSA
O seu pescoço esplêndido e robusto
Implantado às espáduas fortemente,
Presta-lhe um ar olímpico e imponente;
De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto;

E sustem-lhe a cabeça bela: é justo,
Porque dos deuses vem; e se presente
No andar, na voz, no riso negligente,
Mete em tudo, que a cerca, estranho susto.

Tão grande e superior ela parece,
Que não é muito a admiração e o espanto,
Segue-se ao espanto o amor; ao amor a prece.

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto,
É de ti, que, em mim só, todo um céu desce,
A ti meus olhos, como a um céu, levanto...

A HORA DO ALMOÇO

Pelo sapê furado da palhoça
Milhões de astros agarram-se luzindo;
O pai, há muito, madrugou na roça:
A mãe prepara o almoço. — O sol é lindo.

Canta a cigarra; o porco cheira; engrossa
O fumo dos tições; — anda zunindo
À porta um marimbondo; e fazem troça
As crianças com um ramo o perseguindo.

Correm, chilram, vozeiam, tropeçando
Num velho pote; — a mãe, zangada, ralha.
A avó lhes lança o olhar inquieto e brando.

No chão um galo ajunta o milho e o espalha,
Enquanto a um canto, as penas arrufando,
Põe a galinha num jacá de palha.

Fonte:
Luís Delfino dos Santos. Poesias. (e-book no Domínio Público)

Nilto Maciel (Nos Becos da Fantasia)


A rede rangia nos caibros. Ia e vinha, cadenciada. Ele olhava para o telhado, olhos perdidos. De tempo em tempo, dava novo impulso à rede, um dos pés no chão. O rangido se fazia mais acelerado e áspero.

Grande tolice embalar-se numa rede, quando havia um mundo inteiro em correrias. Àquela hora, seria enorme o burburinho nas ruas. Podia estar em qualquer delas, indo e vindo, à toa. Uma ou outra mulher sorririam para ele. Daí, quem sabe, nasceria um novo amor. E adeus embalos na rede, sozinho.

Não, não se sentia mais cansado. Tudo mentira, aliás. Nem cansaço nem sono.

Súbito freou o balanço da rede e saltou para o meio do aposento. Queria uma toalha. A mãe se inquietou. Outro banho? Não, só barba.

Num minuto, encheu a cara de espuma. A mãe resmungava. Um ou dois pequenos cortes no queixo. Como sempre.

Tal pressa, tal ânsia. A noite o chamava. Olhou para um lado e outro. Aspirou a alfazema do ar. Na esquina, uma saia tremulava.

Cachorros passeavam, indolentes, calados e imprudentes pelas ruas. Televisores nas salas cheios de galãs luzidios e heroínas glamorosas.

A saia da esquina desapareceu. Talvez tivesse ido jantar. Uma voz rouca gritava dores e amores.

Entrou no bar. Uma cerveja a mais não o engordaria tanto. Além disso, tinha sede. Em questão de minutos secaria a garrafa. Nada de pressa, porém. A noite apenas começava.

Contou casos, inventou, relembrou. O homem atrás do balcão ouvia e ria. Outra cerveja. O cantor continuasse a gritar dores e amores. Até motivava a lembrança.

A sede desaparecia. Porém, não havia pressa. Os galãs ainda se desdentavam na boca das heroínas.

Mais um caso pela metade, quando uma saia e um sorriso dobraram a esquina. Só podia ser ela. Sim, a dos seus sonhos. A esperada, a desejada. Daquela noite não escaparia.

Grande tolice embriagar-se num bar, quando havia um mundo inteiro de fantasias. E aquela moça escondida, medrosa, tão pura.
                                                                       ***

Nas primeiras noites, só promessas, beijinhos, afagos. Quando ia dormir, ela se retorcia na cama, mordia os lençóis, se arrepiava. Ele ia atrás de outras mulheres. Pagava e dormia em paz.

Depois, ela não mais se retorcia na cama, nem mordia os lençóis nem se arrepiava. Nem ele ia mais atrás de outras mulheres. Véu e grinalda ficavam para o futuro.

Passados meses e anos, vez por outra se encontravam. Ela ainda falava em véu e grinalda. Ele mudava de assunto, se aborrecia e ia atrás de outras mulheres. Ou voltava ao bar, para contar casos ao homem atrás do balcão e ouvir os gritos de amor e dor do cantorzinho.
                                                                       ***

No último carnaval, os dois brincaram juntos. Ele se fantasiou como pôde. Ela se vestiu de nudez. E foliaram, dançaram, pularam, como nunca. Ele bebia sem parar. Suava, cantava, cambaleava.

Súbito, parou no meio do salão. E gritou: não queria mais aquela mulher. Quem quisesse, levasse.

Ela se pôs a chorar. Ele ria, gargalhava, abraçado a fogosas colombinas.

Ela saiu. Na rua, os cães latiam. Era madrugada.

Sozinha, a fantasia suada, ela caminhava pelos becos. Uma voz rouca gritava dores e amores.

Entrou no bar. Tinha sede. O homem atrás do balcão ria.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Vinicius de Moraes (A Letra A: Palavra por Palavra)


Abacate: Fiz certa vez para a minha série de poeminhas infantis, um sexteto sobre essa fruta de que gosto muito e que pertence, segundo me ensina o verbete de mestre Aurélio, à família das Lauráceas - o que não é dizer pouco. O poeminha é como segue, e faz grande sucesso entre crianças de mentalidade coprófila e adultos de mentalidade de criança, como é o caso de meu amigo e compadre Chico Buarque:    

            A gente pega o abacate 
            Bate bem no batedor 
            Depois do bate-que-bate 
            Que é que parece? - Cocô. 
            Ô abacate biruta: 
            Tem mais caroço que fruta! 

      Mas eis que, de repente, surgem-me, no ato de escrever, confusas, dolorosas recordações ligadas a essa palavra. Vejo-me menino, na casa de meus avós paternos, à rua General Severiano em Botafogo, debruçado à grande mesa da sala de jantar, apreciando meu avô comer com delícia o seu abacate no ritual gastronômico cotidiano. Era toda uma cerimônia, as refeições de meu avô Moraes. Brando déspota baiano, cheio de bossa e filáucia, colocava-se ele à cabeceira, o guardanapo atacado ao pescoço, à moda antiga, e sem dizer abacate atacava os próprios, depois de cortá-los em duas metades, que enchia de açúcar até às bordas. E era de vê-lo traçando-os a colheradas, devagar e sempre, até a última epiderme. Depois, limpava, com um rápido gesto de ida e volta, a boca e o bigode branquinho, suspirava fundo e partia para o seu quarto de leitura, onde ficava o lindo oratório de minha avó. E ali se deixava ele no embalo da velha cadeira de balanço, de espaldar de palhinha, a ler pela milésima vez os folhetins de Michel Zevaco, de que eu era também leitor constante. Quantos títulos não lembro... Os Pardaillan, Buridan, Os amantes de Veneza, A torre de Nestlé... 

      - Ecco la saeta! 
      - La paro! 

      O italiano entrava nos duelos como cor local. Pardaillan aparava o que viesse, o herói de todo caráter, enquanto, pouco a pouco, o velho avô se ia desintegrando em sono. Eu chegava pé ante pé para espiá-lo de mais perto, como quem examinava uma múmia de museu. Que fenômeno, um velho! Mas não qualquer velho: um ancião espetacular, como meu avô Moraes, o rosto cortado em mil rugas descendentes e as pálpebras inferiores começando a cair; um velho com o dorso das mãos enferrujado e a pele do pescoço pendente, já meio solta da carne. 

      Meu avô Antero Pereira da Silva Moraes... Bendita a palavra que desencadeou tanta saudade e o trouxe de volta tão nítido como o vejo agora... a arrastar os pés ao longo do corredor, sem tempo e sem rumo - um macróbio total. Circundava-o sempre um aroma de sândalo ou alfazema, por isso que minha avó nunca se esquecia de espalhar, em seus gavetões, sachês perfumosos que lhe impregnavam a roupa. E sua vida era essa: vagar pela casa, o único território em que podia velejar com segurança. 

      Nós, meninos, tínhamos cuidado para não esbarrar nele, em nossas correrias, de vez que o corredor era o desaguadouro natural de nosso tropel faminto, quando nos chamavam para a mesa. O velho, ao sentir que algum pé-de-vento o cruzava, dava uma leve guinada de proa, fazia uma lenta meia-volta parada e seguia mecanicamente em sua esteira, agarrado por cabos imponderáveis àquela vida infantil que passava à toa. Tudo nele parecia realizar-se num mundo acústico, onde os sons chegassem como num aparelho de surdo subitamente conectado. Uma porta batia, alguém berrava por alguém, o cachorro ladrava - e desencadeava-se em seus tímpanos uma tempestade que o fazia retornar ao mundo dos vivos. Sua máscara frouxa assumia um ar dramático e ele, transtornado, perguntava, numa voz pânica e trêmula de náufrago pedindo socorro: 

      - Que foi? 

      Às vezes parava, incerto sobre o rumo a tomar, desligado de tudo. Seu rosto ensimesmava-se, num desesperado esforço de ver, como se estivesse mirando um poço sem fundo, e depois exprimia espanto, pois o medo do desconhecido parecia de repente tomá-lo. Girava os olhos, então, dentro da cratera rubra das pálpebras soltas, como a buscar onde se ater. Ficava assim, a mover devagar a cabeça para um lado e outro - um bicho velho diante de sua própria morte. 

      Depois, refeito o vazio, ele reunia novas forças e saía em seu passinho miúdo e arrastado, de volta à cadeira de balanço como um velho barco ao ancoradouro. Ali, com um máximo de cautela para não cair, sentava-se bem devagarinho, num exercício cujo resultado parecia deixá-lo feliz, pelos esgares que fazia. Puxava a manta sobre os joelhos e, pouco a pouco, deixava pender a cabeça. Que pensamentos poderiam então tomá-lo? Talvez lhe chegassem, em fragmentos rútilos, as risadas claras das mulheres que teve - e muitas foram, ao que parece...; talvez os rufos e as clarinadas das paradas militares a que tanto gostava de assistir. 

      E era doce, nessas horas, depois que o sono vinha, ver chegar toda branquinha, toda curva, a sua eterna velhinha que se deixava estar um pouco junto ao umbral, queimando a sua cera antiga numa chama de amor quase apagando. E depois de mirá-lo algum tempo, ela ia, minha santa avozinha, e se ajoelhava ao pé do oratório, onde ficava a tatalar preces ausentes, os olhos postos com infinita devoção no Menino Deus, em sua manjedoura, ou em Nossa Senhora da Conceição, sua xará celeste, perdida na visão de beatitudes que não conheceu em vida - pois, segundo consta, em matéria de mulher, meu avô não deixou passar ninguém. Mas ela o amava, o velho sacripanta, de um amor tão puro de esposa, que eu posso vê-la neste instante, mesmo mergulhada na visão do Ser Egrégio, a cuja mão direita deve sentar-se agora, linda e modesta como sempre, tendo ao lado seu velhinho todo elegante em seu paletó de alpaca - e cuja entrada no Céu só obteve pelo muito que rezou e por todo o bem que fez em vida. Pois o velho não era de brincadeira.

Fonte:

Antonio Cabral Filho (8. Colar de Trovas) Tema: Criança


Organização: Adriano Bezerra,  Aurineide Alencar e Maria Zilnete.

01
Urge esperança de um dia
ver criancas a cantar
hinos da democracia,
*declamando o verbo amar*
(Agostinho Rodrigues – RJ)

02
Declamando o verbo amar
com toda sua inocência 
criança  vive a sonhar
*tendo paz de consciência.*  
(Neiva Fernandes – RJ)

03
Tendo paz de consciência,
toda criança é feliz,
descobre na eficiência,
*o que a natureza diz.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

04
O que a natureza diz ?
que criança quer um ninho,
que na vida é aprendiz,
*que  precisa de carinho!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

05
Que precisa de carinho
o mundo tem consciência,
criança que tem seu ninho
*cresce com benevolência.*
(Aurineide Alencar – MS)

06
Cresce com benevolência 
a criança desde cedo.
Que o sorriso de inocência 
*não se apague pelo medo.*
(Antonio Francisco Pereira – MG)

07
Não se apague pelo medo
na vida não é assim; 
a criança tem enredo:
*ser amada até o fim!*
(Agostinho Rodrigues – RJ)

08
Ser amada até o fim - 
Júlia, de seu pai, o quis.
Ele nunca está a fim! 
*Faço-a eu mesmo então feliz!*
(Oliveira Caruso – RJ)

09
Eu a faço,  então  feliz
na proteção  do Senhor... 
pois é Deus mesmo  quem diz
*que a criança  tem valor.*
(Neiva Fernandes – RJ)

10
Que a criança tem valor
e precisa ser feliz
livre de qualquer pavor
*e viva como aprendiz.*
(Prof. Roque – RS)
   
11
E viva como aprendiz
na nossa escola da vida
isto o vate sempre diz
*para a criança querida!...*
(Luiz Cláudio – RN)

12
Para a criança querida,  
daremos o nosso amor,  
protegendo a sua  vida,   
*na  Luz que vem do Senhor!*
(Neiva Fernandes – RJ)

13
Na luz que vem do Senhor
sejam sempre iluminadas
com carinho e muito amor
*por seus pais sejam amadas.*
(Adriano Bezerra – RN)

14
 Por seus pais sejam amadas,   
no carinho mais profundo;
      jamais ser abandonadas,     
*ao relento deste mundo.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

15
Ao relento deste mundo
vemos data consagrada
pra criança é mês fecundo
*chamo Aparecida amada!...*
(Luiz Cláudio – RN)

16
Chamo Aparecida amada
nos momentos de aflição,
para que não falte nada
*para a criança e nação.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

17
Para a criança e nação
venha a paz tão desejada
com a santa intercessão
*da nossa mãe consagrada.*
(Adriano Bezerra – RN)

18
Oh nossa mãe consagrada!
Olhai por nossas crianças,
que façam o que Lhe agrada
*e tenham fé e esperança.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

19
Que tenham fé e esperança,
no futuro da nação .
Não deixemos a criança, 
*sem amor ao nosso Chão!!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

20
Sem amor ao nosso chão
nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia.*
(Adriano Bezerra – RN)

TROVAS DO FECHAMENTO

*A*
*Sem amor ao nosso chão,*
mas fé  na Virgem Maria: 
respeitando nosso irmão 
*urge a esperança  um dia.*
(Neiva Fernandes – RJ)

*B*
*Sem amor ao nosso chão,*
crianças sem alegria,
sonho um mundo em união;
*urge esperança um dia.*
(Maria Zilnete de M. Gomes  – RJ)

*C*
*Sem amor ao nosso chão,*
a criança perderia
amor e dedicação, 
*urge a esperança um dia!*
(Gleyde Costa – RJ)

*D*
*Sem amor ao nosso chão,*   
não há paz nem alegria,
pois a nossa solução,            
*urge a esperança um dia.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

*E*
*Sem amor ao nosso chão*
nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia!*
(Adriano Bezerra – RN)

*F*
*Sem amor ao nosso chão*
nada até me arrepia
vamos dar as nossas mãos,
*urge a esperança um dia.*
(Madalena Cordeiro – ES)

João do Rio (Duas Criaturas)


A Viriato Correia.

O grande hall do hotel estava repleto. Pelas janelas semi-cerradas, na suave ondulação das cortinas brancas, entrava um vago perfume de violeta e de rosa. Lá fora, entre os tufos de verdura do jardim e o céu muito azul, devia esplender a pálida luz de um sol de inverno. As mesas, todas ocupadas e cintilantes de cristais, prolongavam-se até ao fundo numa orquestração de tons brancos, que iam do branco de prata ao branco gris[1] nos lugares mais em sombra.

Os criados passavam apressados, erguendo numa azáfama os pratos de metal. Ao alto, os ventiladores faziam um rumor de colmeias. Senhoras e cavalheiros, perfeitamente felizes, as senhoras quase todas com largos “ boás” [2] de plumas brancas, chalravam e sorriam. Estávamos bem na bizarra sociedade de entalhe que é o escol dos hotéis. Alta, longa, comprida, com uma cintura de esmaltes translúcidos e o ar empoado de uma íntima do general Lafayette, a escritora americana. cuja admiração por Gonçalves Dias chegara a faze-la estudar e propagar o Brasil, mastigava gravemente. Logo ao lado, um grupo de engenheiros, também americanos, bebia, com gargalhadas brutais e decerto inconvenientes, champanhe Munn. Mais adiante a encantadora viúva do milionário Guedes, com o seu perfil de Luigni, de que tanto mal se dizia, sorria num vago sonho para a senhora Alda, a formosa divorciada do dia, Alda Pais anteontem, Alda Pereira hoje, como há cinco anos, antes de casar... De vez em quando parava à porta um novo hóspede, hesitava, percorria com o olhar a extensa fila de mesas onde o debinage[3] se acalorava. A um canto, Mlles. Peres, filhas de um rico argentino, yatch-recorderman[4] nas horas vagas e vendedor de gado nas outras, perlavam[5] risadinhas de flerte para o solitário e divino Alberto Guerra, seguro dos seus bíceps, dos seus brilhantes e quiçá dos seus versos.

Bem ao centro, o nosso vasto ministro em Honduras desdobrava a sua simpática adiposidade numa roda de mocitos elegantes, ferozes pretendentes ao secretariado diplomático, e, de vez em quando, cortando o zumbido elegante do grande hall, retinia imperiosamente o som de uma campainha elétrica.

Estávamos a almoçar cinco ou seis, convidados pelo barão Belfort, esse velho dandy sempre impecável, que dizia as coisas mais horrendas com uma perfeita distinção. E fora decerto uma extravagância aquele demorado almoço, a fazer horas para um match de football, a que seria impossível deixar de assistir. O barão, de veia, com a sua voz de navalha, recortava na pele dos presentes as caricaturas perversas. Nós já tínhamos rido muito e entrávamos com apetite num vulgaríssimo salmis[6] de coelho, quando de repente um dos nossos companheiros exclamou:

— Olha, a Chilena aqui!

À porta surgiu uma triunfal figura de Ceres, com o cabelo cor de ouro e o verde olhar coado por umas negras pestanas de azeviche. O seu lindo corpo era como que modelado pelo vestido de Irlanda e rendas verdadeiras. Nos dedos afilados e tênues como as pétalas esguias dos crisântemos, três ou quatro pérolas rosas; nos lóbulos das orelhas, duas negras pérolas e por sobre a gola leve de rendas brancas um virginal colar de pérolas. Acompanhavam-na um cachorrinho branco de neve, de focinho impertinente, e um cavalheiro, baixo, gordo, cheio de joias, enfiado numa redingote[7] azul.

— A Chilena! A Chilena aqui! Mas que sociedade é esta? bradou o mais jovem dos convivas.

O barão teve um sorriso cético.

— Meu caro, o Rio tem, como Paris ou Londres ou mesmo Montevideo, a sua season[8]. A season começa regularmente com a chegada do primeiro mambembe[9] estrangeiro, mambembe naturalmente insuportável, e fecha com os calores da primavera, na abertura do salão de pintura. É a época do luxo, da exibição, do sacrifício para aparecer, da tagarelice, em que toda a gente fala mal do próximo e entende de arte, é a época escolhida pelos que pretendem tomar lugar na sociedade. Nós somos uma sociedade em formação — a mais atraente, a que mais tenta por consequência, não só pelas suas taras, que há vinte anos não eram julgadas mal, como pelo nosso fundo meio ingênuo de aceitar tudo o que brilha, seja diamantino ou seja montana. Anualmente, de envolta com os políticos, os fazendeiros, os estrangeiros exploradores, aparecem essas figuras com um passado estranho, decididas a dominar, a entrar nos lugares honestos, a serem respeitadas.

São figuras de inverno. Querem dominar. E olhe que aqui, quase todos têm a sua história: as demoiselles Peres, talvez enteadas de um rei morto, o wildeano[10] conde Rossi, lá longe, com o seu excepcional secretário cubano; Alberto Guerra, o sedutor irmão de D. Juan[11] e também de Shylock[12], porque vive de emprestar a juros; a viscondessa Guilhermina, que chegou de Vicchy e só está aqui de passagem; a Alda, a baronesa...

— Barão, cale-se, por favor! Cale-se! Figuras de inverno, não duvido. Mas a Chilena é menos que isso.

— Ora, a Chilena já não usa esse pseudônimo tão picante e ao mesmo tempo tão significativo para os guerreiros do Rio Grande. Todos vocês sabem a história de vício dessas três irmãs que cerca de dez anos amaram e arruinaram varias criaturas. Mas tinham de ter um nome honesto. As duas primeiras casaram. Esta é hoje a esposa do cônsul do Haiti no Pará.

— Então o homenzinho?.

— Um explorador riquíssimo que se presta a ser cônsul, auferindo todos os lucros do cargo. Deve ter uma fortuna superior a cinco mil contos. Tivemos relações em Belém e em Paris. É um caso de embrutecimento passional.

— Mas são realmente casados?

— Não há dúvida. Vocês conhecem a história das chilenas, três lindas criaturas da fronteira que se diziam chilenas por picante e a que os rio-grandenses chamavam chilenas como lembrança de certos estribos em que os pés ficam à vontade e toda a gente pode usar. Elas tinham topete, beleza, audácia. Para ser o vício arrasador não precisava muito outrora no Rio. Chegaram e logo a fama irradiou. De um dia para outro, os fazendeiros ricos sentiram a necessidade de dar-lhes palácios, os banqueiros ofereceram-lhes as carteiras, os amorosos sem vintém prometeram vigor e paixão. As gaúchas ardentes, ardentes mesmo demais, faziam grandes loucuras sensuais, mas prestavam atenção ao futuro. Há mulheres que podem se entregar com frenesi a vida inteira sem conseguirem ser prostitutas Elas tinham o frenesi, não, tinham o sinal de profissão, e depois, haviam nascido sob as estrelas complacentes. A Luísa partiu com um fazendeiro, e se o engana é com os cometas, raramente. Natália recolheu com um negociante riquíssimo Ficou apenas Maria, que diriam um caso anormal de luxúria, malbaratando dinheiro, embriagando-se, tripudiando no torvelinho da vida. Ora, Azevedo apaixonou-se pela Maria, há sete anos, vendo-a guiar uma parelha de cavalos zebrados que foram acabar no Jardim Zoológico como raridade. Maria atravessava uma das suas crises, devendo a casa, as mobílias, os cavalos, os criados, e até mesmo o adolescente robusto que fazia de Augias[13] no fundo do palacete e de Automedonte[14] à tarde, no passeio. Azevedo foi seringueiro ou coisa que o valha. Precisamente voltara do Amazonas, esfomeado de mulher e cheio de dinheiro. Teve o deslumbramento diante da beleza que Maria tornava provocante. Tentou o assalto, deixou-se prender, pôr o freio, montar, esvaziar. A opinião geral — e aliás alegre, era que Maria arruinaria o marchante selvagem. A sorte porém de Azevedo era intensa. Quanto mais dava, quanto mais pagava, mais ganhava. Isso devia ter concorrido poderosamente para a paixão do animal, fetiche como todos os simples, e irritar Maria, inimiga dos pagadores como todas as boêmias. Azevedo empolgou-a inteiramente. Ela, até então a Vênus vingadora, que arruina, arrasa, domina, de gênio voluntarioso, só encontrava uma satisfação engana-lo, traí-lo, roubar-lhe o corpo para o banquete dos esfomeados. Era uma performance entre a paixão cega e a raiva de fugir dessa paixão. Ao cabo de quatro meses, Maria proibiu-lhe a entrada, despediu-o. Estava coberta de joias, com o cofre cheio e enfarada, aborrecida, excedida pela convivência do pobre homem apaixonado e pagador. Meteu-se na grande orgia, para se convencer de que estava livre, livre por completo. Mas Azevedo, aguilhoado por aquela despedida, sentira de repente que perdia a sua carne e a sua sorte e recorria a todos os meios imagináveis para de novo apanha-la, peitando consciências, interessando na sua desgraça à custa de bilhetes de banco; as amigas da Maria, convencendo os camaradas de que era preciso fazer mudar de opinião Maria, aquela louquinha incapaz de pensar no futuro. Logo a Chilena sentiu em torno, cada vez mais presente, o fantasma do Azevedo. Falavam nas pândegas as amigas, por acaso: ah! se aqui estivesse o Azevedo! Falava a cartomante que de oito em oito dias lhe deitava as cartas: vejo aqui um homem sério que muito a ama e agora afastado voltará a faze-la feliz! Falavam os criados: Coitado do patrão; passou hoje por aqui, olhando muito... Falavam até os camaradas de cama e mesa: Afinal o Azevedo é um bom homem. E Maria viu que tendo despedido o Azevedo agora é que o tinha a todo o instante na lembrança, sem poder fazer-lhe mal, sem poder vingar-se, quase a convencer-se de que o idiota era bom. Certa vez disseram lhe : o Azevedo parece resignado : vai montar casa para a Benevente. Maria teve um grande ódio e no outro dia Azevedo estava de dentro outra vez, louco de amor e ainda mais perdulário.

— Maria resignara-se?

— Para a obra da vingança, tornando-o epicamente ridículo. Não importava a pessoa, a questão era do ato. Ah! Eu imagino sempre, quando o meu egoísmo quer eternizar o amor, o desespero de um pobre ente sem poder livrar-se de outro que se molda e curva e dá tudo, e é passivo e é humilde. Há torturas, imperceptíveis à maioria dos mortais, que são dantescas. E nenhuma como essa em que o ambiente, a fatalidade, o destino forçam a vitória do mais fraco dando-lhe o que deseja, fazendo-o realizar o seu fim, impondo-o a outro corpo, a goza-lo, a senti-lo, a apalpa-lo. A grande desgraça do amor, a maior desgraça é essa porque laça ao mesmo horror duas almas. Maria devia ter crises de desespero e de lágrimas, enquanto Azevedo devia sofrer na sua muda humildade de cão sedento de carícias! E quando levou-a para o Pará, a Chilena tinha a nevrose de engana-lo. Ora, imaginem vocês, em Belém, terra pequena, onde Azevedo tinha uma posição evidente! As denuncias anônimas choveram exigindo vergonha, mais pudor, mais brio. O grosso Azevedo lia e calava, porque, se revelasse uma palavra das cartas, Maria fechava-lhe a porta semanas e semanas. Uma vez, entretanto, como recebesse uma denuncia violenta, Azevedo teve tensões de ciúmes e foi encontra-la como a princesa Falconière da Dalila, cantando num barco com certo tenor de zarzuela[15]. Não havia dúvida! O cônsul do Haiti berrou de cólera, o tenor deu às gâmbias[16], a polícia apareceu. O escândalo, porém, permitiu à Maria um desses cinismos épicos. Agarrou o Azevedo pelo casaco, meteu-o dentro do carro sem dizer palavra, ofegante, e ao chegar à casa mediu-o de alto a baixo e teve esta frase, célebre há cinco anos : — o senhor é um indigno! Desconfia de mim !

É preciso pensar o alcance, a extensão moral de uma dessas frases num cérebro, obsedado pela ideia de não perder uma carne cada vez mais desejada. Maria dissera por cinismo profissional. Ele sentiu-se comovido a princípio. Afinal se enganava, procurava não o afrontar. Já era uma consideração. E depois engana-lo-ia ela? Há tantos inocentes condenados, mesmo com provas visíveis comprometedoras! E o tenor, sem querer, foi a pedra angular do casamento.

— Oh! não...

Quinze dias depois da cena Azevedo sentiu que nem de negócio e de borracha poderia entender mais. Maria, muda, grave, solene, vivia com o quarto fechado sem responder primeiro aos seus insultos, depois às suas ironias, depois aos desesperos e já agora aos rogos, porque Azevedo vivia como à espera da notícia de ter um mal irremediável, sem dormir, sem descansar, só pensando que de novo ela o deixaria. E dessa vez para sempre. Então caiu de joelhos, suplicou, pedindo perdão, jurando que não vira nada, que jamais acreditaria na calúnia... Há entre os sexos um ódio latente. Quando um se humilha a outro, esse outro toma crueldades de tirano, refocila em perversidades e em excessos. A Chilena percebeu a excelência do momento, teve um assomo de dignidade, borrifada de lágrimas: Cale-se, Azevedo! O senhor é um ingrato! Nunca mais serei sua! Desconfiar de mim. Só se me der uma grande prova de confiança, o seu nome, a sua mão...

Na roda correu um desabalado riso, que fez voltar-se o grupo aspirante ao secretariado diplomático. O barão limpou o seu monóculo de cristal e continuou tranquilamente:

— Ela nesse tempo era mais magra e tinha os cabelos castanhos, mas de um castanho que às vezes era quase negro e de outras vezes se tornava quase louro. Esse cabelo era a sua alma. Azevedo, coitado! refletiu vinte dias, torturou-se vinte dias. E nesses vinte dias, a Maria lutou, em arte e manha, mais que um diplomata, graduando sabiamente as concessões que dessem ao velho apaixonado uma vaga ideia do que poderia ser o lar com uma doce criatura meiga, boa, fiel, sem azedumes, sem neurastenias. Os amigos, sabedores do desastre, reuniram-se para salvar Azevedo. Todos os meios falhavam; ou antes redundavam a favor da Maria. Um rapaz, Teofano de Abreu, se bem me recorda, latagão inteligente e bem colocado da colônia portuguesa, com certo desejo na Maria, prestou-se a um sacrifício colossal: fazer-lhe a corte, conseguir possui-la e vir contar depois para o Azevedo o fato. A Maria não resistiu, e Teofano, apesar de ter gostado, sacrificou-se —“ Azevedo, disse em presença de várias testemunhas, não podes casar com a Maria” — “Porque?”

— “ Porque te engana.” — “ Não admito que insultem uma mulher que vive comigo." — “ Mas foi comigo, venho agora de lá. Ela será incapaz de negar na minha cara. E se faço este ato indigno é para te salvar de uma horrível e irremediável indignidade.” Azevedo fez-se pálido, correu casa, e no outro dia não cumprimentou mais nenhum dos seus amigos. Era fatal. E afinal, para de novo possuir Maria, casou...

Fui encontra-los em Paris, elegantemente instalados numa das avenidas da Étoile, num palácio discreto. Maria tinha carruagens, coupé elétrico, arrastava à noite pelos pequenos teatros maravilhosas capas de peles de muitos bilhetes de mil, e frequentava vários lugares maus porque vendo-a um dia a pé a rodar um bistrô[17], lembrei-me que bem podia estar de paixão por algum jovem apache[18], que os apaches são os homens belos de Paris. É mesmo provável que tivessem deixado Paris, quando já Maria dava uns chás a alguns vagos titulares internacionais, por alguma chantagem de escândalo, que o Azevedo teve de saber e pagar.

Mas isso não era nada! As exigências e o descaro de Maria cresceram na proporção do embrutecimento do marido. Quando voltaram de Paris, ela exigiu no seu palacete toda a ala direita mobiliada à indiana, com autênticos bambus de Calcutá, potiches de cobre de Benares, deuses bramânicos de porcelana e de metal. O seu quarto tinha guarnições de seda verde pregadas a grampos de coral; os cortinados eram de gaze de Decã, a mais leve gaze do mundo. Aos pés da cama, um Vixnu[19] de marfim, o deus dos ricos, olhava-a a dormir. Frequentava-os por essa ocasião uma turba-multa de homens sem preconceitos e rapazes bem dispostos, que forneciam as traições ao Azevedo. Maria era uma pilha de nervos. Não se resignara ao pobre cônsul; e a sua neurastenia explodia em desejos de humilhações e um desenfreado apetite de sedução. À mesa, fazia o cônsul levantar-se, ir buscar o seu leque ao segundo andar, para beijar o conviva, principalmente quando o jantar era a três. De outras vezes, marcava-lhe a hora da entrada: — preciso estar só. Apareça depois da meia noite. E nesses dias sempre alguém conhecia a pele de tigre real com forro de brocado rubro, que havia na terceira sala da ala esquerda, onde se amontoava a coleção de armas usadas por todos os soldados dos rajás imagináveis.

Vocês riem! Eu afinal tenho pena. Esse homem ganhava rios de dinheiro, gozava de boas relações... Julguei-o um indigno. Não era. Era e é um ser que ama. Qual de nós não tem o seu segredo inconfessável e um desejo irreprimível? O amor é o desejo, mas o desejo da completa satisfação, dessa ilusão dos sentidos. Quando se quer assim, somos arrastados como por uma corrente. Há casos piores a que apertamos a mão...

— Mas, agora, que fazem eles?

— Não os vejo há dois anos. Naturalmente ela quer ser família. É uma aspiração natural. Vi-a com ele, na abertura da Câmara, numa pose de duquesa pintada pelo La Gandara. Decerto já se resignou ao Azevedo e estão ambos aqui, a gozar o inverno, a dar a impressão de que são felizes. E entretanto a Maria é a alma envenenada, agrilhoada a um corpo que detesta, desejando, no desequilíbrio de carne a tropa dos homens, desejando, no desequilíbrio de moral, a posição e o respeito; o Azevedo é o pobre bruto sacrificando tudo, a honra, o dinheiro, a vergonha, rastejando o ignóbil só para que lho consintam um pouco de amor pela criatura que lhe agradou aos sentidos. E ambos desgraçados, desvairados, seguem a vida, com o sorriso no lábio e a vaga inquietação no olhar febril.

Nesse momento, a bela Chilena, Maria de Azevedo, ergueu-se. O impertinente fraldiqueiro[20] saltou da cadeira. O homenzinho baixo também, de outra. Ela viu o barão, que se levantou, curvou-se. Azevedo abriu os braços.

— Oh! você! Há dois anos!

— Donde vem?

E os dois homens abraçaram-se. Ele parecia velho, meio desconfiado. Ela, sob a luz opalizada das cortinas brancas, sorria, um sorriso misto de inexprimível ironia e de vaga satisfação, enquanto os seus olhos pousavam, como uma perturbadora carícia, na mesa em que Alberto Guerra continuava a almoçar, seguro dos seus bíceps, dos seus brilhantes e talvez dos seus versos, no brouhaha entontecedor do vasto hall.
__________________________
Notas:
[1] Acinzentado.

[2] Boá. Espécie de xale de plumas. Em francês no texto.

[3] Maledicência. Fofoca. Em francês no texto.

[4] Batedor de recordes no iatismo. Em inglês no texto.

[5] Dar forma ou aparência de pérola.

[6] Tipo de ensopado. Em francês no texto.

[7] Sobrecasaca. No original está: rendingote. Evidentemente um erro de impressão.

[8] Temporada anual elegante. Em inglês no texto.

[9] Companhia teatral em excursão, em geral de segunda classe.

[10] Referente ao escritor inglês Oscar Wilde, condenado em 1895 a 2 anos de prisão por homossexualismo.

[11] Personagem da literatura europeia, arquétipo do grande conquistador de corações femininos.

[12] Personagem da peça de Shakespeare O mercador de Veneza, é um judeu em empresta dinheiro a juros.

[13] Na mitologia grega, personagem do 7ª Façanha de Hércules, que teve de limpar sua famosas cavalariças de 3000 animais, o que não era feito há 30 anos. Como Augias não quis pagar o combinado, Hércules o matou.

[14] Na mitologia grega, condutor do carro de Aquiles e seu companheiro de combates. Sinônimo de cocheiro hábil.

[15] Tipo de ópera cômica espanhola.

[16] Pernas. Dar às gâmbias: fugir.

[17] Restaurante pequeno e simples, mas aconchegante. Em francês no texto.

[18] Gigolô.

[19] Deus, que, ao lado de Brahma e Shiva, forma a trindade sagrada do Hinduísmo.

[20] Afeminado.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.