sábado, 26 de outubro de 2019

Luiz Carlos Felipe (Aqui Del Rey!)

                       
                                                  PARTE  I

Arrumou os livros, ajeitou  o gorro e dirigiu-se à porta.

Um último olhar à sala vazia.  As carteiras em fila... a mesa do professor sobre um estrado - o quadro negro, limpinho.  Na parede um  crucifixo.

Jesus tinha um braço quebrado.

O professor Queiroz sempre se referia a isto, dizendo:

- Como se ao Senhor não lhe bastassem todos os padecimentos... ainda mais este  - um braço quebrado!  E isto, há quanto tempo! Quase cinco anos! Precisamos dar um jeito!

José lembrava-se bem de quando ali chegara: - delgado, tímido... com o bornal a tiracolo...  Fora  sentar-se ao fundo.

Mestre Queiroz captou-lhe a timidez:

- Aqui na frente, meu rapaz!

Lá se fora ele sentar-se no primeiro lugar, passando ruborizado entre os meninos, que o observavam. E ali estava, até hoje.

Aplicara-se bastante naqueles anos. Estudava muito. Até já arriscava o Francês.

- “Bonjour Monsieur - Quelle heure est-il, s’il vous plâit? Il est midi. Merci, monsieur.  Au revoir. ” (*)

Ficava sempre mais um pouco, após as aulas, para aprontar as lições. Na aldeia, a chama do candeeiro turvava a vista.

Mestre Queiroz dissera ao sair:

- Apague a luz.

Retornara, pouco depois, abrindo  a porta, metera cabeça pela fresta e advertira:    

- Não te esqueças da luz.

Lá fora, os latidos o sacudiram.

Apagou a luz e saiu.

                                              PARTE II

 O pátio estava vazio, as folhas rolavam pelo chão.

 Agitando os galhos desnudos a aura noturna fazia soar melodia monótona.

 No céu escuro brilhavam, esparsas, algumas estrelas.  Montes delineavam-se  ao longe.

Sob um carvalho, preso à corrente, Quinteiro latia.

José aproximou-se, repartia sempre o seu farnel com o cão.

- Toma Quinteiro, aqui está o teu bocado.

- Opa!... devagar, malandro! Assim, me levas a mão!

O animal rosnava baixinho.

- Não queres conversa enquanto comes?!

- Ingrato, divido contigo a merenda e nem escutas o que te digo.

O cão, agora, espojava-se na terra.

- Tens razão em estar satisfeito. Já comeste... estás em casa... eu, porém, tenho que andar uma légua para alcançar a minha aldeia, o meu Bizarril (**).

- E se assim é...  Já é tarde...  vou andando.

O cão lambia-lhe as mãos.

- Até amanhã.

Ao chegar à porteira, virou-se. O prédio da escola destacava-se na escuridão.

Nunca aquele lugar lhe parecera tão amigo e acolhedor.

Pensou em voltar. Não o fez.

Deixou cair a aldrava e pôs-se a caminho.
 
                                                           PARTE III
 
Noite fria.   A vegetação úmida exalava um cheiro forte.

José respirou fundo e abotoou o abrigo. Tinha já caminhado mais de meia légua e uma sensação estranha o acompanhava.
         
Entretanto, não sabia explicar o que sentia.

Conhecia tão bem aquelas várzeas e, agora, tudo parecia diferente. Olhava para os lados e... nada via, apenas a  escuridão soturna.

O cascalho rinchava às suas passadas, único ruído audível naquela imensidão.

De súbito, parou, virando-se num repente.

Quatro pupilas o fitavam com fria agudeza. Tinham o fulgor de duas tochas ladeando a estrada.

Ao firmar a vista, distinguiu corpos fortes e peludos, caudas baixas, orelhas atentas,  em riste...  bocas enormes, abertas num sorriso lúgubre:

- Lobos !

O primeiro ímpeto - correr ... anulado pelas pernas rígidas e o estômago convulsionado. Continuou a caminhar, enquanto  sentia  o suor viscoso  escorrer- lhe pelo corpo.

Os olhos ardiam, a respiração opressa... José buscava controlar-se.

Seu pensamento correu até a aldeia, onde o avô, àquele tempo, já  o estaria  a esperar, ao pé do lume crepitante.

Lembrava-se de suas palavras:

- Quando te deparares com algum perigo, reflete e não temas! Controla-te! O medo é o pior dos  inimigos!

Tais palavras  ajustavam-se perfeitamente àquela situação! E o avô ainda  calcara no alerta:

- Reflete! - O que distingue o homem do animal é a sua inteligência. 

Por ouvir dizer, pelos homens da aldeia, que os lobos gostavam de conversar, José começou a falar em voz alta:

- Olá amigos. Como estão os camaradas?

Ato contínuo,  passou a assobiar, buscando acalmar-se.

Parecia-lhe estranho que aqueles animais se aventurassem por tais lugares, àquela época do ano. Iniciava-se o outono.  E ainda havia muita  caça nas serras distantes.

Certamente, os lobos não estariam famintos, ou já o teriam acossado.

Olhou para trás... Os lobos continuavam a segui-lo, a guardar sempre a mesma distância.

As faces abertas, pareciam sorrir, sinistramente.

Próximo à entrada do povoado, José apressou o passo.

 Já via as primeiras luzes dos lampiões  nas janelas das casas de sua pequenina aldeia.

Lembrou que restara um pouco do alimento que levara... Abriu o bornal e lançou as sobras no chão, na esperança de aplacar a voracidade dos lobos.

Em vão. As feras, indiferentes ao seu gesto, mais e mais se aproximavam.

Quase à entrada da aldeia, lembrou-se do grito de socorro lançado pela personagem de uma das  muitas histórias, contadas por seu avô.

Acelerou o passo, quase a correr e, já a adentrar a aldeia, pôs-se a gritar, com todas as  forças que tinha: -   AQUI DEL REY, AQUI DEL REY! (***)

Com alívio, viu os aldeões movendo-se em sua direção.  Vinham-lhe em socorro, com tochas acesas, ancinhos  e facões, num alarido forte  para enfrentar e espantar  as feras,  quase aos calcanhares de José que, por sua vez, já  sem forças, quase a cair, viu-se  amparado pelos primeiros conterrâneos.

 Os demais arremeteram com suas armas contra os lobos que rapidamente,  recuaram fugindo  pela várzea escura.

Conduzido à casa do avô, José, ao vê-lo à porta a sorrir, correu a abraçá-lo,  demoradamente.

Sentados, agora, ao calor da lareira, no aconchego de uma casa repleta de amor, o neto deixou que as lágrimas lavassem o seu rosto cansado, enquanto ouvia do avô aquelas palavras que jamais haveria de esquecer:

-  Teu rogo de ajuda  foi ouvido, José. Deus sempre esteve contigo!  
_________________
Notas do Blog:
(*) Olá senhor - Que horas são, por favor? É meio dia. Obrigado senhor. Tchau.

(**) Bizarril – fica em Portugal, situado a 9 km de Figueira de Castelo Rodrigo, na freguesia de Colmeal. É um lugar encaixado entre as Serras do Cerejal e da Marofa, do lado direito da estrada que segue para Pinhel.

(***) “Aqui Del Rey!” Antigamente, um pedido para ser acudido pelos homens (soldados) do Rei. Usava-se, unicamente, em casos onde havia reais ou pretensas infrações à lei. Tem o sentido de gritos de pedido de socorro. Equivale a «(venham) aqui (da parte) del-rey»


Fonte:
Conto enviado pelo autor.

3 comentários:

Cláudia Zimmermann disse...

Adorável leitura!

Paulo Mauá disse...

Bornal, aldrava, palavras esquecidas ao vento, o jeito leve e gostoso de escrever nos remete à serena leitura (e releitura) do conto por trilhas das aldeias portuguesas. Adorei, meu mestre de textos. Parabéns. Singelo e saboroso, como a vida.

Anônimo disse...

Parabéns meu caro Felipe, a narrativa excelente prendeu-me a atenção até o último minuto.