sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Luís Delfino (Poemas Escolhidos) 1


A ARANHA

Quando na fina, complicada teia
A mosca prende as asas rutilantes,
E sente em cada pé uma cadeia,
Que ao céu lhe furta os voos iriantes,

‘Stringe... que quase o ergástulo baqueia:
Tempesteia, reluta alguns instantes:
Porém de longe a aranha escura e feia
Lhe alteia o muro, aos gritos lacerantes;

‘Stringe... revoa, cai: ’stringe, desata
As asas da esmeralda, e ouro, e prata,
Como lutara uma águia emaranhada,

E Prometeu: mas cede à força estranha.
Move-se então, caminha, chega a aranha.
E, antes que a empolgue, para inda aterrada.

A CEGA

A vida... quem a fez, fez a dor: punhalada;
Fez-se o mar, pôs-se nele um crime: a tempestade;
Inventou-se o terror servindo à crueldade;
Fez-se a flor, nela dorme o veneno: emboscada.

Fez-se a rosa, o que é bom, para o espinho: cilada;
Fez-se o céu, um abismo; outro, o inferno: maldade;
Fez-se o verme, um horror, torpe inutilidade;
Enfim o homem fez Deus: Deus fez isto, e mais nada.

Deus não ama a ninguém, como a ninguém odeia;
Do seu nome, isto só, toda a terra está cheia;
Como nós, qualquer vício ele em si mesmo traz.

A força será sempre essa louca, essa cega
Que tudo deixa, e logo em tudo outra vez pega,
E, Penélope eterna, anda, faz e desfaz?...

A COISA ESPANTOSA

Parar devemos dentro do universo:
Nele o humano saber tem seu limite...
Não há mais nada que a alma exalte, e irrite,
E torne o ser, que pensa, um ser perverso.

Helena, acaso Deus nos é adverso?
Quem pois nos farta o indômito apetite?
O mundo além do túmulo é diverso?
Julga alguém que esse mundo o nosso imite?

E o que é essência, causa, eternidade?
E essa causa sem causa, esse infinito,
Isso que não começa, nem acaba?

Em tudo está presente a Divindade...
Crê: adora... — Isso basta? Oh! sonho! oh! mito!...
Isso, Helena, isso tudo oprime, esmaga!...

A COVA

Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro;
Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito?
É preciso que caiba um longo travesseiro,
Para dormirem face a face, peito a peito.

Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito
Sem que nos braços meus a carregue primeiro:
Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito;
Que é muito longo sempre o sono derradeiro

Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica,
Quero roseiras só, quero muitas roseiras;
Que ardam rosas em que seu corpo multiplica.

Que os pássaros aqui cantem horas inteiras:
Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica,
Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras.

A DEUSA
O seu pescoço esplêndido e robusto
Implantado às espáduas fortemente,
Presta-lhe um ar olímpico e imponente;
De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto;

E sustem-lhe a cabeça bela: é justo,
Porque dos deuses vem; e se presente
No andar, na voz, no riso negligente,
Mete em tudo, que a cerca, estranho susto.

Tão grande e superior ela parece,
Que não é muito a admiração e o espanto,
Segue-se ao espanto o amor; ao amor a prece.

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto,
É de ti, que, em mim só, todo um céu desce,
A ti meus olhos, como a um céu, levanto...

A HORA DO ALMOÇO

Pelo sapê furado da palhoça
Milhões de astros agarram-se luzindo;
O pai, há muito, madrugou na roça:
A mãe prepara o almoço. — O sol é lindo.

Canta a cigarra; o porco cheira; engrossa
O fumo dos tições; — anda zunindo
À porta um marimbondo; e fazem troça
As crianças com um ramo o perseguindo.

Correm, chilram, vozeiam, tropeçando
Num velho pote; — a mãe, zangada, ralha.
A avó lhes lança o olhar inquieto e brando.

No chão um galo ajunta o milho e o espalha,
Enquanto a um canto, as penas arrufando,
Põe a galinha num jacá de palha.

Fonte:
Luís Delfino dos Santos. Poesias. (e-book no Domínio Público)

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