A empregada correu na frente, para avisar:
— Me desculpe, madame, mas a campainha tocou e mal eu fui abrindo a porta, essa madame aí foi entrando e dizendo que precisava falar com o doutor.
Atrás vinha uma senhora de porte altaneiro, que se plantou diante da mesa onde jantavam quatro pessoas e disse:
— Boa noite. Vim aqui buscar meu marido.
Os comensais entreolharam-se, em conferência muda de espantos que não encontravam expressão verbal, nem mesmo um oh!
A dona da casa, refazendo-se, quebrou o silêncio:
— Não quer sentar-se?
— Obrigada. Não pretendo me demorar nesta casa.
E voltando-se para um dos homens sentados:
— Agenor, vamos embora?
Agenor, sem levantar o rosto, respondeu:
— Estou jantando.
— Peça licença para interromper o jantar e vamos para casa.
— Estou jantando, já disse, e não costumo interromper minhas refeições.
— O lugar de você fazer refeições é a nossa casa, e não me consta que esta seja a nossa casa.
— Com licença, Heleninha — disse o outro homem. — Agora me lembrei que tenho de visitar um doente no Grajaú antes das dez. Vamos embora, Teresa?
— Não, Euclides — disse a dona da casa. — Prefiro que vocês fiquem. Não vejo nenhum inconveniente em que este assunto seja tratado em mesa-redonda, tanto mais quando Teresa é minha irmã e você é meu cunhado. E então, Agenor?
— Gosto de jantar tranquilo — respondeu Agenor. — Além do mais, não acho correto que pessoas estranhas entrem em domicílio alheio sem serem convidadas.
— Perdão, Agenor, essa pessoa estranha é sua mulher legítima, e a pessoa em cuja casa você está jantando é que é realmente um elemento estranho à nossa sociedade conjugal — objetou a recém-chegada.
— E se o diálogo fosse desenvolvido no salão, depois do jantar? — propôs Heleninha, ríspida.
— É mesmo — aprovou Teresa. — Você não acha, Lucrécia, que tudo pode ser conversado daqui a pouco? Estamos quase acabando.
Lucrécia transigiu:
— Bem, eu espero quinze minutos, não mais.
— Nesse caso, aceita um café? — sugeriu Heleninha, com um meio sorriso de circunstância (ou de vitória prévia?).
A invasora pensou um instante para responder:
— Aceito.
O dr. Euclides levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira, que Lucrécia, antes de sentar-se, recuou um pouco, a significar que absolutamente não participaria da mesa da amante de seu marido.
Voltando o silêncio, coube a Teresa realimentar a conversa, dizendo para a irmã:
— Heleninha, este seu Bianco é espetacular. Um nu tão sensual, e ao mesmo tempo tão casto.
— Pois eu ainda gosto mais dos trigais do Bianco, todo aquele esplendor da terra, que ilumina a parede em redor — disse o dr. Euclides.
— Se é Bianco, é sempre bom — comentou Agenor, saindo do mutismo em que mergulhara após a última estocada de sua mulher.
Entraram a falar de pintura, em sobremesa lenta.
— Aprecio os seus conhecimentos em matéria de arte, Agenor, mas não podia andar mais depressa com essa mousse de chocolate que está no seu prato? — agrediu outra vez Lucrécia.
Agenor continuou brincando com o talher na orla do prato, enquanto discorria sobre o fim da arte conceitual.
— Está se esgotando o tempo regulamentar — continuou ela — e eu não saio daqui sem você.
— Vamos tomar o café na sala — atalhou Heleninha, um pouco nervosa.
Levantaram-se todos.
— O meu cliente não pode esperar, o estado dele não é bom — disse Euclides. — Você vai permitir que eu me retire com Teresa.
— Não, querido, você e Teresa vão ficar aqui. O cliente inclusive terá vida mais longa, e é falta de educação se despedir logo depois da comida — objetou Heleninha.
Dirigiram-se todos para o salão.
— Muito bem — disse Heleninha, sentando-se como os demais, enquanto se servia café. — Agora podemos examinar calmamente a situação.
— Concordei em tomar café mas não concordei em examinar nenhuma situação — ressalvou Lucrécia. — Aliás, ela é muito clara. Agenor é meu marido e eu vim buscá-lo, simplesmente.
— Que é que você diz a isso? — perguntou Heleninha, virando-se para Agenor.
— Não preciso de guia para me levar a essa ou àquela parte — respondeu ele, olhando para o teto.
— Talvez precise, Agenor. Você saiu de casa às sete e meia da manhã, prometendo voltar para o almoço, e até agora. Todos os dias a mesma coisa. Concluo daí que lhe faz falta alguém para reconduzir você ao lar conjugal.
— Sou maior de vinte e um, tenho minhas pernas.
— Eu sei, ninguém está negando isso.
— Quando me sinto bem num lugar, satisfeito, relaxado, prefiro ficar mais tempo nele.
— Até certo ponto é razoável, meu caro. Mas se você se sentir bem no Regine’s, por exemplo, será que vai passar o resto da vida lá?
Heleninha atalhou:
— Dada a natureza do diálogo, não seria melhor vocês ficarem à vontade, sem estarmos presentes? Nós iremos lá para dentro, enquanto vocês conversam.
— Não. É ótimo que você esteja presente — disse Lucrécia — porque você é exatamente o motivo feminino pelo qual Agenor não para mais em casa. Quanto a Euclides e Teresa, até é bom que eles fiquem sabendo, se é que não sabem.
— Você está me responsabilizando pelo fato de seu marido não parar em casa?
— Claro, queridinha. Não é aqui que ele janta praticamente de segunda a domingo? E quando não janta aqui, não é com você que ele janta fora de casa? Com você que ele vai ao cinema, ao teatro, a Cabo Frio, passeia de lancha, faz não sei mais o quê?
— Admito que nós fazemos juntos uma porção de programas sociais, mas você também me fará a fineza de admitir que ele não faz nada obrigado, faz porque quer, porque gosta de fazer. Eu não administro Agenor.
— É possível. Em todo caso, e sem querer aprofundar esse ponto, convido Agenor a sair comigo para passar uns tempos em nossa casa.
— Estou bem aqui — respondeu Agenor, examinando atentamente as unhas.
— Você pode ir, eu vou mais tarde.
— Procure ser gentil, meu bem. Se não quer que sua mulher o acompanhe, pelo menos acompanhe sua mulher até a casa. Parece que ainda estamos casados.
— Parece — confirmou Agenor. — Você disse a palavra certa. Parece, mas não é verdade.
— Como? No civil, no religioso, você põe em dúvida?
— Os papéis, não. Mas a realidade atrás dos papéis. Eu me sinto solteiro.
— Escute aqui, Lucrécia — disse Teresa. — Não quero me meter na vida de vocês, mas quem sabe se um desquite não pegava bem? No meu caso deu certo, não foi, Euclides?
— É — confirmou Euclides. — No meu também. Nosso casamento vai navegando em mar azul.
— Agradeço o seu conselho, Teresa — disse Lucrécia. — Mas desquite não é vitamina C, que se receita para todo mundo. Eu não quero me desquitar de Agenor.
— Está vendo? — exclamou Agenor, com um gesto desalentado, de mãos abertas, na direção de Heleninha.
— Então, permita que eu também meta a colher no assunto, embora não seja do meu feitio — aparteou Euclides. — Se você não quer o desquite é porque lhe tem amor. Se lhe tem amor, procure reconquistá-lo, ou aceite-o como ele é.
Heleninha repeliu a lição, antes que Lucrécia o fizesse:
— Essa não, Euclides. Ele é quem tem de decidir. Vamos, Agenor, não fique com essa cara de habitante de outro planeta, que não tem nada com a gente.
— Querem saber de uma coisa? — bradou Agenor. — Vou-me embora, mas não é para casa. Vou sozinho, recuso companhia. Não aceito discussão coletiva dos assuntos de minha vida particular. Ciao para todos.
Levantou-se e ia sair, quando as duas mulheres o travaram pelo braço:
— Não, Agenor, você vai é comigo, que sou sua mulher.
— Agenor, você não vai sem decidir esta parada — disse Heleninha. — Se você sair, não precisa mais voltar. Exijo que fique e resolva de uma vez por todas esta situação.
— Com que direito você estabelece restrições ao livre-arbítrio de meu marido? — protestou Lucrécia. — Ele quer sair, eu também quero. Vou sair com ele, e está resolvida a situação.
Agenor continuava irritado:
— Se vocês começam a brigar, eu desapareço e ninguém mais terá notícias minhas. Sumo! Viro fumaça!
— Nãããão! — exclamaram as litigantes em uníssono.
— Viro sim! Chega de competição em torno da minha pessoa!
Heleninha, por sua vez, estranhou:
— Que é isso, Agenor? Então você me coloca em nível de competição com Lucrécia? Por acaso eu fui à sua casa tirar você dos braços dela? Pois bem, pode sair, não serei eu que implore a você a graça de ficar comigo.
— Não é isso — respondeu Agenor —, eu não quis ofender você, eu estou nervoso, eu…
— Viu? — disse Lucrécia. — Viu o que você fez com ele? Agenor, um homem tão calmo, tão forte, de repente sua estrutura psicológica desmorona diante dos ataques desferidos por você, que não o compreende. Ninguém resiste à incompreensão.
— Quem fala em incompreensão, se a presença de Agenor em minha casa prova justamente que ele não é compreendido em casa de você?
— Quer um tranquilizante, nego? — propôs Teresa docemente, dirigindo-se a Agenor, que, com a cabeça, respondeu: sim.
— Primeiro vamos tratar do nervoso de Agenor, depois vocês discutem — disse Euclides, lembrando-se da sua condição de médico.
As duas calaram-se.
Com as mãos na cabeça, e a cabeça baixa, Agenor virara estátua.
— Acho melhor pôr ponto final nesta discussão — disse Lucrécia.
— Também acho — concordou Heleninha.
Uma brisa de paz circulou pelo salão.
— Você fuma? — perguntou Lucrécia, estendendo o maço de cigarros a Heleninha.
— Aceito — respondeu ela. E acrescentou: — Obrigada.
Teresa e Euclides acenderam seus cigarros. O fumo tornou o ambiente ainda mais apaziguador.
Ingerido o tranquilizante, Agenor deixou-se estar em serena passividade. Ninguém ousava perturbar-lhe o repouso.
— Sabem da última do Lulu Blake? — indagou Euclides. — Tocou fogo na mansão da Isolda Schnitz para exorcizar um lobisomem. Que não era lobisomem, era o motorista da Isolda, que fazia barulho de madrugada para assustar o Lulu.
— Lulu é muito impulsivo — comentou Lucrécia. — Uma ocasião, na piscina do Copa…
— É, eu me lembro — confirmou Heleninha. — Atirou n’água, com vestido e tudo, a duquesa de Armenonville, que dissera para ele: “Vous êtes un drôle de pantin, monsieur”.
Entraram a recordar demasias de temperamento de Lulu Blake, nas quais Agenor não parecia interessado. Guardava silêncio nobre e distante, de olhos cerrados.
— Não fale alto, Euclides — ponderou Heleninha. — Assim você acorda Agenor.
— Isso mesmo — apoiou Lucrécia. — Vamos falar baixinho.
Mas Agenor abriu espontaneamente os olhos, já recuperado, e todos se felicitaram pela sua reação pronta.
— Desculpem o incômodo que lhes dei — disse ele calmamente. — Não dormi a noite passada, com esse calor, e necessito invariavelmente de oito horas de sono para manter o equilíbrio.
— Incômodo nenhum, ora — disseram todos, expressamente ou pela fisionomia.
— Quantas horas são?
— Passa um quarto de meia-noite.
— Vamos embora, Lucrécia?
— Vamos, meu bem.
— Cuide bem dele, Lucrécia — recomendou Heleninha. — Você volta amanhã?
— Fique tranquila — prometeu Lucrécia.
— Volto — prometeu Agenor.
— Depois a gente resolve tudo — disse Heleninha.
— Tá — disse Lucrécia.
Ciao. Ciao. Ciao. Despediram-se cordialmente.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.
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