segunda-feira, 29 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 307


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXXI


Pedro Du Bois (Cecílias)


As Cecílias fecharam seus cadernos onde registravam, não em forma de diário, mas diariamente, seus poemas. Às Cecílias é dado o direito e o poder de registrar poemas, trançando entre todos - se um dia pudessem ser reunidos - o que chamamos de poesia. Mas, na sequência do que foi escrito, as Cecílias haviam fechado seus cadernos, como gesto de abandono ou de desistência.

Se as Cecílias não mais escrevessem seus poemas e não os deixassem registrados em seus cadernos, a poesia sumiria das nossas vistas e nossas vidas não teriam mais a magia decorrente. Estaríamos presos em eternas correntes cecilianas e arrastaríamos nossas mágoas e nossas incertas horas de não adormecer ou de nos alimentar, que as letras são a primeira e a última refeição de cada dia. Não podem as Cecílias por isso ou por aquilo, de repente e nas razões indiretas do que todas pensam em uníssono, ter tal desistência, adormecimento ou esquecimento. As raivas não se coadunam com as Cecílias e delas tomam distância, para não serem transformadas em bonitas figuras decorativas, em amores conquistados entre manchas sobre as toalhas de mesa, ou naquelas pequenas marcas sobre as roupas. As Cecílias têm - ou tinham - consciência do que representam - nos seus textos, muitos entremeados com figuras ou desenhos de flores ou animais de estimação, recortados e colados em seus cadernos -, para as demais pessoas que se chamam Álvaros, Américos, Marthas, Clarisses e possuem segundos nomes, como Pedros Antônios, Pedros Josés, Tânias Reginas ou Marias Antônias, Anas Marias e Paulos Cesários; as Cecílias transitam sós em seus nomes e aceitam apenas únicos sobrenomes, escolhidos para que sejam confortáveis aos poemas e deles não se destaquem nem os atrapalhem quando forem lidos ou lembrados.

Os cadernos das Cecílias estão fechados. Uns foram guardados em gavetas, sob coisas ou livros, outros ficaram sobre as mesas, escrivaninhas ou nas mesinhas de cabeceiras (desses, temos esperanças de reencontros ou revoltas) entre contas e breviários, despertadores e luzes menores. A maioria foi colocado em lugares secretos, fechados à nossa imaginação e conhecimento. Nesses repousa o mais grave: o nunca mais serem manuseados, nem sequer lembrados e terem seus poemas consumidos pelos tempos em que as Cecílias, completando as cenas, também forem se esquecendo deles e elas, trocando de nome e esquecendo que eram Cecílias, se transformem em pessoas como nós, com os nossos nomes e as nossas artimanhas, desconsiderando os poemas guardados no esquecimento com que as letras vão esmaecendo até que nos cadernos sobrem apenas alguns rabiscos em cada folha e não se possa recuperar o que foi escrito, nem ao menos saber que naquele caderno repousou uma vez uma Cecília. A criança a quem for dado o caderno terá noites de insônia, o sono agitado de quem recebe a visita de Cecílias; em cada amanhecer terá a tentação do grafite e, como ainda não sabe das palavras, preencherá folhas e folhas daqueles cadernos com figuras, traços e rabiscos e, mesmo que o que faça também possa ser poemas, não serão os poemas originais deixados pelas primeiras Cecílias. Mesmo que essas crianças perdurem em suas vontades, não alcançarão a glória dos escritos cecilianos. Serão apenas traços e rabiscos, depois letras mal enjambradas, palavras mal escritas, versos tortos de desanimados seres que vieram depois do quando as Cecílias pontuavam seus poemas no final das tardes e com cuidado guardavam seus cadernos para que as noites lhes fossem leves e seus sonos fossem calmos e não sonhassem além do que haviam escrito naquele dia e no outro e assim sucessivamente, até que o caderno fosse completado e, na verdade, para que ficassem completos, as Cecílias escreviam nas contracapas, nas terceiras capas, antes e após as últimas linhas, nas capas e nas últimas capas. Nem um espaço poderia sobrar, mesmo que para isso tivessem que diminuir as letras, juntar palavras, mudar sentidos e, finalmente, antes de passar para o próximo caderno, lançar como despedida uma última frase poética sobre o tanto que lá estava escrito, ou sobre o rapaz conhecido naquele dia, ou sobre a tristeza de ele estar completo e nele não poder ser lançado mais um verso categórico ou oscilante sobre a vida, a obra, o dia e a noite cecilianamente encerrada em nuvens e estrelas alternadas.

O fechar dos cadernos das Cecílias correu mundo; mesmo as pessoas mais broncas, mais ríspidas, mentirosas ou fascinantemente comprometidas com a escuridão e a maldade, sentiram os movimentos ritmados com que os cadernos foram fechados. O abandono da ideia que a todas permeava na certeza com que seus versos não eram entregues em cada tormento, a maneira singela e clara com que seus poemas nos consolavam. Estávamos órfãos, cada Pedro, cada Paulo, cada Regina ou Tânia, cada Marina ou Mariana, cada um que carregava dois, três ou mais nomes, porque as Cecílias de simples nomes haviam decidido sem falar umas com as outras, sem ao menos serem conhecidas entre si, que os cadernos não eram mais necessários e que a poesia (antes de se transformar em outras letras que não aquelas) havia terminado. Os cadernos, mesmo os incompletos e até mesmo aqueles que as Cecílias mais jovens estavam começando, foram fechados, assim como passa o vento diante das nossas janelas e só o sentimos se abrirmos os vidros e pusermos os braços para fora, e se encerraram sem barulhos, sons ou o mero farfalhar das folhas. São discretas as Cecílias com suas obras, com os invólucros e com os gestos. São discretas como seus olhos captando os movimentos vindos de dentro e de fora de cada uma delas: são discretas quando escondem suas lágrimas.

Estamos aqui, desceciliados, na orfandade dos versos e dos poemas completados ontem, antes e por todo o sempre. Não haverá palavra que nos defenda ou que nos arremeta ao amanhã; os amanhãs serão iguais ao ontem e cada um de nós será sua própria palavra: fúnebre, alegre ou triste, desencontrada ou arranhada em paredes. Nossos grafites estarão quebrados, nossas lanças estarão partidas, nossos sonhos estarão acordados. Ainda nos sobrarão as lâminas das facas e com elas, em último e desesperado gesto, faremos nos troncos das árvores mais próximas entalhes de corações atravessados por setas e dentro deles escreveremos com a força resultante, sempre e em cada um, o mesmo nome, repetido e no plural, pois plurais são as Cecílias que escreveram em nossas vidas os poemas mais belos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Helena Kolody (Poemas Avulsos) 2


ABISMAL

Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.
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ÂMAGO

Quem bebe da fonte
que jorra na encosta,
não sabe do rio
que a montanha guarda.
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ANOITECER

Amiudam-se as partidas...
Também morremos um pouco
no amargor das despedidas.

Cais deserto, anoitecemos
enluarados de ausências.
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ARAUCÁRIA

Araucária,
Nasci forte e altiva,
Solitária.
Ascendo em linha reta
- Uma coluna verde-escura
No verde cambiante da campina.

Estendo braços hirtos e serenos.

Não há na minha fronde
Nem veludos quentes de folhas,
Nem risos vermelhos de flores,
Nem vinhos estonteantes de perfumes.
Só há o odor agreste da resina
E o sabor primitivo dos frutos.

Espalmo a taça verde no infinito.
Embalo o sono dos ninhos
Ocultos em meus espinhos,
Na silente nudez do meu isolamento.
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ATAVISMO


Quando estou triste e só, e pensativa assim,
É a alma dos ancestrais que sofre e chora em mim.
A angústia secular de uma raça oprimida
Sobe da profundeza e turva a minha vida.

Certo, guardo latente e difusa em meu ser,
A remota lembrança dos dias amargos
Que eles viveram sem a ansiada liberdade.
Eu que amo tanto, tanto, os horizontes largos,
Lamento não ser águia ou condor, para voar
Até onde a força da asa alcance a me levar.
Ante a extensão agreste e verde da campina,
Não sei dizer por que, muitas vezes, senti
Saudade singular da estepe que não vi.

Pois, até o marulhar misterioso e sombrio
Da água escura a correr seu destino de rio,
Lembra, sem o querer, numa impressão falaz,
O soturno Dnipró, cantado por Taras...

Por isso é que eu surpreendo, em alta intensidade,
Acordada em meu sangue, a tara da saudade
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CHAMA


Chama do Absoluto,
arde o verbo em nossa lâmpada humilde.
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IDENTIFICAÇÃO


Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a mudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei na seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n’alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.

Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais glorioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.
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 MERGULHO


Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.
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POETA

O poeta nasce no poema,
inventa-se em palavras.
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PRECE

Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira d’alma alheia o espinho que magoa.
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VIGÍLIA

A noite é profunda,
Silente e de trevas.

Ao lado de teu corpo, imóvel e sereno,
Estou a contemplar-te, Pai.

Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.

Teus olhos fitam muito longe
Um olhar imensamente triste.

A chama dos círios dança sem cessar
Em tuas pupilas mortas,
Tentando desviar tua mirada
De um ponto fixo na eternidade.

Círio recôndito,
Arde meu coração e se consome.

Há longos espinhos aguçados
Esgarçando meus nervos sensíveis.

Beijo tuas mãos pálidas e tristes,
Humildes mãos cansadas,
Agora consteladas
Por líquidos brilhantes.

Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.

Fontes:
Helena Kolody, Sempre Palavra. Publicado em 1985.
Helena Kolody, Paisagem Interior. Publicado em 1941.
Helena Kolody. Infinito Presente. Publicado em 1980.

Aparecido Raimundo de Souza (Bichanos)


O PRIMEIRO GATO, um SRD* veio lá da cozinha e se acomodou no sofá da sala, de frente para a televisão:

—  Miau!...

O segundo gato (aliás, uma gata da raça Ragdolls), não demorou a entrar em cena. Deixou o quarto onde dormia numa cama confortável junto com a sua dona, ama e senhora e, como o primeiro, se abancou* também no confortável estofado, os olhos grudados na tela do aparelho:

—  Miau... Miau...

O terceiro gato, um gigantesco Maine Coon* entrou pela  janela da sala, vindo da varanda e, igualmente, num salto impecável se albergou* no seu lugar de sempre. Cada um dos animais possuía o seu assento especificado, no confortável comprido  de canto, este mobiliário dotado de braços e encostos, em formato de “em L”, de treze lugares, o que ajudava, de certa forma,  a não criar problemas entre os espectadores.

Havia, entretanto, uma diferença enorme entre este terceiro Maine Coon legítimo e o casalzinho anteriormente arribado*. Ele era por demais inteligente e sabia fazer funcionar  qualquer coisa que precisasse ser ligada. Antes de devolver os cumprimentos à dupla da sua linhagem “gatal”, com as patinhas dianteiras sobre o painel de controle jogado no chão, deu vida plena a Smart Led 82 UHD 4K LG, Ultra Surround Magic Bluetooth*.

O primeiro gato, soltou seu miado demonstrando incontestável satisfação interior:

—  Miau...

O segundo gato, ou melhor a segunda felídea*, igualmente se abrindo em mesuras, ronronou como se estivesse com a alma em festa:

—  Miau... Miauuuuuu...

O terceiro gato, em agradecimento, se mesurou num ruído prolongado,  como se agradecesse a seus consanguíneos por estarem ali presentes:

—  Miau... Miau... Miauuuuuuuu!...

Na gigantesca tela cinematográfica da Smart Led 82 UHD 4K LG, Ultra Surround Magc Bluetooth, Tom & Jerry acabava de começar.
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Glossário:
ABANCOU — Acomodou
ALBERGOU —  Sentou
ARRIBADO —  Chegado
FELÍDEA —  Raça de animais carnívoros.
MAINE COON — Raça de gatos
SMART LED 82 —  Televisão ultramoderna com tela imensa.
SRD — Sem raça definida

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 28 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 306


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Testemunha Ocular da História


Uma das vantagens de ser velho é ter sido testemunha ocular de um longo período da história (quem se lembra do Repórter Esso?). Especialmente quando se trata da história de um tempo durante o qual o progresso da humanidade deu uma cambalhota completa.

Lucilla e eu nascemos na terceira década do século 20, quando o futuro estava apenas começando. Mas já havia trem (o maria-fumaça); havia automóvel (o fordinho pé-de-bode); havia até avião (o teco-teco). O telefone era acionado com manivela, mas falava; o cinema era em preto e branco, mas já não era mudo; o rádio era chiado, mas dava para ouvir as belas serestas da época; a televisão parecia ainda coisa de ficção científica, mas já estava em processo adiantado de invenção.

Quando nasceram nossas filhas, o mundo estava bem mais avançado. A televisão já existia e começava até a transmitir em cores, o telefone falava em DDD e DDI, os aviões voavam a jato, a criançada crescia protegida por múltiplas vacinas e a música vinha gravada em long-playings, tocando Beatles e Rolling Stones, mais aquela turma toda da MPB: Jobim, Vinícius, Gil, Caetano, Vandré, Roberto, Gal, Elis...

Os netos encontraram tudo isso em versão mais moderninha ainda, e ao sair do berço já começavam a mexer com o computador, o celular e mil outras maravilhas lançadas a cada instante no mercado pela tecnologia eletrônica.

Agora já temos três bisnetos. Que será que eles vão ver que nós não vimos ainda? Sabe-se lá quantas novidades os esperam. Inventos fantásticos, certamente. Mas sobretudo sonho para eles um mundo mais justo, mais saudável, mais calmo e mais limpo, onde reinem a paz e a alegria.

Os cinco netos, cada qual na sua vez, pintaram e bordaram com o vô: montaram nas minhas costas, me levaram pra ver desenhos no cinema, lanchar na pizzaria, comprar revistinhas, passear no parque...

Com os bisnetos começou tudo outra vez. Eles inauguraram uma nova edição em nossa família, que começou pequenininha na jovem Maringá dos pioneiros, cresceu, multiplicou-se e hoje é parte de um numeroso clã.

Terão chance de chegar ao século 22, mas nem imagino como será o mundo quando tiverem a idade que tenho agora. Na mobilidade urbana usarão algum equipamento para voo individual. Nas viagens a Nova Iorque ou Paris disporão de aeronaves que farão o percurso em menos de uma hora. Contarão com algum aparelhinho tipo relógio de pulso que lhes permitirá conversar com qualquer falante de qualquer língua... E sabe-se lá mais o quê...

Deus os abençoe e lhes dê uma vida bonita e longa. E que possam ajudar a fazer deste planeta um lugar onde todos disponham de condições para viver felizes.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 21-5-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) I


ACORDES EM POESIA!

Notas fluem em harmonia
Nas pautas de um acalanto
Há um perfume de gardênia
Daí surge o meu espanto

Sobre o piano tua insígnia
Na xícara chá de amaranto
As lágrimas sem cerimônia
Deslizam por desencanto

Lembra-me da tarde outonal
Havia acordes em poesia!
Quando chega a missiva final

Enviada pela capitania
Um naufrágio sob temporal
E eu... não mais o veria…
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CASTIDADE

Vento frio!
Noite de lua cheia
No antigo casario
A solidão aperreia

Na mente recrio
Imagens da aldeia...
Você no átrio
E a luz da candeia

Lembranças arquivadas
Em épocas de felicidade
Promessas juramentadas...

Nunca concretizadas!
Optaste pela castidade
Deixaste-me na infelicidade…
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LABIRINTOS

Nada que indique o rumo
Só labirintos enevoados
A mente fora de prumo
Sentimentos atordoados

Isolado em seu quarto
Coração despedaçado
Tenta juntar os cacos
Antes que haja o enfarto

Seria simples a solução
Descartando a razão
Prevalecer só a emoção

Seriam felizes
Diante dos deslizes
Ou viveriam, sem matizes?
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LUAR DE AGOSTO    


Tanto se diz sobre o mês Agosto!
Dizem ser, época de cachorros loucos
E de acontecimento nefasto
Inclui-se ainda, dados proféticos

Um ser mergulhado, em desgosto
Inquieto a ouvir sons melódicos
Canta, esboça sorriso, a contra gosto!
Em disfarces aristocráticos

Noite fria, sob o Luar de Agosto!
A mente aturdida com incertezas
A alternativa é mudar o projeto...

Não existe sorte, e sim... ardilezas
Num ímpeto de fúria quebra o amuleto
Ao concluir, o amor necessita de proezas…
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SOM DO VENTO


Só o som do vento!
Melancólica sinfonia
Em conserto solo
Acordes finais do dia.

Torvelinho de pensamentos
Múltiplas lembranças
Tingidas de aborrecimentos
Foram tantas mudanças...

Nas desculpas a contradição!
Deixo de lado cobranças
Sempre foste ambíguo!

Viverei  o bom momento...
Não quero desavenças
Traga-me... somente alento…
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UM GRANDE SONHO

O dia amanheceu radiante
Meu coração saltitava
Seria um momento apaixonante
Logo mais o encontraria

Um grande sonho realizaria
Eis que surgiria o vendaval
E meu ideal, devastaria
Isso eu não previa... gorou o festival...

Vitima em mar de agonia
Em tridentes, enrosquei
Mergulhei nessa avaria

Do salva vidas abdiquei
Dei um basta na melancolia
E o inferno... incendiei…

Fonte:
Asas dos Sonhos

Sílvio Romero (O Bicho Manjaléu)


(Folclore do Sergipe)

Uma vez existiu um velho casado, que tinha três filhas muito bonitas. O velho era muito pobre e vivia de fazer gamelas para vender.

Um dia, chegou à sua porta um moço muito formoso, montado num belo cavalo e lhe falou para comprar uma de suas filhas.

O velho ficou muito magoado, e disse que, por ser pobre, não havia de vender sua filha. O moço disse-lhe que se não lhe vendesse, o mataria. O velho intimidado vendeu-lhe a moça e recebeu muito dinheiro.

Retirando-se o cavaleiro, o pai da família não quis mais trabalhar nas gamelas, por julgar que não o precisava mais de então em diante,  mas a mulher insistiu com ele para que não largasse o seu trabalho de costume, e ele obedeceu.

Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se outro moço, ainda mais bonito, montado num cavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velho que queria comprar-lhe uma de suas filhas. O pai ficou muito incomodado. Contou-lhe o que lhe tinha acontecido no dia antecedente, recusou-se ao negócio. O moço o ameaçou também de morte, e o velho cedeu.

Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deu mais e foi-se embora.

O velho de novo não quis continuar a fazer as gamelas e a mulher o aconselhou até ele continuar.

Na tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro ainda mais bonito, e melhor montado, e, pela mesma forma, carregou-lhe a filha mais moça, deixando ainda mais dinheiro.

A família ficou muito rica. Depois apareceu a velha pejada e deu à luz um filho, que foi criado com muito luxo e mimo.

Quando chegou o tempo do menino ir para a escola, um dia brigou com um companheiro, e este lhe disse: "Ah ! tu cuidas que teu pai foi sempre rico!... Ele hoje está assim, porque vendeu tuas irmãs !... "

O rapazinho ficou muito pensativo e não disse nada em casa, mas quando foi moço, num dia se armou de um alfanje* e foi ao pai e à mãe e lhes disse que lhe contassem a história de suas três irmãs, senão os matava. O pai lhe teve mão, e contou o que se tinha passado antes dele nascer. O moço então pediu que queria sair pelo mundo para encontrar as suas três irmãs, e partiu.

Chegando em um caminho, viu numa casa três irmãos brigando por causa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Ele chegou e perguntou o que era aquilo, e para que prestavam aquelas coisas.

Os três irmãos responderam que - àquela bota se dizia: "Bota, me bota em tal parte!" e a bota botava; à carapuça se dizia: "Esconde-me, carapuça!" e ela escondia a pessoa que ninguém a via; e a chave abria qualquer porta.

O moço ofereceu bastante dinheiro pelos objetos, os irmãos aceitaram, e ele partiu.

Quando se afastou da casa, disse: "Bota, me bota na casa de minha irmã primeira."

Quando abriu os olhos, estava lá. A casa era um palácio muito ornado e rico, e o moço mandou pedir licença para entrar e falar com a irmã, que estava feita rainha. Ela não queria aparecer, porque dizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, depois de muita instância, deixou o estrangeiro entrar. Ele contou toda a sua história, a irmã o acreditou e o tratou muito bem.

Perguntou-lhe como podia ter chegado ali àquelas brenhas, e o irmão disse-lhe o poder da bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e o irmão lhe indagou da razão, ao que ela respondeu - que seu marido era o rei dos peixes, e, quando vinha jantar, era muito zangado, em termos de acabar com tudo, e não queria que ninguém fosse ter ao palácio... O moço disse-lhe que por isso não se incomodasse, que tinha com que se esconder e não ser visto, e era a carapuça.

Pela tarde, veio o rei dos peixes, acompanhado de uma porção de outros, que o deixaram na porta do palácio e se retiraram. Chegou o rei muito aborrecido, dando pulos e pancadas, dizendo: "Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!..." do que a rainha o dissuadiu, até que ele tomou banho e se desencantou num belo moço.

Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:

– "Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu, você o que fazia ?"

- "Tratava-o e venerava como a você mesma; e se está aí, apareça".

Foi a resposta do rei. O moço apareceu, e foi muito considerado. Depois de muita conversação, em que contou sua viagem, foi instado para ficar ali, morando com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe restavam duas irmãs a visitar.

O rei lhe indagou que préstimo tinha aquela bota, e quando soube do que valia disse-lhe: "Se eu a apanhasse ia ver a rainha de Castela".

O moço, não querendo ficar, despediu-se, e, no ato da saída, o cunhado lhe deu uma escama, e disse-lhe:

– "Quando você estiver em algum perigo, pegue nesta escama, e diga: "Valha-me o rei dos peixes".

O moço saiu, e, quando se afastou do palácio, disse: "Bota, me bota em casa de minha irmã segunda", e quando abriu os olhos, lá estava. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que o outro.

Com alguma dificuldade da parte da irmã, entrou e foi recebido muito bem. Depois de muita conversa, a sua irmã do meio se pôs a chorar, dizendo que era "por estar ele aí, e, sendo seu marido rei dos carneiros, quando vinha jantar, era dando muitas marradas, em termos de matar tudo".

O irmão apaziguou-a, dizendo que tinha onde se esconder. Com poucas, chegou uma porção com um carneirão muito alvo e belo na frente, este entrou e os outros voltaram.

(Segue-se uma cena em tudo semelhante à que se passou em casa do rei dos peixes)

Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado uma lãzinha, dizendo:

– "Quando estiver em perigo, diga: "Valha-me o rei dos carneiros ".

Também disse, depois de saber da virtude da bota: "Se eu pegasse esta bota, ia ver a rainha de Castela".

O moço foi reparando nisto, e formou logo consigo o plano de ir vê-la. Saiu, e pela mesma forma foi à casa de sua irmã mais moça. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que os outros dois. (Seguem-se as mesmas cenas que nas outras duas visitas ). Era o palácio do rei dos pombos, e este, na despedida, deu ao cunhado uma pena, com as palavras :

– "Quando se vir nalgum perigo, diga: "Valha-me o rei dos pombos".

Na despedida, sabendo o rei do préstimo da bota, mostrou também desejos de ir visitar a rainha de Castela.

Logo que o moço se viu longe do palácio, disse: "Bota, bota-me agora na terra da rainha de Castela".

Assim foi. Chegado lá, ele indagou e soube que "era uma princesa que o pai queria casar, e que era tão bonita que ninguém passava pela frente do palácio que não olhasse logo para cima para vê-la na janela; mas a princesa tinha dito ao rei que só se casava com o homem que passasse por ela sem levantar a vista."

O estrangeiro foi passar, e atravessou toda a distância sem olhar, e a princesa casou com ele.

Depois de casados, ela indagou pelo significado daqueles objetos que seu marido sempre trazia consigo. Ele tudo lhe contou, e a princesa prestou muita atenção ao prestígio da chave.

O rei, seu pai, tinha em palácio um quarto que nunca se abria, e neste quarto, onde era proibido a todos entrar, estava, desde muito tempo, trancado um bicho Manjaléu, muito feroz, que sempre o rei mandava matar e sempre revivia. A moça tinha muita curiosidade de o ver, e, aproveitando a saída do pai e do marido para uma caçada, pegou na chave encantada e abriu o quarto. O bicho pulou de dentro, dizendo: "A ti mesmo é que eu quero!..." e fugiu com ela para as brenhas.

Quando voltaram os caçadores, deram por falta da princesa, e ficaram muito aflitos, o rei foi ao quarto do Manjaléu, e achou-o aberto e vazio, e o novo príncipe conheceu a sua chave... Depois valeu-se de sua bota e foi ter aonde estava a sua mulher.

Esta, quando o viu, estando ausente o Manjaléu, ficou muito alegre, e quis ir-se embora com ele. Mas o marido não consentiu, dizendo que ela ficasse ainda para indagar do monstro onde estava a sua vida, para assim dar-se cabo dele. O príncipe foi-se embora. Quando o Manjaléu voltou, conheceu que ali tinha estado bicho homem; a moça o dissuadiu, e quando ele se acalmou, ela lhe perguntou onde estava a sua vida. O monstro zangou-se muito, e disse: “ – Ah! tu queres saber de minha vida mais o teu marido, para darem cabo de mim!... Não te digo, não..."

Passaram-se dias, sempre a moça instando. Afinal, ele foi amolar um alfanje, dizendo: "Eu te digo onde está a minha vida; mas se eu sentir qualquer incômodo, conheço que ela vai em perigo, e, antes que me matem, mato a ti primeiro, queres!?"

A princesa respondeu que sim. O Manjaléu amolou o alfanje, e disse-lhe: "Minha vida está no mar; dentro dele há um caixão, dentro do caixão uma pedra, dentro da pedra uma pomba, dentro da pomba um ovo, dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar eu morro".

O bicho saiu e foi procurar frutas. Chegou o príncipe e soube de tudo e foi-se embora. O Manjaléu veio e deitou-se no colo da moça com o alfanje ali perto. O príncipe chegou com a sua bota à praia do mar num instante; lá pegou na escama , que tinha, e disse: "Valha-me o rei dos peixes!" De repente uma multidão de peixes apareceu, indagando o que ele queria.

O príncipe perguntou por um caixão que havia no fundo do mar. Os peixes disseram que nunca tinham visto, e só se o peixe do rabo cotó soubesse. Foram chamar o peixe do rabo cotó, e este respondeu: "Neste instante dei uma esbarrão nele."

Todos os peixes foram e botaram o caixão para fora. O príncipe abriu e deu com a pedra; aí pegou na lãzinha e disse: "Valha-me o rei dos carneiros!" De repente apareceram muitos carneiros e entraram a dar marradas na pedra. O Manjaléu lá começou a sentir-se doente, e dizia: "Minha vida, princesa, corre perigo!" E pegou no alfanje; a moça o foi dissuadindo e engambelando. Os carneiros quebraram a pedra e voou uma pomba. O príncipe pegou na pena e disse: "Valha-me o rei dos pombos!" Chegaram muitos pombos e correram atrás da pomba, até que a pegaram. O príncipe abriu-a e achou o ovo.

Quando estava nisto, lá o Manjaléu estava muito desfalecido, pegou no alfanje e ia dando um golpe na princesa. Foi quando cá o príncipe quebrou o ovo, e apagou a vela; aí o bicho caiu sem ferir a moça. O príncipe foi ter com ela, e levou-a para palácio, onde houve muitas festas.
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Nota de Luís Câmara Cascudo:

São muitas as versões portuguesas deste conto em Adolfo Coelho. Contos populares portugueses, Teófilo Braga, Contos tradicionais do povo português. Figura em toda literatura oral europeia. Os irmãos Grimm registraram-no, Die Kristallkuger, amplamente estudados por Bolte e Polivka, nas variantes e com abundante bibliografia, Anmerkungen zu den kinder und hausmärchen der bruder Grimm. Muito popular na Itália, onde foi recolhido pelos mestres Comparetti, Pitrè, Imbriani, figura nos contos sicilianos de Laura Gonzenbach e no Pentamerone de Giambattista Basile. Brueyere encontrou-o na Grã Bretanha. O elemento da alma exterior ou da vida exterior do bicho Manjaléu (de Aarne-Thompson, (The Ogre's Heart in the Egg ) é um dos motivos mais universais na novelística popular, aparecendo no conto egípcio dos Dois Irmãos, há trinta e dois séculos. A vida ou a alma de Batau estava guardada numa flor de cedro. Pelo enredo o conto é um dos melhores exemplos de convergência, possibilitando grande número de variantes sobre os objetos mágicos, os animais que são soberanos encantados (Three Animals as Brothers-in-law, de Aarne-Thompson), a external soul do monstro, etc. O Bicho Manjaléu corresponde a Les Trois Filles Vendues, Contes populaires canadiens, Marcel Rioux. Muitos elementos do bicho Manjaléu ocorrem no conto do Pentamerone de Giambattista Basile, The Three Animal Kings, com as notas de Penzer, Londres, 1932. Prova sua expansão na Itália na segunda metade do séc. XVI e primeira décadas do séc. XVII.

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Vocabulário:
Alfanje
– Sabre de folha curta e larga.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

sábado, 27 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 305


Fernando Sabino (O Enviado de Deus)


Fazia um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma. O meu fusca deslizava dócil no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizera a barba e, metido além do mais num terno novo, saíra para enfrentar com otimismo a única perspectiva sombria naquela manhã de cristal: a da hora marcada no dentista.

Mas eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humilde se aproxima de meu carro.

— Moço, me dá uma carona até a cidade?

O que mais me impressionou foi a espontaneidade com que respondi:

— Eu não vou até a cidade, meu filho.

Havia no meu tom algo de paternal e compassivo, mais que suficiência na minha voz! Que segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal se abria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.

Logo uma voz que não era a minha saltou dentro de mim:

— Por que você mentiu?

Tentei vagamente justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto...

— Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja ridículo.

Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu não admitia impertinência. E nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera muito bem, por que diabo ele não podia tomar um ônibus? Que fosse pedir a outro, certamente seria atendido. Mas a voz insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás de mim, também havia recusado, despachando-o com um gesto displicente. Nem ao menos dera uma desculpa qualquer, como eu. Não contaria com ninguém, o pobre diabo. Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele não dispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.

E eu no meu carro, de corpo e alma lavada, todo feliz no meu terninho novo.

Comecei a aborrecer o terno, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do túnel a voz agora ganhara o eco da própria voz de Deus:

— Não custava nada levá-lo.

Não, Deus não podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma simples carona?

Ah, sim? Pois então eu ficasse sabendo que aquele era simplesmente o teste, o Grande Teste da minha existência de homem. Se eu pensava que Deus iria me esperar numa esquina da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minha oportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meu destino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova definitiva. Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora só para disfarçar — Deus é muito disfarçado.

Agora o terno novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente para as profundas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um anjo abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.

— Não tem dúvida: aquele cara me estragou o dia — resmunguei, aborrecido, acelerando mais o carro a caminho da cidade.

Quando dei por mim, já em Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda, sem saber por quê, de volta em direção ao túnel.

Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder o dentista — o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego agora me obrigaria a refazer todo o percurso.

Como explicar-lhe, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara para buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.

Estava. Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, ainda postulando condução. Detive o carro a seu lado. Justificando meu regresso, gaguejei uma desculpa qualquer, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe oferecia: sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu ter voltado para buscá-lo.

Era mesmo alguém que pedia condução simplesmente porque não tinha dinheiro para o ônibus. Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir — o que já é outra história.

Só não me pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, ainda por cima, Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.

Fonte:
Fernando Sabino Deixa o Alfredo Falar!, crônicas e histórias curtas. Publicado em 1976.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XVII


IDADE DE JAMBEIRO

MOTE:
Quando o sol acende a terra
e varre da noite os breus,
em Jambeiro, ao pé da serra
posso ver a mão de Deus!

Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Quando o sol acende a terra

com sua luz tão bonita,
termina, da noite, a guerra,
numa ternura infinita!

Quando ele chega radiante
e varre da noite os breus,
seu brilho desafiante
ilumina os sonhos meus!

Enorme beleza encerra,
feito um começo de vida,
em Jambeiro, ao pé da serra,
essa cidade querida!

O Sol é vida e calor,
e ao sentir os raios seus,
me embriagando de amor,
posso ver a mão de Deus!
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AMOR DE MENTIRINHA

MOTE:

Mentindo em cada estrelinha,
com tanta sinceridade,
nosso amor de mentirinha
parece até que é verdade!

Elisabeth Souza Cruz
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Mentindo em cada estrelinha,

deste céu do nosso amor,   
foste essa ilusão tão minha,
com tua luz, teu fervor!

O nosso amor mentiroso,
com tanta sinceridade
sabia ser bem gostoso,
nessa nossa intimidade!

De todos é diferente,
as tuas juras de amor!
Nosso amor de mentirinha    '
jamais conheceu a dor!

Eu nem sei o que pensar,
será sonho ou realidade?
Mas, é bom, assim, amar...
parece até que é verdade!
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ILHA DO FADO

MOTE:

Se o fado se canta e reza
como triste melodia.
Bendita seja a tristeza
que me dá tanta alegria.

Euclides Cavaco
Coimbra/Portugal


GLOSA:

Se o fado se canta e reza
vamos rezar e cantar,
pois cantar, a ninguém lesa,
e é tão bom, quanto abraçar!

Às vezes, o fado soa
como triste melodia,
que ao mesmo tempo, abençoa;
o fado é pura magia!

Clamo sempre na defesa
de qualquer fado que ouvir!
Bendita seja a tristeza
que ele me faça sentir!

Meu coração se engalana
quando o fado o acaricia,
sinto que tem alma humana,
que me dá tanta alegria.
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LETRAS NA AREIA

MOTE:

Este amor que me consome
e esta saudade - entonteia!…
Traço nas dunas teu nome
e beijo as letras na areia!...

Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013


GLOSA:
Este amor que me consome

mais aumenta a cada dia,
é natural que ele tome
aquela antiga alegria!

Sinto uma imensa saudade
e esta saudade - entonteia!...
Sem peso, sem equidade,
a minha razão cerceia!

Do teu amor, tendo fome,
me lanço às praias, sorrindo,
traço nas dunas teu nome,
teu nome, tão doce e lindo!

Louco de amor e paixão,
eu espero a Lua cheia,
que ilumina a praia, então,
e beijo as letras na areia!...
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FALAR OU CALAR

MOTE:

Quem quer dizer o que sente
não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente;
cala, parece esquecer.

Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935


GLOSA:
Quem quer dizer o que sente

fica às vezes, indeciso,
saber viver o presente
é necessário, é preciso!

As palavras vão sumindo,
não sabe o que há de dizer
de repente, se vão indo,
sem saber o que fazer!

Se fala, eloquentemente,
as dúvidas o atropelam,
fala: parece que mente;
e as palavras se esfacelam!

Se fica mudo, é pior!
Onde a coragem de ser
quer tornar tudo melhor,
cala, parece esquecer.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2007.

A Literatura Portuguesa (Trovadorismo: Novelas de Cavalaria) III

NOVELAS DE CAVALARIA


O Trovadorismo ainda se caracteriza pelo aparecimento e cultivo das novelas de cavalaria. Originárias da Inglaterra ou/e da França surgira a partir das canções de gesta, antigos poemas de temas guerreiros, que em Portugal foram traduzidos, com algumas modificações que buscavam adaptar as novelas à realidade de Portugal.

Circulava entre a nobreza e, traduzidas do Francês, era natural que na tradução e cópia sofresse voluntárias e involuntárias alterações com o objetivo de adaptá-las à realidade histórico-cultural de Portugal.

Convencionou-se agrupar as novelas de cavalaria em três ciclos:

1) ciclo bretão ou arturiano, tendo o Rei Artur e seus cavaleiros como protagonistas;

2) ciclo carolíngio, em torno de Carlos Magno e os doze pares de França;

3) ciclo clássico, referente a novelas de temas greco-latinos.

As novelas de cavalaria têm uma forte conotação religiosa e eram permeadas por ensinamentos cristãos implícitos no enredo das histórias, refletiam o vulto à vida espiritual, a busca pela perfeição moral, a valorização de qualidades como a honra, a bravura, a castidade, a lealdade, a generosidade, a justiça entre outras. Chegaram aos nossos dias as seguintes novelas:
Amadis de Gaula, História de Merlim, José de Arimatéia e A Demanda do Santo Graal.

Amadis de Gaula marca com relevância a ficção da época, através do enredo amoroso e guerreiro, bem ao gosto do gênero, do cavaleiro perfeito, destruidor de monstros, tímido e heroico, apaixonado e fiel a sua amada Oriana, seguindo o modelo dos cantares de amor. A novela surpreende, sobretudo, pela atmosfera de sensualidade que une o par amoroso, em especial pelo fato da amada ter-se oferecido, gentilmente, antes do casamento.

A Demanda do Santo Graal é uma novela mística, tem começo numa visão celestial de José de Arimatéia e no recebimento dum pequeno livro (A demanda do Santo Graal). José parte para Jerusalém; convive com Cristo, acompanha-lhe o martírio da Cruz, e recolhe-lhe o sangue no Santo Vaso. Deus ordena-lhe que o esconda. Tendo-o feito, morre em Sarras. O relato termina com a morte de Lancelote: seu filho, Galahad (Galaaz), irá em busca do Santo Graal.

Conforme Massaud Moisés “(...) A Demanda do Santo Graal contém o seguinte: em torno da "távola redonda", em Camelot, reino do Rei Artur, reúnem-se dezenas de cavaleiros. É véspera de Pentecostes. Chega uma donzela à Corte e procura por Lancelote do Lago. Saem ambos e vão a uma igreja, onde Lancelote arma Galahad cavaleiro e regressa a Camelot. Um escudeiro anuncia o encontro de maravilhosa espada fincada numa pedra de mármore boiando n'água. Lancelote e os outros tentam arrancá-la debalde. Nisto, Galahad chega sem se fazer anunciar e ocupa a seeda perigosa (= cadeira perigosa) que estava reservada para o cavaleiro "escolhido": das 150 cadeiras, apenas faltava preencher uma, destinada a Tristão. Galahad vai ao rio e arranca a espada do pedrão. A seguir, entregam-se ao torneio. Surge Tristão para ocupar o último assento vazio.

Em meio ao repasto, os cavaleiros são alvoroçados e extasiados com a aérea aparição do Graal (= cálice), cuja luminosidade sobrenatural os transfigura e alimenta, posto que dure só um breve momento. Gawain (em português Galvão) sugere que todos saiam à demanda (= à procura) do Santo Graal. No dia seguinte, após ouvirem a missa, partem todos, cada qual por seu lado.

Daí para frente, a narração se entrelaça, se emaranha, a fim de acompanhar as desencontradas aventuras dos cavaleiros do Rei Artur, até que, acaba, por perecimento ou exaustão, ficam reduzido a um pequeno número, e Galahad, em Sarras, na plenitude do ofício religioso, tem o privilégio exclusivo de receber a presença do Santo Vaso, símbolo da Eucaristia, e, portanto, da consagração de uma  vida inteira dedicada ao culto das virtudes morais espirituais e tísicas.

A novela ainda continua por algumas páginas com a narrativa do adulterino caso amoroso de Lancelote, pai de Galahad, e de D. Guinevere, esposa do Rei Artur. Tudo termina com a morte deste último”.

continua…

Fontes:
Célio Antonio Sardagna. Literatura Portuguesa. UNIASSELVI, 2010.
Massaud Moisés. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2.

Imagem = Cola da Web

Figueiredo Pimentel (O Sargento Verde)



Formosa, elegante, bem prendada, era Carolina, filha dum importante capitalista, que vivia na cidade do Ouro.

Um dia, apresentou-se no palacete paterno um moço muito bem apessoado, que vinha pedi-la em casamento. A rapariga exultou de alegria; e, com grande satisfação dos pais aceitou-o.

Marcaram o dia das núpcias.

À noite, enquanto os convidados dançavam e folgavam, N. S. da Conceição, que era madrinha de Carolina, apareceu-lhe, e disse-lhe:

– Minha filha: fica sabendo que te casaste com o diabo, metido na figura desse bonito moço. Não faz mal, porém. Logo mais, ele há de te levar para casa. Deves, então, dizer a teu pai, que queres ir montada no cavalo mais magro e mais feio que aqui houver. Quando chegares à encruzilhada do caminho, teu marido há de tomar a direita; tu tomarás a esquerda, mostrando-lhe o teu rosário. Verás, então, o que acontecerá.

Perto da meia-noite, o marido manifestou desejos de se retirar, mandando selar os cavalos. Para Carolina veio um esplêndido alazão, muito gordo e lustroso. A moça, porém, recusou-o, declarando que só montaria no animal mais feio, magro e lazarento que houvesse na estrebaria.

O pai admirou-se muito daquele pedido, mas acedeu aos desejos da filha.

Os noivos cavalgaram e partiram.

Chegando ao lugar em que a estrada fazia uma cruz, o demônio quis que a moça tomasse a direita, e fosse adiante.

– Não! Vá você na frente, que sabe o caminho de sua casa. Eu nunca fui lá, respondeu Carolina sem mais demora.

Tomou a esquerda, e mostrou-lhe o rosário.

Ouviu-se, então, um grande berro, que o diabo soltou. A terra abriu-se. Sentiu-se forte cheiro de enxofre, e o demônio sumiu-se para as profundezas do inferno.

Carolina disparou o cavalo, até chegar muito longe. Aí, cortou os cabelos, e vestiu uma roupa de homem – calça, colete e paletó, feitos de uma fazenda verde, completamente verde.

Continuou a viagem, e chegou à capital do reino, onde foi servir no exército. Sendo promovida, pouco depois, ao posto de sargento, ficou sendo conhecida por sargento Verde.

O rei, ao ver aquele formoso inferior das suas guardas, tomou-lhe grande amizade, e destacou-o para sua ordenança particular, querendo-o sempre em sua companhia.

A rainha apaixonou-se por ele; e tentou seduzi-lo, chegando mesmo a propor-lhe casamento, porque naquele país toda a gente podia casar-se quantas vezes quisesse. No entanto, o sargento Verde recusou trair o seu soberano.

Em vista disso, a rainha foi ao marido e disse-lhe:

– Saiba vossa majestade que o sargento Verde declarou ser capaz de subir e descer as escadas do palácio, montado no seu cavalo, a toda a brida, dançando e atirando ao ar três ovos, e aparando-os, sem que nenhum deles caia e se quebre.

O rei mandou chamá-lo e perguntou se era verdade aquilo.

– Eu não disse tal coisa, real senhor! Mas como a rainha, minha senhora, o afirmou, vou tentar fazê-lo.

O sargento Verde saiu dali muito triste, e sentou-se à porta da casinha que lhe haviam dado para morar, quando seu cavalo o sossegou, dizendo:

– Não tenha receio. No dia marcado, faça o que tem de fazer.

Assim sucedeu; e a rainha ficou desesperada, vendo-o executar fielmente o que ela havia inventado
***

Algum tempo depois, ela tentou novamente seduzi-lo; mas, como da primeira vez, ele não quis atraiçoar o rei.

– Saiba vossa majestade que o sargento Verde disse ser capaz de plantar uma laranjeira pequenina, à hora do almoço e que, à hora do jantar, já estará carregada de laranjas.

O rei chamou-o, e mandou fazer aquele milagre, e tendo o sargento consultado o seu cavalo, conseguiu executá-lo, com grande mágoa da rainha, que queria vê-lo enforcado.

Mas a perversa criatura nem por isso cessou de persegui-lo; e, pela terceira vez, dirigiu-se ao rei:

– Saiba vossa majestade que o sargento Verde declarou ser capaz de ir ao fundo do mar, e tirar a princesa, que ali está encantada.

Carolina, dessa vez, quase morreu de desânimo, julgando impossível sair-se bem daquela dificílima empresa.

O cavalo, porém, acalmou-a, aconselhando:

– Muna-se a senhora de um garrafão de azeite, um punhado de cinza e um agulheiro. Monte em mim; chegue à praia, e, com a espada corte as ondas em cruz, que as águas hão de se abrir. Entre pelo mar adentro, chegará à caverna, onde jaz a princesa encantada. Aí encontrará um dragão marinho, que guarda a moça. Roube-a, monte-a na garupa, e corra a todo galope. O monstro há de persegui-la. Assim que estiver quase a nos pegar, derrame primeiro o azeite, depois a cinza e, por último, o agulheiro.

Carolina procedeu como lhe ensinara o cavalo. Entrou no mar, raptou a princesa, e partiu a toda velocidade.

O dragão marinho perseguiu-a. Quando ia quase pegando-a, ela derramou o garrafão de azeite, formou-se uma grande lagoa, onde o dragão se meteu, quase se afundando.

Conseguiu, finalmente, vencer o primeiro obstáculo, e seguiu no encalço dos fugitivos. Ia novamente alcançá-los. Carolina despejou a cinza. Formou-se um nevoeiro espesso atrás dela, como se fosse uma montanha.

O monstro, depois de inúmeras dificuldades, passou e voou. Ia quase pega não pega o sargento Verde, quando este espalhou o agulheiro. Apareceu uma cerca de espinhos, que entraram no corpo do dragão marinho, matando-o logo.

Chegando ao palácio, o sargento Verde contou a sua história, e voltou a ser a formosa Carolina.

A rainha foi condenada à morte, para castigo das suas diversas mentiras.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 304


Carlos Drummond de Andrade (A Noite da Revolta)


— Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.

— Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.

— Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.

— Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.

— Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.

— Experimente, Artur. Só esta noite.

— Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.

— Ah, Artur, você é a cruz da minha vida. Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?

— Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.

— Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o Carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.

— Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!

— Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 6


ARRANJOS

Fosse o amor
mera referência
estatística

o beijo trocado
o expoente
no abraço dado
em divisões

o sim anunciado
em coerente resultado

a vida impõe
o fortuito e a doença
retém o imponderável

o cosmo e o caos
se entrelaçam
na vontade
desconsiderada.
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CONCRETO

Onde desperto
concreta base
inutiliza a vista
do que avisto

paredes
vidros
janelas

concretada paisagem
em altos prédios
onde escondemos
os corpos

fosse ruim a terra bruta
conservada no frescor
do tempo em contato

concretizados
nos recolhemos
em janelas fechadas.
****************************************

LUGAR


No lugar delimitado
das escavações
reduz a pó
o nada
encontrado
sagrado lugar
desabitado
por milênios

faz a sua casa
e senta na varanda
ao entardecer

a paisagem
destrava as portas
e pela abertura
antevê o restante.
****************************************

TROCAS

Além do instante
o trapiche
o barco
a vida dividida
em terra
e água

saber do encontro
entre a chegada
a criação
e a saída

a troca pela afirmação
do corpo na perseguição
das distâncias
e a ânsia
com que procuro
me abrigar ao contato.
****************************************

VEZES


Às vezes a vida
se desprograma
e o padrão
explode
em acontecimentos
inusitados
com que atravessa
o espaço
e ganha a terra
prometida

a vida retorna ao tanto
oferecido na média retórica
com que os dias se reapresentam

ficam gostos e imagens
fragmentados aos poucos
no tempero com que nos avistamos
no espelho.
****************************************

VOLTAR


Quando nossos ancestrais vieram
livres da pobreza europeia
no mundo novo
ganharam espaços
para nos gerarem

não nascemos em terras
secas entre guerras

vicejamos na ignorância
suprida pelo espaço oferecido

perdida a história
sonhamos a volta
aos vales verdejantes
que poderiam ter sido
e não foram.
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VONTADES


Tantas vezes fui embora
                     para sempre
como parar de fumar
                    nunca mais
ou dizer a primeira
mentira do dia

o sempre se mostra perto
e o retorno se faz
                   rápido
como voltar a fumar
ou dizer a primeira mentira
                       do dia

amanhã irei embora
                      para sempre
e levarei os cigarros.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Arthur de Azevedo (Os Compadres)


Um dia o Simeão, que não vinha ao Rio de Janeiro havia dezoito anos, abalou-se de Macaé, e o seu primeiro cuidado, ao chegar ao Pharoux, foi procurar o irmão, o José, de quem não tinha novas nem mandados.

Não lhe foi difícil encontrá-lo numa estalagem do morro do Castelo, onde vivia em companhia da mulher, que acumulava as funções de cozinheira, lavadeira e engomadeira, e de um filho de seis anos, travesso como um demônio.

O Simeão ficou muito aborrecido quando o irmão lhe confessou que não tinha ofício nem benefício, e vivia de expedientes.

- Não tens de que te aborrecer, Símeão: podia ser pior! O grande caso é que nesta choupana almoça-se, janta-se e há mesmo épocas em que se ceia! £ preciso que saibas uma coisa: não ganho vintém que não seja honestamente ganhado. Meto por aí, furo daqui, furo dacolá, e arranjo sempre alguma coisa com que aguentar a vida! Que horas tens no teu relógio?

- Três e um quarto.

- As cinco devo estar em casa do Dr. Paiva, que me mandou chamar. Para quê? Não sei; mas com certeza é para me dar alguma coisa a ganhar. Sei que ele está para amarrar-se com a filha de um negociante da Rua de São Pedro; é, talvez, para alguma comissão relativa ao casamento.

Às 4 horas o José saiu de casa, em companhia do irmão. Desceram o morro e subiram a Rua de São José.

Em caminho encontraram-se com um sujeito gordo, que, ao passar pelo José, gritou:

- Adeus, compadre!

- Quem é? - perguntou Simeão.

- O Rodrigues, uma das primeiras fortunas do Rio de Janeiro.

- É teu compadre?

- É.

Chegaram à avenida, e cruzaram-se com um coronel do Exército, a quem o José saudou com estes termos:

- Boa tarde, Sr. Compadre.

- Boa tarde.

- Também é seu compadre? - perguntou o irmão.

- Também; eu tenho muitos compadres, e são todos homens de posição e fortuna!

- Tens muitos compadres? Quantos?

- Oito.

- Ora essa!

- De que te admiras?

- Eles convidaram-te para padrinhos dos filhos?

- Não; fui eu que os convidei para padrinhos do meu.

- Que diabo de trapalhada é esta? Tu só tens um filho; como podes ter oito compadres?

- A ti o digo porque és meu irmão: meu filho foi batizado oito vezes!

- Oh! sacrilégio!.

- Sacrilégio por quê?... Ele é oito vezes cristão!.

- Mas que ideia a tua!

- Pois então! Eu já não te disse que vivo de expedientes?

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Aparecido Raimundo de Souza (Fui não Indo)

Texto corrigido e com vocabulário


MEU LADO BOM queria ir. Meu LADO MAU não. Meu coração batia descompassado sinalizando: “vai, vai, vai, não perca essa oportunidade. Lute, esbraveje. Não se entregue. Pode ser a sua única chance de ser feliz”.  Meu Lado Mal, como que parafusado ao chão, não saia do lugar, me detinha e me aprisionava. Havia uma guerra dentro de mim onde pelejavam dois exércitos distintos. Um comandado pelo Meu Lado Bom tentava me dar forças, me ver alegre e para cima, me fazer sentir inteiro e sem me privar da vontade de viver.

O outro, frenteado* pelo meu Lado Mau, objetivava a minha decadência, a minha derrota, o meu fracasso. Por isso me agaturrava*. O ar que eu respirava incomodava os soldados dessa tropa. Por essa razão, ele fazia de tudo para que eu não continuasse respirando. Tampouco enxergasse a tenuidade* da luz no final do túnel. Meu Lado Bom queria ir, desatar as amarras, soltar as correntes que me engalfinhavam os passos, que me jungiam* ao desespero. O Lado Mal, intransigente e voraz, dava o contra.

Terminantemente se propunha a não me deixar desvencilhar do cativeiro que me servia de clausura. Colado a esse percalço, alguma coisa mais forte que eu desconhecia completamente me freava, me continha os ímpetos, me domesticava, impedindo que eu alcançasse o futuro. E ele, o futuro portentoso, por sinal, estava logo ali à minha frente. Passos apenas. Nossa mente é como um computador de última geração. Às vezes, dá um tilte. Piripaqueia* se indispondo com algum componente que deixou de funcionar por razões desconhecidas. Do nada o equipamento entra em parafuso, apesar de toda essa modernização que os especialistas chamam de tecnologia de ponta.

Comigo aconteceu assim. Meu Lado Bom apesar de se arrostar*, derreou acabado e vencido. Meu Lado Mal regurgitou de alegria. Deu pulos e saltos. Cambalhoteou diante das anormalidades que me martirizavam. De repente, tomei um choque. Acordei para a realidade. Resolvi me divorciar de todas as aberrações e monstruosidades que me apoquentavam a alma profanada. Meu coração, quase afônico, dava forças, não desistia da empreitada: “vai, vai, vai, não perca essa oportunidade. Lute, esbraveje. Não se entregue. Pode ser a sua única chance de ser feliz”.

Ensandecido pelo baque, arregalei os olhos. Criei uma espécie de coragem atlética de ocasião derradeira. Nessa energia de espírito positivamente “duzentosevinteada” e afoita, eu, arrojado, senhor de mim, rei da cocada preta, não pensei duas vezes. Meti os pés. Fui. Viajei sem sequer me preocupar com meus anseios mais prementes.  Evoluí. Trespassei meus medos, alanceei* meus receios. Rompi, de cabo a rabo, “meu todo não querer”. Atropelei meu Lado Mal com força e coragem. Pervaguei* com ânimo e esperança e segui desvairado como barco navegando por águas novas de um mar desconhecido.

Pior fiz. Parti para o tête-à-tête como um trator de rolo compressor à sanha de Sansão destruindo os obstáculos como barricadas de filisteus postas à minha frente. Apesar de me sentir poderoso e invencível como o lendário nazireu*, igualmente indomável e indestrutível como o temido “caveirão da polícia civil” usado nas favelas do Rio de Janeiro, todos os esforços redundaram malogrados e improfícuos. Descobri final de tudo, ter agido como um estouvado leviano, apesar de me esforçado tentado e pelejado com unhas e dentes, mandíbulas e queixadas.

De verde e amarelo me ferrei. Resultaram inúteis meus trocentos “predicados hostilizadores”. Quando voltei a me “embigodear” com os nus e os crus que se projetaram logo em seguida diante de meu espanto, dei conta de que, apesar do choque, realmente eu fui. Fui, porém não indo. Como assim, não indo?! Simples! Alguém cortou a minha corrente elétrica diretamente na caixa de barramento. O choque veio abrupto e se “pirulitou” repentinamente como entrou em cena. Em verdade, o que pretendo dizer ainda que em sentido figuradamente metafórico, está muito transparente.

Fui ficando. E ficando, logicamente não fui. Diante disso, de novo a desolação frustrante de voltar cabisbaixo ao ridículo indigesto da estaca zero. Fundo do poço. Rua sem saída. Nesse soco violento em meio à fuça, restituí minha sede de me entregar ao ostracismo. Igualmente ao recuo dos meus objetivos, me alienei me sujeitei fraquejado ao degredo dos meus próprios sonhos. À ataraxia* me inerciei de não rinhar, de não tentar de novo, e de novo e de novo... E uma vez mais. De não me encrespar afincadamente nos objetivos a que me propunha.

Nesse roldão da plenitude a meu favor, modorrei. Enfim, desanimei e me couracei* da felicidade etérea. A partir dai definitivamente adveio o FIM. Com certeza, engraçadinhos de plantão farão piadas sem graça, do tipo essa, como exemplo: “quem mandou não pagar a conta no vencimento?”. Em conclusão, brincadeiras à parte, a lição que pretendo deixar de tudo o que aqui foi dito é a seguinte: jamais permita que o seu Lado Mal predomine, sobressaia e esmague o seu Lado Bom.

Mova todas as tentativas de transtornos, aborrecimentos, discórdias e angústias de seu caminho. Alimente dentro de você a visão constante e apropriada, indefectível e ininterrupta daquela luz-chama divina que não se apaga por nada desse mundo. Fique atento: não durma no ponto. Vigie, espreite, policie, bisbilhote e pastoreie. A vida é muito curta, atarefada, ligeira e resumida. Demasiadamente breve e azafamada. Impulsiva e passageira, sobretudo passageira para que o escudo da desventura faça parte assídua do seu dia a dia.
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Vocabulário:
Agaturrava – segurava.
Alanceei – Golpeei.
Arrostar – defrontar.
Ataraxia – qualquer sensação, fugaz ou permanente, de serenidade, tranquilidade, calma.
Couraçei – blindei.
Frenteado – enfrentado.
Jungiam – submetiam.
Nazireu – era uma pessoa que se consagrava de maneira especial a Deus durante certo período de tempo.
Pervaguei – andei sem destino.
Piripaqueia – tem chilique, tem ataque nervoso.
Tenuidade – condição ou estado do que é tênue.

Fonte:
texto enviado pelo autor.