quarta-feira, 17 de junho de 2020

Fernando Sabino (O Dia da Caça)

 
A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos  de  pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.

- Seu Chico vai trazer as espingardas?

- Vai. E cachorro também.

- Cachorro? Para que cachorro?

Olhei com pena meu companheiro de aventura:

- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?

-  Ele disse que hoje vai ser só passarinho.

- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...

Em pouco chegava seu Chico, todo animado:

-  Tudo  pronto, meninos?

De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas  de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor  saracoteava um cachorro: - O melhor perdigueiro destas redondezas.

Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:

- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.

Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do  pasto.

Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:

- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!

- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?

- Aquele touro é uma vaca.

A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.

- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.

Fomos passando com jeito perto da vaca.

- Bom-dia, disse  eu.

- Buu - respondeu ela.

Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.

- É agora! Me dá aqui a espingarda!

- Fiquem quietos – comandou seu Chico, num sussurro.

- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...

        Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou voo espadanando as asas.

- Fogo! Fogo!

Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.

- Cuidado!

- Que bicho é esse?

Seu Chico suspirou, resignado:

- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.

No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou  novamente  nossas  espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o ar.

- Vira isso pra lá!

- Agora! Fogo!

Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco voador.

- Assim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...

- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que é.

Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.

- Nem ao menos uma codorninha – suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu.

- Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.

Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. O estômago começou a doer.

- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.

- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.

Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado  num  toco  – desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão  do  pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar  carrapatos.  Seu  Chico  desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.

- Cuidado, Paulo! Preveni. - Olha a vaca.

Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:

- Buuu! fez com desprezo.

A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:

- Foge! Foge!

Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.

- Seu Chico! Socorro!

Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.

- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.

Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:

- Errei até em anu.

Procuramos consolá-lo:

- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.

Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu  nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos demos um grito:

- Epa! Que é aquilo?

- Você viu?

Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali, surgindo lá uma cegonha?

- Cegonha nada! Uma avestruz!

Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.

- Socorro! berrou a avestruz.

Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!

- Pum!

- Socorro!

E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.

Pum! - trovejava a espingarda.

- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.

A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas  da  cidade. Voltamos  para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos  com alegre expectativa:

- E então? Caçaram alguma coisa?

— Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase  apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz  deste tamanho...

O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:

- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina!

Imagine o susto da coitadinha!

Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.

- Que vamos ter hoje no jantar? perguntei à cozinheira.

- Galinha ao molho pardo.

- Já matou?

- Não.

Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:

- Não faça isso! O crime não compensa.

E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.

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