A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos de pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.
- Seu Chico vai trazer as espingardas?
- Vai. E cachorro também.
- Cachorro? Para que cachorro?
Olhei com pena meu companheiro de aventura:
- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?
- Ele disse que hoje vai ser só passarinho.
- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...
Em pouco chegava seu Chico, todo animado:
- Tudo pronto, meninos?
De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor saracoteava um cachorro: - O melhor perdigueiro destas redondezas.
Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:
- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.
Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do pasto.
Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:
- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!
- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?
- Aquele touro é uma vaca.
A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.
- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.
Fomos passando com jeito perto da vaca.
- Bom-dia, disse eu.
- Buu - respondeu ela.
Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.
- É agora! Me dá aqui a espingarda!
- Fiquem quietos – comandou seu Chico, num sussurro.
- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...
Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou voo espadanando as asas.
- Fogo! Fogo!
Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.
- Cuidado!
- Que bicho é esse?
Seu Chico suspirou, resignado:
- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.
No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou novamente nossas espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o ar.
- Vira isso pra lá!
- Agora! Fogo!
Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco voador.
- Assim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...
- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que é.
Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.
- Nem ao menos uma codorninha – suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu.
- Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.
Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. O estômago começou a doer.
- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.
- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.
Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado num toco – desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão do pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar carrapatos. Seu Chico desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.
- Cuidado, Paulo! Preveni. - Olha a vaca.
Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:
- Buuu! fez com desprezo.
A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:
- Foge! Foge!
Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.
- Seu Chico! Socorro!
Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.
- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.
Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:
- Errei até em anu.
Procuramos consolá-lo:
- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.
Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos demos um grito:
- Epa! Que é aquilo?
- Você viu?
Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali, surgindo lá uma cegonha?
- Cegonha nada! Uma avestruz!
Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.
- Socorro! berrou a avestruz.
Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!
- Pum!
- Socorro!
E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.
Pum! - trovejava a espingarda.
- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.
A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas da cidade. Voltamos para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos com alegre expectativa:
- E então? Caçaram alguma coisa?
— Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz deste tamanho...
O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:
- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina!
Imagine o susto da coitadinha!
Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.
- Que vamos ter hoje no jantar? perguntei à cozinheira.
- Galinha ao molho pardo.
- Já matou?
- Não.
Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:
- Não faça isso! O crime não compensa.
E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.
Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.
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