terça-feira, 9 de junho de 2020

Altino Afonso Costa (Velha Marocas)


Ela não teve notícias da segunda guerra mundial.

Feia, cega de um olho, lampião a querosene "jacaré" pendurado em um galho de árvore; ao seu lado a "pica~pau " de carregar pela boca, com pólvora preta, fumacenta, bem socada com vareta de pau, bucha e pedaços de metais.

Na boca desdentada o cigarro de palha de fumo macaia ou o cachimbo de barro, vara de pescar rústica de taquara, própria para a pesca de lobó na lagoa; sob o olhar alento de seu vira-lata rabugento, essa era a velha Marocas, de cócoras à margem da ponte feita de pau roliço de coqueiro, às margens do Rio Tibiriçá.

Era uma figura dantesca, no meu tempo de moleque, que enchia de curiosidade o meu olhar quando ia pescar naquele rio.

Mulher que inspirava medo e respeito ao mesmo tempo; teria    sido sacrificada nas fogueiras da Santa Inquisição, pois passaria por feiticeira diante de qualquer tribunal eclesiástico da Idade Média.

Pobre Marocas, não fazia mal a ninguém, exceto aos animais incautos que rondavam os seus domínios à beira das lagoas.

Figura conhecida naquelas redondezas, que o tempo se encarregou de apagar.

Pobre selvagem como os ribeirinhos que a viam pescando e exibindo a sua fieira de peixes.

Pele ressequida e fustigada pelo sol, pelo vento e pelos mosquitos, causadores de tantas malárias.

Sua morada era a céu aberto à beira da estrada e sob árvores frondosas, que deixavam filtrar a luz do sol, da lua e das estrelas.

Velha Marocas, se teu espírito ainda estiver rondando por aí, não te esqueças de iluminar o caminho tortuoso e escuro daquele menino simples que ficava olhando para ti, com espanto, do alto das pinguelas; daquele menino que se vestia com roupas brancas feitas de sacos vazios de farinha de trigo "Santista", bornal a tiracolo, cheio de pelotas de argila e uma latinha com minhocas, trazendo o estilingue no pescoço, vara de pesca e bodoque nas mãos.

Não te esqueças, velha Marocas, do menino que vivia com os pés descalços sem pensar no amanhã e que hoje vive só pensando no futuro e na busca da felicidade fugidia. Peço a tua benção, velha guerreira das matas e lagoas do Rio Tibiriçá.

Enquanto o tempo passa, esquenta o teu peixe enlameado, no espeto sujo de bambu, na fogueira crepitante de gravetos.

Toma um trago da tua cachaça ou bebe da água barrenta da lagoa, solta uma baforada forte do teu cachimbo, espanta os espíritos maus da floresta com tiros para o céu; põe minhoca no anzol e deixa a vara de pesca na espera, na barranca do rio, e depois, velha Marocas, descansa na paz que nunca tiveste aqui na terra...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro gentilmente enviado por Dinair Leite.

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