quarta-feira, 10 de junho de 2020

Rachel de Queiroz (Emigrantes)

    

     Cearense é conhecido: pequenino (batoré), cara de índio, entusiasmado, cabeça chata. Tem muito cearense alto, branco, até louro, mas ninguém pode negar que o tipo geral é aquele mesmo — mais de 80% é.

Estrangeiro, aqui, sempre deu pouco e até mesmo negro chegou por cá moderado. Não havia cultura nem mineração que justificassem a caríssima aquisição da mão-de-obra  servil. Tão cara, em verdade, que no tempo em que um alto funcionário não ganhava talvez um conto de réis por ano, um negro novo e sadio, bom de peito, dava até dois contos de réis. E, pois, como aqui não se produzia açúcar nem café, nem nada dessas culturas que dão bom dinheiro, apenas alguns mais ricos compravam negros para o serviço doméstico. E, claro, compravam só a semente — um casal, um terno de africanos importados. O resto ia se criando em casa, para isso estavam às ordens o sinhô velho e os sinhozinhos, sob a vista grossa da sinhá, que precisava das mulatas ladinas para suas mucamas. A lavra da terra, que era o gado, se fazia com pouca gente, e para o emprego de vaqueiro dava muito bem o índio andejo, cuja natureza era mesmo vaguear pelo sertão. Era apenas necessário lhe ensinar a querer bem a boi, a correr a cavalo. E estava pronto o centauro amarelinho de Euclides.

Teve também o contingente português. Dele saíram as chamadas melhores famílias, as tradicionais, as aristocráticas. Assim mesmo misturado com muita índia, quase na proporção daquele restaurante francês que anunciava pastéis de perdiz e, indagado o dono por um freguês se não punha alguma mistura na perdiz, ele confessou que punha 50% de carne de cavalo: assim: um cavalo, uma perdiz... Aqui também era um português só para muita índia, muita.

Mas passada a fase própria para a introdução desses alienígenas, a emigração para cá se deteve. As condições ásperas da terra, a pobreza geral, as ameaças de seca. (Pouca gente sabe que o nosso primeiro donatário morreu neste sertão de fome e sede, vítima da primeira seca registrada oficialmente. E mais, de quebra, um jesuíta.) Raro se encontrava um francês, um inglês, um alemão. De francês recordo só Boris e Meyer, e, muito mais tarde, os Gradvohl. Inglês só o pai do Barão de Studart, porque Mister Hull não foi emigrante, era inglês colonizador da estrada de ferro. E alemão teve, mas não recordo o nome. Colônia mesmo de europeu nunca existiu aqui, nem sequer lusitana. Não dava para se encher uma sala de baile com eles todos. Árabe (que, curiosamente, o povo pequeno chama de galego) foi o estrangeiro que melhor se adaptou ao Ceará, o que é natural. Tanto as condições da terra como o próprio caráter do cearense se adaptavam perfeitamente ao emigrante ismaelita.

Esses vieram, ficaram, chamaram os outros. É a única colônia apreciável que temos aqui. E já passaram a fase inicial de aclimação e pobreza, da segunda geração em diante os filhos foram tirando carta de doutor, casando com gente nativa e estamos aí com um belo contingente de cearenses com apelido árabe; o único defeito deles é que são árabes sem petróleo e sem petrodólares. Mas isso virá.

Agora porém há uma onda nova, aliás quase não se pode dizer que é uma onda, de tão discreta: são os japoneses. Entram no macio, em geral com contrato agrícola de algum fazendeiro mais progressista. Logo se instalam em terra própria e já conseguiram revolucionar a dieta alimentar senão do homem do interior, pelo menos dos fortalezenses, que aprenderam com os japoneses a consumir legumes — beterraba, cenoura, couve-flor, repolho. Subvertendo até a linguagem tradicional, pois legume, aqui, sempre se chamou o feijão e o milho. O resto é “verdura” ou mesmo “mato”. Até morango na serra plantam e ouvi dizer que deu ótimo, não vi. Mas japonês emigrante pode se destacar em outras terras de gente de cara branca. No Ceará se funde com o geral da população que tem a cara igual à deles.

Me lembro até de um caso, se passou faz muitos anos; nós morávamos no Pici, o nosso sítio que acabou dando o nome ao bairro que é hoje lá. Nos fundos do Asilo de Alienados, perto da lagoa de Parangaba onde Iracema tomava banho, as Irmãs de Caridade instalaram um japonês para fazer uma horta. A horta prosperou e o japonês — Seu Kamura — prosperou com ela. Mas só enquanto manteve a sua severa solidão nipônica. Depois Seu Kamura arranjou uma cabocla e começaram a aparecer os curuminzinhos, e era tudo o puro bugre. E o povo da terra não distinguia mais Seu Kamura do resto da caboclada e acabou que nem o próprio Seu Kamura se distinguia mais. Porque um belo dia ele entregou a horta às Irmãs. Agarrou a mulher e os curumins que já eram nove, arranjou um lote de terra para morar e ficou vivendo de plantar mandioca-de-catacumba, como os índios já plantavam desde o começo do mundo. Desde o começo do mundo, não. Porque não diz que o nosso índio é filho dos de raça amarela que vieram para a América através do estreito de Bering? Sendo assim, Seu Kamura apenas revertia ao original. E aliás deixou de se chamar Kamura, que a mulher não gostava. Passou a se chamar Nonato.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. Publicado originalmente em 1976.

Nenhum comentário: