Faz um ano que Maria José morreu. Era meiga quase sempre, violenta quando necessário. Eu era menino e apanhava de um companheiro maior, quando ela me gritou da sacada se eu não via a pedra que marcava o gol. Dei uma tijolada no outro e acabei com a briga como por milagre.
Visitava os miseráveis, internava indigentes enfermos, devotava-se ao alívio de misérias físicas e morais do próximo, estudava o mistério teológico, exigia sempre o mais difícil de si mesma, comungava todos os dias, ingressou na Ordem Terceira de São Francisco. Mas nunca deixou de ter na gaveta o revólver que recebera, menina-e-moça, das mãos do pai, e que empunhou no quintal noturno, perseguindo um ladrão, para espanto de meus cinco anos.
Tratou-me com a dureza e o carinho que mereciam a rebeldia e o verdor da minha meninice. Ensinou-me a ler as primeiras sentenças; me falava no Cura de Ars e nos dois Franciscos, o de Sales e o de Assis; apresentou-me aos contos de Edgar Poe e aos poemas de Baudelaire; dizia-me sorrindo versos de Antônio Nobre que decorara em menina; discutia comigo as ideias finais de Tolstói; escutava maternalmente meus contos toscos. Quando me desgarrei nos primeiros enleios adolescentes, Maria José com irônico afeto me repetia a advertência de Drummond: "Paulo, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será".
Logo que me fiz homenzinho, deixou a dureza e se fez a minha amiga: nada me perguntava, adivinhava tudo.
Terna e firme, nunca lhe vi a fraqueza da pieguice. Com o gosto espontâneo da qualidade das coisas, renunciou às vaidades mais singelas. Sensível, alegre, aprendeu a encarar o sofrimento de olhos lúcidos.
Fiel à disciplina religiosa, compreendia celestialmente as almas que se transviam. Fé, Esperança e Caridade eram para ela a flecha e o alvo das criaturas.
Tornara-se tão íntima da substância terrestre, a dor que se fazia difícil para o médico saber o que sentia; acabava dizendo que doía um pouco, por delicadeza.
Capaz de longos jejuns e abstinências, já no final da vida, podia acompanhar um casal amigo a Copacabana, passar do bar da moda ao restaurante diferente, beber dois ou três uísques em santa serenidade e aceitar com alegria o prato exótico.
Gostava das pessoas erradas, consumidas de paixão, admirava São Paulo e Santo Agostinho, acreditava que era preciso se fazer violência para entrar no reino celeste.
Poucas horas antes de morrer, pediu um conhaque e sorriu, destemida e doce, como quem vai partir para o céu. Santificara-se.
Deus era o dia e a noite de seu coração, o Pai, a piedade, o fogo do espírito.
Perdi quem me amava e perdoava, quem me encomendava à compaixão do Criador e me defendia contra o mundo de revólver na mão.
Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Anjo Bêbado. RJ: Sabiá, 1969.
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