sexta-feira, 26 de junho de 2020

Carlos Drummond de Andrade (A Noite da Revolta)


— Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.

— Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.

— Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.

— Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.

— Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.

— Experimente, Artur. Só esta noite.

— Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.

— Ah, Artur, você é a cruz da minha vida. Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?

— Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.

— Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o Carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.

— Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!

— Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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