domingo, 7 de junho de 2020

Camilo Castelo Branco (Sonetos Escolhidos)


ALMA ATRIBULADA

O' alma atribulada, corta o laço
da torva angústia que te cinge à vida!
Vai, foge para Deus, ou para o espaço...
Ou nada ou Deus, que importa? eis-te remida.

Não tiveste na vida um dia escasso
de paz e de alegria! Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo.

Vai! Não leves saudades do que deixas.
Se a fé em melhor mundo te preluz,
alma gemente, por que assim te queixas?

Desprende-te, a sorrir, da horrenda cruz
em que tanto penaste! Os olhos fechas?
Abre os d'alma, e verás que infinda luz.
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A MAIOR DOR HUMANA

Que imensas agonias se formaram
sob os olhos de Deus! Sinistra hora
em que o homem surgiu! Que negra aurora,
que amargas condições o escravizaram!

As mãos, que um filho amado amortalharam,
erguidas buscam Deus. A Fé implora...
E o céu, que respondeu? As mãos baixaram
para abraçar a filha morta agora.

Depois um pai em trevas vai sonhando,
e apalpa as sombras deles onde os viu
nascer, florir, morrer! Desastre infando!

Ao teu abismo, pai, não vão confortos...
És coração que a dor empederniu,
sepulcro vivo de dois filhos mortos.
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A OUTRA METADE

Quando este corpo meu esfacelado
Baixar à leiva úmida da cova,
Hão de os jornais carpir a infausta nova,
Taxando-me de sábio consumado.

Estalará na imprensa enorme brado,
Pedindo a ressurgência d’um Canova
Que a morta face em mármore renova
Para esculpir meu busto laureado.

E algum dos imbecis necrologistas,
Com soluçantes vozes de saudade,
Dirá em ricas frases nunca vistas:

“Esse gênio imortal, rei dos artistas,
No céu pede ao Senhor que a outra metade
Reparta por vocês, ó jornalistas!”
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LÁGRIMAS

Senhora! em vosso rosto macerado
Transluz da alma aflita a imensa dor!
D'um lado, a morte; do outro, o vosso Amor
Tremenda luta ao pé do Esposo amado!

Contais as pulsações do peito ansiado
Em estes convulsivos do estertor;
Só podem vossos lábios dar calor
Àquele corpo inerte, hirto, gelado.

Vós bem vedes, Senhora, este quebranto
Que enluta Portugal! Ergue-se o pranto,
Quando a morte do Paço se avizinha...

Pois quanto uma nação pode sofrer
Não tem o acerbo e intenso padecer
Das vossas santas lágrimas, Rainha!
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LISBOA BUCÓLICA

Na lusa Babilônia há parvices
Atávicas, talvez; pois bons autores
Carimbam de sandeus os fundadores,
E chamam parvo ao seu caudilho Ulysses.

Assim começa o rol das tais tolices:
Famílias vão, nos meses dos calores,
Refrigerar no campo os seus ardores,
E haurir das frescas brisas as meiguices.

Alugam-se uns casebres purulentos,
Onde os ratos vorazes e macróbios
Esfarelam a dente os vigamentos.

Metidas n'esses fétidos cenóbios,
Depois de incalculáveis sofrimentos,
Voltam do campo cheias de micróbios.
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LUA DE MEL

Aquele teu amigo de Peniche
Casou, já sabes? Com a «Celidônia»,
Horizontal, (hectaíra, em língua jônia)
De lábio rubro e olho d'azeviche.

Naufragou muitas vezes no beliche
De notáveis pilotos da Parvônia;
Vogou desde Monção à Patagônia,
E, voltando, não topa onde se aniche.

Enfim, com sete filhos enjeitados
E os músculos bastante escanifrados,
Pilha um palerma que jamais lhe escapa!

São noivos. Vão fazer a lua em Cintra.
Pergunta agora tu ao tal pelintra
Se a lua foi de mel ou de jalapa.
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REMORSO

Eu choro quando, ás vezes, me concentro
A meditar nas horas malogradas,
Noites de inverno, gélidas, passadas
Nos Carnavais retóricos do Centro.

Convidam-me a ser sócio. Aceito e entro,
Deixando solitárias, consternadas,
Três Marílias que amei! Estais vingadas!
Remorsos me excruciam cá por dentro.

Dizia-me um dinástico - esquerdista:
«Prepara-se você para estadista?
Aspira a ser ministro? A escola é esta.»

Pois, senhores, dez meses decorridos,
Bom político, em todos os sentidos,
Saí do Centro, mas saí mais besta.

Fonte:
Camilo Castelo Branco. Nas trevas: Sonetos sentimentaes e humoristicos. Publicado pela Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão (Lisboa/Portugal), em 1890.

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