NÃO ERA UM PESADELO, não dava angústia nem medo, mas sonhei que estava morta. Creio que morta de muito, podia dizer mumificada, mas não: estava era como que transformada em terra, tendo de gente apenas a forma e essa mesma se desfazendo aos poucos. Virada numa espécie de estátua de barro e areia, jogada numa elevação nua do solo, num leito de seixos miúdos, sem lhes sentir contudo as asperezas, porque afinal a nossa substância, a dos seixos e a minha, era quase a mesma. Exposta ao sol e à chuva, os cabelos eram como ervas secas, com as raízes mais secas ainda se afundando no crânio argiloso, os braços de terra dura atirados em cruz, as pontas dos dedos se esfarinhando, o nariz, as orelhas, começando a se esbeiçar. Dentro do peito oco uma pedra jazia de encontro à espinha terrosa — e aquela pedra era o meu coração.
Claro que, estando morta, eu não tinha consciência nem sentidos; a pessoa que via aquele monte de terra com forma de gente, cuja poeira o vento levantava um pouco, essa pessoa não sei quem era. Nem seria um desdobramento da morta, nem sei com que olhos eu me enxergava. Era antes uma percepção que, não sendo consciente, também não era sequer subconsciente, ficava mais abaixo disso, era uma percepção elementar, vaga e mofina, sem sentido de dor nem de nada, apenas aquela como intuição de que eu estava presente, de que eu era.
A pura sensação da presença, apenas, desacompanhada de qualquer outra.
E então começou a chover. A princípio a água peneirava em cima da forma ressequida, ia-se embebendo nela, e os contornos esbatidos se acusavam, criando até uma ilusão de vida. Mas à medida em que a chuva engrossava, a água escorria pela face do vulto de terra e ia carregando consigo um pouco dessa terra e, tanto a face, como os dedos, como os contornos do corpo, aos poucos iam se apagando, se dissolvendo, arrastados pela chuva. Passado um tempo, já não havia mais silhueta humana no vulto que se reduzira a um montão de terra, oblongo, como os que se erguem por cima das covas recentes. Parte da terra formada no que tinha sido eu, arrastada pelos regatos da chuva, ia ficando depositada no caminho, em alguma depressão; a outra parte, que a correnteza apanhara com mais força, era carregada até um grande prato d’água que ficava próximo e não era lago nem mar, antes um alagadiço de águas mortas, com raízes negras no fundo de iodo, ramos e folhas verdes emergindo em ilhas redondas, na superfície.
Por fim, do meu vulto deitado naquele cabeço de terreno não restava mais nada senão alguns montículos irreconhecíveis. E, com a substância dele, também se fora aquela sensação de vida elementar, aquele sentido de presença que, de certo modo, testemunhara o sonho. E o limo e a água e as folhas do alagadiço, já não mais açoitados pela chuva, tornaram a dormir, num grande silêncio.
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
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