quarta-feira, 3 de junho de 2020

Contos e Lendas do Brasil (Gongo-Velho)


— É de ouvido que vou contar, pois essas coisas não são do meu tempo. Ouvia-as de minha mãe um sem número de vezes, em serões como este. — disse o velho africano.

Gongo-Velho — prosseguiu — se chamava antigamente um pequeno córrego que ia desaguar no Rio das Mortes. Agora, tem outro nome que o coração manda calar para que não se saiba ao certo o lugar onde se desenrolou este drama, onde tanta lágrima foi vertida. Esse córrego passava pelas terras de dois irmãos que tinham chegado do Reino com uma cadeia de escravos e ali se estabeleceram, numa existência tão solitária e recolhida que não parecia de criaturas humanas.

Havia multo ouro na redondeza e Gongo-Velho ficou-se chamando toda a terra dos irmãos recém-chegados. Foi de muito trabalho os anos que se seguiram. Minerava-se no Gongo-Velho com verdadeira fúria de amontoar tesouros. Nunca ninguém soube da vida daqueles dois portugueses, também nunca se soube que eles se metessem com a vida dos outros.     Apenas cá fora, aquém dos muros do retiro, que era um verdadeiro presídio, transpiravam vagos rumores de cenas horrorosas, narrações de bárbaros castigos a que repugnava ao mais embrutecido ouvinte dar inteiro crédito. Com certeza — pensava-se — havia muito exagero nessas descrições.

Quando algum desgraçado conseguia, iludindo a severa vigilância dos algozes, evadir-se, ia pedir asilo em paragens bem distantes daqueles vales, cujas quebradas repetiam os ecos dos soluços de agonia dos seus irmãos de infortúnio.

Os dois moços envelheceram. Tinham um capataz de confiança, português como eles, que conduzia a tropa carregada de ouro a Vila Rica.    Ninguém mais saia do retiro e ninguém mais entrava a não ser o capataz, quando voltava, trazendo as mais das vezes, novo contingente de pretos para a escravatura.    No entanto, até ali o Gongo-Velho não tinha estória.

Já estavam bem velhos os dois irmãos quando se deram os acontecimentos por que se tornaram famosas as lavras do Gongo-Velho.

O principio do episódio ninguém sabe ao certo,    pois não sobrou um só de tantos para contá-lo ao mundo.    O que se sabe é que uma vez, à noitinha, os cativos se rebelaram e, num sítio afastado onde se encontravam depois do trabalho do dia, atacaram um dos senhores, aquele que costumava feitorear o serviço; atiraram-no por terra e lhe estraçalharam o corpo.

Consumado o crime, o bando revoltoso tomou o caminho da casa e entrou pelo retiro como uma horda de selvagens, aos berros, agitando no ar a ferramenta do trabalho, a gotejar o sangue do seu senhor. O outro fazendeiro, que estava à frente da casa esperando os escravos, viu logo que se tratava de uma rebelião. E, como o irmão não aparecesse, compreendeu logo que ele tinha sido vitima da sanha dos escravos rebelados.

Então, precipitou-se para a turba ululante com os punhos cerrados e, numa explosão de palavras ásperas, conseguiu impor-se e dominar a rebelião. Diante dessa atitude inesperada os escravos submeteram-se, perdendo a liberdade que haviam conquistado por algumas horas. E, restabelecida a ordem, recolheram-se á senzala, mais parecendo uma procissão de penitentes.

No dia seguinte, os escravos foram levados pelo capataz para trabalhar num lugar que ficava do lado oposto àquele em que, na véspera, se haviam rebelado e onde deviam jazer os despojos do velho que fora assassinado.

Conta-se que o irmão, solitário e em lágrimas, dirigiu-se ao local da tragédia e recolheu os restos sangrentos do companheiro, sepultando-o numa cova aberta por suas próprias mãos.

E tudo pareceu mergulhar no esquecimento. Uma tarde, tendo chegado a gente das lavras, o senhor em pessoa foi presidir à distribuição do rancho. Chegou e foi logo dizendo:

— Não sei porque sinto na alma uma alegria tão grande... Quero que vocês todos comam à farta!

Nesse dia foi da melhor qualidade a comida que serviu.

A um canto, o capataz, com o queixo apoiado no cabo do rebenque, olhava espantado para o amo, pensando que, com certeza, ele tinha enlouquecido.

Terminado o repasto, o próprio fazendeiro, tomando ao capataz as grossas chaves que ele trazia à cinta, abriu a porta da senzala e assistiu à entrada dos escravos. Todos, um a um, homens, mulheres, velhos e crianças, elevando humildemente as mãos negras e calosas iam pedindo sunscristo, com um grunhido deformado pelo uso.

Depois que o último escravo entrou, o velho meteu na fechadura a chave ferrugenta, fechou a senzala e atirou para o terreiro as chaves restantes. Encostou uma escada, a muro maciço, de taipa, subiu até lá acima e abriu um buraco no sapé da coberta. Então, seus olhos pouco a pouco puderam ver o interior da senzala, alumiado por candeeiros de azeite, presos à parede sem reboco.

Na meia claridade do recinto, lombrigou pelo chão como um tumultuar de vermes. Em diversos pontos já iam brilhando as labaredas de pequenas fogueiras de cavacos. Mais habituada a vista, agora o fazendeiro distinguia os corpos dos escravos acomodando-se pelo chão, numa promiscuidade animalesca de homens e mulheres, velhos e crianças. Súbito, um grito lancinante quebrou o silêncio daquele sepulcro de vivos. Todos voltaram-se para o lado de um infeliz que, de um salto, tendo desdobrado a estatura hercúlea no meio da senzala, estorcia-se horrivelmente, erguendo-se ou caindo de rastros, como a procurar meter-se pelo chão a dentro.

Não demorou e outro grito se fez ouvir. Depois, novo grito igualmente espantoso. E, numa sucessão aterradora, os prisioneiros iam caindo no chão negro da senzala, bracejando numa confusão infernal. Eram centenas de fantasmas numa dança macabra, numa agonia indescritível.

Durante certo tempo, o fazendeiro, lá de cima do teto, espiando pelo buraco que fizera no sapé, teve diante dos olhos uma visão do inferno.

Dali a pouco toda aquela agitação foi amainando e só ficou um indefinível resfolegar, soluçado e trêmulo, que por sua vez diminuiu até tornar-se em sepulcral quietude, em silêncio de morte.

Sem compreender o que estava se passando, o capataz colava o ouvido à porta da senzala, ou mergulhava o olhar pelo estreito orifício da fechadura. No fundo, sentia medo de acertar com a explicação daquele mistério. Quando tudo lhe pareceu terminado, lembrou-se do fazendeiro. Subiu pela escada e foi encontrá-lo estendido na coberta, com a cabeça metida no buraco que fizera no sapé encardido pela fumaça.    Parecia inteiramente absorvido nas cenas monstruosas que se tinham passado lá embaixo, no interior escuro da senzala.

Chamou por ele. Como não tivesse resposta, chamou-o de novo. Nada. Então, sacudiu-lhe o corpo. Estava morto. Tirou-o dali. O velho apresentava os olhos esbugalhados, mas extintos. Naquele espelho embaciado, devia ter ficado sua última visão: a dança macabra de tantos homens, mulheres, velhos e crianças, envenenados e presos, que chegaram à morte ao longo de horripilantes sofrimentos.

— Façamos oração, meus camaradas, para que seja aliviado em seu penar sem fim o velho fazendeiro, cuja alma sem descanso deve andar a estas horas vagando nas proximidades daquele sitio.

E, persignando-se, voltou à primitiva postura.

Fonte:
Rodrigo Otávio. Contos de Ontem e de Hoje. RJ: Ed. Guanabara, 1932.

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