A MOÇA DO ALTO-FALANTE DA ESTAÇÃO RODOVIÁRIA que anunciava as saídas dos ônibus interestaduais e as respectivas plataformas de embarque parece que havia colocado alguma coisa que não gostou, na boca e, por causa disso, dava a impressão de estar subitamente engasgada. Célio pensou logo num ovo cozido bem quente. Depois de alguns segundos concluiu que, decididamente, o ovo cozido e estupidamente quente estaria completamente fora de cogitação. Quem sabe a beldade mandasse alguma coisa mais leve para a barriga: um pedaço de pão duro, uma banana verde, um sanduíche de presunto com pedaços de frango ou uma barra de cereais, dessas que se encontram nos voos domésticos.
Não que o ovo quente fosse pesado. Ovo de rodoviária é igual pastel de feira livre. Neste nunca se acha o queijo e a carne, naquele, não se escuta o cocoricar da galinha.
“... Atenção senhores passageiros com destino a Casa do Chapéu. Horário de 09h30min. Por favor, dirijam-se...”.
Pudesse estar com essa jovem, o Célio a faria engolir o microfone. Junto, de lambuja, o papel que estava lendo, ou melhor, tentando. Pelo que seus ouvidos escutavam a desgranhenta, nem juntar as palavras de forma correta, sabia. Soletrar, nessas alturas, já estaria de bom tamanho. Ao menos se decorasse a porcaria do texto, ou procurasse pronunciar as frases com mais precisão, com certa flexibilidade, sem atropelar as vírgulas e deixar para trás os pontos finais...
“... O terminal rodoviário informa: para dores gripes e resfriados procure a Farmácia do Chicão ao lado da Viação Sebo nas Canelas boxe 34... Agora falta cinco para a sete atenção não dê esmolas não colabore com os pedintes... Assim você evitará a propagação da ‘mendingância’”.
Pensou com seus botões que essas criaturas deveriam ter um curso de como tratar com carinho e esmero um anúncio a ser lido corretamente, dando-lhe a devida atenção e respeito, seguido, claro, da prática do exercício da pronúncia correta, e com desenvoltura e garbo. “Mendincância” é o fim da picada.
Falar sem cantar, procurar interpretar como se estivesse conversando normalmente. Nada de boa viágeeeeeeeeem (esse viá sem a conotação da Kely Key, tão em moda). Ridículo o “... apresentem-se para embarque na plantaforma...”. Parece que uma abelha havia entrado em seus tímpanos e lascado uma tremenda de uma ferroada. Não é plantaforma que se diz, mas PLATAFORMA. Meu Deus durma-se com um barulho desses, ou melhor, viaje-se com um barulho desses, ou, pior ainda, espere-se pelo horário da passagem com uma incisão dessas na pele sedutora da língua portuguesa.
“... Senhores passageiro a Informe Bem deseja-lhe boa viagem...”
Cadê o “os” de passageiros e o “lhes” de deseja-lhes? O gato comeu! Com certeza a infeliz não tinha nada dentro da boca. Célio pensou, a princípio, tratar-se de um ovo, um ovo cozido bem quente. Logo depois achou que fosse um pau. Um pau no bom sentido, ou seja, uma lasca de madeira atravessada, ou uma espinha de peixe. Essas coisas também atrapalham. Contudo, o melhor que tinha a fazer, seria conectar seus fones de ouvido no celular e ouvir a Eguinha Pocotó, que ganhara da namorada, em face de ter em seu sítio, uma eguinha que ganhara de um amigo com o nome de Pocotó. Célio não se conformava. Professor de português graduado em letras, mestre em linguística pela universidade de Campinas, não descia garganta abaixo essas baixarias da língua. Uma palavra dita de forma errada fazia com que perdesse o sono. Uma frase mal construída espantava a fome, o bom senso, se duvidasse, até o tesão. Com um verbo colocado erroneamente chorava, enjoava, magoava, enfim, ficava estressado. Se tivesse um tantinho assim de chance, subiria até lá na cabina, onde a garota da rodoviária estava sentada e lhe enfiava incontinente, o chip que ganhara da namorada. Socava o troço sem dó nem piedade goela abaixo. Tinha importância não: era um chip pirata com várias músicas, inclusive a do Lacraia! Desses que vem com tapa olho grudado na embalagem.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013
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