domingo, 28 de junho de 2020

Sílvio Romero (O Bicho Manjaléu)


(Folclore do Sergipe)

Uma vez existiu um velho casado, que tinha três filhas muito bonitas. O velho era muito pobre e vivia de fazer gamelas para vender.

Um dia, chegou à sua porta um moço muito formoso, montado num belo cavalo e lhe falou para comprar uma de suas filhas.

O velho ficou muito magoado, e disse que, por ser pobre, não havia de vender sua filha. O moço disse-lhe que se não lhe vendesse, o mataria. O velho intimidado vendeu-lhe a moça e recebeu muito dinheiro.

Retirando-se o cavaleiro, o pai da família não quis mais trabalhar nas gamelas, por julgar que não o precisava mais de então em diante,  mas a mulher insistiu com ele para que não largasse o seu trabalho de costume, e ele obedeceu.

Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se outro moço, ainda mais bonito, montado num cavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velho que queria comprar-lhe uma de suas filhas. O pai ficou muito incomodado. Contou-lhe o que lhe tinha acontecido no dia antecedente, recusou-se ao negócio. O moço o ameaçou também de morte, e o velho cedeu.

Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deu mais e foi-se embora.

O velho de novo não quis continuar a fazer as gamelas e a mulher o aconselhou até ele continuar.

Na tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro ainda mais bonito, e melhor montado, e, pela mesma forma, carregou-lhe a filha mais moça, deixando ainda mais dinheiro.

A família ficou muito rica. Depois apareceu a velha pejada e deu à luz um filho, que foi criado com muito luxo e mimo.

Quando chegou o tempo do menino ir para a escola, um dia brigou com um companheiro, e este lhe disse: "Ah ! tu cuidas que teu pai foi sempre rico!... Ele hoje está assim, porque vendeu tuas irmãs !... "

O rapazinho ficou muito pensativo e não disse nada em casa, mas quando foi moço, num dia se armou de um alfanje* e foi ao pai e à mãe e lhes disse que lhe contassem a história de suas três irmãs, senão os matava. O pai lhe teve mão, e contou o que se tinha passado antes dele nascer. O moço então pediu que queria sair pelo mundo para encontrar as suas três irmãs, e partiu.

Chegando em um caminho, viu numa casa três irmãos brigando por causa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Ele chegou e perguntou o que era aquilo, e para que prestavam aquelas coisas.

Os três irmãos responderam que - àquela bota se dizia: "Bota, me bota em tal parte!" e a bota botava; à carapuça se dizia: "Esconde-me, carapuça!" e ela escondia a pessoa que ninguém a via; e a chave abria qualquer porta.

O moço ofereceu bastante dinheiro pelos objetos, os irmãos aceitaram, e ele partiu.

Quando se afastou da casa, disse: "Bota, me bota na casa de minha irmã primeira."

Quando abriu os olhos, estava lá. A casa era um palácio muito ornado e rico, e o moço mandou pedir licença para entrar e falar com a irmã, que estava feita rainha. Ela não queria aparecer, porque dizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, depois de muita instância, deixou o estrangeiro entrar. Ele contou toda a sua história, a irmã o acreditou e o tratou muito bem.

Perguntou-lhe como podia ter chegado ali àquelas brenhas, e o irmão disse-lhe o poder da bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e o irmão lhe indagou da razão, ao que ela respondeu - que seu marido era o rei dos peixes, e, quando vinha jantar, era muito zangado, em termos de acabar com tudo, e não queria que ninguém fosse ter ao palácio... O moço disse-lhe que por isso não se incomodasse, que tinha com que se esconder e não ser visto, e era a carapuça.

Pela tarde, veio o rei dos peixes, acompanhado de uma porção de outros, que o deixaram na porta do palácio e se retiraram. Chegou o rei muito aborrecido, dando pulos e pancadas, dizendo: "Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!..." do que a rainha o dissuadiu, até que ele tomou banho e se desencantou num belo moço.

Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:

– "Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu, você o que fazia ?"

- "Tratava-o e venerava como a você mesma; e se está aí, apareça".

Foi a resposta do rei. O moço apareceu, e foi muito considerado. Depois de muita conversação, em que contou sua viagem, foi instado para ficar ali, morando com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe restavam duas irmãs a visitar.

O rei lhe indagou que préstimo tinha aquela bota, e quando soube do que valia disse-lhe: "Se eu a apanhasse ia ver a rainha de Castela".

O moço, não querendo ficar, despediu-se, e, no ato da saída, o cunhado lhe deu uma escama, e disse-lhe:

– "Quando você estiver em algum perigo, pegue nesta escama, e diga: "Valha-me o rei dos peixes".

O moço saiu, e, quando se afastou do palácio, disse: "Bota, me bota em casa de minha irmã segunda", e quando abriu os olhos, lá estava. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que o outro.

Com alguma dificuldade da parte da irmã, entrou e foi recebido muito bem. Depois de muita conversa, a sua irmã do meio se pôs a chorar, dizendo que era "por estar ele aí, e, sendo seu marido rei dos carneiros, quando vinha jantar, era dando muitas marradas, em termos de matar tudo".

O irmão apaziguou-a, dizendo que tinha onde se esconder. Com poucas, chegou uma porção com um carneirão muito alvo e belo na frente, este entrou e os outros voltaram.

(Segue-se uma cena em tudo semelhante à que se passou em casa do rei dos peixes)

Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado uma lãzinha, dizendo:

– "Quando estiver em perigo, diga: "Valha-me o rei dos carneiros ".

Também disse, depois de saber da virtude da bota: "Se eu pegasse esta bota, ia ver a rainha de Castela".

O moço foi reparando nisto, e formou logo consigo o plano de ir vê-la. Saiu, e pela mesma forma foi à casa de sua irmã mais moça. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que os outros dois. (Seguem-se as mesmas cenas que nas outras duas visitas ). Era o palácio do rei dos pombos, e este, na despedida, deu ao cunhado uma pena, com as palavras :

– "Quando se vir nalgum perigo, diga: "Valha-me o rei dos pombos".

Na despedida, sabendo o rei do préstimo da bota, mostrou também desejos de ir visitar a rainha de Castela.

Logo que o moço se viu longe do palácio, disse: "Bota, bota-me agora na terra da rainha de Castela".

Assim foi. Chegado lá, ele indagou e soube que "era uma princesa que o pai queria casar, e que era tão bonita que ninguém passava pela frente do palácio que não olhasse logo para cima para vê-la na janela; mas a princesa tinha dito ao rei que só se casava com o homem que passasse por ela sem levantar a vista."

O estrangeiro foi passar, e atravessou toda a distância sem olhar, e a princesa casou com ele.

Depois de casados, ela indagou pelo significado daqueles objetos que seu marido sempre trazia consigo. Ele tudo lhe contou, e a princesa prestou muita atenção ao prestígio da chave.

O rei, seu pai, tinha em palácio um quarto que nunca se abria, e neste quarto, onde era proibido a todos entrar, estava, desde muito tempo, trancado um bicho Manjaléu, muito feroz, que sempre o rei mandava matar e sempre revivia. A moça tinha muita curiosidade de o ver, e, aproveitando a saída do pai e do marido para uma caçada, pegou na chave encantada e abriu o quarto. O bicho pulou de dentro, dizendo: "A ti mesmo é que eu quero!..." e fugiu com ela para as brenhas.

Quando voltaram os caçadores, deram por falta da princesa, e ficaram muito aflitos, o rei foi ao quarto do Manjaléu, e achou-o aberto e vazio, e o novo príncipe conheceu a sua chave... Depois valeu-se de sua bota e foi ter aonde estava a sua mulher.

Esta, quando o viu, estando ausente o Manjaléu, ficou muito alegre, e quis ir-se embora com ele. Mas o marido não consentiu, dizendo que ela ficasse ainda para indagar do monstro onde estava a sua vida, para assim dar-se cabo dele. O príncipe foi-se embora. Quando o Manjaléu voltou, conheceu que ali tinha estado bicho homem; a moça o dissuadiu, e quando ele se acalmou, ela lhe perguntou onde estava a sua vida. O monstro zangou-se muito, e disse: “ – Ah! tu queres saber de minha vida mais o teu marido, para darem cabo de mim!... Não te digo, não..."

Passaram-se dias, sempre a moça instando. Afinal, ele foi amolar um alfanje, dizendo: "Eu te digo onde está a minha vida; mas se eu sentir qualquer incômodo, conheço que ela vai em perigo, e, antes que me matem, mato a ti primeiro, queres!?"

A princesa respondeu que sim. O Manjaléu amolou o alfanje, e disse-lhe: "Minha vida está no mar; dentro dele há um caixão, dentro do caixão uma pedra, dentro da pedra uma pomba, dentro da pomba um ovo, dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar eu morro".

O bicho saiu e foi procurar frutas. Chegou o príncipe e soube de tudo e foi-se embora. O Manjaléu veio e deitou-se no colo da moça com o alfanje ali perto. O príncipe chegou com a sua bota à praia do mar num instante; lá pegou na escama , que tinha, e disse: "Valha-me o rei dos peixes!" De repente uma multidão de peixes apareceu, indagando o que ele queria.

O príncipe perguntou por um caixão que havia no fundo do mar. Os peixes disseram que nunca tinham visto, e só se o peixe do rabo cotó soubesse. Foram chamar o peixe do rabo cotó, e este respondeu: "Neste instante dei uma esbarrão nele."

Todos os peixes foram e botaram o caixão para fora. O príncipe abriu e deu com a pedra; aí pegou na lãzinha e disse: "Valha-me o rei dos carneiros!" De repente apareceram muitos carneiros e entraram a dar marradas na pedra. O Manjaléu lá começou a sentir-se doente, e dizia: "Minha vida, princesa, corre perigo!" E pegou no alfanje; a moça o foi dissuadindo e engambelando. Os carneiros quebraram a pedra e voou uma pomba. O príncipe pegou na pena e disse: "Valha-me o rei dos pombos!" Chegaram muitos pombos e correram atrás da pomba, até que a pegaram. O príncipe abriu-a e achou o ovo.

Quando estava nisto, lá o Manjaléu estava muito desfalecido, pegou no alfanje e ia dando um golpe na princesa. Foi quando cá o príncipe quebrou o ovo, e apagou a vela; aí o bicho caiu sem ferir a moça. O príncipe foi ter com ela, e levou-a para palácio, onde houve muitas festas.
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Nota de Luís Câmara Cascudo:

São muitas as versões portuguesas deste conto em Adolfo Coelho. Contos populares portugueses, Teófilo Braga, Contos tradicionais do povo português. Figura em toda literatura oral europeia. Os irmãos Grimm registraram-no, Die Kristallkuger, amplamente estudados por Bolte e Polivka, nas variantes e com abundante bibliografia, Anmerkungen zu den kinder und hausmärchen der bruder Grimm. Muito popular na Itália, onde foi recolhido pelos mestres Comparetti, Pitrè, Imbriani, figura nos contos sicilianos de Laura Gonzenbach e no Pentamerone de Giambattista Basile. Brueyere encontrou-o na Grã Bretanha. O elemento da alma exterior ou da vida exterior do bicho Manjaléu (de Aarne-Thompson, (The Ogre's Heart in the Egg ) é um dos motivos mais universais na novelística popular, aparecendo no conto egípcio dos Dois Irmãos, há trinta e dois séculos. A vida ou a alma de Batau estava guardada numa flor de cedro. Pelo enredo o conto é um dos melhores exemplos de convergência, possibilitando grande número de variantes sobre os objetos mágicos, os animais que são soberanos encantados (Three Animals as Brothers-in-law, de Aarne-Thompson), a external soul do monstro, etc. O Bicho Manjaléu corresponde a Les Trois Filles Vendues, Contes populaires canadiens, Marcel Rioux. Muitos elementos do bicho Manjaléu ocorrem no conto do Pentamerone de Giambattista Basile, The Three Animal Kings, com as notas de Penzer, Londres, 1932. Prova sua expansão na Itália na segunda metade do séc. XVI e primeira décadas do séc. XVII.

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Vocabulário:
Alfanje
– Sabre de folha curta e larga.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

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