terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (O homenzinho na orelha)

Tan Jinxuan, trabalhava na subprefeitura de Zichuan, na província de Shandong, depois de ser aprovado nos exames de primeiro grau para funcionário público. Ele era taoísta e praticava exercícios respiratórios sempre que podia, mesmo quando fazia muito frio ou muito calor. Depois de muitos meses, achava que os exercícios de controle de respiração estavam lhe fazendo bem.

Um dia, pouco depois de se preparar para a meditação, escutou saindo de seu ouvido uma voz muito fina, tão fina que parecia a de uma mosca:

- Dá pra ver!

Tan Jinxuan abriu os olhos, mas não viu nada. Fechou-os novamente, prendeu a respiração, e os cochichos recomeçaram. Ele achou que esses cochichos eram um sinal de que seria imortal, e ficou muito contente com disso.

A partir desse dia, começou a ouvir essa voz logo que se sentava para meditar. E ficava ali, calado, esperando que a criatura de seu ouvido recomeçasse a cochichar, para descobrir como ela era. 

Uma vez, como escutou de novo o cochicho, perguntou:

- Dá pra ver?

Sentiu imediatamente uma cosquinha na orelha, como se estivesse saindo alguma coisa de seu ouvido. Num lance, percebeu que era um homenzinho, de mais ou menos dez centímetros, e de aspecto tão repugnante como o de um yaksa, o demônio de origem indiana. Maravilhado com as cambalhotas que o homúnculo dava no chão, Tang concentrava toda a sua atenção nesses movimentos, quando, de repente, ouviu um vizinho bater à porta, certamente para pedir alguma coisa emprestada. Com esse barulho, o homúnculo entrou em pânico, correu de um lado para outro, como um rato em fuga que volta para a sua toca.

Sem fôlego, Tan nem conseguiu perceber para onde a criaturinha tinha corrido. E nesse instante mesmo caiu num estado de demência, gritando e chorando sem parar, só se curando seis meses depois, com um tratamento à base de poções com ervas colhidas no alto da montanha.

Fonte: 

Paleta de Versos n. 1

Obs: Republicado. Faltou uma estrofe do Nei Garcez

Nei Garcez
(Curitiba/PR)

RIO DOCE

Nasci rio, na campina,
pra irrigar a propriedade,
e a avareza me assassina
com dejetos e maldade.

Sempre fui bem cristalino,
saciando a sociedade,
mas mudaram meu destino
que é o sustento à humanidade.

Irrigando esta campina,
noite adentro, ou sol à pino,
o “poder”, vem, e assassina
o meu leito cristalino.

Vou morrendo como rio,
poluído, com mal cheiro...
Já não ouço qualquer pio
de um só pássaro pesqueiro!

O “poder”, sem dar guarida,
porque sempre está lucrando,
não respeita a própria vida...
Fui Rio Doce, hoje amargando!

Como pode um peixe vivo
viver dentro da água impura,
se eu sou rio, tão nocivo,
e o meu leito é sepultura!
Jaz, ainda agonizante,
e morrendo de impureza,
faço o apelo torturante:
- “salvem minha natureza”!

Sem um peixe para a rede
das pessoas que aqui vêm,
já não mato a própria sede
de matar fome de alguém!


Amargando, vivo em pranto,
pois meu leito se angustia
- Minas ao Espírito Santo -
dizimando a Ecologia!
____________________________

Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

SERENA ABSTRAÇÃO

Às vezes tua ausência me visita
…bonita…e te torna tão real,
Que toda sedução que nela habita,
Parece infinita… e passional.

Abraço-a com lágrimas nos olhos,
Sorrindo e colorindo o teu olhar,
O amor é como o mar… e eu ?...os abrolhos
Deixando a saudade me açoitar.

Às vezes, como vens, tu distancias
De mim, essa utopia tão serena
Que traz as mais fugazes fantasias,

Mas fazem tão feliz meu coração,
Que a minha alegria mais amena
Transforma-se em serena abstração. 
_______________________

Neyde Bohon
(Itajaí/SC)

NA RUA

Na calçada poça d'gua
Por dias, guarda esperança
Corre tropeça na ansiedade
Continua...

O vento sopra ilusões
Suspiros! Novo pensamento...
Ah, novamente a ansiedade!
Calçada, passos em linhas quebradas

No ardor da fantasia
Mente doida enluarada!

Destino ou acaso,coração acelerado
Do outro lado da rua, VOCÊ.
_________________________________

Clarice da Costa
(Biguaçu/SC)

O BARCO

O mar levou
para bem longe
onde não se vê o fim
e nem a linha
do seu horizonte;
Revoadas de pássaros
passam
enquanto a vida
lentamente
vai esvaindo;
O tempo
não marca o curso
e o barco
fica à deriva.
____________________________

Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

NOTA DO DIA
Para Vanessa Martins DA Maia

Vem consorte meu
Vem para mim
Quero-te todos os dias
Todas as noites
Para todo o sempre

Não pela metade
Em sintéticos nanospedaços
Algarismos alquebrados
Livres a vagar
Pelo cosmo infindo

Quero-te por inteiro
Meu sacrossanto amor
Perdido em tempos de guerra
Quero-te 
Em tempos de paz

Simplesmente quero-te
Somente para mim
E mais ninguém

Quero-te
Como o vento abraça
E levanta 
A branca areia da praia

Como a brisa
Balança intempestivamente
Os galhos das tundras
Mais altas
E eleva a folha seca
Para além do infinito

Quero-te
Como uma diáfana árdea
A ruflar 
As alabastrinas asas
Que ascende ao céu
Embrenha-se 
Nas alvas nuvens 
E desaparece 
No níveo imaginário
Do menestrel contemporâneo
Em tempos 
De realidade liquefeita
Do aedo surrealista

Quero-te enamorado meu
Em tempos pós-modernos
Como o poetiza nefelibata
Que ama
Na realidade abstrata

Não tarde amando meu
Vem voando nas asas
De Ícaro
Espero-te nua 
Na alcova em chamas 
____________________________

João Batista Xavier Oliveira
(Bauru/SP)

TOM MAIOR
Em Memória de Tom Jobim (1927 – 1994)

Hoje chorei muito por uma pessoa
de uma vida intensa e também produtiva
que abraçou a causa tão lúcida e viva;
um mundo melhor que na pauta ressoa.

Os pássaros choram e a flor sempre-viva
insiste em viver pois a vida é tão boa.
O som da floresta não se esparze à toa;
alcança infinito na canção que ativa.

JOBIM, o seu nome, um canto de guerra
que exalta a paisagem soando na terra
os ecos audazes no apelo da paz.

O tempo não passa a quem sempre passeia
no enlevo das mentes que pautam na areia
eterna Ipanema que o mar não desfaz !
____________________________

Pajo
(Formiga/MG)

SIMPLESMENTE MULHER 

A você mulher 
Que por si só já é virtude 

Que traz no ventre a vida 
E no peito, a coragem 

No coração, o aconchego 
E nos braços, o filho que acalenta 

De olhar no horizonte 
Na busca do filho ausente 

Que o lar administra 
O suor do pai que em você confia 

No leito do filho doente 
Braços de Morfeu que não lhe aceita 

Que da vida é flor que enfeita 
Conselheira, esposa, mãe, trabalhadora, amiga 

A você por ser 
Simplesmente... mulher.
________________________________

Isabel Furini 
(Curitiba/PR)

ULULA

Ulula a poesia  
exilada do mundo consumista
mas enraizada
nas profundezas
da alma humana.
___________________

Ruth Farah
(Cantagalo/RJ)

TODOS PELA PAZ

Neste mundo ameaçado
pela maldade cruel,
parece terem montado
nova Torre de Babel.
Peçamos em oração
que os novos canhões de guerra,
em vez de destruição,
detonem amor na Terra.
"Vamos todos nos unir"
é um lema dos cristãos,
devendo a paz garantir
_ela está em nossas mãos.
Começando em cada lar
e no trabalho, também,
as pessoas vão se amar
visando somente o bem.

Respeitar o ser humano
com tal solidariedade
é um exemplo soberano
para toda a humanidade.
Com real inteligência
de sentimento profundo,
dando um basta à violência,
salvaremos nosso mundo.
Quando povos e nações
se consideram irmanados,
não há discriminações
_ direitos são respeitados.
Queremos, neste milênio,
seja o lema natural
dos povos igual convênio:


manter a Paz Mundial!

Estante de Literatura Universal (A Tomada de Joppa)

A tomada de Joppa é um antigo conto egípcio que descreve a conquista da cidade de Joppa (atual Jaffa) pelo general Djehuty à época de Tutmés III. Conserva-se uma cópia no papiro Harris 500, guardado no British Museum com a referência EA 10060.

Não se trata de uma narração histórica mas de um conto cujo fundo é a campanha na Síria de Tutmés, e o que ocorreu a um comandante de tropa chamado Djehuty que servia sob as ordens do faraó. As tática usadas por Djehuty na história evocam o episódio do Cavalo de Troia relatado na Odisseia e o conto de Ali Babá das "Mil e uma Noites".

O papiro data de começos da XIX dinastia, durante o reinado de Seti I ou Ramsés II. Está escrito em hierático e conserva-se em forma fragmentar: o começo perdeu-se e o restante do texto tem muitas lacunas.

No fragmento conservado, Djehuty convida o príncipe de Joppa (Jaffa) a um encontro no seu acampamento das cercanias da cidade. O príncipe acode com 120 soldados, e Djehuty convida à sua barraca, onde o nocauteia. Oculta duzentos dos seus soldados em cestas, coloca-os sobre animais e envia um auriga à cidade para anunciar que os egípcios se renderam e estão enviando um tributo. As duzentas cestas são levadas por 500 mensageiros, que não são mas que soldados de Djehuty: uma vez dentro da cidade, conquistam-na. A história termina com uma carta na qual Djehuty informa ao faraó desta vitória.

Embora os acontecimentos descritos nesta história sejam fictícios, estão situados num contexto real: Tutmés realizou um total de 16 campanhas na Síria entre 22 e 42 do seu reinado; a tomada de Jaffa deve ter sucedido numa das primeiras. O general Djehuty é um personagem real, bem documentado em diversos achados arqueológicos, por exemplo numa tigela de ouro com a qual Tutmés III o obsequiou pelos seus méritos e que se conserva no Museu do Louvre. A sua tumba foi encontrada em 1824 em Saqqara.

Fonte:

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

José Feldman (Sonetilho de Adeus a Cléo)


SONETILHO DE ADEUS A CLÉO
(Maringá/PR – 8/2/2014 – 28/1/2017)

Impotente assim estou,
perante tal pesadelo,
já nem mesmo sei quem sou,
nem como posso detê-lo.

Este dia se extinguiu,
e esta noite será fria,
pois a sua alma partiu,
consigo a sua alegria.

A vida não tem sentido,
perde todo o colorido
nas lágrimas, a razão.

Faz do meu mundo deserto,
onde a saudade por certo
morará no coração.

Olivaldo Junior (O Maior Sonho)

Era uma vez um menino que se chamava Téo. Ele, igual a tantos meninos do mundo, gostava de bola, de gente e de emoção. Morava com seu pai, com sua mãe e seus dois irmãos menores no subúrbio de uma velha cidade do interior. A vida seguia calma, com as manhãs na escola, as tardes na rua e as noites em casa, com a família e com seu cachorro Toddy.

O pai de Téo era um jovem caminhoneiro, mas corria como ninguém nas estradas que o menino só veria pelos mapas que a "fessora" lhe ensinasse. Vez por outra, lá de longe, o pai trazia algum "produto" local, feito o crânio de boi que repousava no meio da sala, vindo de um Nordeste que ainda clama por água e se retira para o Sul. As velhas "vidas secas".

Certa noite, a família do menino estava só. O pai saíra em viagem fazia um mês. A noite ventava como se a lua quisesse cair. Caíram no sono, Téo e seus irmãos, mas a mãe estava inquieta. Bateram na porta. Dois policiais. A mãe de Téo soltou um grito. O pai não voltaria para casa com nenhum crânio de boi, nenhuma carranca do Rio São Francisco, nenhuma concha.

Após a "sorte" do pai, a mãe, que já lavava para fora, intensificou o serviço e, como se fosse um decreto, conseguiu com a vizinha uma velha caixa de pinho, madeira ainda boa, e, gastando uns trocos na venda, mandou o filho ir à luta. "Vai, Téo, ser gauche na vida!". E Téo foi. Foi ser engraxate. A praça o esperava. Era o destino. Chorou. Cadê o seu pai? A saudade.

Por um bom tempo, a mãe de Téo tentou manter os estudos de que tanto gostava seu filho. Mas a praça mais próxima estava fraca em movimento. A do Centro era melhor. O pobre largou a escola. Téo teve festa de despedida e tudo. A história se passa num tempo em que, em muitos casos, era certo largar a escola e ganhar a vida. O maior sonho de Téo era estudar. Não pôde.

Passado um tempo, já moço, passou a fazer viagens de caminhão com um certo tio que queria lhe ensinar o ofício. Gostava da estrada. Nela, quem sabe, encontraria seu pai. Não, jamais o encontraria. Mas sonhava com o "velho". E era bom sonhar com ele, com seu riso sempre ali, à moda de quem sabe que a vida é curta e não vale a pena chorar. Seu pai estava com eles.

A família de Téo comemorava o casório. O jovem se casara com a filha de um nobre pastor. O caminhão ficaria para trás. Téo conseguiu emprego na fábrica do sogro. Sabia que, mesmo que fosse caminhoneiro a vida inteira, o pai dele jamais voltaria para casa. A casa de Téo seria a cidade em que nascera, os braços da esposa e, quem diria, a escola, o supletivo, onde encararia a dura missão de, após tanto tempo, voltar aos estudos. Seu maior sonho estava a toda de novo! Seu coração, de estudante, rondava os volumes da séria Barsa, do austero Aurélio, e rodava, rodava, rodava, em silêncio.

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VII

Utilizando-se da linha temática regionalista e amorosa, Jorge Amado estrutura e compõe, em plena proximidade com o brasileiro do interior nordestino, as suas representações identitárias, em especial do imigrante árabe, do sul da Bahia, dos meados dos anos Vinte.

Nessa construção, afasta-se da perspectiva etnocêntrica, com a qual, no mais das vezes, se representa o diferente de si. Fugindo ao etnocentrismo, Jorge Amado se aproximaria da concepção interativa da identidade, na qual a identidade se plasma a partir da ‘interação’ entre o eu e a sociedade, como expõe Stuart Hall:

De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem. [...] A identidade, então, costura (ou para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis. (HALL, 2001, p. 11-12)

Na utilização dessa visão sociológica, Jorge Amado procede à sua configuração do imigrante árabe pelas letras da aproximação; da ausência de estranhamento, em plena interação com a cultura baiana, como se afere da passagem, na qual Jorge Amado, retomando Machado de Assis, expressa o sentimento de mal estar de Nacib ante o cozinheiro estrangeiro que contratara, a conselho do seu sócio Mundinho, na presença do qual se sente estrangeiro, amedrontado e humilhado, como se pode observar nas passagens a seguir:

O cozinheiro chegou, via Bahia, junto com Mundinho Falcão [...] Nacib embasbacou-se ante o cozinheiro. Estranha criatura: [...] Português de nascimento, de sotaque pronunciado, muitas palavras a caírem depreciativas se seus lábios eram francesas. Nacib humilhado não as entendia [...] Exigia fogão de metal, a carvão. Quanto antes. Nacib sentia-se humilhado e amedrontado. Ia dizer qualquer coisa, o ‘chef de cuisine’ aplicava-lhe um olho crítico, superior, deixava-o gelado. Não fosse o homem ter vindo do Rio, custar tanto dinheiro e, sobretudo, ter sido ideia de Mundinho Falcão, e o mandaria estourar-se no inferno com suas comidas de nomes complicados e suas palavras francesas. [...] Quanto a Nacib, esse brasileiro nascido na Síria, sentia-se estrangeiro ante qualquer prato não baiano, à exceção do quibe. Era exclusivista em matéria de comida. (AMADO, 1979 1, 340-341)

Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava  o açúcar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. [...] O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços. (MACHADO, 1994, p. 676)

Nessa concepção interativa, em que lança mão do melhor de nossa tradição literária, Jorge Amado procede à representação de Nacib. Dessa interação não escapará sequer os traços físicos da personagem, curiosamente aproximada do biótipo nordestino, como atesta a descrição física do personagem, em especial o realce de sua “cabeça chata”, traço fisionômico pelo qual se costumava distinguir os brasileiros oriundos do Nordeste:

Frondosos bigodes plantados num rosto gordo e bonachão, de olhos desmesurados, fazendo-se cúpidos à passagem das mulheres. Boca gulosa, grande e de riso fácil. Um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido, “barriga de noves meses”, como pilheriava o Capitão ao perder uma partida no tabuleiro de damas. (AMADO, 1979 1, p. 40 – grifos nossos)

Nesse percurso, Jorge Amado ressaltaria o legítimo pertencimento de Nacib ao Brasil, à Ilhéus, reconhecendo-o como um verdadeiro grapiúna. Recorrentemente assinalada, a condição pátria de Nacib seria ora apontada pelo narrador, ora pelo próprio personagem que, continuadamente, elide sua terra de nascimento, identificando-a apenas como a terra de seu pai, como se afere das passagens abaixo:

Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus com quatro anos, vindo num navio francês até à Bahia. Naquele tempo, no rastro do cacau dando dinheiro, chegavam à cidade de alastrada fama, diariamente, pelos caminhos do mar, do rio e da terra, nos navios, nas barcaças e lanchas, nas canoas, no lombo dos burros, a pé abrindo picadas, centenas e centenas de nacionais e estrangeiros [...] Chegavam e em pouco eram ilhenses dos melhores, verdadeiros grapiúnas plantando roças, instalando lojas e armazéns. (AMADO, 1979 1, p. 39)

– Tudo que quiser, menos turco. Brasileiro, – batia com a mão enorme no peito cabeludo – filho de sírios, graças a Deus. [...] – Na terra de meu pai... – assim começavam suas histórias nas noites de conversas longas, quando nas mesas do bar ficavam apenas uns poucos amigos. Porque sua terra era Ilhéus, a cidade alegre ante o mar, as roças de cacau, aquela zona ubérrima onde se fizera homem. Seu pai e seus tios, seguindo o exemplo dos Ashcar, vieram primeiro, deixando as famílias. Ele embarcara depois, com a mãe e a irmã mais velha, de seis anos, Nacib ainda não completara os quatro. Lembrava-se vagamente da viagem na terceira classe, o desembarque na Bahia onde o pai fora esperá-los. Depois a chegada a Ilhéus, a vinda para a terra numa canoa pois naquele tempo nem ponte de desembarque existia. Do que não se recordava mesmo era da Síria, não lhe ficara lembrança da terra natal tanto se misturara ele à nova pátria e tanto se fizera brasileiro e ilheense. Para Nacib era como se houvesse nascido no momento mesmo da chegada do navio à Bahia, ao receber o beijo do pai em lágrimas. Aliás, a primeira providência do mascate Aziz, após chegar a Ilhéus, foi conduzir os filhos a Itabuna, então Tabocas, ao cartório do velho Segismundo, para registrá-los brasileiros. (AMADO, 1979 1, p. 40-41)

Legitimamente brasileiro, posto que ungido pelo velho e persistente “jeitinho nacional”, Nacib usufruiria da cordialidade brasileira, termo aqui utilizado no sentido difundido por Sergio Buarque de Holanda, ao se referir a nossa propensão adversa a todo o formalismo e convencionalismo social (HOLANDA, 1988, p. 106-107), entre eles o disciplinamento burocrático. Desse desvio da legalidade, aprovado pelos moradores de Ilhéus, se deve a condição de brasileiro nato de Nacib, cujo registro civil de nascimento, comprado a preço módico, havia sido consumido pelo incêndio do cartório de Tabocas, como registra ironicamente o narrador:

Processo rápido de naturalização que o respeitável tabelião praticava com a perfeita consciência do dever cumprido por uns quantos mil-réis. Não tendo alma de explorador, cobrava barato, colocando a operação legal ao alcance de todos, fazendo desses filhos de imigrantes, quando não dos próprios imigrantes vindos trabalhar em nossa terra, autênticos cidadãos brasileiros, vendendo-lhes boas e válidas certidões de nascimento. Acontece ter sido o cartório incendiado [...] Livros de registros não existiam, mas existiam idôneas testemunhas a afirmar que o pequeno Nacib e a tímida Salma, filhos de Aziz e de Zoraia, haviam nascidos no arraial de Ferradas e tinham sido anteriormente registrados no cartório, antes do incêndio [...] Como pensar em míseros detalhes legais, como o lugar e a data exata do nascimento de uma criança [...] Acreditava simplesmente na palavra daqueles simpáticos imigrantes, aceitava-lhes os presentes modestos, vinham acompanhados de testemunhas idôneas, pessoas respeitáveis, homens cuja palavra, por vezes, valia mais que qualquer documento legal. (AMADO, 1979 1, p. 41-42)

Assegurada pelo desvio da legalidade, a nacionalidade brasileira de Nacib também se estenderia aos seus familiares, concebidos pelo narrador como conquistadores lendários, heróis do imaginário e da memória popular, juntamente com outros pioneiros e desbravadores de Ilhéus, de origem brasileira. Nesse caminho, Jorge Amado indicia o assunto de seu último livro, A descoberta da América pelos turcos (1994), ao mesmo tempo em que assegura, à família do protagonista, o estatuto de ilhenses por fora e por dentro, expressão popular bem ao gosto nordestino:

Já ilhenses por fora e por dentro, além de brasileiros naturalizados, eram os parentes de Nacib, uns Ashcar envolvidos nas lutas pela conquista  da terra, onde seus feitos foram dos mais heróicos e comentados. Só encontram eles comparação com os dos Badarós, de Braz Damásio, do célebre negro José Nique, do coronel Amâncio Leal. Um deles, de nome Abdula, o terceiro em idade, morreu nos fundos de um cabaré em Pirangi após bater três dos cinco jagunços mandados contra ele, quando disputava pacífica partida de pôquer. (AMADO, 1979 1, p. 40)

A ênfase no caráter brasileiro de Nacib, na sua completa aclimatação pautará toda a narrativa. É notório o esforço do narrador amadiano em confirmar a completa integração de Nacib à vida de Ilhéus, seja como cidadão estimado e respeitado pelos senhores cacaueiros, seja como político, de cujas ações também advêm às mudanças em curso, como demonstram a sua indicação à diretoria da Associação Comercial de Ilhéus e a sua aliança, política e comercial, com Mundinho:

Um dos mais importantes sucessos daquele ano em Ilhéus foi a inauguração da nova sede da Associação Comercial [...] As eleições para a diretoria precederam a da mudança [...] Além do nome de Ataulfo Passos, um outro se repetia nas duas chapas [...] Nacib A. Saad [...] Assim, viu-se eleito Nacib quarto-secretário da Associação Comercial de Ilhéus, companheiro de Ataulfo, Mundinho, Maluf, do joalheiro Pimenta, de outros tipos importantes, inclusive do dr. Maurício e do Capitão. (AMADO, 1979 1, p. 186-188)

O bar de Nacib agora era um reduto de Mundinho Falcão. Sócio do exportador e inimigo de Tonico, o árabe (cidadão brasileiro nato e eleitor) entrara na campanha. E, por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou seu discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não agüentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes. (AMADO, 1979 1, p. 327)

Utilizando-se da perspectiva interacionista, Jorge Amado compõe o mosaico identitário da Bahia, privilegiando o imigrante árabe. Nessa composição, organizada pelas lentes da simpatia e da afinidade, o aproximará, amorosamente, de Gabriela, sertaneja tangida pela seca no sertão, chegada à Ilhéus abrindo picadas, numa passagem que, embora marcada pela sutileza, lembraria a personagem Iracema, de José de Alencar:

Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem. Como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados [...] no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume. (AMADO, 1979 1, p. 84 – grifos nossos)

Não obstante essa sutil aproximação, Gabriela seria, antes, uma espécie de Rita Baiana, recém saída das matas. Configurada pelas tintas do Naturalismo, essa descendente dos nossos aborígines co-divide, com a personagem de Aluísio Azevedo, precursor da vertente naturalista no Brasil, a forte sensualidade, o gosto pela música e pela dança, o forte apelo do amor sexual, a pouca propensão ao seu disciplinamento, através do casamento, num completo alheamento ao formalismo e ao convencionalismo social. Filhas da mesma concepção naturalista, a aproximação entre essas duas personagens seria inevitável, como demonstram as várias passagens das narrativas de Aluisio Azevedo e Jorge Amado.

Representante de uma das nossas feições nacionais, derivada, literariamente, da obra de José de Alencar, O sertanejo (1875), Gabriela é o elemento autóctone com o qual Jorge Amado recria o “encontro”, em seu país regional. Desta feita, elegendo, como mediadores, a intensa conexão sexual, a afinidade de temperamento e, principalmente, a ausência de estranhamento entre o imigrante árabe e a sertaneja nordestina. Reciprocamente, ambos são para si mesmos, o elo que preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público (HALL, 2001, p. 11), como se pode aferir das passagens seguintes.

Ele se havia sentado. Gabriela acomodou-se no chão a seus pés. Tomou-lhe da grande mão e peluda, beijou-lhe a palma naquele gesto que recordava a Nacib, nem mesmo sabia por que, a terra de seus pais, as montanhas da Síria. Depois encostou a cabeça em seus joelhos, ele passou-lhe a mão nos cabelos. O pássaro sossegara, soltou seu trinado. – Dois presentes de uma vez... Moço tão bom! – Dois? – O passarinho e, mais bom ainda, ter vindo trazer. (AMADO, 1979 1, p. 198)

Gabriela o puxou pra si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié...E em sua língua de amor, que era o árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em diante és Bié e essa é a tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos pássaros. Te chamas Bié...” – Bié é nome de gringa? Me chames Bié, fale mais nessa língua... Gosto de ouvir. (AMADO 1979 1, p. 200)

Nesse caminho interativo, marcado por uma reciprocidade estável entre o interior e o exterior, produto da primeira metade do século XX, como acentua Stuart Hall (2001, p. 32), Jorge Amado procede à recriação de sua pátria regional, proposta privilegiada do Modernismo nordestino, pautando-se pela ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade (HALL, 2001, p. 53), como se apreende do fragmento abaixo:

Muita coisa recordava ainda o velho Ilhéus de antes. Não o tempo dos engenhos, das pobres plantações de café, dos senhores nobres, dos negros escravos, da casa ilustre dos Ávilas. Desse passado remoto sobravam apenas vagas lembranças, só mesmo o Doutor se preocupava com ele. Eram os aspectos de um passado recente, do tempo das grandes lutas pela conquista da terra. Depois que os padres jesuítas haviam trazido as primeiras mudas de cacau. Quando os homens, chegados em busca de fortuna, atiraram-se às matas e disputaram, na boca das repetições e dos parabeluns, a posse de cada palmo de terra. [...] Quando o caxixe reinou, a justiça posta a serviço dos interesses dos conquistadores de terra, quando cada grande árvore escondia um atirador na tocaia esperando sua vítima. Era esse passado que ainda estava presente em detalhes da vida da cidade e dos hábitos do povo. Desaparecendo aos poucos, cedendo lugar às inovações, a recentes costumes. Mas não sem resistência, sobretudo no que se referia a hábitos transformados pelo tempo em lei. (AMADO, 1979 1, p. 21-22)

Em sua narrativa da nação grapiúna, Jorge Amado subordina, ideologicamente, as raízes da identidade do sul da Bahia às raízes indígenas e árabes, se valendo de nossa tradição literária, em suas mais variadas vertentes. Nesse aproveitamento escritural, o escritor baiano aproxima, física e culturalmente, as gentes árabes das nordestinas, ao mesmo tempo em que assegura a esses imigrantes, o importante papel de elemento constitutivo de uma feição baiano-nacional.
___________
continua...

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

domingo, 29 de janeiro de 2017

Folclore Japonês (Kaguya Hime: A Princesa da Lua)

A lenda da Princesa Kaguya também conhecido como o Conto do Cortador de Bambu, cujo título original é Taketori monogatari, data do Século X, é considerada a mais antiga narrativa japonesa existente. 

Kaguya-Hime: A Lenda

Há muito, muito tempo atrás, viveu um homem conhecido como O Velho Cortador de Bambu, ou “Taketori”. Todos os dias, andava entre os campos e as montanhas para colher bambus que, depois, transformava em lindos cestos e nos mais variados artigos. Seu nome era Sanuki no Miyatsuko.

O ancião e sua velha esposa viviam juntos numa casa no meio da floresta. Eles eram muito pobres e solitários, pois não tinham filhos para criar.

Um belo dia, enquanto estava na floresta, o velho Sanuki percebeu entre os bambus um talo cuja base brilhava intensamente. Achando aquilo muito estranho, aproximou-se para examinar melhor e viu uma luz intensa dentro do talo oco. Ele ficou espantado, pois, em anos e anos de trabalho, nunca havia visto algo como aquilo. Muito curioso, ele cortou o bambu e mal pôde acreditar no que viu. Dentro do talo, havia uma garotinha encantadora, com cerca de dez centímetros de altura.

“Uma menina, uma menina! Tão pequena e tão linda, só pode ser um presente dos Deuses!” -Disse o velho homem  – “Eu a descobri porque você estava aqui, entre os bambus que vejo todos os dias. Isso deve significar que você está destinada a ser minha filha.”

Então, ele pegou a frágil garotinha na palma de suas calejadas mãos e a levou para casa, entregando-a aos cuidados da sua esposa para que a criasse. Ao ver a menina, a velha senhora também ficou muito contente e encantada com a criança que possuía uma beleza incomparável, e era tão pequena que eles a colocaram num cesto para protegê-la.

Depois desse dia, por várias vezes, quando o Velho Cortador de Bambu recolhia os bambus, encontrava alguns talos recheados de moedas de ouro que ele juntou e juntou e, dessa forma, tornou-se um homem rico e importante na região. Pouco a pouco, Sanuki abandonou sua rotina de andar pelos campos para cortar bambus, porém, permaneceu sendo tratado e conhecido pelo antigo ofício: o Cortador de Bambu.

Kaguya Hime crescia muito rápido e a cada dia parecia mais bonita. Menos de três meses depois da sua chegada, a pequenina já era alta como uma adolescente. Até então, durante dias e noites, os pais, preocupados com a sua segurança, sequer tinham permitido que a filha saísse de seu quarto protegido por enormes cortinas.

Ninguém poderia acreditar que uma pessoa tão bonita pertencesse a este mundo. A menina tinha uma pureza de traços sem igual no mundo inteiro, e sua presença iluminava a casa com uma luz intensa que não deixava nem um canto na penumbra. Além disso, todas as vezes que o velho homem se sentia desanimado, com alguma dor ou até mesmo com raiva, bastava olhar para a criança e tudo passava. Diante dela, tudo ficava perfeito.

Ao alcançar o tamanho de adulta, um homem sábio de Mimuroto, de nome Imbe no Akita, foi convidado a dar a jovem um nome de mulher. Akita a chamou de “Nayotake no Kaguya-hime”, a Princesa Resplandecente do Bambu Flexível.

Os pais, que cuidavam dela amorosamente, decidiram celebrar o acontecimento com sua entrada na vida adulta. Para a comemoração, a jovem foi cuidadosamente preparada. Seus cabelos foram penteados para cima e a vestiram com trajes longos, de modo que a sua beleza foi ainda mais realçada.

A princesa Kaguya-hime estava deslumbrante. Sua festa, engrandecida por atrações de todos os tipos, durou três dias inteiros. Homens e mulheres foram convidados e se divertiram largamente.

Logo os comentários sobre a beleza da Kaguya Hime se espalharam e vinham jovens de todos os cantos do país para conhecê-la. Todos, encantados com a bela jovem queriam se casar com ela, mas Kaguya não queria se casar com ninguém. “Quero ficar ao lado de vocês dois”, dizia a jovem para seus velhos pais.

Mas cinco jovens nobres, de posições importantes, foram mais persistentes. Eles acamparam em frente à casa de Kaguya Hime e pediam uma chance a ela.

Preocupado, o velhinho chamou Kaguya e disse: “Minha filha, eu gostaria muito de ter você sempre por perto, mas acho justo que se case. Escolha um dentre os cinco rapazes que estão acampados aqui”.

Assim, depois de refletir, a linda jovem decidiu. “Eu me casarei com aquele que me trouxer o objeto mágico que pedirei”.

Um colar feito com os olhos de um dragão, um vaso feito com pedras dos deuses que nunca se quebra, um manto de pele de animal forrado de ouro, um galho que faz crescer pedras preciosas, um leque que brilha como a luz do sol e uma concha que a andorinha põe junto com seus ovos. Estes foram os objetos que Kaguya Hime pediu.

O velhinho levou os pedidos de Kaguya aos pretendentes acampados. Ele sabia que seria muito difícil conseguirem obter tais objetos. Qual não foi sua surpresa quando, ao final de alguns meses, todos os pretendentes trouxeram os presentes para Kaguya. Mas, quando eles foram obrigados a entregá-los a jovem, todos admitiram que os presentes eram falsos, pois conseguir os verdadeiros era uma missão muito difícil. E assim, nenhum deles obteve êxito.

Com a falha de todos os cinco príncipes, Kaguyahime, o velho taketori e sua esposa viveram tranquilos e felizes por uns tempos, como uma família unida. Mas as histórias sobre os feitos e falhas dos príncipes percorreram todo o Japão e chegaram ao ouvidos do imperador.

Este ficou então curioso e fascinado pelos relatos sobre a beleza da princesa, e se interessou em conhecê-la, enviando até seu pai então, um convite para que comparecesse a sede imperial.

Mas mesmo o convite do imperador foi rejeitado pela jovem, o que o irritou e o fez enviar então uma ordem convocativa. Temendo o imperador o cortador de bambu aconselhou à filha que obedecesse, mas ela surpreendeu a todos mais uma vez declarando que não obedeceria a ordem e que nem poderia, pois caso se afastasse de casa, iria dissolver-se em fumaça e desaparecer.

Dessa vez o Imperador não se enfureceu devido a justificativa, mas ficou ainda mais interessado, passaram então a trocar correspondências frequentemente e acabaram se tornando amigos, mas sempre adiando uma oportunidade de se conhecerem, enviando um ao outro poemas e contos. E assim, a família do taketori permaneceu em paz por alguns anos a mais.

Quatro primaveras haviam se passado desde que Kaguya fora encontrada no broto de bambu. Mas ela ficava mais triste a cada dia. Noite após noite, Kaguya Hime olhava para a lua, suspirando. Preocupado, o velho pai um dia perguntou: “Por que está tão triste minha filha?”. “Eu gostaria de ficar aqui para sempre, mas logo devo retornar.” Disse a jovem. “Retornar, mas para onde? O seu lugar é aqui conosco, nunca deixaremos você partir.” Disse o pai aflito. “Este não é o meu reino, eu sou uma princesa de Reino da Lua e, na próxima lua cheia, eles virão me buscar”. Completou tristemente a princesa.

Muito assustados com a reveladora confissão de Kaguya Hime, os velhinhos decidiram pedir ajuda ao imperador do reino onde viviam. O Imperador, em ajuda, prontamente enviou muitos guardas para vigiarem a casa do casal. Um verdadeiro exército foi formado.

No dia seguinte, a temida noite de lua cheia chegou. A casa estava tão vigiada que parecia impossível alguém conseguir levar Kaguya Hime. De repente, uma enorme luz surgiu no céu, como se milhares de luas estivessem presentes ao mesmo tempo.

A luz era tão intensa que ninguém conseguiu enxergar a carruagem que descia, guiada por um grande cavalo alado e muitos seres ricamente trajados. Depois de algum tempo, quando a luz diminuiu, a carruagem já estava voando, em direção à lua. Kaguya Hime não estava mais presente, ela fora junto com a comitiva celestial. A comitiva celeste levou Kaguya-hime de volta à Tsuki-no-Miyako (A Capital da Lua), deixando seus pais adotivos da terra em lágrimas.

Os velhos pais ficaram muito tristes, inconformados voltaram ao aposento de Kaguya e encontraram um potinho, presente da filha querida. Ela havia deixado um pó mágico, uma pequena amostra do elixir da vida que garantiria a vida eterna para os dois.

Mas, sem sua filha amada, os velhinhos não tinham motivo para viver para sempre. Eles recolheram todos os pertences de Kaguya e levaram para o monte mais alto do Japão. Lá, queimaram tudo, junto com o pó mágico deixado pela jovem. Uma fumaça branca foi vista subindo ao céu naquele dia.

A montanha era o Monte Fuji. A lenda diz que a palavra imortalidade (fushi ou fuji) tornou-se o nome da montanha, “Monte Fuji”. Dizem, que ainda hoje, é possível ver a fumaça branca subindo em direção ao céu.

Fonte:  Myths and Legends of ancient Japan in Caçadores de Lendas 

Clarice Lispector (A entrevista alegre)

Há pouco tempo uma moça me telefonou dizendo que era da Editora Civilização Brasileira e que Paulo Francis me pedia para dar uma entrevista a ser publicada num dos livros da série Livro de cabeceira da mulher. Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras. Mas tratava-se de um pedido de Paulo Francis, e não havia como negar. Marquei o dia. E depois fiquei furiosa, até com Paulo Francis. Como é então? O Livro de cabeceira da mulher vende como pão quente e eles ganham dinheiro. A moça entrevistadora ganha dinheiro. E só eu tenho amolação. Tentei telefonar para Paulo Francis e desmarcar. Mas como? Se sou, como todo o mundo, vítima do telefone. Este ou não dava linha, ou dava e não estabelecia ligação. Afinal resignei-me. Mas vou me vingar, pensei, de um modo ou de outro vou me vingar.

Só que não pude nem tive vontade. Na hora marcada, entra-me pela porta adentro uma moça linda e adorável, Cristina. Tem um desses rostinhos difíceis de retratar, porque, apesar dos traços exteriores serem bonitos, o que mais importa são os interiores, a expressão. Estabelecemos logo um contato fácil. O que a fez me informar: também trabalhava para um jornal e seus colegas, ao saberem que ia me entrevistar, tiveram pena dela. Disseram que eu era fogo, que mal falava.

Cristina acrescentou: “Mas você está falando.” – Sim, falei – como resistir? O racionamento de luz começara, e Cristina, para ficar perto das duas velas que acendi, sentou-se no tapete, e já fazia parte da casa.

Suas perguntas eram inteligentes e complicadas, quase todas sobre literatura. Eu disse: mas pensei que o que interessaria à mulher de classe média seria se eu gosto de comer feijão com arroz.

Respondeu tranquila: “chegaremos lá. Aquilo era apenas o começo.” E fui me encantando com Cristina. É noiva. Que pena, pensei. Gostaria que ela ficasse bem sentadinha esperando durante muitos anos que meus filhos crescessem para um deles se casar com ela. Mas ela não pode esperar, meus filhos estão custando a crescer. Me conforto em recomendá-la como entrevistadora.

A entrevista começou com bom humor. Rimos várias vezes. Uma das vezes foi quando ela perguntou o que eu achava do que o crítico Fausto Cunha escrevera. Escrevera – e eu não sabia – que Guimarães Rosa e eu não passávamos de dois embustes. Dei uma gargalhada até feliz.

Respondi: não li isso, mas uma coisa é certa: embustes é que não somos. Podiam nos chamar de qualquer coisa, mas de embustes não. Ora essa, Fausto Cunha. Você, que conheci no casamento de Marly de Oliveira, é até simpático, mas que ideia. Veja se pensa um pouco mais no assunto. Acho que Guimarães Rosa também riria.

Cristina me perguntou se eu era de esquerda. Respondi que desejaria para o Brasil um regime socialista. Não copiado da Inglaterra, mas um adaptado a nossos moldes.

Perguntou-me se eu me considerava uma escritora brasileira ou simplesmente uma escritora. Respondi que, em primeiro lugar, por mais feminina que fosse a mulher, esta não era uma escritora, e sim um escritor. Escritor não tem sexo, ou melhor, tem os dois, em dosagem bem diversa, é claro. Que eu me considerava apenas escritor e não tipicamente escritor brasileiro. Argumentou: nem Guimarães Rosa que escreve tão brasileiro? Respondi que nem Guimarães Rosa: este era exatamente um escritor para qualquer país.

Cristina estava com tosse e eu também: mais um traço de união. A entrevista era entrecortada de acessos de tosse, e até isso serviu para quebrar a cerimônia. Além do mais nenhuma das duas estava tomando um xarope, e pelo mesmo motivo: preguiça; Minha vingança resumiu-se em também entrevistar Cristina. Fiz-lhe várias perguntas, às quais respondeu com simplicidade e inteligência. Sob o pretexto de mostrar-lhe retratos que fizeram de mim, percorri com ela o apartamento quase todo: Cristina era uma das minhas, e tinha o direito de me conhecer através de minha casa. Casa é muito reveladora. Entrou num dos quartos onde um de meus filhos estava deitado lendo à luz de uma vela. Ele nem se incomodou, tão simples é a presença de Cristina. Meu outro filho ia ao cinema com um amigo. E ele, que está na idade de mostrar que é independente da mãe, também não se perturbou em me dar um beijo de despedida, na frente da moça. O outro filho não se importou de interromper-nos para pedir dinheiro para comprar Manchete: era o anoitecer de uma quarta-feira. Terminei tão à vontade que estirei as pernas em cima de uma mesa e fui descendo pelo sofá abaixo até estar quase deitada.

Cristina, você representa o melhor da juventude brasileira. Dá orgulho. Quero que meus filhos um dia venham a ser assim.

Aliás uma pergunta que me fez: o que mais me importava – se a maternidade ou a literatura. O modo imediato de saber a resposta foi eu me perguntar: se tivesse que escolher uma delas, que escolheria? A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou mais importante do que como escritora.

Cristina disse-me: “O crime não compensa. A literatura compensa?” De jeito nenhum.

Escrever é um dos modos de fracassar. Cristina se surpreendeu, perguntou-me então por que eu escrevia. E eu não soube responder.

O engraçado é que a moça veio tão preparada para a entrevista que sabia mais sobre mim do que eu própria. Perguntou-me por que meus personagens femininos são mais delineados do que os masculinos. Protestei em parte. Tenho um personagem masculino que ocupa o livro inteiro, e que não podia ser mais homem do que era.

Cristina, um dia talvez eu a entreviste. Os estudantes universitários vão se identificar com você e quase todos pensarão em casamento. Que seu noivo tome cuidado. Também tenho um amigo que, se a conhecesse, ia se apaixonar do modo mais poético e real. Você é tão
necessária ao Brasil. Muitos rapazes e moças como você, e o Brasil iria para a frente.

Percebo que afinal estou tendo a minha vingança: a moça escreve sobre mim, mas eu vou e escrevo sobre ela. Aliás, Cristina, você quer jantar uma noite dessas comigo? É só me telefonar.

Você vai se casar com um diplomata, mas esse será um jantar não diplomático, na nossa copa provavelmente, pois continuo esquecendo de comprar uma campainha de chamar empregada e na certa não poderemos jantar na sala. Aliás, uma grande amiga dadivosa, mas distraída, disse que tinha mais de uma campainha e que me daria uma. Cadê? Distraio-me e não compro, ela se distrai e não me dá.

Perguntou-me o que eu achava da literatura engajada. Achei válida. Quis saber se eu me engajaria. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos. É possível que este meu lado ainda se fortifique mais algum dia.

Ou não? Não sei de nada. Nem sei se escreverei mais. É mais possível que não.

Perguntou-me o que eu achava da cultura popular. Eu disse que ainda não existe propriamente. Quis saber se eu a considerava importante. Eu disse que sim, mas que havia algo muito mais importante ainda: oferecer oportunidade de ter comida a quem tem fome. A menos que a cultura popular leve o povo a tomar consciência de que a fome dá o direito de reivindicar comida. Vide a nova encíclica que fala no recurso extremo à rebelião em caso de tirania.

Até breve, Cristina, até o nosso jantar. Você parece que também gostou de mim. O que é bom. Mas não sei por que, depois que li a entrevista, saí tão vulgar. Não me parece que eu seja vulgar. E nem tenho olhos azuis.

Fonte:
Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo.