sábado, 11 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) XII


Luís de Camões (A B C em motes)


AAAA
 
Ana quisestes que fosse
o vosso nome da pia,
para mor minha agonia.
 
Apeles, se fora vivo
e a ver-vos alcançara,
por vós retratos tirara.
 
Aquiles morreu no templo,
contemplando de giolhos;
eu, quando vejo esses olhos.
 
Artemisa sepultou
a seu irmão e marido;
vós a mim, e a meu sentido.

B
 
Bem vejo que sois, Senhora,
extremo de formosura,
para minha sepultura.

CC
 
Cleópatra se matou
vendo morto a seu amante;
e eu por vós, em ser constante.
 
Cassandra disse de Tróia
que havia ser destruída;
e eu por vós, d'alma e da vida.

DD
 
Dido morreu por Enéas,
e vós matais quem vos ama;
julgai se sois cruel dama!
 
Dianira, inocente,
da má morte causadora;
vós, da minha, sabedora.

E
 
Eurídice foi a causa
de Orfeu ir ao Inferno;
vós, de ser meu mal eterno.

FF
 
Fedra, só de puro amor,
morreu por seu enteado;
eu, morro de desamado.
 
Febo vai escurecendo
ante vossa claridade;
e eu, sem ter liberdade.

GG
 
Galatéia sois, Senhora,
Da formosura extremo;
e eu, perdido Polifemo.
 
Genebra, que foi rainha,
se perdeu por Lançarote;
e vós, por me dar a morte.

HH
 
Hércules, uma camisa
de chamas o consumiu;
minha alma, dês que vos viu.
 
Hébis e Dido morreram
com o rigor da mudança;
eu, vendo vossa esquivança.

JJJJ
 
Judit, que o duro Holofernes
degolou, se viva fora,
mate lhe dereis, Senhora.
 
Júlio César conquistou
o mundo com fortaleza;
vós a mim com gentileza.
 
Júlio César se livrou
dos inimigos com abrolhos;
eu, não posso desses olhos.
 
Jazia-se o Minotauro
preso no seu labirinto;
mas eu mais preso me sinto.

LL
 
Leandro se afogou
e foi sua causa Hero;
e a mim o que vos quero.
 
Leandro se afogou
no mar de sua bonança;
eu, no de vossa esperança.

MM
 
Minerva dizem que foi,
e Palas, deusas da guerra:
e vós, Senhora, da terra.
 
Medeia foi mui cruel,
mas não chegou a metade
de vossa grã crueldade.

NN
 
Narciso o siso perdeu
em vendo a sua figura;
eu, por vossa formosura;
 
Ninfas enganam mil Faunos
com seu ar e formosura;
e, a mim, vossa figura.

OO
 
Os olhos choram o dano
que em vos verem sentiram,
mas eu pago o que eles viram.
 
Orfeu com a doce harpa
venceu o reino de Plutão;
vós a mim, com perfeição.

PP
 
Páris a Helena roubou,
por quem Tróia foi perdida;
e vós a mim, alma e vida.
 
Pirro matou Policena,
perfeita em todos sinais;
e vós a mim me matais.

QQ
 
Quanto mais desejo ver-vos,
menos vos vejo, Senhora:
não vos ver melhor me fora.
 
Querendo ver a Diana,
Actéon perdeu a vida,
que eu por vós trago perdida.

RR
 
Remédio nenhum não vejo
que remedeie meu mal;
nem crueza à vossa igual.
 
Roma o mundo sujeita
com armas, saber, temor
vós a mim só por amor.

S
 
Sirena, na mor fortuna
com enganos vai cantando;
e vós, sempre a mim matando.

TT
 
Tisbe morreu por Píramo,
a ambos matou o Amor;
a mim, vosso desfavor.
 
Tisbe pelo seu amante
morreu com amor sobejo;
mas eu mais morto me vejo.

VV
 
Vênus, que por mais formosa
lhe deu Páris a maçã,
não foi quanto vós louçã.
 
Vênus levou a maçã
por vós não serdes, Senhora,
nascida naquela hora.

XX
 
Xpõ vos acabe em graça,
e vos faça piedosa
tanto, quanto sois formosa.
 
Xantopea tornou atrás
por Apônio a invocar;
e vós não, a meu chamar.

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Redondilhas.

Alberto Braga (A Guerra)


Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha (
moinho movido a água) do Euzebio moleiro, e da margem oposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio Anselmo.

Eram dois velhotes viúvos, de bons sessenta anos, e amigos desde crianças. Para contradição do anexim popular, estes dois moleiros queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo oficio.

Parece que o rio, naquele sitio, era até mais pitoresco! Por detrás das azenhas descia a enfesta de uma cerrada devesa (
caminho orlado de árvores que limita um terreno) de carvalhos e sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os machos carregados com os taleigos (saquinhos estreitos e compridos) da fornada. Mesmo á orla havia alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As águas caídas nos açudes, vinham costeando uma gândara (charneca), escondiam-se em meio de um canavial, e surgiam depois mais límpidas até às rodas do moinho, que as marulhavam e batiam constantemente.

No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se amiúde, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas do outono principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a falar de um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois dizia o Euzebio:

- Anselmo, fala mais alto, que te não ouço.

- O que é? - perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.

O Euzebio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:

- Não te entendo.

Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos anos que os tinha quase surdos de todo. Pobres velhos!

O Euzebio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois anos, como um castelo! Ainda o dia vinha longe, já ele estava a trabalhar, que era um regalo a gente vê-lo.

- Lida como um mouro! - diziam os conhecidos.

E se havia esfolhada, ou espadelada, quem lá não faltava era ele.

O pai, que, noutros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, à boca da noite:

- Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os fregueses.

- Estava arranjado! - respondia o moço a rir. - Vosmecê já deu o que tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!

Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha mais fregueses a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a brincadeira.

E o velhote do pai, quando alguém lhe contava as diabruras do filho, parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.

O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ela Margarida, e era formosa, daquela formosura campesina, sem artificio, jovial e expansiva. Em dotes do coração - que é a principal beleza! - nem as mais virtuosas a excediam.

Desde pequenina foi Margarida criada com Simão. Se não ficasse mal estabelecer agora paralelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que os dois se queriam e estimavam como "Paulo e Virgínia".

Quando os quinze anos de Margarida, que era mais nova dois do que Simão, vieram pôr termo aos brinquedos de infância, então principiou ele a olha-la com aquele respeito com que se olha para uma irmã mais velha.

Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes acrisolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no generoso coração do rapaz.

Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor, fingia-se contrariada, carregava o sobrolho e mudava de conversa. Destas esquivas repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do moleiro.

- Margarida - dizia-lhe ele duma vez - se não quiseres casar comigo, hei de morrer solteiro.

- Não te faltam mulheres, Simão.

- E se te vejo ser d'outro - protestava o rapaz com as lágrimas nos olhos - não sei que faça, que me não mate.

E Margarida era tão cruel, que assim desprezasse o seu amigo e companheiro de infância?!

Nós veremos já até onde vai a dedicação de uma mulher.

       *       *       *       *       *

Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e de D. Miguel.

Quando ás aldeias chegavam noticias aterradoras, as mães estremeciam ao contemplar os filhos afadigados na lavoura.

 - De mortos nem a conta se sabe!- diziam os mensageiros. Vai por aí até o fim do mundo!

- Jesus, Senhor! E então diz que é guerra de irmão contra irmão! Valha-nos Deus!

De uma vez, oito soldados e um furriel (
antigo posto militar correspondente ao atual terceiro-sargento) pararam á porta da azenha do Euzebio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados aflitivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram o filho, ainda tentou abraça--lo; mas, coitadinho!--como já lhe custava a andar, quando chegou à porta, ia o rapaz a subir a encosta.

Aos gritos da vizinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha. Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um grito agonizante e caiu desfalecida nos braços do pai.

As águas tinham engrossado com as últimas chuvas, e os dois velhos, quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas criancinhas!

Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobressaltada com o tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma batalha a pequena distancia.

Quando a tropa ali passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a espingarda ao ombro, a mochila ás costas e a chorar! Ao passar rente das casas ia saudando os conhecidos, e dizia ás raparigas que pedissem a Deus por ele.

Saiu do povoado sem ter visto o pai, nem Margarida. Levava o coração retalhado!

Assim que a filha do Anselmo o soube, quis logo ir ter aonde pudesse falar-lhe.

- Isso, Deus te livre! - disse-lhe do lado uma vizinha. - Se lá vais, lá ficas! E, de mais a mais, terás de falar com soldados! credo!

- Lá isso - atalhou a moça - também o Simão é soldado, tia Joaquina!

Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulâncias dos mortos e feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros com as pernas partidas, quase todos moribundos!

Nunca se tinha visto uma coisa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se os clamores da gente que se aglomerava para os ver. Destacavam-se algumas frases das ambulâncias:

- Ai! minha pobre mãe!

- Ai! meus ricos filhos!

E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.

Alguém dentre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulância:

- Meu... pai! Marga... rida! Eu morro!

E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça sobre o peito, e descair um braço fora do carro.

Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavalos insofridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava aflita. O retinir das molas da carreta, rodando nas lajes irregulares de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se mais de um carro, pegou no braço que bamboleava, estendido fora da ambulância, à mercê dos solavancos, reparou atentamente num anel que o morto levava, e principiou a gritar:

- O Simão! Morreu! morreu!

E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.

Quando um vizinho entrou na azenha do Euzebio, para lhe dar a notícia da morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a rezar, com os olhos postos num crucifixo, e um rosário entre os dedos.

- Reze-lhe por alma!- disse o vizinho a chorar.

O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou espantado:

- O que é? - e aplicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido correspondente.

- Morreu! - gritou-lhe o outro.

O Euzebio empalideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no vizinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente á cabeceira da cama, e tirou de trás uma espingarda.

- Isso para que é, tio Euzebio? - perguntou-lhe o outro ao ouvido.

- Vou mata-los! - respondeu o moleiro com uma voz convulsa. - Vou mata-los!

Mas quando ia, com a espingarda ao ombro, a transpor a soleira da porta, cambaleou, e caiu fulminado para a outra banda...

Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou aflito a casa, esbaforido, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!...

       *       *       *       *       *

Ainda conheci, há muitos anos, o pai de Margarida.

Era por uma formosa manhã de abril.

O velho estava fora da azenha, sentado numa cadeira de entrevado, com os pés estendidos a uma réstia de sol. Em volta dele, chilreavam os passarinhos na ramaria frondosa do arvoredo.

Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Euzebio; e, depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça para o rio, e perguntava baixo, de si para si:

- E a Margarida?!...

E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as águas do rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!

Fonte:
Alberto Braga. Contos d'Aldeia. Porto/Portugal: Cia. Portugueza Ed.,  1880.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Vinicius de Moraes (Conversa com Caymmi)


Sábado - o dia da Criação - cheguei ao Zum-Zum para fazer meu show com Caymmi e fui encontrar o baiano, como sempre, aboletado na copa, de papo com seus amigos, os garçons da boate. Paulinho Soledade, que eu desconfio fez o Zum-Zum (a dois passos de seu apartamento) muito mais para deleite próprio que do alheio (o que constitui um certificado de garantia) tem neste momento a melhor equipe de serviço da noite carioca: um pessoal que, desde o maitre até o último garçom, é simpático, eficiente e devotado à casa. Adolfo, o porteiro, por exemplo, que acaba de perder o irmão e quatro sobrinhos no rolamento da pedra da rua Euclides da Rocha, está lá firme no seu posto, imerso em sofrimento mas nunca desatento: uma instituição da noite!

Caymmi anda no auge da forma. Com a chegada de Nana, a sua "oncinha", e dos netinhos, da Venezuela, o baiano está nos seus quintais. Tudo nele respira saúde moral e realização. Não fosse a ausência de seu caçula Danilo, o flautista, a quem Caymmi mandou numa excursão à Europa, e sua felicidade seria integral. Dori está se firmando cada, vez mais como um dos jovens compositores mais importantes da última safra. E Stela, sua mulher, é aquele baluarte. De que mais precisa um homem?

Pedimos cada um um uisquinho, e eu disse a Caymmi:

- Você sabe, meu Caymmi, o que um bombeiro disse a meu filho Pedro? Simplesmente o seguinte: que tem uma pedra ali em cima do túnel da Barata Ribeiro, que pela sua tonelagem, se cair vai até a Nossa Senhora de Copacabana, fácil.

- Não me diga...

- Isso não é nada. Atrás de onde eu moro, ali na rua Diamantina, ao sopé do Corcovado, tem uma outra pedra, que, essa, vai cair mesmo. Os bombeiros estiveram lá e já fizeram evacuar três edifícios de apartamentos que ficam na trajetória de sua queda. Ela deve pesar umas dez toneladas.

Caymmi considerou seu uísque.

- Pois é, seu poeta... Veja você... Tudo por causa disto.

E apontou com os olhos um jarro de água à sua frente. Depois, seu olhar baixou um instante e ele se deixou estar, pensando...

- Ela tem um ar tão inocente, mas não é? Tão fresca, tão clarinha... No entanto, ninguém sabe o mal que isso faz!

Olhou-me de soslaio, num sestro muito seu:

- É capaz de devastar uma cidade...

Novo olhar:

- Dá tifo...

Mais outro:

- É por essas e outras que Dorival Caymmi nunca põe água no uísque…

E bebendo uma golada do seu, puro e sem gelo:

- É, meu irmão... Água é fogo!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Arthur de Azevedo (As Cerejas)


– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me… Os cobres são tão curtos!.

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

– Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão
de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu…?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.

– Eu logo vi!…

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

– Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha…

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) XI


Consiglieri Pedroso (A Menina e o Bicho)


 Era uma vez um homem que tinha três filhas.

 Eram todas muito amigas dele, mas havia uma que ele estimava mais.

 Foi um dia à feira e perguntou às filhas o que é que elas queriam de lá. Uma delas disse:

– Um chapéu e umas botas!

 A outra disse também:

– Um vestido e um xale!

Mas a que ele estimava mais não lhe disse nada.

 O homem, muito admirado, perguntou:

– Ó minha filha, tu não queres nada?

– Não quero nada, disse ela. Quero que meu pai tenha saúde!

– Tu hás de também pedir uma coisa, seja o que for, que eu trago-te! - respondeu o pai.

Ela, para que o pai a deixasse, disse então:

– Quero que meu pai me traga um corte de goraz em campo verde.

O homem foi para a feira, comprou todas as coisas que as filhas lhe tinham pedido, e não fazia senão procurar o corte de goraz em campo verde. Mas não o encontrou. Era coisa que não havia. Por isso vinha muito triste para casa, porque era a filha que ele mais estimava.

 Quando vinha andando, aconteceu-lhe ver luzir uma luz no caminho, porque já era noite.

 Foi andando, andando, até chegar àquela luz.

 Era um pastor, que estava ali numa cabana. O homem chegou-se a ele e perguntou:

– Sabe-me dizer que palácio é aquele, e se me podiam dar agasalho!

O pastor respondeu muito admirado:

– Oh!, senhor, mas... naquele palácio não habita ninguém; aparece lá uma coisa, e todos têm medo de lá estar!

– Deixá-lo, disse o homem, não me hão de comer, e como não tem ninguém, vou lá dormir esta noite!

Foi. Encontrou tudo iluminado e muito rico e, entrando mais para dentro, viu uma mesa posta. Quando se ia a chegar à mesa, ouviu uma voz dizer:

– Come e vai-te deitar naquela cama que ali está, e pela manhã levanta-te e leva o que está em cima daquela mesa, que é o que a tua filha te pediu, mas, ao fim de três dias, hás de me trazer ela aqui.

O homem ficou muito contente por levar à filha o que ela tinha pedido, mas ao mesmo tempo ficou triste pelo que a voz lhe tinha dito.

 Deitou-se e ao outro dia levantou-se, foi direito à mesa e viu o corte de goraz em campo verde; agarrou nele e foi para casa.

 Apenas chegou, começaram as filhas de roda dele:

– Meu pai, que é que nos trouxe? Deixe ver.

O pai deu-lhes tudo quanto trazia.

 A outra filha, a que ele estimava mais, perguntou-lhe só se ele tinha saúde. O pai respondeu-lhe:

– Minha filha, venho contente e ao mesmo tempo triste! Aqui tens o teu pedido.

A filha respondeu-lhe:

– Oh! meu pai, eu tinha-lhe pedido isto, porque era coisa que não havia. Mas porque é que vem tão triste?

– Porque tenho de levar-te ao fim de três dias aonde me deram isto!

E contou tudo o que lhe tinha acontecido no palácio e o que a voz lhe tinha dito. A filha, quando ouviu tudo, respondeu:

– Não esteja triste, meu pai, que eu vou, e há de ser o que Deus quiser!

Assim foi. Ao fim de três dias o pai levou-a ao palácio encantado.

 Estava tudo iluminado, a mesa posta e duas camas feitas.

 Quando entraram, ouviram uma voz dizer:

– Come e deixa-te estar três dias com a tua filha, para ela não ter medo.

O homem esteve os três dias no palácio. No fim, foi-se embora, ficando a filha só.

 A voz falava com ela todos os dias, mas não se via ninguém.

 Ao fim de uns poucos dias, a menina ouviu cantar um passarinho no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É tua irmã mais velha que está para casar. E tu queres ir? - perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim. E tu deixas-me ir?

– Eu deixo - tornou a voz - mas tu não voltas!

– Volto, sim! – disse a menina.

A voz deu-lhe então um anel, para ela se não esquecer, e disse-lhe:

– Olha que ao fim de três dias vai um cavalo branco buscar-te; há de bater três pancadas: a primeira é para te vestires, a segunda é para te despedires e a terceira é para te montares. Se às três não estiveres em cima do cavalo, ele vem-se embora e deixa-te lá!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias, foi o cavalo branco bater três pancadas. A primeira a menina começou a vestir-se, à segunda despediu-se e à terceira montou a cavalo.

 A voz tinha dado à menina um caixote de dinheiro para levar ao pai e às irmãs, e por isso elas não queriam que ela tornasse para o palácio encantado, porque já estava multo rica.

 Mas a menina lembrou-se do que tinha prometido, e apenas se viu em cima do cavalo foi-se embora.

 No fim de certo tempo tornou o passarinho a cantar muito contente no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É a outra tua irmã que está para casar. E tu queres ir? perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim! E tu deixas-me ir?

– Eu deixo. - tornou a voz - Mas tu não voltas!

 – Volto, sim! - disse a menina.

  A voz disse, então:

 – Olha que se ao fim de três dias não vieres, ficas lá, e serás a rapariga mais desgraçada que há no mundo!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias veio o cavalo branco. Deu a primeira pancada, e a menina vestiu-se; deu a segunda, e a menina despediu-se; deu a terceira, e montou a cavalo e foi para o palácio.

 Passados tempos tornou o passarinho a cantar no jardim, mas muito triste, muito triste.

 A voz disse-lhe:

 – Tu ouves o passarinho?

 – Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

- É, sim, é o teu pai que está para morrer, e não morre sem se despedir de ti!

– E tu deixa-me ir? - perguntou a menina, muito triste.

– Deixo, sim, mas desta vez é que tu não voltas!

– Volto, sim! - disse a menina.

A voz disse-lhe:

– Não voltas, não, que as tuas irmãs não te deixam vir! E tu e mais elas, serão as raparigas mais desgraçadas deste mundo, se não voltares ao fim de três dias!

A menina foi, o pai estava muito mal e não podia morrer, mas apenas se despediu dela, morreu.

 As irmãs, como ela tinha perdido a noite, deram-lhe dormideiras e deixaram-na dormir.

 A menina pediu muito que a acordassem antes de vir o cavalo branco.

 As irmãs que fizeram? Não a acordaram e tiraram-lhe o anel do dedo.

 Ao fim de três dias veio o cavalo. Bateu a primeira pancada, bateu a segunda, bateu a terceira e foi-se embora, e a menina ficou.

 Ela andava muito satisfeita com as irmãs, porque não tinha o anel e já não se lembrava de coisa nenhuma.

 Daí a uns poucos dias, começou a fortuna a andar para trás, a ela e às irmãs.

 Até que uma vez as duas disseram-lhe:

 – Mana, tu não te lembras do cavalo branco?

  A menina lembrou-se, então, de tudo e disse a chorar:

 – Ai. que desgraça a minha! Ai, que me desgraçaram! Que é do meu anel?

  As irmãs deram-lhe o anel, e a menina, com muita pena, foi-se logo embora. Chegou ao palácio encantado, mas viu tudo muito triste, muito escuro e muito fechado.

 Foi direta ao jardim e encontrou um bicho muito grande, estendido no chão. O bicho, apenas a viu, disse-lhe:

 – Retira-te, tirana, que me dobraste o meu encanto! Agora serás a rapariga mais desgraçada do mundo, tu e as tuas irmãs!

  O bicho estava a acabar e, assim que disse isto, morreu. A menina voltou para as irmãs, muito triste e a chorar multo, meteu-se em casa sem comer nem beber, e dali a dias morreu também.

 As irmãs, essas ficaram cada vez mais pobres, por terem sido a causa disto tudo.

Antonio Cabral Filho (2º Colar ABC em Trovas)


Organizador: Antonio Cabral Filho - RJ
Tema - Fugacidade

Obs.: o primeiro verso se inicia com a letra A e a estrofe fecha com a letra B. Assim, o segundo trovador dará sequencia a partir da letra B, fechando na letra C. E assim por diante, cada trovador fará sua sequencia. Vale lembrar que não podemos fugir do tema nem repetir autores, exceto em caso de faltar quem queira continuar:
*FUGACIDADE*


01- A
Às vezes, sem mais nem menos,

foge-me do pensamento,
em aluviões pequenos,
Belezas do firmamento.
Antonio Cabral Filho - RJ


02 - B
Belezas do firmamento,
noites plenas de luar,
provocam meu pensamento
com um fugaz desejar.
Márcia Jaber - MG


03 - C
Com um fugaz desejar,
lembro o teu rosto e te espero,
mas não sei se vou aguentar
dor por não ter quem eu quero.
Claudia Bergamini - PR


4 - D
Dor por não ter quem eu quero
é uma dor passageira,
por isso eu não desespero
e vivo à minha maneira.
Antonio Francisco Pereira - MG


5 - E
E vivo à minha maneira,
sempre alegre e otimista,
dançando toda faceira,
formando-me uma passista...
Ester Figueiredo - RJ

6 - F
Formando-me uma passista
vou em meus sonhos bailar,
faço da vida uma pista,
giro até eu te encontrar!
Rita de Cássia - MG


7 - G
Giro até eu te encontrar
Pelas ruas, sem mutreta,
Vendo a vida a se lançar
Hoje e sempre na sarjeta.
Francisco Queiroz - RN


8 - H
Hoje e sempre na sarjeta
vejo n'água o meu reflexo,
mas é coisa do capeta,
ideia que não tem nexo!
Oliveira Caruso - RJ


9 - I
Ideia que não tem nexo
é achar que Jesus Cristo,
separa a gente por sexo,
jamais acredito nisto!
Aurineide Alencar - MS


10 - J
Jamais acredito nisto,
pois não é minha verdade:
somos a imagem de Cristo;
luz de intensa claridade.
Ronnaldo Andrade - SP


11 - L
Luz de intensa claridade
que mostra o abraço do irmão,
rápido, mas na verdade,
me tirou da escuridão.
Romilton Faria - MG

12 - M
Me tirou da escuridão
e está sempre ao meu lado,
dando paz ao coração:
não posso ficar calado.
Madalena Cordeiro - ES


13 - N
Não posso ficar calado
aos tormentos do coração
fique atento a este recado:
ouça cada pulsação!
Rita de Cássia - MG


14 - O
Ouça cada pulsação,
quando estamos bem juntinhos,
exaltado coração, 
perdido nos teus carinhos.
Claudia Bergamini - PR


15 - P
Perdido nos teus carinhos,
absorto de paixão,
eu percorro teus caminhos
querendo mais explosão.
Francisco Queiroz - RN

16 - Q
Querendo mais explosão
vivo a vida a te esperar
e com amor em profusão...
Rezo para te encontrar!
Dilercy Adler - MA

17 - R
Rezo para te encontrar
por essa estrada, meu bem.
Estou morrendo de amar,
saudade mata também.
Aurineide Alencar - MS


18 - S
Saudade mata também,
já dizia minha avó,
que teve seu grande bem.
Tanto sofrer. Quanta dó.
Dilercy Adler - MA

19 - T
Tanto sofrer. Quanta dó
quando o amor vai embora;
dia e noite sem xodó,
usurpa-se a minha hora.
Francisco Queiroz - RN


20 - U
Usurpa-se a minha hora
essa densa tão ferida,
de só ater-me no agora,
vivendo a arte com vida
Vanda Salles - RJ


21 - V
Vivendo a arte com vida
encontro a felicidade,
deixo a vida divertida,
xeque-mate na maldade.
Claudia Bergamini - PR

22 - X
Xeque-mate na maldade
isso é tudo o que mais quero,
grito de felicidade
sanfona  no meu bolero.
Madalena Cordeiro - ES


Fonte:
Trovadores do Brasil

Chico Anysio (Domingo em Madureira)


Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo, no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar tão cedo assim.

— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a cantar.

Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era domingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser domingo.

Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chia­do, botando fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabelos. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina — falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era domingo.

— Dorme, Climério, ainda é cedo.

— Cinco horas.

— É domingo.

Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em preservar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.

A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.

A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um domingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.

Esqueceu de dar descarga.

Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.

O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se acordar, iria à missa das seis.

Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.

Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater ponto na repartição.

Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável para o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.

De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos. Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga enorme.

— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.

Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combi­nação pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.

Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava resto de sono dos olhos.

De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.

— Que horas são?

— São cinco e meia.

As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis. Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à praia. A de Ramos, como sempre.

Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre fosse tão curto e um só por semana.

Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de ontem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou de­pois, tentando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia coçar. Acompanhava a coceira com um bocejo pro­longado. Pediu socorro ao marido.

— Coça aqui.

Ele coçou. Custou a achar o lugar.

— Todo mundo já acordou?

— As meninas. Júlio, não.

— Você já viu o leitão? — perguntou, sem interesse, en­quanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota. — O leitão cabe no forno?

— Hum, hum — ela fez que sim.

Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. En­traram as três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje anteci­para uma hora esse costume, por ter levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos domingos.

Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois, apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.

Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho... a velha calha do alpendre... uma torneira enjam­brada ... Havia sempre umas coisas a arrumar no domingo.

O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adidas".

— Vai jogar?

— Bater uma bola.

Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.

Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pegou o ônibus, Climério entrou no bar.

— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém acordado, olho inchado, cara marcada de tra­vesseiro.

— Duas?

— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu Severo?

Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.

Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na hipótese mais mansa.

Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O re­lógio consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.

Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es­peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.

Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jornal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.

— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa lembrando o que ele já sabia.

O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.

— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concordasse ou desse contra.

Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra logo mais.

O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — comadre Emerenciana — muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.

— Quem é vivo sempre chega! — Climério estreitou o compadre num abraço comovido.

— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou risada.

Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.

— E o reumatismo, comadre?

— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem sei o que faça.

— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.

A chegada dos compadres endomingou mais a casa.

— Como é? Tem um leitão? — era Juca quem falava. — É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.

— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com afli­ção, enquanto Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.

— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, en­quanto se dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.

— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.

Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Eme­renciana usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.

Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetre­chos de conserto. Juca ia dar u'a mão nos consertos a fazer.

— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.

— Manda brasa!

A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe estendeu. Comentou:

— Tá de lascar! Vira aqui.

E ele bebeu a oitava de um só gole.

O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com bacalhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.

Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama no corpo.

— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.

Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que trabalhavam o possível na cerca e na batidinha.

— Tá demais, essa batida.

As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compadres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.

As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de uma das três, chegaram quinze pras duas.

— Boa tarde, Seu Climério — Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.

Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo preciso.

— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.

Climério providenciou, cortando um velho sapato.

— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já saindo difícil, pastosa, meio embrulhada.

— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.

Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida, cortavam as frutas a usar na salada costumeira.

A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro, fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova, Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.

Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.

Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.

A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que Climério lhe estendia.

— Nessa aqui eu caprichei.

Provou.

— Está uma brasa!

Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais dobrada, dando jeito no topete — cabeleira demodê que in­sistia em usar. Mostrou que ia sair.

— Não vai almoçar, Julinho?

— Não dá, mãe, tô com pressa. Como um troço por aí.

Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria enfrentar o Madureira.

Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!

O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil devorados em goles longos e frios.

Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era do­mingo, dia bom pra sorrir.

Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.

— Vira, vira, vira. . .

— Vira, vira, vira. . .

Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.

Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demar­cado por tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.

Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.

Saíram Rui e as moças para um cinema provável.

O arroto de Climério avisou que ele acabara.

— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.

As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Con­versavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pon­tos de tricô.

— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso maroto.

Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...

— Dormindo!

— Deixa.

Afinal, era domingo.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) III


Não meço o teu amor
Nem sequer dele peço provas
Me entrego sem temor
E em teus braços esqueço as horas.
Faça frio ou faça calor
Em ti eu me abrigo
Sentindo o coração falar pro teu,
Como é bom estar contigo.
=================================

Entre as pedras
Pequenas sementes de lua
Carregadas de meninice
Desejam viajar.
Basta um assopro
E os sonhos ganham voo
Nas asas do vento-garoto
Que sorridentes,
Se entregam ao livre planar.
=================================

Ainda passeia em minha pele
O teu cheiro cioso
Que transborda tão gostoso
Por entre as dobras do lençol.
A poesia encharcada de nós
Também ainda dança
No quarto desarrumado
Que bela lembrança!
Confundo os nomes
Esqueço os pronomes
E por instantes sou só teu.
=================================

Da pequena flor amarela
A rã fez um sol
Pra aquecer a alma dela
Que estava carente de amor
Mas o calor foi crescendo
E acabou recebendo
Da borboleta um protetor
Assim o dia ficou incrível
E a rã acabou descobrindo
Que o amor é o melhor cobertor.
=================================

No silencioso espelho d'água
Converso com o irmão gêmeo que nunca tive,
Mas que sempre me acompanhou
Quem sabe ele era os cochichos da alma
Indicando o caminho com setas
Mas que preferia chamar de intuição
No reflexo silencioso do espelho d'água
As imperfeições perfeitamente a mostra
Tiram a máscara do eu-narciso
Que se convence que somos breves
Bastando um pingo de chuva nas águas do tempo
A imagem vira onda
Zummmmm...
E a ilusão se acabou.
=================================

Poema infantil

Roinque, roinque, roinque
O porquinho está alegrete
Hoje é o seu aniversário
De presente ganhou sorvete.
Não importa o sabor
Sendo de frutas todos apetece
Pois além de tapiar o calor
De energia o corpo enriquece.
Roinque, roinque, roinque
O porquinho agradece.
=================================

Vindos da terra dos sonhos
Os pássaros outrora ciganos
Dão pausa aos cantos
Deixando que o encanto
Fique por conta
Do silêncio das cores.
Pássaros flores
Descansam suas asas
No campo fazem moradas,
Criam raízes
Conservam as matizes
E em flores se transformam.
Na paisagem bucólica
Meus olhos em ninho
Acolhem os passarinhos
Que só com o vento passeiam.
=================================

Somos presas
Indefesas
Contra as garras afiadas do tempo
Mas o amor e a amizade
São botox de verdade
Que amenizam
O sofrimento.
=================================

Caminhos traçados
Amarrotados nós.
Lembranças colhidas,
Onde eu e tu
Éramos nós.
Antevendo o fim
A razão procura
Novos recomeços,
Mas no verso do vento
Com o teu cheiro
Ainda estremeço.
Eta, coração travesso!
=================================

Grita em mim
Tuas palavras engasgadas
Palavras rasgadas
Palavras molhadas de adeus.
Grita em mim
O inesperado silêncio
O gesto do lenço
Antevendo o fim.
Grita em mim
A carne nua do desejo
Abafada pela ausência do beijo
Que voou em outra direção.
Grita em mim
O amor ainda latente
Vulcão em cinzas quentes
Cavando um sim pra ressurgir.
Ah! Como grita em mim,
O silêncio do teu olhar.

Fonte:
AVIPAF (Facebook)

Carolina Ramos (A Família Abano)



Seu Abano nascera de sete meses. Mirradinho. Pernas e braços finos, que nem caniço de bambu. Todo olhos e orelhas. Na pia batismal, recebeu o nome de Felizberto. Bertinho, para os pais. E, mais adiante, Abano, para quantos lhe medissem, com espanto, as orelhas avantajadas, que lembravam duas ventarolas. Orelhas teimosas. Levaram a mãe do menino ao desespero, na ânsia de vê-las fixas mais próximo da cabeça. Inúteis os esparadrapos, as fitas adesivas, as toucas de meia, as ataduras de gaze, que davam ao garoto a aparência de alguém fugido às trincheiras ou sobrevivente a alguma catástrofe.

Catástrofe mesmo, eram a tais orelhas! Rebeldes, insubordinadas, resistentes a qualquer medida disciplinatória! Por causa delas, Fellzberto, que a partir do nome, tinha tudo para ser feliz, não era. Vivia cercado de chacotas e deboches e piparotes. Alvo frequente das impertinências da molecada do bairro e, mais tarde, dos colegas de classe. Quem mais sofria, por ver sofrer o filho, era a infortunada mãe. Morreria sem se conformar! Felizberto, ou Bertinho, teve cedo o nome trocado. O apelido — Abano — impôs-se por força das circunstâncias. Ou, melhor dizendo, das evidências. Que bastava olhar, para aceitá-lo. E ninguém, jamais, questionou a troca de nomes. Abano cresceu carregando nos ombros o peso da alcunha.

O amor que nele eclodiu, por Giovana, foi paixão à primeira vista! A garota tímida, cabelo puxado para atrás, intencionalmente prendendo as pontas das orelhinhas rosadas, exerceu sobre ele uma atração irresistível. As orelhinhas, sempre escondidas, intrigavam-no. Despertavam-lhe suspeitas que o levaram a ousadias. Tão logo teve oportunidade, desvendou o mistério. A pretexto de um carinho, libertou uma das conchinhas rosadas que saltou, lépida como asa de borboleta, livre de amarras! Constrangimento por parte da moça. Emoção e íntimo júbilo iluminaram os olhos de Abano. Identificação total! Perfeita! Se duvidara, antes, dos próprios sentimentos, nada mais havia a temer!

Casaram-se pouco depois. Mais nove meses e nascia o primeiro filho, trazendo a marca registrada da família — orelhas de abano. Um após outro, no total de cinco, chegaram novos rebentos portando, sempre, as características inconfundíveis do pai e da mãe. Em consequência, a prole dividia entre si os mesmos desgostos, as mesmas angústias dessa herança indesejável, impossível de ser descartada.

E assim foi, até que preocupação maior assumiu o primeiro plano. Abano I, ou seja, o primeiro filho do casal, não mais escondeu o macabro interesse por bichos mortos. Virou esquartejador de primeira! Não havia gato, ou cachorro atropelado, que lhe escapasse. Nem rato morto. Nem passarinho. Não raro, horrorizava quem o surpreendia a abrir a barriga desses bichos, vasculhando o mórbido conteúdo, com minuciosidade alarmante! Isto custou-lhe muito pescoção. — "Que porcaria é essa, menino?!" E tome tabefe, E tome beliscão e castigo. — "Seu coisa ruim! Você matou o gato!"

— "Matei, não! Eu só tava vendo que recheio ele tinha!" — a defesa não convencia e lá vinham as palmadas e ameaças. O que não acontecia, era puxação de orelhas. Isso, não! Questão de honra familiar. Não se agride um patrimônio. Tudo, menos puxão de orelhas! A preocupação da família cresceu, até que veio o esclarecimento. Abano I decidira-se profissionalmente: — queria ser médico. Caso de vocação explícita, que tudo esclarecia. Alívio geral!

De pronto, o jovem passou de malfeitor a herói. As economias foram carreadas para o seu lado. Os esforços, não medidos. Tudo é nada, quando a meta é a concretização de um sonho! Diploma na mão, Dr. Abano I conquistara o título de Cirurgião Plástico, disposto a embelezar o mundo. E não perdeu tempo. Começou pela família, dando um jeito nela. Um ponto lá, outro cá, e as orelhinhas rebeldes da mãe, dos irmãos e do filho recém nascido, ocuparam, definitivamente, o lugar devido.

O velho Abano, origem de toda essa rebelião auricular anti-estética, foi o único que não se submeteu à técnica. Acostumara-se com o visual da família. Por isso mesmo, estranhou a mulher. Estranhou os filhos. Estranhou o neto. E, quando, afinal, se foi, levou consigo, conformado, aquelas mesmíssimas insubordinadas orelhas que Deus lhe dera e que, aos trancos, conseguira amar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Zé Ramalho (Universos de Versos Diversos)


CHÃO DE GIZ

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas
Sobre um Chão de Giz
Há meros devaneios tolos
A me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas
Amiúde!

Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes

Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe
Um grão-vizir
Há tantas violetas velhas
Sem um colibri
Queria usar, quem sabe
Uma camisa de força
Ou de vênus

Mas não vou gozar de nós
Apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Agora pego
Um caminhão na lona
Vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
Meus vinte anos de boy
That's over, baby!
Freud explica

Não vou me sujar
Fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Quanto ao pano dos confetes
Já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo
É assunto popular

No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais!

AVÔHAI

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje de caçador

Oh meu velho e invisível
Avôhai
Oh meu velho e indivisível
Avôhai

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor

E se eu disser que é mei sabido
Você diz que é mei pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só

Avôhai!
Avôhai!
Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas que fitar

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de avôhai

Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei
Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei
E se eu calei foi de tristeza você cala por calar
E calado vai ficando só fala quando eu mandar

Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar
Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar

Avôhai! Avôhai!
Avôhai! Avôhai!

MISTÉRIOS DA MEIA-NOITE

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada se apaixonou

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, se apaixonou

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, seu professor

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, seu professor

O GOSTO DA CRIAÇÃO

Somos o mundo girando no meio da imensidão
Algo que tem a verdade e o gosto da criação
Somos o muito e o pouco na múltipla sensação
Quando sacode a poeira do sagrado chão

Luzes explodem além do espelho que refletiu
Ao se afastar a imagem de alguém que você não viu
Não adianta mudar o destino que prosseguiu
Nem afastar o desejo que você sentiu

Como saber da final esperança pra saber
Que há fartura e muita bonança pra dizer
Onde fica o mágico fim é assim
É você e o gosto de mim

Pra saber onde fica o mágico fim é assim
É você e o gosto de mim

PORTA DE LUZ

De onde vem
Essa mania de saber
Como é bom
Quando estou perto de você
Parece o mundo
Que acabou de começar
Num movimento
De paixão e de silêncio

De onde foi
Que essa estrela apareceu
Que oceano ou que céu iluminou
A minha estrada tão comprida
Vai chegar ao seu final
Quando abraçar você

Só agora compreendi
Que o caminho que segui
Veio dar na sua porta de luz
Tudo agora está tão fácil
E seguro para nós
Minha voz está bem dentro da sua

Se for buscar
Aquele sonho
Eu vou
Para provar
Que amo só você

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Trova 349 - André R. Rogério


Contos e Lendas do Mundo (Índia: A Divindade dos Homens)

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o mestre dos deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino. Resolveu então escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. O grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou um conselho dos deuses menores, para juntos resolverem o problema.

- Enterremos a divindade do homem na terra, foi a primeira ideia dos deuses.

- Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la.

Então os deuses retrucaram:

- Joguemos a divindade no fundo dos oceanos.

Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e a recuperaria. Então os deuses concluíram:

- Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia.

Brahma então se pronunciou:

- Eis o que vamos fazer com a divindade do homem: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois será o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la.

Desde esse tempo, conclui a lenda, o homem deu a volta na terra, explorou escalou, mergulhou e cavou, em busca de algo que se encontra nele mesmo.

Fonte:
Contos de encantar

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) IX


EU ABRI OS MEUS OLHOS

Eu abri os meus olhos para a noite
e o céu se debruçou sobre minhas retinas...

Eu abri os meus olhos para a noite
e a claridade entrou pela minha alma escura
como gritos de festa...
-e a escuridão ao rasgou-me ante os punhais da luz
cravados na minha alma,
como as clareiras cravam lâminas de luz
no corpo da floresta...

Dos profundos mistérios do meu Ser
num estranho rumor de asas rufando
veio uma sombra que era luz na sombra
e que brotou do chão,
- veio... pousou nos meus olhos abertos
e voou buscando o céu que viu lá fora
batendo as asas da imaginação. ..
..................

Senti-me como a estátua de mim mesmo...
O meu corpo ficou como uma catedral
sonâmbula e vazia
onde se co'a a luz mortiça dos vitrais...
E a minha alma fugiu
(pobre alma sonhadora !)
pelos raios de luz dos vitrais dos meus olhos,
- tal como foge sempre
na ilusão de subir e não pousar jamais! . . .

EU TE QUERIA TÃO DIFERENTE

Há muito eu te esperava...

Mas eu queria que quando chegasses
trouxesses nos teus olhos vultos de bonecas;
e a tua boca sorrisse o sorriso dos botões
apenas entreabertos;
e as tuas mãos fossem como as folhas fechadas
de um livro que ninguém leu;
e a tua alma fosse mais pura do que a fonte
que canta dentro da pedra
e ainda por sobre a terra as águas não correu. . .

E tu chegaste...

Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua boca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vezes me parece pálida e amarela,
como uma folha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
.....................

Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como louco
um doente,
encontro em teu amor, às vezes, casualmente,
os restos de outro amor!

EU... E ARVERS

Hás de ler estes versos algum dia
e mais ou menos pensarás assim:

"- ele ainda sofre muito, e esta poesia
escreveu-a, bem sei, pensando em mim...
Sou a mulher que a inspira e que a anima,
pensava em mim no instante em que compôs,
e na incógnita sutil de cada rima
há um pedaço da história de nós dois...
Sinto-me em cada verso, em cada frase,
e as palavras que leio são as minhas...
- Sou eu essa mulher!... Vejo-me quase
na expressiva mudez das entrelinhas..."

E sorrirás... Eu sei que sorrirás
ante a certeza do meu sofrimento,
- é o teu prazer, sorrir desse tormento
que me causaste... e que não finda mais...

Ah! Feliz foi Arvers, bem mais do que eu!
Ao menos, essa a quem ele escrevia,
perguntou certa vez depois que o leu:
- "que mulher será essa..."

E não sorria...

EXALTAÇÃO AO AMOR

Sofro, bem sei...Mas se preciso for
sofrer mais, mal maior, extraordinário,
sofrerei tudo o quanto necessário
para a estrela alcançar...colher a flor...

Que seja imenso o sofrimento, e vário!
Que eu tenha que lutar com força e ardor!
Como um louco, talvez, ou um visionário
hei de alcançar o amor...com o meu Amor!

Nada me impedirá que seja meu,
se é fogo que em meu peito se acendeu,
e lavra, e cresce, e me consome o Ser...

Deus o pôs...Ninguém mais há de dispor...
Se esse amor não puder ser meu viver,
há de ser meu para eu morrer de Amor!

EXAUSTÃO

Falta essência... A minha alma trêmula vacila
como  um astro a faiscar, distante, na amplidão...
Vai no ocaso o meu sol... como rubra pupila
a se afundar na noite em plena escuridão

Às descargas de luz de cada sensação
e os sísmicos abalos, minha pobre argila
na carne exausta e exangue aos poucos se aniquila
como um monte de palha que entra em combustão!

Vou rolando em meu Ser de nevrose em nevrose
e como um sol que morre estourando luz
minha morte há de ser uma grande apoteose...

Despencarei nas trevas assim como um meteoro
deixando o turbilhão dos versos que compus
como estrelas de um céu esplêndido e sonoro!

FADA
 
Tua figura suave, delicada
nem parece que vive, parece bordada,
- como a boneca de seda de um desenho
de uma antiga almofada que eu tenho...

Teus gestos, teus embaraços
fazem lembrar finos traços
de uma filigrana,
e tão frágeis me parecem, tuas mãos, teus braços,
que nem sei se és de carne ou se és de porcelana...

Bonequinha de louça
linda moça,
tua alma é um fio de seda, estou bem certo,
e a minha imaginação
criou para o teu destino uma lenda encantada:

- jura que tu fugiste de algum livro
e que eras a ilustração
de uma história de fada !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

domingo, 5 de maio de 2019

Arthur de Azevedo (A Viúva do Estanislau)


Por ocasião da morte do marido, aquele pobre Estanislau, que, depois de uma luta horrível, foi afinal vencido pela tuberculose, Adelaide parecia que ia também morrer. Dizia-se que ela amava tanto o marido, que fizera o possível para contrair a moléstia que o matou e acompanhá-lo de perto no túmulo. Emagreceu a olhos vistos, e toda a gente contava que, mais dia menos dia, Deus lhe fizesse a vontade; mas o tempo, que tudo suaviza e repara, foi mais forte que a dor, e ano e meio depois de enviuvar, Adelaide estava rubicunda e linda como não estivera jamais.

O Estanislau deixou-a paupérrima. O pobre rapaz não contava arrumar a trouxa tão cedo, ou, por outra, não teve com que preparar o futuro.

Enquanto viveu, nada faltou em casa; depois que ele morreu, tudo faltou, e Adelaide, que felizmente não tinha filhos, aceitou a hospitalidade que lhe ofereceram seus pais. 

– Vem outra vez para o nosso lado, disseram-lhe os velhos; façamos de conta que te não casaste.

Não tardou muito que aparecesse um namorado à viúva. Era um excelente moço, o Miranda, que frequentava a casa dos velhos por ser funcionário da mesma secretaria onde o pai de Adelaide era chefe. Foi com muita satisfação que este notou a simpatia que o Miranda manifestava pela moça, e pulou de contente quando o rapaz, um dia, na repartição, se abriu com ele, dizendo-lhe que ser seu genro era o que mais ambicionava neste mundo. O velho foi para casa alegre como um passarinho, e disse tudo à mulher.

– Sabes, Henriqueta? O Miranda confessou-me hoje que gosta da Adelaide e quer casar-se com ela. Estou satisfeitíssimo, porque nossa filha não poderia encontrar melhor marido! Que me dizes?

– Digo que seu Miranda é uma sorte grande, mas duvido que Adelaide aceite.

– Duvidas, por quê?

– Porque ela só pensa no Estanislau: é uma viúva inconsolável. Engordou, tomou cores, goza saúde, mas aposto que não admite que lhe falem noutro casamento.

– Deixe-a comigo; vou sondá-la. O velho sondou-a, efetivamente, e reconheceu que D. Henriqueta calculava bem.

– Não me fale em casamento, papai! Eu considerar-me-ia uma mulher indigna se desse um substituto ao meu pobre Estanislau!

Mas o velho que não era peco, não se deixou vencer e insistiu, lançando mão de quanto argumento lhe sugeriu a sua longa experiência do mundo.

– Minha filha, numa terra de maldizentes como este Rio de Janeiro, a reputação de uma viúva moça e bonita corre tantos perigos, que a melhor resolução que tens a tomar, para fazer respeitar a memória honrada do teu Estanislau, é casares-te em segundas núpcias. Uma única dificuldade haveria para isso: o marido; mas neste particular, minha filha, foste de uma fortuna fenomenal. O Miranda caiu-te do céu! Olha, eu, se tivesse que escolher um genro, não escolheria outro -, e tu, se te casares com ele, darás muito prazer a tua mãe, e tornarás feliz a minha velhice.

Essas palavras, que acabaram molhadas de lágrimas de enternecimento, calaram no ânimo de Adelaide, e na mesma noite, como a família se achasse reunida na sala de jantar, e o Miranda presente, ela dirigiu-se a este nos seguintes termos:

– Meu amigo, sei que o senhor gosta muito de mim e deseja ser meu marido; sei que o nosso casamento daria muita satisfação a meus pais; mas devo dizer-lhe que ainda amo o Estanislau como se ele estivesse vivo, e não posso amar dois homens ao mesmo tempo.

Os velhos morderam os beiços; o Miranda remexeu-se na cadeira, sem responder.

– Sei também que o senhor é um perfeito cavalheiro e que nada lhe falta para ser um marido ideal; aprecio o seu caráter, a sua bondade, a sua inteligência; mas, se nos casarmos, não poderei levar-lhe o sentimento que todo o homem tem o direito de exigir no coração da sua noiva. Se depois desta declaração leal e honesta, persiste em querer ser meu esposo, aqui tem a minha mão.

– Aceito-a! respondeu prontamente o Miranda, tomando a mão que lhe estendeu Adelaide. - Aceito-a, porque, perdoe a minha vaidade, tenho alguma confiança no meu merecimento, e espero conquistar o seu amor!

Casaram-se, e hoje, que estão unidos há um ano, podem gabar-se – ela de ter tido verdadeiras surpresas fisiológicas, e ele de ser amado como o Estanislau nunca o foi.

– És então feliz, minha filha?

– Muito feliz, mamãe; o Miranda é tão bom marido, que, lá no outro mundo, o Estanislau, se meteu a mão na consciência, com certeza me perdoou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 4


AMORES
Amor de segunda-feira
perdido em filas e pagamentos
amor de terça-feira
cansado da correria da semana
amor de quarta-feira
breve descanso após o expediente
amor de quinta-feira
alegria e glória pela sequência
amor de sexta-feira
lobos e cordeiros em seus lugares
amor de sábado
caseiras tarefas semanais
amor de domingo
agradecer aos céus e aos deuses

amores de todos os dias
                        cansados
            sem brincadeiras.

DIVISÕES

Ainda
divididos em raças
cores
credos
filosofias
políticas
virtudes
e vícios

diferentes histórias
religiões
medos
bandeiras
e línguas

tanto nos separamos
por árduos caminhos
que ao nos reencontramos
não nos reconhecemos
iguais como irmão.

PASSAGEM

Lodo
barro

a primeira impressão
na extração da costela
ao estratificar a marca

lama
barro

dificuldades e sujeiras
impedem o livre andar
para haver sentimentos
através da multiplicação
do pensamento

superar a lama que resseca
a herança marcada no solo
pela passagem.

PRINCÍPIO

Os que vieram
na primeira leva
nada trouxeram
além de suas vidas

pobres
paupérrimos: vidas
estagnadas vindas
de lugares pobres
paupérrimos

os que vieram
na primeira vez
não trouxeram
medo ou raiva

suas vidas eram pobres
para terem medo ou raiva

trouxeram suas vidas
e na vida foram os primeiro.

RECOMEÇAR

Recomeçar
deste ponto
recarregado
em energias
revolvidos
pensamentos
reescritas
palavras
resolvidos
problemas
recorrentes
saudades

deste ponto
o recomeço
viável
ou o salto
repetido.

SEM MEMÓRIA

Nada vale o ser
sem sua memória recente
perdido em antigas histórias
que repete
em antigos amores
amortecidos
deslumbrado com novidades
envelhecidas
deslocado em ambientes
irreconhecíveis

nada vale o passado
desacompanhado
nem o futuro
não vislumbrado
em antigas passagens
fechadas pelo tempo
fossem túmulos.

VINGANÇA

Tanta raiva traz o homem
em sua vingança: mais
do que o inverno e o verão
de polos opostos em atração
da noite pelo dia
                na madrugada

tanta ira traz o homem
em sua vingança: o barco
emborcado no porto
enquanto animais ferozes
sobre a presa no irônico
gargalhar do surdo

quanto de santidade há no homem
em sua vingança: o direito pelo revide
na mão que soca o inimigo e o caroço
cuspido no prato

tantas razões irracionais
no homem em sua vingança.

Fonte:
Pedro Du Bois

Vinícius de Moraes (Com o pé na cova)


Segunda-feira última, ao entrar no Golden Room do Copacabana para a estreia do novo espetáculo de Carlos Machado, tive a mão vivamente apertada por um dos maitres da casa, velho chapa meu. Notei que me olhava com um ar ansioso.

- Como é? - perguntei-lhe. - Tudo em ordem?

- Puxa, dr. Vínícius... O senhor nem sabe como estou satisfeito! Imagine que hoje de tarde andou correndo que o senhor tinha morrido...

Fiz, por via das dúvidas, a minha figa, com o pai-de-todos e o furabolos, pensando na mãe do autor da gracinha. Mas a real satisfação do maitre meu amigo compensou-me de um certo mal-estar deixado pela notícia. Fiquei considerando que ela realmente vai acontecer um dia e … - mas deixa pra lá. Entrei na boate lembrando-me de que, se há um homem que pode dizer já ter estado "com o pé na cova", literalmente, esse homem sou eu.

Foi em Los Angeles, aí por 1947. Com o cônsul em férias, achava-me eu encarregado do nosso Consulado e um belo dia eis que me aparece por lá um marinheiro brasileiro: um bom paraibano, com um sotaque pastoso, que havia fugido de um navio, no porto de São Francisco, e depois de viajar de carona até Los Angeles, esfaimado, resolvera se apresentar. Tomei os necessários dados, dei-lhe um dinheirinho para que comesse num drugstore embaixo e arrumasse um hotel, e pedi-lhe que se mantivesse em contato comigo, enquanto tratava de sua repatriação.

Dia seguinte, surge-me um cidadão da polícia de San Diego, porto vizinho a Los Angeles, para dizer-me que um brasileiro havia sido esmagado por um trem, por se encontrar deitado na linha férrea. Reconheci, na carteira profissional que me foi apresentada, o retrato do meu bom paraibano. Tinha-se "mandado". Fiz um telegrama ao Itamaraty, pedindo autorização para fazer embalsamar o corpo e proceder o enterro, e três dias depois, dirigidos por dois agentes da companhia funerária que havíamos tratado, eu e o então auxiliar contratado Maurício Fernandes - que posteriormente entrou firme no negócio de hotéis, e continua sempre um bom amigo - dirigimo-nos para o cemitério de Forest Law: cenário do famoso romance The Loved One, de Evelyn Waugh; cemitério onde se ouve música piegas sair de todos os lados e que, no meu tempo, mantinha cartazes de publicidade nas ruas de Los Angeles com os seguintes dizeres: "Sleep under the stars..." ("Durma sob as estrelas").

Uma vez chegados, um dos agentes acionou um mecanismo que fez o caixão sair automaticamente do coche, já em posição de ser retirado. E assim o levamos nós, com Maurício Fernandes e eu nas alças de trás, até a cova que havíamos adquirido para o nosso bom paraibano. Mas de uma coisa não sabia eu: que com essa mania de disfarçar a morte que têm os americanos (maquilar os defuntos, etc.), existe também o curioso costume de tapar o buraco da cova, até a hora da descida do caixão, com um tapetinho de um material verde parecendo chenile - o que a integra na relva circundante.

E foi exatamente onde eu pisei e desapareci, deixando o caixão sobre mim, por um momento, em posição bastante precária, devido ao desequilíbrio causado pela minha queda. Aí veio todo mundo me ajudar a sair da cova, mas eu, apesar de um pouco arranhado nas pernas, ao dar com a cara entre aflita e irônica de Maurício Fernandes, a me estender a mão, desabei numa tal gargalhada que foi uma luta para me tirarem dali. Dobrava-me de tanto rir. Meu riso contagiou-o, e nós não podíamos mais olhar um para o outro. Ríamos, ríamos, e foi rindo assim, em frouxos alternados, que demos sepultura ao nosso pobre patrício. E não sem muitos olhares de censura dos dois agentes funerários, absolutamente imperturbáveis no exercício do seu piedoso dever.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.