sábado, 21 de março de 2020

Varal de Trovas n. 215


Humberto de Campos (Chaves e Fechaduras)


- Os senhores, conselheiro, os senhores, homens, - dizia-me, abanando-se pausadamente com o seu grande leque de plumas vermelhas, a linda viscondessa de Lima Freire, - os senhores serão, sempre, injustos com as mulheres, por que nem todos poderão compreendê-las.

- As mulheres são, então, o maior mistério do universo? - indaguei, com ironia.

A viscondessa sorriu da minha ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade pela minha ignorância, acentuou, bondosa:

- O conselheiro não me entendeu, ou não me quer entender. A mulher é um mistério, mas um mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O símbolo da fechadura tão frequentemente citado pelos psicólogos, constitui uma verdade indiscutível.

- O símbolo da fechadura?

- Sim; não o conhece?

E como lesse a curiosidade no meu olhar, contou-me, pausadamente, cerrando a meio os seus macios olhos de míope:

- Cada mulher é uma fechadura que só tem uma chave...

- Só? - interrompi.

- Espere aí! - pediu, impondo-me silêncio com o leque.

E continuou

- Cada mulher é uma fechadura, que só tem uma chave, a qual está nas mãos do homem que a tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros passarão sob os seus olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no sacrário da sua alma, usando de chave falsa. Um homem, apenas, tem a chave verdadeira, e é somente quando a mulher se encontra com ele que se dá, realmente, a felicidade no matrimônio. Compreendeu?

Eu ia confirmar com um monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu tempo.

- Cada mulher - continuou - devia esperar, de olhos fechados, como a princesa adormecida no bosque, o portador da chave da sua fechadura. É da impaciência de algumas que nascem, geralmente, os escândalos, os divórcios, a dissolução ruidosa das famílias legalmente constituídas. Supondo-se esquecidas pelo seu porteiro, elas cedem à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-se. Mais tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a felicidade de um lar!

- Isso era antigamente! - observou, intervindo, o capitão Peixoto Cunha, que nos observava de perto. - Hoje não há mais portas com uma chave só.

E acentuou, rindo:

- As portas, hoje, são de trinco!

Nesse momento, chegava, pausadamente, o visconde, enrolando em torno do dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em cuja extremidade chocalhava, numa argola, uma penca de chaves.

Estas eram seis, e abriam, todas, com a mesma facilidade, as duas gavetas da secretária…

Fonte:
Humberto de Campos. Contos Vários.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 3


A LINHA DO CORAÇÃO
Alguém leu, anos atrás,
a palma de minha mão,
e disse, entre outras coisas,
com muita admiração:
"Como é nítida e perfeita
a linha do Coração!..."

Os anos foram correndo...
Muita gente foi subindo…
Muita gente enriquecendo...
E eu sempre pobre e humilde,
fui vivendo... fui vivendo...
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  CARTA
à Sebastiana (menina às vésperas de sair de um Abrigo)

Muito em breve partirás,
minha alegre Sebastiana!
Sei que contas dia a dia,
e semana por semana...
E se alegre sempre foste,
tão vivaz e tão contente,
agora então teu olhar
tem um brilho diferente!

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana,
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!


Bem sei que anseias partir...
Queres conhecer a Vida...
Por isso, ansiosa, só pensas
agora em tua partida.
— Partir para ver o Mundo...
Ser feliz... ter liberdade...
Descobrir o cobiçado
País da Felicidade!...

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, —
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Há muitos anos já vives
neste acolhedor Abrigo,
e sei que me consideras
um sincero e bom amigo.
És tão ingênua, tão boa,
nada conheces do Mundo,
e julgas que vais achar
um paraíso profundo…

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, —
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Não julgues um Paraíso,
a Vida... o Mundo cá fora!
Há muito lábio sem riso...
Há muita gente que chora...
E até mesmo as alegrias
que tu pensas que se alcança,
vais ver depois: são menores,
que os teus sonhos de criança...

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, –
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Meus versos tristes perdoa,
são versos de despedida;
guarda-os bem para lembrares
da tua infância querida...
Não percas jamais teu riso,
nem na luta mais insana!
Que a Vida te seja leve...
Sê feliz, Sebastiana!
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CREPÚSCULO

Não tem de todo ainda a chama fria,
o seu olhar que tanto ardia outrora...
Mas aquele esplendor que nele havia,
serenamente, e aos poucos, vai se embora...

Nota-se ainda traços de Alegria
nos seus ares tão sérios de senhora,
como raios de sol em agonia,
numa Tarde que, lenta, se descora...

Tem o viço da flor em plena vida!
Mas amanhã talvez (ninguém garante!...)
que não tombe do caule, fenecida...

E assim se vê, num tom ainda incerto:
— sinais da Juventude já distante
e traços da velhice que vem perto!...
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INFELIZES…

Certas vidas eu conheço,
que entre tristezas e prantos,
têm sempre um feliz momento…
– E há vidas que são marcadas
por tão constante tormento,
que eu julgo só conhecerem
neste Mundo o Sofrimento…
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TARDE DEMAIS…
(Para o Dr. Cid Cardoso)

Ela passou por minha vida um dia...
E amou-me muito como mais ninguém!
Tinha a beleza olímpica, sadia,
e uma alma pura e esplêndida também!

Que afinidade entre nós dois havia!
E ao seu lado sentia-me tão bem!
Do ideal que se sonha, parecia
ter mais ainda que o ideal contém…

Por minha culpa demorou-se pouco…
Vi-a partir, indiferente e louco,
sem dar-lhe um beijo ou um adeus sequer.

E agora… muito tempo já passado,
eu sofro pelo mal de ter amado
tão tardiamente assim esta mulher!…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Irmãos Grimm (Gentalha)


Franguinho disse à Franguinha:

- Agora é a época em que estão amadurecendo as nozes, vamos os dois à montanha e, pelo menos uma vez na vida, fartemo-nos, antes que o esquilo as carregue todas.

- Sim, - respondeu Franguinha - vamos; vamos regalar-nos fartamente.

E lá se foram os dois para a montanha. Como era um dia magnífico, deixaram-se ficar até tarde. Ora, eu não sei se realmente estavam empanturrados, ou se apenas fingiam estar, só sei que não queriam voltar a pé para casa e Franguinho teve que construir um carrinho com cascas de nozes. Quando ficou pronto, Franguinha acomodou-se nele e disse:

- Agora, Franguinho, podes puxar.

- Que ideia a tua! - respondeu Franguinho, - prefiro antes ir a pé para casa. Não, não foi esse o nosso trato. Sentar-me na boleia e servir de cocheiro, posso fazer, mas atrelar-me e puxar, isso é que não!

Enquanto assim discutiam, chegou uma pata cacarejando:

- Corja de ladrões, quem vos deu licença para invadir a montanha das minhas nozes? Agora me pagareis.

Precipitou-se de bico aberto sobre Franguinho, mas este, que não era nenhum covarde, atirou-se valentemente contra a pata, trepou-lhe nas costas, bicou-a e esporeou-a tão violentamente, que ela não teve remédio senão pedir mercê. Como punição, consentiu que a atrelassem ao carrinho. Franguinho subiu à boleia como cocheiro e partiram em carreira desabalada.

- Corre pata, corre o mais ligeiro que puderes!

Após terem percorrido bom trecho de caminho, encontraram dois peões: um alfinete e uma agulha. Estes gritaram:

- Para! Para!

Então explicaram que já estava escurecendo e não podiam dar mais um passo sequer; o caminho estava tão lamacento! Não poderiam viajar no carrinho? Tinham estado na estalagem dos alfaiates, além dos muros da cidade, e lá se haviam retardado bebendo um copo de cerveja.

Como era gente magra, não ocupavam muito espaço. Franguinho deixou-os subir. Mas tiveram de prometer não pisar os pés dele o de sua querida Franguinha. Era tarde da noite quando chegaram à estalagem, e não querendo prosseguir a viagem de noite, mesmo porque a pata estava mal das pernas, cambaleando de um lado para outro, decidiram pernoitar aí.

O estalajadeiro, a princípio, tentou opor-se, inventando mil dificuldades e alegando que a casa estava lotada. Isso porque tinha a impressão de que não eram da alta sociedade. Mas, tão bem souberam argumentar, prometendo-lhe que ganharia o ovo que Franguinha havia posto pelo caminho e, também, que ficaria com a pata que botava um ovo por dia, que, finalmente, ele acabou por deixá-los pernoitar.

Mandaram, então, pôr a mesa e banquetearam-se alegremente. Pela manhã, logo de madrugada, quando ainda dormiam todos, Franguinho despertou Franguinha, apanhou o ovo, fez-lhe um buraquinho com o bico e juntos chuparam-no, atirando a casca na lareira.

Depois, foram onde estava a agulha dormindo a sono solto, pegaram-na pela cabeça e espetaram-na no encosto da poltrona do estalajadeiro, e o alfinete espetaram na toalha de rosto.

Feito isso, sem dizer a ninguém, abriram as asas e foram-se voando pela planície afora. A pata, já habituada a dormir ao relento, tinha ficado no terreiro; ouvindo-os esvoaçar, acordou e foi saindo. Encontrou um regato e por ele foi nadando, descendo a corrente; era mais rápido do que puxar o carrinho.

Algumas horas mais tarde o estalajadeiro, levantando-se antes dos outros, lavou-se e foi enxugar-se na toalha; então o alfinete arranhou-lhe o rosto, deixando-lhe um sulco vermelho que ia de uma orelha a outra. Foi à cozinha, onde queria acender o cachimbo, mas, ao inclinar-se na lareira, as cascas do ovo saltaram-lhe nos olhos.

- Esta manhã tudo está contra a minha cabeça, - resmungou, e deixou-se cair muito irritado na sua poltrona. Mas deu um pulo, gritando: - Ai, Ai.

A agulha o havia espetado dolorosamente, - e não na cabeça.

A essa altura, o furor dele chegou ao extremo; começou a suspeitar dos hóspedes que haviam chegado tão fora de hora na noite anterior. Foi procurá-los, mas estes já haviam desaparecido.

Diante disso, o pobre estalajadeiro jurou nunca mais hospedar gentalha que, além de comer muito, não paga nada, e ainda por cima, agradece com malvadezas.

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXVI


Alcântara Machado (Lisetta)


Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.

- Olha o ursinho que lindo, mamãe!

- Stai zitta! (Cale a boca!)*

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância.

Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras.

- As patas também mexem, mamã. Olha lá!

- Stai ferma! (Fique parada!)

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinquenta mil réis na Casa São Nicolau.

- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?

- Ah!

- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.

A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:

- In casa me lo pagherai! (Você vai me pagar em casa!)

E desferiu por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.

Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

- Stai ferma** o ti amazzo, parola d'onore! (Fique parada ou eu mato você, palavra de honra!)

- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più! (Escute, Lisetta. Eu não vou mais te levar para a cidade! Nunca mais!)

Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez.

O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

- Non piangere più adesso! (Não chore mais!)

Impossível.

O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!

- Olha à direita!

Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina.

- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!

Também Lisetta já não aguentava mais.

- Toma pra você. Mas não escache.

Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:

- Ele é meu! O Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
____________________
* Todas as frases em italiano foram traduzidas para o português por José Feldman.
** No texto original está “ferina” (selvagem, ferina), o que deixaria sem sentido o texto, acredito que foi um erro de digitação e o correto é “ferma” (calada).


Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Varal de Trovas n. 214


Dorothy Jansson Moretti (Índios e Lágrimas)


Em conversa com minha vidinha, dizia-me ela    finalmente, uma amiga de sua filha vencera a resistência dos pais e se casara com um advogado que eles repudiavam por ser de origem indígena.

O preconceito fez-me lembrar de um fato que aconteceu quando eu estudava em colégio interno, e eu o relatei com minúcias à minha vizinha.

Certo dia, apareceu no pátio, vindo pela estrada que ligava o colégio à cidade, uma distancia de quatro quilômetros, um indiozinho de uns catorze anos. Tinha um nome lindo e sonoro: Itáiro Igaiara. Coitadinho! Não se sabia o quanto ele havia andado, mas estava coberto de poeira, a roupa em frangalhos e os cabelos semi-longos sujos e cheios de piolhos! Deram-lhe "aquele" banho, vestiram-lhe roupas limpas, cataram-lhe os parasitas, e permitiram que ele ficasse no colégio, estudando em troca de pequenos serviços nas hortas, compatíveis com sua capacidade física.

Itáiro, não lhe bastasse a timidez, era menosprezado por quase todos os colegas masculinos e femininos. Eu tinha pena dele e tratava-o sem preconceito, conversando e procurando fazê-lo sentir-se mais integrado entre nós.

As coisas, porém, começaram a tomar um rumo que eu não previra. Ele tentou levar a amizade para o terreno de um namorico. Eu tinha só treze anos, e aquilo me pareceu uma coisa horrível! Fiquei indignada e passei a trata-lo com estudada indiferença. O pobre sentiu a virada e ficou tristinho, mas eu estava irredutível. Não nos falamos mais.

Chegou o fim do ano e em meio aos preparativos para as festas, Itáiro, por intermédio de Dona Anita, nossa governante, conseguiu conversar comigo. Pediu-me desculpas. Disse que não queria voltar para Mato Grosso, de onde viera, deixando-me magoada com ele. Profundamente tocada por sua humildade, eu "perdoei" Itáiro, e continuamos amigos novamente.

Enquanto eu contava esse caso à minha vizinha, não percebi que meu filho, que tinha seis anos, estivera atento à nossa conversa. Eu esqueci o assunto. Mais tarde, notei que Paulinho, sempre tão vivo e tagarela, estava meio macambúzio, mas não prestei muita atenção àquilo. No fim da tarde, muito quieto, de deitou-se e cobriu a cabeça. Fui ver o que havia. Estava doente? O que estava sentindo? Mas ele... nada!

À noite, minhas amigas Noemi e Elivir apareceram lá em casa. Contei-lhes que o Paulinho não estava muito bom. Elas foram vê-lo. Elivir achou-o muito quente e vermelho. Colocou-lhe o termômetro. Normal, mas ele não falava nem mesmo com elas de quem gostava tanto e que o agradavam demais.

Ficamos as três preocupadas, e eu resolvi obrigá-lo a dizer-me o que se passava. Cansado com minha insistência, ele finalmente reagiu, mas num pranto desesperado...

'*Buááá...”

"Mas o que é isso, meu filho. O que é que você tem?"

Chorando e fungando muito, a resposta, toda entrecortada, veio afinal:

"É... por causa... do índio...”

– "Índio? Mas que índio?"

Eu estava aturdida. Não tinha a mínima ideia do que ele queria dizer.

Soluços:

"O índio que queria casar com você,,, e você não quis... Ele usava pena, mamãe?"

Toda a minha preocupação acabou-se. Mentalmente reconstituí a cena da maneira como Paulinho a imaginara: um índio todo enfeitado de penas, querendo casar comigo e eu dizendo que não... Deu-me uma vontade louca de rir, e a custo consegui conter-me.

"Mas meu filho? A mamãe tinha só treze anos e o índio catorze. Não podíamos nos casar.”

Ele continuava num choro desconsolado. Abria as comportas retidas durante um dia inteiro. Eu mal sabia o que fazer. Muito menos Elivir e Noemi que ignoravam absolutamente o que se passava. Tive que repetir-lhes a história, depois, na cozinha, e elas riram a valer, às escondidas de Paulinho, para não magoa-lo ainda mais. E ele chorava, chorava…

Finalmente ocorreu-me uma ideia;

"Filho, mas e o papai? Se eu casasse com o índio, você seria filho do índio e não do papai Paulo... Você queria?"

Acalmando-se um pouco e ainda fungando muito, ele me olhou assustado.

Insisti:

"E então... onde é que o papai ficava nessa história?"

Agarrado ao pai do jeito que ele era, acabou por se conformar. Secaram-se as lágrimas e, como acontece em qualquer criança, dali a instantes já estava alegrinho, brincando com Noemi e Elivir, feliz da vida e esquecido - pelo menos momentaneamente ~ daquele índio de penas que tanto o fizera "penar"...

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Doce Aconchego das Trovas n. 1



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Melhor idade?… Bobagem…
lorota antiga… falácia…
– Velhice só traz vantagem
para o dono da farmácia!
A. A. de Assis
Maringá/PR

- - - - - –

A noiva diz que "ele aceita"
e vai se casar feliz,
porque está bem satisfeita:
achou o noivo que quis!
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos/SP

- - - - - –

A minha alma não se cansa,
- embora desiludida,
de acalentar a esperança,
que é o acalanto da vida.
Anis Murad Lamar
Rio de Janeiro (1904 – 1962)

- - - - - –

Una sonrisa sincera
siembra en tu bello vergel
y estará, por donde quiera,
multiplicándose en él.
Carlos Rodriguez Sanchez
Venezuela

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Não se compra, tendo em vista
que não se vende alegria;
felicidade é conquista
que se faz no dia a dia.
Dáguima Verônica de Oliveira
Santa Juliana/MG

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Sobre um fio, numa rua,
brincavam gato e criança,
sob a luz do Sol ou Lua,
fantasiados de esperança!
Delcy Canalles
Porto Alegre/RS

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Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se,
mas não engana a si mesmo.
Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE

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Em busca do meu futuro,
descobri o seu coração.
Este amor, tão prematuro,
tirou-me da solidão.
Jennifer Caroline Correia
Bandeirantes/PR

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Para ter felicidade
e ser, de fato, feliz,
aprenda a simplicidade
de São Francisco de Assis!
José Antonio de Freitas
Pitangui/MG

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Buscar a verdade, perto,
olho a olho, frente a frente,
parece o jeito mais certo
de se falar com quem mente.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN (1934 – 2015) Natal/RN

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Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz…
Grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
Lucília A. Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

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Em toda Mulher se vê:
o charme, o encanto, a alegria
e em todas elas há um quê
da doçura de Maria!
Maria Calil Zambon
Novo Horizonte/SP (1935 – 2012) Bandeirantes/PR

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Palabras aún en distancia
son vida para quien ama,
pueden saciarnos el ansia
amándonos con su llama.
Maria Cristina Fervier
Argentina

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Felicidade! – Eu te estudo
e não decifro a “charada”:
– Uns – infelizes com tudo…
– Outros – felizes sem nada!!!
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

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Aos ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!
Prof. Garcia
Caicó/RN

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Sinto Deus em toda escala...
Na vida, nos pensamentos,
no cheiro que a terra exala
entre a chuva e o próprio vento!
Nei Garcez
Curitiba/PR

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De estrelas toda bordada,
porta aberta para a rua,
a tapera abandonada
abriga os raios da lua.
Sônia Sobreira
Rio de Janeiro/RJ

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Felicidade?… É a que eu tenho
quando na vida ajo assim:
– Quero alguém feliz… me empenho…
e esqueço um pouco de mim.
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

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Cascata de Trovas

Olivaldo Junior
Mogi-Guaçu/SP

TROVAS PARA OS "ANTIGOS"

Nas "histórias da vovó",
o netinho embala os sonhos,
embalando, sem ter dó,
seus enredos mais risonhos.

Cada estrela na calçada,
logo após a noite fria,
se disfarça de alvorada
no clarão do novo dia.

As meninas contam flores
no jardim de nunca mais;
cada flor tem muitas cores,
mas a roxa tinge os "ais".

Solidão ficou velhinha,
nunca mais saiu de casa;
certa noite, na cozinha,
pôs-se em pé e criou asa.

Entre as faces que já tive,
uma delas me entristece:
a que finge que inda vive
neste rosto que envelhece.

Fonte:
https://doceaconchegodastrovas.blogspot.com

quinta-feira, 19 de março de 2020

Varal de Trovas n. 213


Carlos Drummond de Andrade (Telefone)


- O senhor é que é o senhor mesmo?

- Como?

-  Estou perguntando quem é o senhor, afinal.

- Evaristo Pestana de Matos, seu criado.

- Isso estou vendo na carteira de identidade. Mas o talão de inscrição diz Abel Setembrino de Matos.

- É meu avô paterno.

- Então fala pra seu avô vir ele mesmo, trazendo a carteira.

- Isto eu não posso falar não senhor.

- Não pode por quê?

- Porque ele já é falecido desde 1952.

- Se já é falecido, nada feito. A inscrição está cancelada.

- Cancelada como, se ele foi chamado pela Companhia no jornal de hoje?

- Olha, moço, a Companhia chamou na suposição dele estar vivo. Não estando, fica sem efeito a chamada. Compreendeu?

- Compreendi não. A Companhia chamou, tá chamado. Eu vim em nome de meu saudoso avô pagar a primeira cota do telefone que ele pediu há 24 anos, quando eu era menino de colo, aliás afilhado dele.

- O senhor está é brincando. Seu avô não precisa mais de telefone.

- Mas preciso eu, que sou neto dele, será que o senhor também não mora? Este talão aqui foi conservado pela família durante  um  quarto de século. Meu avô, sentindo uma dor do lado esquerdo, chamou meu pai  e disse: "Etelberto, tira da gavetinha do criado-mudo minha inscrição de telefone e guarda ela com cuidado. Não pude deixar um aparelho para você, mas deixo essa esperança. Não vende a inscrição por dinheiro nenhum, meu filho. Satisfaz minha última vontade". Disse e morreu.

- É comovente, mas...

- Espera aí. Tem mais. Meu pai guardou o papel 13 anos e  também embarcou, coitado. Na hora de despedida, me fez a mesma  recomendação. Estou cumprindo um mandado de família, uma coisa sagrada para mim. Já lhe dei o talão. Me dá meu telefone, cidadão.

- Esse talão é de Abel Setembrino de Matos, homem!

- Eu sei. Meu avô, pai de meu pai. Me tocou como bem de família.

- Tocou como? Por acaso entrou em inventário, o senhor tem formal de partilha provando isso?

- Formal eu não tenho, mas tenho o talão. Quem mais senão eu podia ficar com o talão, se sou filho único de filho único de meu avô?

- Eu sei lá se o senhor é único ou se faz parte de escadinha. Nem interessa à Companhia saber quem é filho único de quem. Sabe que mais? A conversa já esticou demais. Vou chamar o próximo.

- Me atenda antes, por favor. Não vai me obrigar a ir para a televisão reclamar o direito de meu avô, nem contratar advogado. Pois eu vou, eu contrato.

- Faça o que quiser.

- O que eu quero é o telefone de meu avô, pedido em 1943!

- Retire-se, o senhor está enchendo!

- Hein?!

- Está enchendo, já disse!

- Estou é me sentindo mal... Uma coisa do lado  esquerdo..,  uma nuvem .. . uma vertigem. A gente esperando  desde  a  Segunda  Guerra Mundial, e na hora de receber o telefone, ah meu Deus, o Senhor me chama para o seu seio... Não faz isso comigo, deixa pelo menos eu tomar  um táxi, ir em casa entregar a meu filho Tonico este talão... Quem sabe se ele um dia...

Cai.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 4


COMPLEXO
                 (À Manuel Joaquim da Silva Pinto)
  
E ele que sentia humano
libertou-se do complexo de inferioridade
e falou ao seu tempo
e à humanidade:

- eu também sei matar!... eu matarei o homem
que ameaçar a minha liberdade
e ofender o meu lar,
que ferir o meu filho
ou roubar o meu pão,
porque esse homem que eu mato é menos que um cão!
............................................................

Mas... - ( e aí, a voz lhe tremeu
e se embaçou o olhar...)
eu me sinto incapaz de matar qualquer homem
apenas
porque me mandam matar!
****************************************

CONFISSÃO

Não é que eu queira automóveis
nem apartamentos
nem mulheres alheias
e inveje os homens ricos
que nunca notaram que estão vivendo
porque nunca tiveram medo do mundo...

Não é que eu queira ter a minha mesa
a minha cama
a minha casa
a minha mulher
o meu automóvel...

Porque eu posso andar de ônibus que é o automóvel
de todo mundo,
e como na pensão da Rubina
onde pode deitar a comer
todo mundo
( ou quase todo mundo)
e eu tenho os cafés, as ruas, os bancos, os jardins
e as mulheres
de todo mundo...

Não é por nada disso, poderia ser, mas não é...
é que hoje acordei com aquela alma triste
cheia de interrogações
desejos
e segredos
da criança pobre que parou diante de uma vitrine
da casa de brinquedos…
****************************************

CONSELHO

Solta essa arma, desgraçado
deixe-a de lado!
Por que queres matar teu companheiro
se tu nem o conheces?

Não vês que ele tem filhos pequeninos
e tem mãe
e esposa
e irmãos que esperam pela sua volta ?

Solta essa arma, desgraçado, solta!

Não vês que ele trabalha como tu
honestamente
e pobre, e humildemente,
desde que nasceu?

Não vês que como tu, ele lutou em vão
e abandona o seu lar sem ter nada de seu?

Solta esta arma que tu tens na mão!

Por que queres matar teu companheiro
hoje, pelo trabalho
mais que teu companheiro: teu irmão?

Não vês que ele ergue aos céus as tuas preces?
Não vês que ele deixou também um lar?
E se nem conheces
por que razão o vais friamente matar?

Não ouça as vozes que falam de sombra
nem cometas um crime que tu não compreendes!
Não sigas as palavras dos que não te seguem
nem escutes aqueles que na paz te exploram!

Eles fazem da guerra o imenso matadouro
onde todos serão esquartejados,
porque a tua carne vale mais que ouro
para o mais torpe e vil de todos os mercados!


Solta essa arma, desgraçado,
e se queres morrer
não morras por aqueles que te chibateiam
e que não vês sequer!
Morre por um desejo bom que realizares
por um amor sublime que te fez feliz
por um sincero amigo
ou por um cão qualquer!

Não mates teu companheiro igualmente iludido
ele é também capaz de amar e de sentir
de chorar e de sofrer!

Solta essa arma, desgraçado, solta,
ou mata-te com ela se te apraz morrer!
****************************************

CREDO DA VITÓRIA
        (À Carlos Drummond de Andrade,
               Friburgo, 15 de fevereiro de 1944)

  
Cremos na Vitória porque cremos na velha China
indomável, que renasce todas
as horas e todos os dias
das cinzas dos seus mortos,
das suas agonias
e da mesma aflição,
e se multiplica no milagre do ódio e da insubmissão...

Na velha China, que descruzou as pernas sob o ventre
filosófico de Buda
e levantou a cabeça, e aparou as tranças,
e ergueu os punhos armados
num rompante de dor,
para vingar suas cidades arrasadas,
suas crianças trucidadas,
e suas mulheres violentadas pela força e pelo terror...

Na velha China pacífica de Confúcio, que aprendeu
finalmente na cartilha desapiedada
dos bombardeios cegos
a linguagem de sangue do invasor...

Cremos na Vitória, porque Londres continuará de pé
como um desafio,
ostentando as cicatrizes de suas ruínas
que parecerão iluminadas na névoa
das noites silenciosas e em "blackout"
pelo "fogo-santelmo" de um heroísmo imortal...
Da Londres que se contorceu nos incêndios crepitantes
e imunizada pelo próprio fogo emergiu das chamas alucinantes
num gesto triunfal. . .

Cremos na Vitória, porque sobre as estepes
de brancura sem fim
maculadas pelo sangue dos bárbaros
Moscou permaneceu intangível e intacta,
velando com suas torres e abóbadas
o sono imperturbável de Lênine,
e barrando a miragem com mortífero fogo!
Porque nas fábricas de Stalingrado lateja o coração
de uma Rússia invencível
que pôs em cada rua, em cada casa, em cada palmo de terra,
em cada nervo, em cada disparo,
um pedaço da alma de seu povo!

Cremos na Vitória, porque Pearl Harbour já foi vingada,
e porque o espírito de Pearl Harbour
sacudiu a América e perfilou-a como um só homem
de Sul a Norte,
- e porque Washington, Bolívar, Juarez, - Tiradentes,
nos legaram um Continente e as tradições de povos livres e indomáveis
que não temem a morte!

Cremos na Vitória, porque estão conosco,
seres de todas as raças, de todas as cores,
de todos os credos,
homens conscientes que não se deixarão trair
e conquistarão a paz e a liberdade
com as suas forças invencíveis e o seu ódio profundo!

Cremos na Vitória, - porque cremos nesse ódio sagrado
que destruirá um mundo
mistificado pelos prepotentes
construído sem justiça e sem amor,
e porque cremos naquelas forças inesgotáveis e eternas
que reconstruirão a vida, sobre bases humanas e fraternas,
ao chegar a bonança, após o temporal da dor!

Sim! cremos na Vitória!
E erguemos nossas vozes no cântico deste credo
por todas as terras e por todos os horizontes
para além de todas as fronteiras
e à frente de todas as bandeiras
numa única voz...

E cremos na Vitória, porque cremos nas crianças
que ressuscitarão como as flores nos jardins arrasados,
nas mulheres que regressarão das oficinas para os lares
nos trens que apitarão festivos pelas gares,
nos homens que voltarão das trincheiras para o mundo,
- porque cremos em Nós!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Irmãos Grimm (João, o Felizardo)


João servira ao seu amo durante sete anos e, um dia, disse-lhe:

- Meu amo, meu tempo de contrato esgotou-se; agora quero voltar para a casa de minha mãe; dai-me o meu ordenado.

O amo respondeu:

- Serviste-me fiel e honestamente; tal serviço pede igual remuneração.

E deu-lhe uma barra de ouro grossa, quase como a sua cabeça. João pegou o lenço do bolso, embrulhou o pedaço de ouro, o pôs às costas e meteu-se a caminho, rumo à casa da mãe.

Ia andando, sossegadamente, pela estrada afora, quando viu um cavaleiro alegre e pimpão, que vinha trotando sobre um brioso cavalo.

- Oh, - disse João em voz alta - como há de ser bom andar montado num cavalo! Fica-se comodamente sentado como numa cadeira, não se tropeça nas pedras, não se gasta o calçado e se avança sem mesmo dar por isso.

O cavaleiro, que ouvira o que ele dizia, parou e gritou-lhe:

- Mas, João, por que andas a pé?

- Que remédio! - respondeu João - Tenho este fardo pesado que devo levar para casa; é ouro, bem sei, mas pesa tanto que me esmaga o ombro e nem sequer posso levantar a cabeça.

- Queres saber uma coisa? - disse o cavaleiro - façamos uma troca! Eu te dou o cavalo e tu me dás o teu pedaço de ouro.

- Oh! de muito boa vontade, - disse João - mas vos previno que deveis fazer força.

O cavaleiro apeou-se bem depressa, pegou na barra de ouro e ajudou João a montar a cavalo. Meteu-lhe as rédeas na mão, recomendando-lhe:

- Se quiseres que corra como o vento, basta fazer um estalinho com a língua e gritar: hop, hop!

João estava felicíssimo em cima do cavalo e partiu a trote largo. Ao cabo de algum tempo teve a ideia de ir mais depressa. Deu um estalinho com a língua e gritou: hop, hop!

O cavalo, obediente, partiu a galope desenfreado e, num bater de olhos, João foi pelos ares, caindo dentro de um fosso à beira da estrada. O cavalo teria continuado no galope se um camponês, que vinha em sentido contrário, conduzindo uma vaca, não o agarrasse pelas rédeas.

João apalpou os membros doloridos e pôs-se de pé. Mas ficara aborrecido e disse ao camponês:

- Que belo gosto montar a cavalo, sobretudo quando se topa com um animal como este, que tropeça e atira a gente pelos ares, fazendo quase quebrar o pescoço! Nunca mais tornarei a montar a cavalo. Por falar nisso; a tua vaquinha, sim, me agrada. Pode-se ir atrás dela muito sossegado e além disso, tem-se leite, manteiga e queijo garantidos. Quanto não daria para ter uma vaca como essa!

- Ora, - disse o camponês - se te agrada tanto, poderemos trocar a minha vaca pelo teu cavalo.

João concordou todo feliz; o camponês saltou para cima do cavalo e partiu a galope. Tocando, calmamente, a vaca diante de si, João ia refletindo nas vantagens do negócio que acabava de realizar.

"Contanto que eu tenha um pedaço de pão, e decerto não me há de faltar posso, quando tiver fome, comer também um pouco de manteiga e queijo; quando tiver sede, tiro leite da minha vaca e bebo-o. Meu coraçãozinho, que podes desejar mais?"

Ao chegar a uma estalagem, parou, e julgando ter agora provisões para toda a vida, liquidou tranquilamente todo o farnel que levava para a viagem e, com os últimos vinténs que possuía, deliciou-se com um bom copo de cerveja. Em seguida, encaminhou-se rumo à aldeia de sua mãe, tocando a vaca diante de si.

Ao meio-dia, o calor tornou-se sufocante e João encontrava-se em plena charneca, onde se demoraria ainda uma hora. Sentia tanto calor e sede que até a língua se lhe pegava ao céu da boca. "Mas tenho um remédio, - pensou - vou ordenhar a minha vaca e refrescar a garganta com o bom leite."

Amarrou a vaca a um pau, e por falta de coisa melhor, quis aparar o leite com seu boné de couro; mas, por mais que puxasse e espremesse, das tetas não saiu uma só gota de leite. Como não tinha jeito para lidar com a vaca, ela zangou-se e atirou-lhe tal coice na cabeça que o fez rebolar a dez passos de distância, onde ficou estendido sem sentidos. Aí ficou um bom pedaço de tempo; felizmente, porém, chegou um carniceiro empurrando um carrinho com um leitãozinho dentro.

- Que brincadeira sem graça! - disse ele, e ajudou João a levantar-se.

João contou-lhe tudo o que havia acontecido; o carniceiro ofereceu-lhe o seu frasquinho dizendo:

- Bebe um trago, que logo te reanimarás. Aquela vaca nunca mais dará leite, já está velha e seca, boa, quando muito, para ser atrelada a uma carroça ou então para ser levada ao matadouro.

- Oh diabo, - disse João puxando os cabelos desgrenhados; - quem diria uma coisa destas! Naturalmente, seria uma grande vantagem matar o animal em casa! Quanta carne teríamos! Mas não gosto de carne de vaca, não a acho saborosa. Ah! se fosse um leitãozinho igual a esse; então, sim, seria delicioso! Sem falar nas salsichas que daria!

- Escuta, João, - disse o carniceiro; - por seres quem és e porque desejo ser-te agradável, estou disposto a trocar o meu leitão pela tua vaca.

- Que Deus te recompense tanta bondade! - disse João.

Entregou-lhe a vaca e levou o leitão, segurando-o pela corda com que estava amarrado no carrinho.

João continuou o caminho pensando em como tudo lhe ia às mil maravilhas; apenas tinha uma contrariedade e logo se remediava. Nisso, aproximou-se um rapazinho, que levava debaixo do braço um belo pato branco, muito gordo. Cumprimentaram-se desejando um bom dia e, conversa vai conversa vem, João contou-lhe as suas aventuras, gabando-se da boa sorte, e das trocas sempre tão vantajosas. O rapazinho, então, contou que levava o pato à aldeia vizinha e que estava destinado a um banquete de batizado.

- Experimente o seu peso, - disse, levantando-o pelas asas - é pesado, não acha? Também, já faz dois meses que o venho engordando com o que há de melhor! Quem tiver a sorte de meter os dentes em semelhante assado, verá a banha escorrer-lhe pelos cantos da boca.

- E' verdade, - disse João levantando o pato com uma das mãos - é um bonito animal. Mas, também, o meu leitão não é mau e tem o seu valor!

Entretanto, o rapaz olhava para todos os lados com certa precaução; depois, abanando a cabeça, disse:

- Olha, a história do teu leitão não me parece muito limpa: acabam, justamente, de roubar um ao prefeito da aldeia onde passei agora. Tenho palpite que deve ser esse que levas aí. Mandaram gente a procurá-lo por toda parte e seria uma coisa terrível se te apanhassem com ele; o menos que te aconteceria era ser metido numa prisão escura.

O pobre João ficou assustadíssimo e exclamou:

- Ah, Deus meu! Livrai-me desta desgraça! Tu que conheces a região melhor do que eu e sabes, portanto, onde esconder-te, leva o meu leitão e dá-me o teu pato.

- Arrisco-me muito com isso, - disse o rapazinho, - mas, só para te livrar de apuros, vou fazer o que me pedes.

Pegou, então, na corda e bem depressa levou o leitãozinho, desaparecendo por um atalho. O honrado João, livre dessa preocupação, continuou a caminhar rumo a casa, levando o pato debaixo do braço e ia pensando:

- Calculando bem, saí ganhando na troca. Primeiro, a carne de pato é mais fina para assado e mais saborosa que a de leitão; e com toda esta banha terei gordura por uns bons três meses e, finalmente, com as belas penas brancas farei uma boa almofada, na qual dormirei sem que seja preciso embalar-me. Santo Deus, como minha mãe vai ficar contente com tão lindo animal!

Após ter atravessado a última aldeia, antes de chegar à sua, viu um amolador parado com a sua caranguejola; a roda girava, girava e ele acompanhava-a cantando:

- Afio tesouras e rodo ligeiro;
e penduro a manta como sopra o vento...

João parou e ficou olhando o que ele estava fazendo, depois disse:

- Parece que tudo vai à medida dos teus desejos, visto que trabalhas tão alegremente!

- Oh, se vai! - respondeu o outro. - Qualquer ofício manual é ouro em barra. Um bom amolador é um homem que, quando mete a mão no bolso, sempre encontra dinheiro. Mas, onde compraste esse belo pato? Nunca vi tão bonito por aqui!

- Não o comprei, ganhei-o em troca de um leitãozinho.

- E o leitão?

- Ganhei-o em troca de uma vaca.

- E a vaca?

- Tive-a em troca de um cavalo.

- E o cavalo?

- Por aquele dei um pedaço de ouro do tamanho da minha cabeça.

- E o ouro?

- Era o pagamento que me deu meu amo por sete anos de serviço.

- Vejo que sabes te defender muito bem neste mundo; se agora chegares a ouvir todas as manhãs tinir dinheiro no bolso quando enfiares as calças, tua fortuna está feita.

- Sim, mas que devo fazer para isso? - perguntou João.

- Deves tornar-te amolador como eu; para isso é preciso, primeiro, ter a pedra de amolar; o resto vem depois. Tenho aqui uma, na verdade está um pouco gasta, mas em troca desejo apenas que me dês o teu pato; aceitas?

- Ainda me perguntas? - respondeu João. - Se, como dizes, terei sempre dinheiro no bolso, serei o homem mais feliz do mundo; que mais posso desejar?

Entregou ao amolador o pato e recebeu em troca a pedra de amolar e mais uma outra qualquer que apanhou no chão.

- Eis-te aqui mais esta bela pedra, - disse o amolador - é excelente para fazer uma bigorna e para endireitar pregos ou arranjar as ferramentas. Fica com ela e guarda-a com cuidado.

João pegou nas duas pedras e partiu muito alegre, os olhos brilhando de felicidade.

- Devo ter nascido com a camisa da felicidade, - pensava ele - pois tudo o que desejo se realiza!

No entanto, como estava caminhando desde manhã bem cedo, sentiu-se cansado; além disso a fome começava a atormentá-lo, pois já não tinha nada que comer, tendo devorado o farnel de uma só vez a fim de festejar a troca da vaca. Por fim, andava a custo e a cada instante era obrigado a descansar; as pedras pesavam tremendamente e lá consigo pensava quanto seria agradável não ter de as carregar, agora que estava tão cansado. Arrastando-se como uma lesma, conseguiu chegar até uma fonte, contente de poder refrescar a goela e descansar um pouco estendido na erva.

Não querendo estragar as pedras, colocou-as cuidadosamente à beira da fonte, bem perto dele. Depois sentou e foi abaixar-se para encher o boné de água, mas, sem querer, empurrou um pouquinho as pedras, que rolaram para dentro da água.

João, quando as viu desaparecer dentro da água, deu um pulo de alegria, depois ajoelhou-se e agradeceu a Deus, com lágrimas nos olhos, por tê-lo atendido mais essa vez, desembaraçando-o do pesado fardo sem que ele tivesse de se censurar.

- Não há ninguém neste mundo mais feliz do que eu! - exclamou.

De coração aliviado, livre de qualquer peso, saiu a correr e só parou quando chegou à choupana de sua mãe.

Fonte:
Contos de Grimm

quarta-feira, 18 de março de 2020

Varal de Trovas n. 212


Rachel de Queiroz (Turismo)


Quando somos turistas em país estrangeiro surpreende-nos bastante a atitude quase hostil dos aborígenes: afora os profissionais diretamente interessados no tráfico de visitantes — choferes, garçons, gerentes de hotel, etc. a população não gosta dos turistas, que lhes invadem a privacidade e a importunam sem contemplações, achando que têm direito a fazer tudo uma vez que estão pagando.

Já agora, o Rio, que se prepara para receber o turismo em grande escala e em proporção às suas atrações, começa a sofrer o impacto da onda invasora; e, pelo  visto, os cariocas já a ressentem. E apenas se trata do simples turismo doméstico — que os estrangeiros ainda não chegam em multidão suficiente para causar susto.

É uma graça ver a surpresa ofendida dos ipanemenhos — no seu reduto sagrado, o Castelinho! — quando lá ancoram dois, três ônibus carregados de paulistas do interior e começam a despejar sobre as areias ilustres legiões de invasores, que parecem tão estranhos corno se fossem marcianos, no meio à nudez cor de bronze dos nativos.

Vêm montes de rapazolas magricelas, de torso e canelas branquíssimos, alguns ainda calçados de sapato e meia. Despem na areia os excessos de indumento e se atiram às ondas dando gritinhos, carreirinhas, atirando água uns nos outros, numa comovedora folia infanto-juvenil.

Há as belas senhoritas das urbes interioranas, robustas moçoilas a estourar dos shorts; estas, curiosamente, quase nunca são todas brancas, ou branco-azedas, como dizem os praianos. Mas têm um ar inquieto e agressivo, e também praticam o mau modo de chegar à praia vestidas, e tranquilamente ali se despojam dos trajes urbanos, como se estivessem na intimidade dos seus quartos. Não que o striptease seja indecente — há sempre o biquíni por baixo — mas a utilização da praia para essas atividades de interior doméstico parece um sacrilégio aos seus donos habituais, que lá já chegam nus.

E há — supremo horror — as hordas de farranchos familiares — as gordas matronas, os pais barrigudinhos, a filharada indócil, as crias de casa. Como dizia um grupo de autóctones escorraçado, a subir a calçada da Montenegro, “são absolutamente coloniais, parecem ilustrações de Debret, só faltam vir numa rede carregada por dois crioulos!”.

E os farranchos se espalham com desenvoltura pelo sofisticado areal, e se desmandam em piqueniques, e trazem bacias para lavar as crianças, e comem o seu frango assado com farofa, e bebem nas suas garrafas térmicas e um deles chegou ao inimaginável: trouxe até churrasqueira, cujo aroma de carne assada, vencendo a maresia, envolveu completamente os últimos abencerragens locais que se haviam refugiado no pier do Emissário.

Por meu lado confesso que, nessa briga, estou do lado dos turistas. O sol — e a praia — são para todos, sejam eles do Leblon ou de Andrelândia. Mas o final da história não consigo prever. Ipanema será esvaziado e entregue à invasão interiorana? Ipanema reagirá, e erguerá cercas de arame, muros de cacos de garrafa, instituirá aí pelotões de vaia, equipes de depredação de ônibus alienígenas? Só o futuro o dirá. Lembro, contudo, que paulista é filho de bandeirante: onde põe a bota, ali fica. Mais fácil será que os ipanemenhos se mudem para litorais mais protegidos, que em tempo ficarão também famosos e serão, por isso, igualmente invadidos. E tudo começará de novo.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Carlos Augusto dos Santos Pinto (Baú de Trovas)

Santa Luzia/MG, 1873 – ????, Belo Horizonte/MG

 
A gente. enquanto não ama,
da vida vive contente;
chegando, porém, Cupido,
adeus sossego da gente!
- - - - - –

A vida é sonho fugaz,
é pura e mera ilusão,
é leve pluma, que voa,
batida pelo tufão.
- - - - - -

Duas portas se escancaram,
ao partir a mocidade:
por uma foge a alegria,
pela outra entra a saudade.
- - - - - –

Lá bem longe, ao pé da serra,
minha terra, toda assim
— feita de amor e carinhos,
vive a sorrir para mim!
- - - - - –

Minha alma não mais anseia
por tuas suavidades.
Lua branca — lua cheia —
lua cheia — de saudades!...
- - - - - –

Plena, desperta a natura,
de seduções peregrinas,
quando vem, rindo, a alvorada,
pelos altos das colinas.
- - - - - –

Sem conta são minhas mágoas...
Nem pode um peito contê-las.
Para contá-las, não chegam
do firmamento as estrelas!
- - - - - –

Se por acaso, sonhando,
sonho tivermos tristonho.
vem a razão consolar-nos:
— sonhos não passam de sonho...
- - - - - –

Se recordar é viver,
— pela quimera embalado,
irei alento beber
nos sorrisos do passado.
- - - - - –

Sonhei risonho o meu fado,
sonhei loucos ideais.
De tanto sonho sonhado
guardo apenas queixas e ais.
- - - - - –

Carlos Augusto dos Santos Pinto nasceu na tradicional Fazenda do Cipó, distrito de Jaboticatubas, município de Santa Luzia/MG, a 17 de dezembro de 1873. Filho de Carlos Augusto dos Santos Pinto e D. Isabel dos Santos Ferreira. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, no ano de 1910, pela Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais. Em 1902 casou-se com D. Maria da Conceição de Mendonça Pinto, Foi Promotor de Justiça em Queluz, Sete Lagoas e Santa Luzia. Exerceu vários cargos públicos. Publicou um livro de poesias intitulado ''Evocações e Saudades". Carlos é pai do consagrado trovador Paulo Emílio Pinto. Radicou-se em Belo Horizonte/MG.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Arthur de Azevedo (O Viúvo)


Na véspera de partir para a Europa, o doutor Claudino, sem prever o fúnebre espetáculo de que ia ser testemunha, foi despedir-se do seu velho camarada Tertuliano.

Ao aproximar-se da casa, ouviu berreiro de crianças e mulheres, e a voz de Tertuliano, que dominava de vez em quando o alarido geral, soltando, num tom estrídulo e angustioso, esta palavra: “Xandoca.”

O doutor Claudino apressou o passo, e entrou muito aflito em casa do amigo. Havia, efetivamente, motivo para toda aquela manifestação de desespero. Tertuliano acabava de enviuvar. Havia meia hora que dona Xandoca, vítima de uma febre puerperal, fechara os olhos para nunca mais abri-los.

O corpo, vestido de seda preta, as mãos cruzadas sobre o peito, estavam colocado num canapé, na sala de visitas. À cabeceira, sobre uma pequena mesa coberta por uma toalha de rendas, duas velas de cera substituíam, aos dois lados de um crucifixo, o bom e o mau ladrão.

Tertuliano, abraçado ao cadáver, soluçava convulsivamente, e todo o seu corpo tremia como tocado por uma pilha elétrica. Os filhos, quatro crianças, a mais velha das quais teria oito anos, rodeavam-no aos gritos.

Na sala havia um contínuo fluxo e refluxo de gente que entrava e saía, pessoas da vizinhança, chorando muito, e indivíduos que, passando na rua, ouviam gritar e entravam por mera curiosidade.

O doutor Claudino estava impressionadíssimo. Caíra de sopetão no meio daquele espetáculo comovedor, e contemplava atônito o cadáver da pobre senhora que, havia quatro dias, encontrara na rua da Carioca, muito alegre, levando um filho pela mão e outro no ventre, arrastando vaidosa a sua maternidade feliz.

Tertuliano, mal que o viu, atirou-se-lhe nos braços, inundando-lhe de lágrimas a gola do casaco; o doutor Claudino estava atordoado, cego, com os vidros do pince-nez embaciados pelo pranto, que tardou, mas veio discreta, reservadamente, como um pranto que não era da família.

— Isto foi uma surpresa... uma dolorosa surpresa para mim, conseguiu dizer com a voz embargada pela comoção. Parto amanhã para a Europa, no Niger... vinha despedir-me de ti... e dela... de dona Xandoca e... vejo que... que... que…

E o doutor Claudino fez uma careta medonha para não soluçar.

— Dispõe de mim, meu velho; estou às tuas ordens, bem sabes.

— Obrigado, disse Tertuliano numa dessas intermitências que se notam nos maiores desabafos; o Rodrigo, aquele meu primo empregado no foro, já foi tratar do enterro, que é amanhã às dez horas.

Fazendo grandes esforços para reprimir a explosão das lágrimas, o viúvo contou ao doutor Claudino todos os incidentes da rápida moléstia e da morte de dona Xandoca.

— Uma coisa inexplicável! Nunca a pobre criatura teve um parto tão feliz... A parteira não esperou cinco minutos... Uma criança gorda, bonita... Está lá em cima, no sótão... hás de vê-la. De repente, uma pontinha de febre que foi aumentando, aumentando... até vir o delírio... Mandei chamar o médico... Quando o médico chegou já ela agoniza... a... va!...

E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou-se de novo ao doutor Claudino.

No dia seguinte, a cena foi dolorosíssima. Antes de se fechar o caixão, Tertuliano quis que os filhos beijassem o cadáver, medonhamente intumescido e decomposto. Ninguém reconheceria dona Xandoca, tão simpática, tão graciosa, naquele montão informe de carne pútrida.

Fecharam o caixão, mas Tertuliano agarrou-se a ele e não o queria deixar sair, gritando: — Não consinto! não quero que a levem daqui! — Foi preciso arrancá-lo à força e empurrá-lo para longe. Ele caiu e começou a escabujar no chão, soltando grandes gritos nervosos. Três senhoras caíram também com espetaculosos ataques. As crianças berravam. Choravam todos.

De volta do enterro, o Doutor Claudino, conquanto muito atarefado com a viagem, não quis deixar de fazer uma última visita a Tertuliano. Encontrou-o num estado lastimoso, sentado numa cadeira da sala de jantar, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mísero recém nascido, que a um canto da casa mamava sofregamente numa preta gorda.

— Tertuliano, adeus. Daqui a meia hora devo estar embarcado. Crê que, se pudesse, adiava a viagem para fazer-te companhia... Adeus!

O viúvo lançou-lhe um olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:

— Adeus!

Às sete horas da noite o doutor Claudino, sentado na coberta do Niger, contemplando as ondas esplendidamente iluminadas pelo luar, pensava naquele olhar vago de Tertuliano, naquele adeus terrível, e pedia aos céus que o seu velho camarada não houvesse enlouquecido.

Meses depois, a exposição de Paris atordoava-o; mas de vez em quando, lá mesmo, na Galeria das Máquinas, no Palácio das Artes, ou na Torre Eiffel, voltava-lhe ao espírito a lembrança daquela cena desoladora do viúvo rodeado pelos orfãozinhos, e repercutia-lhe dentro d’alma o som daquele adeus pungente e indefinível.

Interessava-se muito por Tertuliano. Escreveu-lhe um dia, mas não obteve resposta. Pobre rapaz! viveria ainda? a sua razão teria resistido àquele embate violento?

Depois de um ano e quatro meses de ausência, o doutor Claudino voltou da Europa, e sua primeira visita foi para Tertuliano, que morava ainda na mesma casa. Mandaram-no entrar para a sala de jantar. Tertuliano estava sentado numa cadeira, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mais pequenito, que estava muito esperto, brincando no colo da preta gorda.

— Tertuliano? balbuciou o doutor Claudino.

O viúvo lançou-lhe um olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:

— Adeus.

Depois, dir-se-ia que se fizera subitamente a luz no seu espírito embrutecido. Ele ergueu-se de um salto, gritando:

— Claudino —, e atirou-se nos braços do velho camarada, exclamando entre lágrimas:

— Ah! meu amigo! perdi minha mulher!...

— Sim, já sei, mas já tinhas tempo de estar mais consolado... Que diabo! Sê homem! Já lá se vão quatorze meses!...

— Como quatorze meses? seis dias...

— Ora essa! pois não te lembras que acompanhei o enterro de dona Xandoca?

— Ah! tu falas da Xandoca... mas há três meses casei-me com outra... a filha do Major Seabra, há seis dias estou viú... ú... vo!

E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou de novo ao doutor Claudino.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora de moda. Belém/PA: UNAMA.

terça-feira, 17 de março de 2020

Varal de Trovas n. 211


Fernando Sabino (A Mulher do Vizinho)


Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático General do nosso Exército, morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia.

Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho.

O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele o era. Obedecendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte:

- O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país  pode logo ir fazendo o  que quer? Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada Exército Brasileiro, que o senhor tem de respeitar? Que negócio é esse? Então é ir chegando assim  sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse a casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: "dura lex"! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o General, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar  gringos feito o senhor.

Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O vizinho do General pediu, com delicadeza, licença para se retirar. Foi então que a mulher do vizinho do General interveio:

- Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?

O delegado apenas olhou-a, espantado com o atrevimento.

- Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não é gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso importunaram o General, ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos importunando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um Major do Exército, sobrinha de um Coronel e filha  de um General! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve força para  engolir em seco e balbuciar humildemente:

- Da ativa, minha senhora?

E, ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços, desalentado:

- Da ativa, Motinha. Sai dessa.

Fonte:
Fernando Sabino. A Mulher do Vizinho. RJ: Record, 1976.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 3


CAMINHOS
( A Alberto Hecksher)

Lá vai o caminho à procura do horizonte
ouviu dizer
que ali naquele ponto a terra encontra o céu...

Se os caminhos pudessem compreender
a linguagem dos homens,
gritaria ao caminho para que ele ouvisse:
- para, meu irmão!
- - - - - –

CANÇÃO DO DESALENTO
( A Osório Dutra)

Já não sei se encontraremos um lugar sossegado
onde erguer nossa casa!
Um campo onde lançar as sementes que serão árvores
e serão frutos!

Já não sei se encontraremos a paz das paisagens bucólicas
onde completamos a Terra!
Já não sei se os nossos filhos poderão correr livremente
pelos caminhos.
- e não sei se vale a pena explicar aos nossos filhos  
que a terra é boa,
que o sol fecunda,
que o ar é a vida,
que as flores amam, os pássaros sonham, os homens trabalham!

Já não sei se poderemos encontrar esse recanto sossegado
para a nossa Vida,
porque a fumaça que veste de luto os horizontes não sai das chaminés
das casas felizes!

E esse ruído que ouves no solo - não é o ruído das enxadas
e dos arados
na terra dura,  
e esse canto que escutas não é canção da alegria
e da fartura!

E esses passos que pisam ritmicamente o mundo na distância
e que chegam aos teus ouvidos
como uma assombração,
tu não sabes de onde eles vêm
nem eles sabem para onde vão!
Roubam-te as enxadas, arrancam-se os sinos, levam-te os arados,
destroem-te a casa,
interrompem as pontes,
violentam os trilhos ...

Em verdade, meu irmão,
estão tintos de sangue os horizontes,
já não sei se encontraremos um lugar sossegado para a nossa  casa
e para os nossos filhos!
- - - - - –

 CANÇÃO PARA MEU FILHO

Meu filho há de ter forças para não precisar seguir
nos grandes rebanhos...

Meu filho há de amar acima de tudo a terra, a terra que lhe
          [dará o pão
a terra onde erguerá sua casa,
a terra onde seus filhos correrão,
a terra que seu pai sempre exaltou e onde repousará feliz...

Meu filho há de chamar de irmão ao seu vizinho e aos homens
         [que moram
nas terras mais distantes,
e há de ensinar aos outros homens o amor da terra,
fazendo-os ouvir a música recôndita e inorquestrável
levando-os até a beleza ignorada e intraduzível,
repartindo com eles o pão, o pão branco e macio,
brindando com a água pura a suprema paz imperturbável..

Meu filho, há de odiar por isso, todos os que destroem a terra
amaldiçoam seus frutos
e ignoram seus filhos,
e os que nunca chegarão ao céu porque nunca pisaram
na terra...

Por isso, meu filho não adorará deuses nem homens, mas a
    [água que corre da terra
e a vida que nasce da terra: o pão!

Por isso, serão seus irmãos os homens todos que trabalhem,
        [que ergam casas
que façam filhos,
e bendigam a alegria da paz no templo imensurável...

Porque eu hei de acreditar na humanidade, pela voz do meu
        [sangue redimido
em meu filho!
- - - - - –

CANTO DO TEMPO
  
A tua voz também estará no apito dos navios que vão e vêm
por todos os portos,
trocando paisagem na retina dos viajantes
e misturando destinos, raças e bandeiras!

E estará no guincho das ferragens  dos guindastes curvados
em filas, pelos cais,
como os vultos dos trapicheiros com os fardos pesados
às costas;
e estará em todas as engrenagens, em todas as máquinas,
e na protofônica orquestração metálica
dos seus êmbolos, dínamos e alavancas!

E estará no apito do trem resfolegante
varando a noite com seu vulto sinuoso
e expresso,
a cantar pelos trilhos a ária estridente
do progresso!

E no ruído fantástico de besouro irreal
que é a alma da cidade,
e na zoeira infernal, e no sonoro escarcéu,
dos motores dos aviões entoando pelo céu
o hino da velocidade

E no buzinar dos automóveis, e no apito de todos os
veículos
com as suas ferragens
nas derrapagens;
e na algazarra da cidade - que é onde o rio da vida
tem a sua foz,-
e nos gritos dos homens, dos vendeiros, dos jornaleiros
estará a tua voz!

Em meio à coral inorquestrável, beethovênica
e wagnérica,
da sinfonia da cidade dinâmica e feérica,
meio tonto, meio divino, meio atordoado,
- farás o solo inconfundível
e destacado!

Porque então tua voz será o canto do século,
tua poesia a vida do teu tempo,
e teu destino
a letra universal de um imponente hino!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXV


Irmãos Grimm (O Doutor Sabetudo)


Houve, uma vez, um camponês chamado Camarão. Certo dia. Camarão levou um carro puxado por uma junta de bois, cheio de lenha, à cidade, e vendeu a um doutor. Enquanto recebia o dinheiro, Camarão viu que o doutor estava sentado à mesa comendo e bebendo tão bem que, de todo o coração, desejou ser doutor também. Ficou uns instantes a olhar e, depois, perguntou se não lhe seria possível tornar-se doutor.

- Oh, é muito fácil! - disse o doutor.

- Que devo fazer? - perguntou o camponês.

- Em primeiro lugar, compra um abecedário, isto é, um livro que tem um galo na capa; em segundo lugar, vende o carro e bois convertendo tudo em dinheiro; em terceiro lugar, manda pintar uma tabuleta com os seguintes dizeres: "Eu sou o doutor Sabetudo," e manda pregá-la no alto da tua porta.

O camponês executou tudo direitinho. Após ter "doutorado" um pouco, mas não muito, deu-se um furto de dinheiro na casa de um ricaço. Este ouviu falar no doutor Sabetudo, que morava em certa aldeia e que, de acordo com o próprio nome, deveria saber também que fim levara o dinheiro. Sem mais demora, o ricaço mandou atrelar o carro, seguiu para a tal aldeia, informando-se se era ele o doutor Sabetudo.

- Sim, sou eu.

Nesse caso, tinha de acompanhá-lo a fim de encontrar o dinheiro roubado.

Sim, mas a Guida, sua mulher, também tinha que ir junto. O ricaço consentiu, fez-os subir no carro e partiram todos juntos. Quando chegaram ao solar, a mesa estava posta; então o ricaço convidou o doutor Sabetudo para jantar com ele.

– Sim, disse ele, mas também a Guida, sua mulher; e com ela foi sentar-se à mesa.

Ao aparecer o primeiro criado, trazendo uma linda bandeja cheia de quitutes, o camponês deu uma cotovelada na mulher dizendo:

- Guida, esse é o primeiro; - referia-se ao primeiro prato.

Mas o criado julgou que ele dizia: este é o primeiro ladrão e, como de fato o era, assustou-se muito e lá fora disse aos seus colegas:

- O doutor sabe tudo, vamos acabar mal; ele disse que eu era o primeiro.

O companheiro não queria entrar na sala, mas não lhe foi possível eximir-se; ao apresentar-se com o prato nas mãos, o camponês deu outra cotovelada na mulher dizendo:

- Guida, esse é o segundo.

O criado começou a tremer de medo e tratou de sair logo. O mesmo aconteceu com o terceiro criado. O quarto criado teve de trazer uma terrina coberta; nisso o ricaço disse ao doutor que desse uma prova de sua arte adivinhando o que ela continha; eram camarões. O camponês olhou para a terrina muito atrapalhado, e não sabendo como sair daquela entalada, exclamou:

- Ah, pobre Camarão!

Ouvindo isso, o ricaço disse:

- Veja só, ele acertou. Então deve saber também onde está o dinheiro.

O criado, que se estava pelando de medo, fez sinal imperceptível ao camponês para que fosse lá fora um instante. Uma vez lá fora, os criados confessaram que os quatro juntos haviam roubado o dinheiro. Estavam dispostos a restituí-lo e dar-lhe uma grande quantia se ele os não denunciasse; caso contrário, lhe cortariam o pescoço.

Levaram-no até onde estava escondido o dinheiro; depois de concordar com tudo, o doutor voltou para a mesa, dizendo:

- Senhor, quero agora ver no meu livro onde está o dinheiro.

Mas o quinto criado acocorou-se num canto da lareira a fim de ouvir se o doutor sabia mais alguma coisa. O doutor abriu o abecedário, folheou-o um pouco, procurando o galo. E não o encontrando logo, disse:

- Sei que estás aqui dentro, tens de sair para fora! O criado escondido na lareira julgou que se referisse a ele; cheio de susto pulou para fora dizendo:

- Ah, esse homem sabe tudo.

O doutor Sabetudo indicou ao ricaço o lugar onde se achava o dinheiro, sem dizer, porém, quem o havia roubado; então recebeu de ambas as partes uma grande recompensa e desse dia em diante, tornou-se famoso.

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Varal de Trovas n. 210


Carlos Estevão de Oliveira (Baú de Trovas)


Ai, andorinhas serenas,
vindes, bem sei, donde venho,
pois se tendes negras penas,
penas bem negras eu tenho.
- - - - - –

As provas chovem aos molhos,
a crer ninguém me conduz...
Se tens a noite nos olhos,
de onde é que sai tanta luz?...
- - - - - –

Dizem que o amor é eterno,
e é ave de arribação:
Chega com o frio do inverno,
foge com o sol de verão...
- - - - - –

Eu amo os meus dissabores,
idolatro o meu tormento,
pois quem causa minhas dores
vale bem meu sofrimento...
- - - - - –

"Nem toda flor tem perfume",
diz o povo e diz-o bem.
Mas ter amor sem ciúme
é coisa que ninguém tem...
- - - - - –

Pobre de quem diz: “Eu tive
um sonho ardente e murchou!"
Mas ai daquele que vive
de um tempo que já passou!..,
- - - - - –

Querem que eu viva sorrindo,
desejo igual tenho eu;
mas não pode viver rindo
quem de rir já se esqueceu...
- - - - - –

Teu rosto, lírio moreno,
por teus cabelos cercado,
semelha um astro pequeno
num céu de inverno engastado.
- - - - - –

Teus olhos, meigos e lhanos,
por quem suspiros arranco,
são dois negros africanos,
escravos de um rosto branco.
- - - - - -

Um problema me consome,
mas não lhe dou solução:
como escreveste teu nome
dentro do meu coração?

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Carlos Estevão de Oliveira (1880 – 1946)


Carlos Estevão de Oliveira, poeta pernambucano, nasceu em Recife, no dia 30 de abril de 1880 e faleceu em junho de 1946. Foi Diretor do Museu Goeldi, em Belém do Pará. Formado em Direito pela Faculdade do Recife. Carlos Estêvão foi, no início do século, um dos pioneiros do movimento trovadoresco no Brasil, iniciado em Recife com a publicação de uma coletânea de trovas intitulada "Descantes" em 1907. Nesse livrinho estavam reunidas trovas de Adelmar Tavares, que então tinha 19 anos,  amigo pessoal de Carlos Estevão e dos que promoveram tal coletânea como Carlos Estêvão, Manoel Monteiro, Moreira Cardoso e Silveira de Carvalho. Além da publicação mencionada, existe outra pequena publicação denominada "Cantigas", contendo novas trovas do Estevão. Esta obra está registrada no "Dicionário Literário Brasileiro Ilustrado" de Raimundo Menezes.

Depois de formado em Direito em 1907, Carlos Estêvão transferiu-se para Belém em princípios de 1908. O pai, que havia morrido em 1905, era  político militante e fora muito perseguido pelo Governador de Pernambuco. Esta situação de atrito e insegurança obrigou os dois irmãos, Luis e Carlos Estêvão, a abandonarem a terra natal. Parece que Carlos Estêvão ao fixar-se no Pará já estava com um emprego público garantido pelo Governador do Pará, foi nomeado Promotor de Justiça em Alenquer.

Em 1913, Carlos foi para Belém exercer a função de segundo prefeito de Segurança Pública do Estado, equivalente a Delegado de Polícia dos dias de hoje. Em 1914 foi nomeado Consultor Jurídico da Diretoria de Obras Públicas Terras e Viação, permanecendo nessa função até ser nomeado Diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, em 1930.

Além dessas funções de caráter oficial, Carlos Estêvão exerceu outras atividades ligadas à advocacia e ao comércio, bem como a de Fiscal de Bancos. Foi, também, um dos Diretores da Confederação das Colônias de Pescadores do Pará, entre os anos de 1930 e 1932.

Apesar disso, foi sempre um homem modesto, simples. Não tinha riqueza em moeda sonante; era honesto acima de tudo.

Carlos Estêvão morreu pobre, somente com a assistência da família, no Ceará. As suas preciosas coleções ele as doou ainda em vida para o governo de Pernambuco, que hoje as têm em exposição no Museu Estadual de Recife.

Nos últimos anos de sua vida em Belém, Carlos Estêvão morava com a esposa e a filha Lygia. Carlos Estêvão era casado com Maria Izabel Estêvão de Oliveira com quem teve três filhos

Além da cultura literária e científica de que era dotado, Carlos Estêvão possuía fina sensibilidade para a música. Conhecia bem os grandes compositores clássicos e tocava regularmente piano, tanto que, para usufruir desse deleite, havia em sua casa um desses instrumentos. Compunha também música sobre o folclore do Nordeste, das quais se destaca "Aquela canoa".
Não possuía predileção alguma pela política, tanto na Primeira República como após a Revolução de 30.

Dentre as grandes amizades de Carlos Estêvão sobressaíam os nomes do Presidente Getúlio Vargas, Magalhães Barata, D. Augusto Álvaro da Silva, na época Arcebispo Primaz da Bahia, D. Pedro de Orleans e Bragança, herdeiro do trono do Brasil, e inúmeras outras pessoas importantes como magistrados federais, ministros, militares, escritores, cientistas nacionais e estrangeiros.

Naturalista, deixou valiosos estudos inéditos sobre a fauna amazônica e a etnologia brasileira.

Desde 1930 foi um lutador ardente e realizador dos princípios na manutenção da flora e fauna em seus ambientes.

Desde muito novo, Carlos Estêvão foi um estudioso apaixonado dos índios brasileiros, Foi sempre um intransigente defensor desses povos , conheceu a fundo suas misérias e sofrimentos e em vão apelou para o bom senso dos compatriotas, em particular dos governantes da nação para que os socorressem com o mínimo necessário para evitar o    desaparecimento     irreversível    e brutal desses antigos donos da terra nativa. Quarenta anos de dedicados estudos ao problema indigenista brasileiro, notadamente sobre os índios antigos e em fase de quase desaparecimento de algumas áreas do Nordeste.

Carlos Estêvão de Oliveira viveu 37 anos no Pará. Irradiou sua simpatia por todos os cantos de Belém, transmitindo uma lição de esperança, de força de vontade, de trabalho e de confiança no futuro. Ninguém mais que Carlos Estêvão sabia impregnar-se e impregnar os circunstantes de otimismo com sua habilidade, espontaneidade e entusiasmo. Por isso deixou profundamente assinalada a sua trajetória na vida do Museu Goeldi.

Em fins de 1944 já se encontrava adoentado, e, sem mais energia. Algum tempo depois, sentindo-se mais abatido, viajou com a esposa para Fortaleza em busca de novos ares e melhoras.

Faleceu naquela cidade, a 5 de junho de 1946, tristemente esquecido e longe do calor do Pará, do Museu e dos amigos.

O jornal “Folha do Norte", de 6 de junho daquele ano, registrou: "Com o desaparecimento de Carlos Estêvão, o meio cultural e a sociedade sofrem imensa perda e o país um excelente cidadão. Seu maior desejo era morrer no Pará. Viveu pela Amazônia, mas o destino não lhe permitiu essa vontade de apaixonado pelos seus segredos".

Alguns dias depois, a Academia Brasileira de Letras prestou justa homenagem, com o elogio feito pelo seu velho amigo de faculdade, Dr. Adelmar Tavares.

Carlos Estevão faleceu como Diretor do Museu Paraense, pois o cargo era efetivo e não em comissão.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,
– Osvaldo Rodrigues da Cunha. Talento e atitude: Estudos Biográficos do Museu Emílio Goeldi. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1989.