quinta-feira, 19 de março de 2020

Irmãos Grimm (João, o Felizardo)


João servira ao seu amo durante sete anos e, um dia, disse-lhe:

- Meu amo, meu tempo de contrato esgotou-se; agora quero voltar para a casa de minha mãe; dai-me o meu ordenado.

O amo respondeu:

- Serviste-me fiel e honestamente; tal serviço pede igual remuneração.

E deu-lhe uma barra de ouro grossa, quase como a sua cabeça. João pegou o lenço do bolso, embrulhou o pedaço de ouro, o pôs às costas e meteu-se a caminho, rumo à casa da mãe.

Ia andando, sossegadamente, pela estrada afora, quando viu um cavaleiro alegre e pimpão, que vinha trotando sobre um brioso cavalo.

- Oh, - disse João em voz alta - como há de ser bom andar montado num cavalo! Fica-se comodamente sentado como numa cadeira, não se tropeça nas pedras, não se gasta o calçado e se avança sem mesmo dar por isso.

O cavaleiro, que ouvira o que ele dizia, parou e gritou-lhe:

- Mas, João, por que andas a pé?

- Que remédio! - respondeu João - Tenho este fardo pesado que devo levar para casa; é ouro, bem sei, mas pesa tanto que me esmaga o ombro e nem sequer posso levantar a cabeça.

- Queres saber uma coisa? - disse o cavaleiro - façamos uma troca! Eu te dou o cavalo e tu me dás o teu pedaço de ouro.

- Oh! de muito boa vontade, - disse João - mas vos previno que deveis fazer força.

O cavaleiro apeou-se bem depressa, pegou na barra de ouro e ajudou João a montar a cavalo. Meteu-lhe as rédeas na mão, recomendando-lhe:

- Se quiseres que corra como o vento, basta fazer um estalinho com a língua e gritar: hop, hop!

João estava felicíssimo em cima do cavalo e partiu a trote largo. Ao cabo de algum tempo teve a ideia de ir mais depressa. Deu um estalinho com a língua e gritou: hop, hop!

O cavalo, obediente, partiu a galope desenfreado e, num bater de olhos, João foi pelos ares, caindo dentro de um fosso à beira da estrada. O cavalo teria continuado no galope se um camponês, que vinha em sentido contrário, conduzindo uma vaca, não o agarrasse pelas rédeas.

João apalpou os membros doloridos e pôs-se de pé. Mas ficara aborrecido e disse ao camponês:

- Que belo gosto montar a cavalo, sobretudo quando se topa com um animal como este, que tropeça e atira a gente pelos ares, fazendo quase quebrar o pescoço! Nunca mais tornarei a montar a cavalo. Por falar nisso; a tua vaquinha, sim, me agrada. Pode-se ir atrás dela muito sossegado e além disso, tem-se leite, manteiga e queijo garantidos. Quanto não daria para ter uma vaca como essa!

- Ora, - disse o camponês - se te agrada tanto, poderemos trocar a minha vaca pelo teu cavalo.

João concordou todo feliz; o camponês saltou para cima do cavalo e partiu a galope. Tocando, calmamente, a vaca diante de si, João ia refletindo nas vantagens do negócio que acabava de realizar.

"Contanto que eu tenha um pedaço de pão, e decerto não me há de faltar posso, quando tiver fome, comer também um pouco de manteiga e queijo; quando tiver sede, tiro leite da minha vaca e bebo-o. Meu coraçãozinho, que podes desejar mais?"

Ao chegar a uma estalagem, parou, e julgando ter agora provisões para toda a vida, liquidou tranquilamente todo o farnel que levava para a viagem e, com os últimos vinténs que possuía, deliciou-se com um bom copo de cerveja. Em seguida, encaminhou-se rumo à aldeia de sua mãe, tocando a vaca diante de si.

Ao meio-dia, o calor tornou-se sufocante e João encontrava-se em plena charneca, onde se demoraria ainda uma hora. Sentia tanto calor e sede que até a língua se lhe pegava ao céu da boca. "Mas tenho um remédio, - pensou - vou ordenhar a minha vaca e refrescar a garganta com o bom leite."

Amarrou a vaca a um pau, e por falta de coisa melhor, quis aparar o leite com seu boné de couro; mas, por mais que puxasse e espremesse, das tetas não saiu uma só gota de leite. Como não tinha jeito para lidar com a vaca, ela zangou-se e atirou-lhe tal coice na cabeça que o fez rebolar a dez passos de distância, onde ficou estendido sem sentidos. Aí ficou um bom pedaço de tempo; felizmente, porém, chegou um carniceiro empurrando um carrinho com um leitãozinho dentro.

- Que brincadeira sem graça! - disse ele, e ajudou João a levantar-se.

João contou-lhe tudo o que havia acontecido; o carniceiro ofereceu-lhe o seu frasquinho dizendo:

- Bebe um trago, que logo te reanimarás. Aquela vaca nunca mais dará leite, já está velha e seca, boa, quando muito, para ser atrelada a uma carroça ou então para ser levada ao matadouro.

- Oh diabo, - disse João puxando os cabelos desgrenhados; - quem diria uma coisa destas! Naturalmente, seria uma grande vantagem matar o animal em casa! Quanta carne teríamos! Mas não gosto de carne de vaca, não a acho saborosa. Ah! se fosse um leitãozinho igual a esse; então, sim, seria delicioso! Sem falar nas salsichas que daria!

- Escuta, João, - disse o carniceiro; - por seres quem és e porque desejo ser-te agradável, estou disposto a trocar o meu leitão pela tua vaca.

- Que Deus te recompense tanta bondade! - disse João.

Entregou-lhe a vaca e levou o leitão, segurando-o pela corda com que estava amarrado no carrinho.

João continuou o caminho pensando em como tudo lhe ia às mil maravilhas; apenas tinha uma contrariedade e logo se remediava. Nisso, aproximou-se um rapazinho, que levava debaixo do braço um belo pato branco, muito gordo. Cumprimentaram-se desejando um bom dia e, conversa vai conversa vem, João contou-lhe as suas aventuras, gabando-se da boa sorte, e das trocas sempre tão vantajosas. O rapazinho, então, contou que levava o pato à aldeia vizinha e que estava destinado a um banquete de batizado.

- Experimente o seu peso, - disse, levantando-o pelas asas - é pesado, não acha? Também, já faz dois meses que o venho engordando com o que há de melhor! Quem tiver a sorte de meter os dentes em semelhante assado, verá a banha escorrer-lhe pelos cantos da boca.

- E' verdade, - disse João levantando o pato com uma das mãos - é um bonito animal. Mas, também, o meu leitão não é mau e tem o seu valor!

Entretanto, o rapaz olhava para todos os lados com certa precaução; depois, abanando a cabeça, disse:

- Olha, a história do teu leitão não me parece muito limpa: acabam, justamente, de roubar um ao prefeito da aldeia onde passei agora. Tenho palpite que deve ser esse que levas aí. Mandaram gente a procurá-lo por toda parte e seria uma coisa terrível se te apanhassem com ele; o menos que te aconteceria era ser metido numa prisão escura.

O pobre João ficou assustadíssimo e exclamou:

- Ah, Deus meu! Livrai-me desta desgraça! Tu que conheces a região melhor do que eu e sabes, portanto, onde esconder-te, leva o meu leitão e dá-me o teu pato.

- Arrisco-me muito com isso, - disse o rapazinho, - mas, só para te livrar de apuros, vou fazer o que me pedes.

Pegou, então, na corda e bem depressa levou o leitãozinho, desaparecendo por um atalho. O honrado João, livre dessa preocupação, continuou a caminhar rumo a casa, levando o pato debaixo do braço e ia pensando:

- Calculando bem, saí ganhando na troca. Primeiro, a carne de pato é mais fina para assado e mais saborosa que a de leitão; e com toda esta banha terei gordura por uns bons três meses e, finalmente, com as belas penas brancas farei uma boa almofada, na qual dormirei sem que seja preciso embalar-me. Santo Deus, como minha mãe vai ficar contente com tão lindo animal!

Após ter atravessado a última aldeia, antes de chegar à sua, viu um amolador parado com a sua caranguejola; a roda girava, girava e ele acompanhava-a cantando:

- Afio tesouras e rodo ligeiro;
e penduro a manta como sopra o vento...

João parou e ficou olhando o que ele estava fazendo, depois disse:

- Parece que tudo vai à medida dos teus desejos, visto que trabalhas tão alegremente!

- Oh, se vai! - respondeu o outro. - Qualquer ofício manual é ouro em barra. Um bom amolador é um homem que, quando mete a mão no bolso, sempre encontra dinheiro. Mas, onde compraste esse belo pato? Nunca vi tão bonito por aqui!

- Não o comprei, ganhei-o em troca de um leitãozinho.

- E o leitão?

- Ganhei-o em troca de uma vaca.

- E a vaca?

- Tive-a em troca de um cavalo.

- E o cavalo?

- Por aquele dei um pedaço de ouro do tamanho da minha cabeça.

- E o ouro?

- Era o pagamento que me deu meu amo por sete anos de serviço.

- Vejo que sabes te defender muito bem neste mundo; se agora chegares a ouvir todas as manhãs tinir dinheiro no bolso quando enfiares as calças, tua fortuna está feita.

- Sim, mas que devo fazer para isso? - perguntou João.

- Deves tornar-te amolador como eu; para isso é preciso, primeiro, ter a pedra de amolar; o resto vem depois. Tenho aqui uma, na verdade está um pouco gasta, mas em troca desejo apenas que me dês o teu pato; aceitas?

- Ainda me perguntas? - respondeu João. - Se, como dizes, terei sempre dinheiro no bolso, serei o homem mais feliz do mundo; que mais posso desejar?

Entregou ao amolador o pato e recebeu em troca a pedra de amolar e mais uma outra qualquer que apanhou no chão.

- Eis-te aqui mais esta bela pedra, - disse o amolador - é excelente para fazer uma bigorna e para endireitar pregos ou arranjar as ferramentas. Fica com ela e guarda-a com cuidado.

João pegou nas duas pedras e partiu muito alegre, os olhos brilhando de felicidade.

- Devo ter nascido com a camisa da felicidade, - pensava ele - pois tudo o que desejo se realiza!

No entanto, como estava caminhando desde manhã bem cedo, sentiu-se cansado; além disso a fome começava a atormentá-lo, pois já não tinha nada que comer, tendo devorado o farnel de uma só vez a fim de festejar a troca da vaca. Por fim, andava a custo e a cada instante era obrigado a descansar; as pedras pesavam tremendamente e lá consigo pensava quanto seria agradável não ter de as carregar, agora que estava tão cansado. Arrastando-se como uma lesma, conseguiu chegar até uma fonte, contente de poder refrescar a goela e descansar um pouco estendido na erva.

Não querendo estragar as pedras, colocou-as cuidadosamente à beira da fonte, bem perto dele. Depois sentou e foi abaixar-se para encher o boné de água, mas, sem querer, empurrou um pouquinho as pedras, que rolaram para dentro da água.

João, quando as viu desaparecer dentro da água, deu um pulo de alegria, depois ajoelhou-se e agradeceu a Deus, com lágrimas nos olhos, por tê-lo atendido mais essa vez, desembaraçando-o do pesado fardo sem que ele tivesse de se censurar.

- Não há ninguém neste mundo mais feliz do que eu! - exclamou.

De coração aliviado, livre de qualquer peso, saiu a correr e só parou quando chegou à choupana de sua mãe.

Fonte:
Contos de Grimm

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