terça-feira, 10 de março de 2020

Manuel Antonio de Almeida (As Flores e os Perfumes)


Lenda Oriental

Numa hora de ciúme o sultão Abdul foi encontrar-se no quiosque do lago com a sultana Djali, causa de seus tormentos.

Achou-a brincando tristemente com um pendão de flores. Sentou-se junto dela, tomou a guzla que ela há pouco tinha deixado, e ao som de sua toada melancólica cantou-lhe o seguinte:

“A princípio as flores eram todas brancas e não tinham perfume.

“O sol enamorou-se delas, e, nos raios com que as beijava, mandou-lhes as cores de que cada uma se vestiu.

 “As que se abriam ao amanhecer para receber do horizonte seu primeiro olhar ficaram com as cores da aurora;

 “As que lhe mostravam os seios quando ele estava no ponto mais elevado do céu ficaram rubras pelo fogo de seus beijos nesses momentos de triunfo;

“As que lhe esperavam na hora do ocaso para sorrir-lhe um adeus de saudade ficaram com as cores desmaiadas e melancólicas do crepúsculo.

 “Os perfumes eram silfos que vagavam no espaço, transparentes e invisíveis; brincavam com as brisas, adormeciam no seio das nuvens brancas, corriam pela superfície dos lagos, dos mares e dos rios.

 “Ora, os perfumes, depois que viram as flores tão garridas com as novas cores, enamoraram-se também delas, e, ocultos nas gotas do orvalho da noite, vinham beijá-las ao desdobrar dos botões, antes que o sol aparecesse no horizonte, e apenas ele se escondia no ocaso.

 “As flores não desprezaram a luz pelos perfumes, nem também os perfumes pela luz; aceitaram tudo, as cores e o aroma.

 “Eram flores! Daí veio que as mulheres gostam tanto delas, e que todas as chamam irmãs.

 “Os últimos amantes são sempre os mais felizes, porque para eles se guarda o requinte das carícias.

“Assim sucedeu com os silfos.

“O sol nunca passara de beijos na corola; os perfumes penetraram o seio de suas amadas, encarnaram-se nelas, nenhum mistério lhes foi vedado.

“Mas Deus permitiu que a luz castigasse as flores, e é por isso que, dardejando os raios sobre elas, o sol faz acordar no seu seio os rivais felizes que as abandonam medrosos: ao seu calor evapora-se o perfume.

“É por isso que algumas flores, bem raras, que se conservaram fiéis a seus primeiros amores, que não receberam perfumes em seu seio, têm mais longa vida: as flores sem perfume são de ordinário as que mais duram.

“Ao contrário, quanto mais perfumada é a flor, mais é tênue e menos vive.

“É por isso que as flores ficaram sendo o símbolo das glórias neste mundo, que são vãs, das esperanças que são fugazes, dos sonhos que se não realizam.

“É por isso que, como emblema da duplicidade, elas servem para coroar a fronte dos heróis e enfeitam as vítimas do sacrifício, adornam os altares e as sepulturas, o tálamo e o ataúde.

“Deus podia castigá-las ainda mais, tirando-lhes as cores que lhes dera o sol. Mas, como o seu crime era um crime de amor, quis que elas ficassem sempre belas, e que fosse mais uma prova de que a beleza é vária e ingrata”.

Quando ele acabou de cantar, a sultana passou-lhe os braços em roda do pescoço, e entreabriu nos lábios um sorriso de amorosa censura.

O amante olhou-a um instante, e disse:

— Sabes o que me lembra esse teu sorriso? Lembra-me as flores da cantiga que acabaste de ouvir...

A sultana aproximou mais seu rosto do dele, e entreabrindo novo sorriso, deixou ao mesmo tempo escapar um vagaroso suspiro.

O amante, vencido, foi colhê-lo com um beijo na passagem, dizendo, à meia voz:

—... Mas ah! o perfume de algumas flores dá a felicidade na embriaguez que produz…

Fonte:
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 27.08.1854.

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