Um dia, defronte do espelho de fazer a barba, não viu o rosto. Primeiro verificou se não se tratava de uma peça — pregada além da sua estatura. Depois, procurando manter a cabeça fria dentro do súbito afogueamento, apalpou-a concentradamente à altura das suíças, que voltaram ao latejar normal: não, não tinha cortado a cabeça num gesto mais distraído da navalha (por via das dúvidas seria aconselhável comprar um barbeador elétrico). A cabeça lá estava com toda segurança sobre o pescoço — à distância de um milímetro já sentia o roçado da barba nas impressões digitais —, simplesmente suas feições amarelaram como uma foto de carteira de identidade e sequer a lembrança da mais recente distinguia agora no espelho.
Sentou-se no bidê que usava amiúde seco, para pensar e ficou de mão no queixo como uma estátua de mão no queixo.
Simples de explicar: nascera, crescera, estudara: noções de: moral, civismo e tiro ao alvo, línguas vivas e tumulares, ciências exatas e hipotéticas, desenho artístico, canto orfeônico e trabalhos manuais, quando recebeu o diploma estava preparado para ingressar no Parnaso. Nas páginas classificadas dos jornais do Brasil, que pediam "contact men", public relations", "executive secretaries", encontrou facilmente o que procurava:
"Precisa-se de um pensador, com prática."
Entre dezenas de candidatos, centenas dos quais prensadores com esperança de um erro de imprensa, foi o único aprovado: durante todo o teste não fez mais que pensar. Passou o primeiro mês inteiro pensando e no dia 30 recebeu o ordenado integral. Estimulado, na segunda quinzena do segundo mês transformou em palavras o seu pensamento:
"As mães estão cada vez mais cedo."
Foi chamado à direção:
— A Agência Pensiero é uma organização que fornece máximas, verbetes, pensamentos para folhinhas, almanaques de pensamentos, noites de autógrafos, colunas sociais e de amenidades, house organs; home organs, garden organs. Já vê que pensamentos revolucionários, só de revolucionários já justiçados e consagrados. Você volte para o seu bidê e procure assimilar a técnica do Marquês de Maricá.
Nesse primeiro estágio ele produziu maricacas, com admirável fluência:
"Antes ser rabo de leão do que cabeça de formiga" e "Antes ser cabeça de formiga do que rabo de leão."
Depois passou por outros pensadores anti-sociais da maior aceitação. Foi quando lhe aconteceu aquilo com o rosto.
— Agora — pensava pela primeira vez para si mesmo — o jeito é usar o espelho no lugar do rosto.
Levantou-se e prendeu ali o espelho. assim as pessoas que o mirassem não o veriam sem rosto: julgá-lo-iam mesmo uma delas. Tanto que o diretor, ao dar consigo nele, abriu um sorriso:
— Agora sim, refletes.
Logo, melhorou seu existir.
Fonte:
10 em Humor. RJ: Expressão e Cultura, 1968.
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