sábado, 14 de março de 2020

J.G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 1


A CARTA QUE NÃO CHEGOU
                               ( A Ladislau Stowinsky - 1944 )

Eu também queria viver para a alegria pura de criar
para o convívio das obras que nos contam da vida e da beleza;

para beijar as mulheres que me oferecesse as suas carícias
e aceitasse uma parcela de minhas preocupações;

para regar as plantas de manhã cedo, quando o sol
ainda não desceu das montanhas,
e dizer para as crianças não pisarem nos canteiros;

para podar o jardim e encher o jarro de flores
de flores macias e frescas como as faces das crianças;
para sentir no corpo sadio a ducha fria do chuveiro
e a alma cantar feliz numa canção qualquer.

eu também queria viver para levar orgulhoso pela mão, o meu filho,
para a escola que canta ao longe como um viveiro de pássaros;
e tomar posse, com ele, pelo caminho, das belezas insuspeitáveis,
e ensiná-lo a ser puro como a manhã, e a ser bom como a terra
e ensiná-lo a deslumbrar-se diante das coisas simples:

- uma gota que ficou brilhando imóvel, trespassada num espinho...
- um pássaro que apanhou, ligeiro, um pedaço de grama...
- um botão que se entreabre ainda molhado da noite
puro como um sonho de criança que não adivinha a vida...
- um menino passa de bicicleta, assoviando...
- o jornaleiro que não sabe que leva a História na mão...
- uma semente que alteia o chão e vence a terra
no supremo milagre da beleza: - à procura do sol!

Eu também queria viver, para voltar e encontrar a mesa posta,
a toalha limpa, o prato branco, o pão cortado,
os talheres brilhando, os guardanapos dobrados;

para deitar-me cansado e adormecer depressa, conversando,
sem perceber que estou dividindo as coisas mínimas  
e que há alguém que dá valor às minhas mínimas coisas;

eu também queria viver para as horas leves que passam
sem que cheguemos a perceber que são as horas de prazer,
para um dia então nos lembrarmos, de que elas foram, em verdade,
as horas boas e inesquecíveis de felicidade...

Eu também queria viver, sem esperar e temer a morte todos os segundos,
sem pensar que ela é o fim necessário, a grande paz inviolável;
sem esse medo da chuva, da noite, do inimigo,
sem ter que me alimentar de pensamentos dolorosos e vãos
e me contentar com a esperança vaga de um tempo perdido...

Eu também queria viver, - nessa grande felicidade intraduzível
de quem vive feliz sem saber mesmo que está vivendo;
sem essa presença angustiosa de todas as coisas e de todos os seres
que amamos e que desejamos como à terra e como à vida,
e que só a dor e a ausência tornam poderosamente presentes...
- - - - - –

A ETERNA LUTA
                       ( A Modesto de Abreu - 1940 )
   
Não te irrites, amigo - a verdade é uma lança
que a mentira, aos pedaços, lentamente faz!
E o tempo - o tempo é a esponja que apaga... é a bonança
que vem, quando a tormenta fica para trás!

Não duvides de ti, se és forte e se és capaz!
E tem fé que esta fé deve ser a esperança
de que apesar de tudo é a verdade que avança
e a ignorância que foge, e aos poucos se desfaz!

Tu que és a mocidade e o pensamento novo,
luta por tua terra e defende teu povo,
que é preciso afinal lutar pelo que é teu!

Tem sido eterna a luta entre as sombras e a luz!
Foi por pregar o bem que mataram Jesus!
E por crer na verdade: - Sócrates morreu!
- - - - - –

A LIBERDADE E A LARANJA
                (A Guilherme Figueiredo)

Um dia a liberdade será como a laranja
que tens na mão...

Já não será o sangue que espirrará em teu rosto
prova, e sentirás o gosto,
- será apenas o suco doce da laranja irmão...

Um dia, sentirás o gosto da liberdade,
apalparás a liberdade entre os dedos,
e ela escorrerá pelos teus lábios
e molhará a tua garganta...

Um dia, essa liberdade de que tanto te falam
e que tanto te prometem
deixará de ser palavra, e terá forma e cor...
E hás de apertá-la então, nas mãos ansiosas,
e hás de sentir na boca e na alma o seu sabor!
- - - - - –

A TORRE DE BABEL

Eu creio que os homens seriam bons
se a torre de Babel
não se tivesse feito em pedaços no chão...

(As línguas são os estilhaços sonoros
de um só coração...)

Não importa que eu seja ainda uma vez profano,
mas se hoje, uma outra torre se erigisse
no centro do Vaticano,

- eu sei de homens que derrubariam essa nova Babel
com receio talvez que ela chegasse ao céu!...
- - - - - –

A VOLTA DO CAMPONÊS
              ( A José Queirós Júnior-1940 )
   
Outrora, por estas terras, uma estrada desenrolava
pacificamente  
o seu novelo de paisagens bucólicas,  
e havia cantos, e havia vozes,
e automóveis velozes,  
e carros pachorrentos
indo e vindo, pelas tardes quietas e melancólicas  
lentos... muito lentos...

Outrora, sobre aquelas águas que ainda hoje
não cessaram de rolar  
ligeiras  
- mas que riam - e agora parecem chorar,
havia uma ponte, uma ponte que era como uma pulseira  
que o progresso ofertara
ao braço branco do rio de água sonora e clara...

E do outro lado, junto ao seio da colina
que arqueia, numa suave claridade,
é que ficava a cidade...
Era de ver, a grande praça aos domingos, contente
e sempre cheia,
ou nos dias de semana, monótona, tranquila,
- tão linda a praça da vila...

E subindo as encostas, debruando as ruas:
o casario
com seus telhados de cor e seus penachos de fumo. . .
- como se cada rua fosse um rio
vermelho, descendo pelas encostas
sem rumo...

Outrora, - ( até parece no outro dia,
- se eu cerrar os meus olhos sou capaz de crer
nestas lembranças,
- e de escutar, quem sabe? a algazarra, a alegria
das crianças...)

- Se eu cerrar os meus olhos, sou capaz de ver,
o dia em que me chamaram
o dia em que eu parti
e os dois olhos embaciados que ficaram
me acompanhando,
e a criança que acenou as mãozinhas, chorando
e que eu nunca mais vi
...........................................................................

Chamaram-me e eu fui. Disseram-me que eu ia
para a guerra,
(que guerra?)  
- que eu ia defender a minha terra
e era preciso lutar,
que a pátria me chamava, e que eu defenderia
meu trabalho, meu lar  

Chamaram-me e eu fui . . . matei voltei...
Por que deixaram-me voltar?  
Antes ficasse, se já não encontro
a terra que deixei,
se não tenho trabalho e se perdi meu lar...

Voltei... por que deixaram-me voltar?

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Nenhum comentário: