quarta-feira, 11 de março de 2020

Rachel de Queiroz (O Rádio)


Sei que o homem desembarcar na Lua foi o fato mais importante do século — e quem sabe até da história do mundo. Mas a divulgação do rádio transistor teve um  alcance muito maior, em sentido imediato.

Não conheço outra criação do progresso que possuísse tal capacidade de penetração nem fosse tão rapidamente aceita pelas populações mais atrasadas. Máquina  de costura, luz elétrica, agulha de injeção, tudo isso espalhou-se depressa e profundamente — mas não chega aos pés do rádio de pilha. Até do motor a explosão o rádio ganha, por causa da sua acessibilidade. Todo o mundo pode sonhar com um carro, até índio, — mas adquiri-lo já é outra coisa. Enquanto o rádio está praticamente ao alcance de todos até do índio, também.

No sertão mais escondido, em barrancas secretas de rio por Amazonas e Goiás, em serranias perdidas, em campinas longe do mundo, se a gente avista uma casa de  caboclo, de colono, de pioneiro emigrante, nove casos em cada dez, verá, por cima do telhado rústico, de cumeeira a cumeeira, o fio de cobre da antena do rádio.

Dentro da casa haverá um tamborete, um pote, um fogão de barro, nada mais. Porém em cima de um caixote improvisado em mesa, trepado num caritó na parede da sala, quase infalivelmente você verá um rádio. Tocando o dia inteiro as suas musiquinhas de dois vinténs (e por isso matando a velha e preciosa música folclórica), espalhando notícias e — essa, sim, é a sua contribuição mais importante — servindo de elo de ligação entre  populações distantes que não têm entre si outro veículo de comunicação, dando recados, pedindo notícias, acusando cartas, servindo de correio gracioso aos que não  têm outro correio ou, tendo-o, não sabem como usá-lo.

Rara é a estação de interior — rara não, acho que não há mesmo nenhuma que deixe de ter a sua “hora sertaneja” ou ‘‘alô, sertão”, ou ‘‘mande o seu recado’’  ou outro programa equivalente. E comove a gente ouvir o trançado das informações e avisos — “Dona Maria de Tal, fazenda Carnaúba, sua filha manda dizer que o menino operou-se e vai se salvar”. “Seu Raimundinho Nonato, do sítio Pacavira, avisa à família que perdeu o trem ontem e agora só pode ir na semana que vem.” “Rosélia do Putiú, Baturité, avisa aos irmãos Ribamar e Vicente, na Barra do Ceará, que a mãe faleceu repentinamente, o enterro é hoje mesmo.”

A princípio se estranha como é que chegam a destino aquelas comunicações perdidas, sem horário certo. Depois se entende — os rádios estão sempre ligados, sempre  tem em casa uma pessoa que escuta as mensagens. Ao ouvir um nome conhecido, arrebita a orelha, presta atenção e passa adiante o recado a quem interessa. É raríssimo perder-se um comunicado ou chegar ele com atraso. Sempre alguém por perto escutou.

E pode faltar na casa o dinheiro para o fumo ou o café, para a rede nova, para o corte de pano da mulher, mas não faltará para o carrego do rádio — ou seja,  carga de pilhas do aparelho. E também, sendo o rádio objeto de tão indispensável presença em todos os lares, e sendo quase sempre escasso o dinheiro em moeda corrente, os rádios são negociados nas barganhas mais singulares: um rádio novo por dois bacorinhos, um saco de milho e meia arroba de algodão; um rádio velho, já passado por muitas mãos, por um amarrado de frangos e um relógio de pulso com corda quebrada; um rádio ainda mais ou menos por tantos dias de serviço, uma lanterna de pilha sem carrego e uma ninhada de ovos de galinha indiana... Qualquer negócio vale, contanto que o rádio venha; pois é da nossa natureza, mesmo entre os mais esquecidos e abandonados dos seres, esse desejo e esse orgulho de pertencer — (nem que seja através de uma voz distante dentro de uma caixa de plástico) —, de fazer parte, de se integrar na comunhão dos homens.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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