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sábado, 29 de março de 2025

Abbie Philips Walker (Lafayette)

Embora “Lafayette” possa parecer um nome pomposo para um cachorro, estou aqui para contar a história de um poodle francês chamado Lafayette, ou Fay, como era chamado carinhosamente. Um dia, Fay estava descansando sobre uma almofada de seda azul colocada em um assento de janela que dava vista para o quintal. Ao ouvir um latido lá fora, ele se levantou e espiou pela janela.

Era um cachorro amarelo e desgrenhado perseguindo um gato que chamou a atenção de Fay. Inicialmente, ele franziu o nariz diante da visão daquele cão de aparência comum, pronto para voltar à sua soneca. Mas algo o fez continuar assistindo ao que estava prestes a acontecer.

O cão amarelo latia e dava saltos em direção ao grande gato que estava empoleirado no topo de uma cerca, com as costas arqueadas e o rabo eriçado, expressando raiva. Por mais que tentasse, o cachorro não conseguia fazer o gato sair do lugar. De repente, Fay ouviu um latido alto e, para sua surpresa, seu próprio focinho bateu contra o vidro da janela. Foi ele quem latiu dessa vez, tomado por um entusiasmo inesperado. Fay tinha certeza de que, se o cachorro do lado de fora pulasse um pouco mais alto, o gato certamente fugiria.

Uma empregada correu para o lado de Fay, curiosa para entender o que estava causando toda aquela agitação. 

“Ah, Fay, você não deve latir para esse gato horrível e esse cachorro com aparência suja”, ela reclamou, acariciando-o e ajeitando a almofada de seda para que ele voltasse a relaxar.

Com um suspiro, Fay se deitou novamente. Mas algo havia mudado dentro dele. Ele sentiu um desejo inexplicável de sair correndo para perseguir aquele gato. Ele também estava convencido de que poderia assustar o cachorro, afinal, aquele era o seu quintal.

Fay começou a refletir. “Lafayette”, murmurou. “Que nome para dar a um cachorro! Por que não me chamaram de Ned, ou Ted, ou até mesmo Bill? E minha pelagem, que coisa terrível – toda cacheada, longa e branca. Eu gostaria que algo acontecesse para que ela ficasse preta. Sempre que vou ao parque, todos os outros cachorros debocham de mim. Eu costumava pensar que eles estavam com inveja da minha aparência majestosa, mas agora percebo que eles estavam apenas zombando de mim. Eu não aguento mais isso!” Fay rosnou, frustrado.

“Mas o que há de errado com você esta manhã?” exclamou a empregada, correndo de volta ao lado de Fay. “Nunca ouvi você latir e rosnar assim antes.”

Fay apenas piscou os olhos, mas abanou o rabo de um jeito que indicava que mostraria à empregada exatamente como se sentia durante o passeio matinal. Eventualmente, a empregada voltou, vestida para levá-lo ao parque. Ela enfeitou a coleira de Fay com um laço e prendeu a guia.

Fay pulou do assento junto à janela e a seguiu com uma expressão abatida. Naquela manhã, ele não ergueu a cabeça nem desfilou como fazia normalmente. Sentia uma vergonha recém-descoberta sobre sua aparência. Quando chegaram ao parque, dois cães de rua emergiram dos arbustos, latindo e rosnando para Fay. Aquilo foi a gota d’água. Seu espírito de luta despertou, e, aproveitando-se de um momento de distração da empregada, Fay facilmente arrancou a guia das mãos dela e disparou. Apesar da guia limitar seus movimentos, Fay rapidamente fez os cães de rua de bobo, assustando-os e fazendo-os fugir com o rabo entre as pernas. “Que diversão!” pensou Fay. “Vou fugir, para onde a empregada nunca me encontrará. Ah, como eu gostaria de encontrar um gato!”

Com saltos e corridas, Fay cruzou o gramado, desaparecendo rapidamente da vista da empregada e de um policial que tentava persegui-lo. Em uma rua transversal, um jornaleiro tentou segurar Fay para ler o nome em sua bonita coleira, mas Fay conseguiu escapar dele, finalmente sentindo-se verdadeiramente livre.

O jornaleiro assustado entregou a coleira para o policial que tinha presenciado a tentativa frustrada de capturá-lo. Eles acreditavam que uma generosa recompensa estava esperando quem conseguisse trazer Fay de volta. No entanto, voltar era a última coisa na mente de Fay. O que ele realmente desejava naquele momento era encontrar um gato.

Fay continuou correndo, deixando para trás o bairro que ele chamava de lar havia tanto tempo. As ruas ficaram lamacentas e assim que ele se sentiu distante o suficiente da empregada, rolou, pleno de alegria, em uma poça de lama na sarjeta. Ele estava irreconhecível, muito longe do cão impecável e delicado que havia saído de casa naquela manhã.

Emergindo do esgoto, Fay parou por um momento para observar os arredores. Bem, ele não ficou realmente parado, ele saltitava e farejava, contemplando qual direção seguir. De repente, outro cachorro se aproximou.

“Olá”, cumprimentou Fay. “Não é este um mundo maravilhoso?”  

“Não sei, é mesmo?” respondeu o outro cachorro.  

“Mas é claro,” retrucou Fay. “Hoje de manhã, eu estava do outro lado do mundo, e agora fugi e vim parar aqui. Então, não é apenas ótimo, mas também um mundo esplêndido, como descobri.”  

“Não sei se concordo com isso,” ponderou o cachorro desconhecido. “Às vezes parece bastante difícil, especialmente quando não consigo encontrar um osso.”  

“O que é um osso?” indagou Fay, que durante sua vida só havia sido alimentado com carnes cozidas e restos de frango.  

“Você não sabe o que é um osso?” perguntou o cachorro estranho, olhando para Fay com surpresa. “Você não tem dentes?”  

“Claro que tenho,” respondeu Fay, mostrando seus dentes afiados. “Mas o que é um osso?”  

“Suponho que você nunca tenha vivido por aqui,” comentou o outro cachorro. “Ossos são escassos, mas ocasionalmente encontramos um. Veja bem, ossos são para comer.”  

Fay espiou pelo buraco na cerca, avistando a pilha de ossos, mas eles não o entusiasmaram nem um pouco. 

“Para que servem?” ele perguntou.  

“Para comer, é claro,” explicou o outro cachorro, observando com entusiasmo os ossos através do buraco. “Talvez não pareçam apetitosos para você, mas veja se você os gosta, por que não pega um?”  

“Eu já mencionei que o cachorro que é dono deles é um briguento,” respondeu o cachorro estranho.  

“Você tem medo dele?” perguntou Fay.  

“Certamente não quero que ele me pegue,” confessou o outro cachorro.  

“Bah,” desdenhou Fay. “Eu não tenho medo. Vou pegar um osso para você. Espere aqui.”  

“Tome cuidado,” alertou o cachorro estranho. “Quando ele te ouvir, ele vai sair correndo daquela casa, e ele é maior do que você.”  

Tamanho não importava para Fay; ele se considerava bastante imponente. Ele era mais alto do que a maioria dos cachorros que havia encontrado. Assim, ele se espremeu pelo buraco na cerca e rapidamente seguiu em direção à pilha de ossos.

Com um rosnado e um latido, o dono dos ossos apareceu. Fay manteve sua posição, encarando o cachorro grande.  

“Saia daqui,” o cachorro ameaçou. “Eu vou lutar com você se não for.”  

“Onde você conseguiu todos esses ossos?” Fay perguntou com coragem. “Tenho certeza de que você os roubou, e eu vou pegar um para um amigo meu.” 

Não que isso fosse totalmente o certo, mas é assim que às vezes os cachorros raciocinam.  

O cachorro grande ficou surpreso pelo fato de Fay não fugir, como todos os outros cachorros faziam. Ele não tinha certeza de como agir, mas quando Fay pegou um osso, aquilo foi demais para ele suportar sem tentar impedi-lo. Ele pulou em Fay, mordendo sua perna, mas assim que fez isso, Fay largou o osso e virou-se contra ele. Por um instante, parecia que haviam cachorros para todo lado. E então, com um forte ganido, o outro cachorro fugiu, deixando Fay sozinho com a pilha de ossos.  

Fay sacudiu-se e olhou para o buraco na cerca. “Entre e pegue à vontade,” ele disse ao cachorro estranho do outro lado. “Agora você pode pegar quantos quiser. Ele não voltará.”  

“Eu não achei que você fosse capaz disso,” disse o cachorro estranho, passando pelo buraco sem precisar de um segundo convite. “Qual é o seu nome?”  

Essa foi a primeira vez que Fay sentiu algo além de prazer, mas agora ele parecia abatido — ele simplesmente não conseguia contar ao outro cachorro seu terrível nome.  

“Ei, qual é o seu nome?” perguntou o cachorro novamente, enquanto mastigava um grande osso.  

“Meu nome é Bill,” respondeu Fay, pensando rápido. “E o seu?”  

“Tige,” respondeu o cachorro. “Eu odeio esse nome e queria que fosse Napoleão ou algo mais elegante.”  

“Eu acho Tige um nome legal,” disse Fay, “melhor que Bill, até, e eu gosto bastante do meu.”  

“Sim, é bom, mas alguns desses cachorros que vivem entre os ricos têm nomes elegantes. Eu encontro um deles no parque às vezes. Ele é branco, sempre tem uma empregada com ele, e às vezes usa um laço rosa ou azul no colar de prata. Acho que o nome dele é Fay ou algo assim. Nossa, ele é um sujeito bonito!” disse Tige, ainda roendo os ossos.  

“Não acredito que ele seja mais feliz do que você — quero dizer, do que nós,” disse Fay, aliviado por estar livre do laço e do colar.  

“Hum,” disse Tige, “aposto que ele é mais feliz do que jamais sonhamos ser. Veja bem, Bill, meu caro, esses cachorros ricos têm sua comida servida em pratos de prata, já ouvi dizer, e já cortada e pronta para comer, e ouvi dizer também que dormem em almofadas.”  

“Em que você dorme?” perguntou Fay, sem pensar no que estava perguntando.  

“No chão na maior parte do tempo. E você?” respondeu Tige.  

“Ah, claro,” disse Fay. “Eu achei que talvez você dormisse em um tapete.”  

“Parece que eu durmo?” perguntou Tige. “Nunca dormi em nada macio na minha vida.  Mas por que você não tenta um desses ossos, Bill? Esta é sua festa, e você ainda não provou um osso.”  

“Eu estava observando você comer,” disse Fay, “mas eu vou pegar um. Nunca comi um antes.”  

“Nossa, eu não achei que algum cão pudesse ser mais miserável do que eu,” disse Tige. “Mas você deve ser, se nunca comeu um osso.”  

O osso tinha um gosto muito melhor do que Fay esperava, e logo ele estava mastigando feliz, assim como Tige.  

“Esse é o seu cachorro?” perguntou uma voz.  

Fay largou seu osso e olhou ao redor, e lá estavam a empregada, o guarda do parque e outro policial.  

A empregada olhou para Fay e então disse: “Fay, é você, seu cachorrinho malvado?”  

Fay correu na direção do buraco na cerca, mas desta vez o guarda do parque foi rápido demais para ele.  

“Claro que esse é o seu cachorro, Maggie,” disse ele. “Mas ele parece um brigão; não muito como aquele tufo branco e fofinho com um laço rosa que você passeia de manhã pelo parque.”  

“Ah, o que a patroa vai fazer?” disse Maggie ao vê-lo. “E ainda por cima perdeu a linda coleira de prata.”  

“Ah, eu sei onde ela está,” disse o outro policial. “Um amigo meu a encontrou, mas esse cachorro não é nenhum bichinho de estimação; ele é um brigão. Você devia ter visto ele enfrentar um cachorro grande que tinha todos aqueles ossos.”  

“Ah, o que a patroa vai dizer ao saber que o cachorrinho dela esteve brigando?” choramingou Maggie. “Venha aqui, seu malvado Fay, e volte para casa comigo agora mesmo, e vou te dar um banho daqueles.”  

Fay se contorceu e tentou escapar, mas uma corda foi amarrada em seu pescoço, e ele estava sendo levado embora quando pensou em Tige. Ele mal teve coragem de olhar para se despedir, temendo que isso o fizesse hesitar.  

Tige, no entanto, estava apenas esperando por esse olhar, e assim que Fay se virou, Tige correu até ele e lambeu seu nariz.  

“Saia daqui, seu cachorro sujo!” disse Maggie.  

O policial riu. “Seu lindo poodle branco não está com uma aparência muito limpa,” ele disse.  

Mas não adiantava. Fay não iria pacificamente sem Tige, e Tige também não queria ser afastado, então lá se foi Maggie, conduzindo Fay, enquanto Tige trotava ao lado dele.  

Seria muito longa a história para contar tudo, mas vou resumir: Tige ficou rondando a casa de Fay depois que ele foi puxado para dentro pelo mordomo, e Fay ficou na janela uivando para Tige até que a dona de Fay acabou cedendo e deixou que Tige fosse trazido para dentro.  

Deram um banho em Tige, colocaram uma coleira em seu pescoço, e Fay e Tige ficaram sentados na janela em dias chuvosos, quando a empregada não podia levá-los ao parque, olhando para o quintal em busca de gatos na cerca. Mas como os gatos não gostam muito de tempo chuvoso, Tige teve que contar a Fay tudo o que sabia sobre eles.  

“E pensar que eu nunca tive a chance de perseguir um,” disse Fay. “Talvez algum dia possamos fugir de novo, e então você pode me mostrar onde encontrar um.”  

“Não,” disse Tige, balançando a cabeça. “Não vai ter esse ‘algum dia’, Bill, meu amigo. Não vou arriscar perder este lar agradável, e você e eu vamos trotar ao lado da Maggie todos os dias no parque. Eu sei o que significa não ter um lar, e você não sabe, então ouça minhas histórias de gatos e pense à vontade sobre persegui-los, mas deixe isso por aí.”  

E Fay, sendo um cachorro sensato e muito apegado ao seu novo amigo, fez o que ele disse.

Preciso te contar mais uma coisa: embora, entre eles, fossem Bill e Tige, para todos os outros eles eram Fay e Caesar, então Tige finalmente recebeu o nome elegante que merecia.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.
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sexta-feira, 28 de março de 2025

Newton Sampaio (O cântico)

| I |
Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda, em seus agudos instantes de plenitude.

Eu amo, eu amo a luta como se me apresenta, quando a vida me sorri, e quando a vida me castiga. Porque a luta tem a beleza intrínseca, como a fonte tem a água e o sol tem a luz.

| II |
Eu não gosto do céu nessas noites macias em que a lua romântica vai tecendo madrigais a seu amante milenário.

Eu gosto do céu quando o sol faz doer os olhos dos homens atrevidos.

Eu gosto do céu quando o céu enche o mundo de claridades que deslumbram.

| III |
Eu não gosto do mar quando as ondas só fazem carícias à praia brancacenta.

Eu gosto do mar quando o mar é fúria desencadeada enchendo o ar com estrondejamentos de apocalipse.

| IV |
Eu não gosto do vento quando a folhagem apenas baila um bailado pequenino.

Eu gosto do vento quando os cedros descrevem curvas penosas, e toda a floresta fica gemendo na devastação absoluta.

| V |
Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores que suam em trabalhos rudes.

Eu me sinto orgulhoso quando minha própria fronte é um só porejar abundante.

Eu bebo meu suor sem nojo, como os selvagens deglutem religiosamente os restos de seus guerreiros mortos.

| VI |
Eu bendigo o rosário de inquietações que o destino me concedeu, porque por essas contas se há de medir a força de minha mocidade.

Eu bendigo os golpes com que o mundo me faz sofrer, porque esses golpes estão pondo à prova as energias de meu espírito.

Eu bendigo, eu bendigo a sanha dos que me combatem e a impiedade dos que me odeiam, porque, com esse ódio e com esses combates, incendiarei substâncias novas do meu ser.

| VII |
Eu abomino as horas longas e largadas; porque nas horas largadas e longas, não se erguerão as catedrais imperecíveis.

Eu fujo do silêncio porque o silêncio é mensagem da noite e a noite é ausência do Sol.

| VIII |
Eu não quero morrer na posição que todos ensaiam, no fim do dia.

Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis. Ou rasgando o chão pela força de velocidades inauditas. Ou sentindo, no fundo da vida, onomatopeias de sangue gorgolejando, de todas as carnes se abrindo...

| IX |
Porque o cântico do homem novo é um cântico de guerra.

Escreve a última frase, larga a caneta. Chega-se à janela e respira fundo, deliciado.

Consulta o relógio.

— Tão cedo! Podia passar tudo a limpo, agora. Reflete.

— Não. De noite é melhor

Arruma o cabelo, prepara o nó da gravata, enquanto relê os períodos mais importantes.

— Modéstia à parte, esse negócio está bem passável. Só que me saiu um tanto bolchevista. Mas não faz mal. De vez em quando se deve assustar os burgueses...

Veste o paletó. Examina-se ao espelho. Sai do quarto assobiando um samba vitorioso.

Na sala de jantar, Clarita estuda um figurino.

— Que é isso? Tomando vento nas costas? Não tem medo de uma pneumonia?

— De uma não. Só de duas.

— Engraçadinha!

Fecha a porta do corredor.

— Onde está meu guarda-chuva?

— Pra que guarda-chuva?

— Ora, pra quê...

— Com esse tempo firme?

— Tempo firme, nada! Então eu não conheço este Rio de Janeiro?

Mira-se no espelho da étagère (estante). E recomenda:

— Não discuta mais com seu Gonçalves, ouviu? Não quero nenhuma encrenca com vizinhos.

(Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda...)

— Mas o rádio do português é insuportável, Raimundo.

— Embora.

— Você fala assim porque não passa o dia inteiro em casa, como eu.

Não retruca. Faz o último exame no traje.

— Bem. Vou indo.

— Há mais tempo.

Ganha a rua. Um automóvel passa chispando. Tapa o nariz com o lenço, por causa da poeira.

— Maluco!

Espera que o sinal fique bem aberto, antes de atravessar.

— Vou eu aí quebrar a cabeça, por imprudência...

(Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis).

Perto do poste de parada, os homens da Companhia trabalham ruidosamente. Um negro exibe ao sol o dorso nu. Sua em bica.

— Xexéu safado!

(Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores...)

O veículo não tarda.

— Fazem um barulho, estes bondes...

(Eu fujo do silêncio porque...)

Procura lugar, pedindo licença a meio mundo. Senta-se.

A perspectiva de mais um inútil dia de repartição lhe dá certa melancolia. Conforta-o, entretanto, o acontecimento da nova página.

O bonde faz a volta da rua Bambina, e Raimundo dos Santos Filho começa a recapitular, inteiramente absorto, o “Cântico do Homem Novo”.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
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quinta-feira, 27 de março de 2025

Eduardo Martínez (Boteco do Paulete)

Sabe aquela sensação de que algo entrou no ouvido? Não bobagens que entram e saem, mas algo concreto. Digo, concreto no sentido palpável, não massa de cimento para chapiscar paredes. Zumbido! Lembrei! Eis o verbete.
 
— Isso é coisa de velho, Adamastor.

Tal diagnóstico foi proferido por Paulo, vulgo Paulete, dono do boteco perto do meu apartamento. Grande sujeito, anda com um pano de prato no ombro esquerdo, que usa como arma para tirar a poeira ou, então, acertar as moscas que cismam em pousar sobre o balcão. Mas não se engane, pois o sujeito, além de otorrinolaringologista, é desinibido ao ponto de prescrever medicamentos apropriados para qualquer depressão, inclusive dor de cotovelo, aquela mesma que costuma ser proveniente do coração.

— Adamastor, tenho uma cachacinha da boa, que vai resolver seu problema. Basta colocar algumas gotinhas de limão e mel a gosto. Dois goles curtos a cada cinco minutos durante duas horas sentado naquele banco mais ao fundo. 

— Mas resolve mesmo, Paulete?

— Ô, Adamastor, tá duvidando?

Isso aconteceu quando a Judite... Ah, Judite, por que me abandonastes? O que o Gilmar tem que eu não tenho? Dinheiro? Tem razão. Mas e o amor? Onde é que fica o amor?

Tempos de Judite. Por onde será que anda a mulher? Soube que largou o Gilmar, pois vi o gajo, não faz muito tempo, recebendo o mesmo tratamento que recebi. O gajo parece que ficou pior do que eu, pois a medicação durou quase dois meses pelas madrugadas adentro no boteco do Paulete.

Frequento o local por praticidade, já que é quase extensão do meu ser. A cerveja é sempre gelada, o tira-gosto não é dos melhores, mas a freguesia, tirando um ou outro chato de galocha, não é das piores. 

— Paulete, desce aquela gelada!

— Ô, Plínio, tu pensa que sou trouxa, é?

Plínio, um dos tais malas, tem fama de caloteiro. Não que não pague, mas parece que possui certo preconceito em meter a mão no próprio bolso, ainda mais quando vislumbra a menor possibilidade de fiado. Meu vizinho de porta, não raro, me pede uma xícara de café ou açúcar. Ainda menos raro, pede as duas. 

Teófilo é um dos ilustres frequentadores do bar do Paulete. Um tipo vulgar, que poderia facilmente ser confundido com qualquer outro vira-lata das redondezas. Convive pacificamente com Napoleão, felino de hábitos ociosos como muitos de sua espécie. Não há quem nunca os tenha visto dividindo um ovo colorido, generosamente ofertado pelo dono do estabelecimento, que tem o costume de fazer certas confidências aos dois.

— Se a clientela fosse que nem vocês, aqui seria uma paz completa.

 Carol, mulher com certos atrativos, não sai do local. Tem até mesa cativa, onde lhe é servido café ou guaraná, dependendo da hora do dia. Seu sonho parece que era ser veterinária, mas o vestibular tem lá suas artimanhas. Não conseguiu entrar na faculdade, o que não a impediu, de certo modo, trabalhar com 25 espécies diferentes de animais.

Acredita que o zumbido voltou? Isso, aliás, estava me consumindo. Imaginei até que a coisa pudesse desandar para algo mais grave. Pensando no pior, fui me consultar com o Paulete.

— Ô, Adamastor, já falei que não pode misturar remédio pra labirintite com álcool. Você vai acabar dormindo de novo aqui no meu boteco.

Diante da recomendação, voltei para meu cafofo, onde passei o dia deitado. Afinal, não dá para contrariar o doutor.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

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quarta-feira, 26 de março de 2025

Luciana Soares Chagas (A poção do amor)

No coração de uma floresta, viviam três bruxas irmãs: Dorotéa, Mimosa e Grizelda. Não eram bruxas malignas, mas também não eram exatamente confiáveis. Seu passatempo favorito era ler o destino dos viajantes incautos que passavam pela floresta, usando búzios, tarô e, ocasionalmente, uma bola de cristal trincada.

Certa noite, sob uma lua cheia, um jovem chamado Tadeu atravessava a trilha da floresta, carregando uma rosa vermelha e um suspiro apaixonado. Estava a caminho da vila vizinha para declarar seu amor a Catarina, uma moça encantadora que nunca lhe dera atenção. Ao verem o rapaz desavisado, as bruxas entreolharam-se com malícia.

— Olhem só esse pobre coitado! — exclamou Mimosa. 

— Cheira a coração partido! — acrescentou Grizelda. 

— Vamos dar um empurrãozinho? — sugeriu Dorotéa, esfregando as mãos.

Convidaram Tadeu para um lanche e, entre um biscoito de gengibre e outro, puxaram as cartas. "A Torre", "O Enforcado", "O Diabo"... nada promissor.

— Hum... parece que você está numa enrascada, querido. Mas não tema! Temos uma poção infalível para o amor! — anunciou Grizelda.

Tadeu, tolo de paixão, aceitou de pronto. As bruxas misturaram ervas, assopraram búzios e jogaram um punhado de pó de morcego na poção borbulhante. Deram a ele um vidrinho cor de esmeralda e o instruíram:

— Borrife isto na moça, e ela se apaixonará por você! — garantiu mimosa.

E lá se foi Tadeu, esperançoso. Mas, em sua ansiedade, tropeçou na soleira da casa de Catarina, jogando a poção para o alto. O líquido perfumado caiu... nele mesmo.

No instante seguinte, um frio na barriga e um calor no coração. Tadeu se olhou no espelho e, apaixonou-se perdidamente pelo próprio reflexo. Sussurrou galanteios para si mesmo, piscando e mandando beijos para a vidraça.

Catarina, que assistia à cena de sua janela, caiu na gargalhada. Gostou tanto daquilo que resolveu dar uma chance ao rapaz. Afinal, um homem que se ama assim só pode ter muito amor para dar.

E assim, o feitiço das bruxas funcionou... ainda que não do jeito planejado. Tadeu e Catarina acabaram juntos, e as três irmãs comemoraram com um brinde de vinho de abóbora.

Mas volte aqui... vem cá... Eu sei que copiou receita, mas, cuidado onde você joga a poção do amor! Hahaha.
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LUCIANA SOARES CHAGAS é do Rio de Janeiro/RJ. Doutoranda em Educação, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Especialista em Gestão de Recursos Humanos. Formação em Pedagogia Empresarial. Especialização em Mídias e Tecnologia na Educação pela Universidade Veiga de Almeida e Licenciatura em Pedagogia. Docente há mais de 10 anos dos cursos de MBAs do Núcleo de Negócios e das Pós Graduação de Educação. Palestrante nas Jornadas presenciais para os alunos da EaD. Atuou como Instrutora comportamental em empresas como ABRADECONT, Marinha de Brasil-EMGEPRON, Miriam S.A., CIPA Administradora (BKR-Lopes e Machado), IBEF, Casa de Cultura (SevenStarmarketing). Diretora e sócia da Prassos Treinamento Empresarial. Autora de diversos E-books de disciplinas da área de Pedagogia na Universidade Veiga de Almeida e Organizadora do Livro E-Book da Coletânea de textos sobre inclusão escolar: Pedagogia.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
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terça-feira, 25 de março de 2025

Carina Bratt (Como uma turista extraviada)


O TEMPO. Sempre ele. Este tempo, o mesmo que não nos dá tempo, que nos tira o tempo, que nos rouba em surdina. Este tempo nada mais é que um urdidor invisível. Como tal, entrelaça as nossas vidas com fios de lembranças, muitas delas adormecidas no passado. Deitada na minha varanda, a rede balouçando vagarosamente, contemplo o céu lá no infinito. Um infinito mavioso e sem nuvens, embeleza meus olhos. Os prédios à minha frente, do outro lado da alameda, parecem mudos, tristes, vazios e sem vida. Só parecem. Sei que formigam vidas em todos os andares.

Contudo, nem todos os apartamentos refletem o magnetismo do pleno cotidiano com todo o alvoroço de uma comunidade buliçosa. Meu andar é alto. As construções horizontais ao alcance dos meus olhos, me permitem vasculhar cada canto, cada desvão. São condomínios de doze e quinze andares, enquanto o meu, de vinte, me deixa contemplar o topo de cada um, às vezes até sem ser vista. Estou acima das caixas d’água, das casas dos elevadores, da moradia do porteiro... neste momento, rindo das tramas que rolam em cada pavimento.

Ontem mesmo me lembrei que antes de me mudar para esta torre, morava numa rua estreita em Araçás (bairro próximo aqui da Praia da Costa) onde as casas ao redor pareciam sussurrar segredos. As janelas com seus rostos antigos, as flores murchas em vasos acondicionados nos parapeitos, davam conta de histórias de velhos amores e desencontros. Crianças (como eu) corriam pelas adjacências, descalças, riam alto, promoviam algazarras enquanto trocavam olhares desencontrados e distantes de qualquer aparência de felicidade.

Nesse tempo, as tardes se alongavam, e o sol se punha devagar tingindo o céu (o mesmo que agora contemplo da minha varanda enorme), com a diferença de que os tons se faziam mais claros. Os abraços dos que cruzavam (fossem indo ou vindo) tinham um tempo mais comprido, como se o calor daquele encontro objetivasse frear o tempo. Todavia, o meu tempo, o ontem dos meus idos de menina, avançava e deixava na poeira dos olhares as risadas, os sonhos, os abraços...

Coisa de uma semana atrás, fui passear num desses bairros onde morei aqui em Vila Velha. O bairro Araçás. As casas, agora, têm novas janelas, as pedras e a terra batida das vielas foram substituídas pelo asfalto. As crianças do meu tempo se fizeram adultas e num piscar de futuro, se espalharam pelos confins de outras localidades. Uma das muitas ruas, notadamente a que onde morei, a Montevidéu, mudou a sua personalidade. As interrogações de sorrisos delongados são apenas resquícios da minha memória.

O passado se dissolveu. Virou pó. Se fez envelhecido e em profunda solidão. O passado do meu tempo de outrora, se evaporou das cores originais e, hoje, o preto e o branco, tomaram conta das minhas fotografias sobre o piano. De tudo ficou um tempo obumbrado. O que vi nos idos das minhas tranças em meus cabelos, das minhas bonecas de porcelana, dos afagos de meu pai, das comidas de vovó e das guloseimas de mamãe, restou o cheiro gostoso de um ontem que se fez glorioso. Sabores e sensações, idem. Pedaços desencontrados de risadas e abraços, de quando em vez, me fazem afagos, mas parecem rupturados de cores vivificantes.

Imagino que o tempo que não nos dá tempo, da mesma forma que nos tira o tempo que não mais temos, nada mais é que um infeliz desalmado. Um ser vazio, infame, que tem o condão de mudar tudo. Tudo, menos o meu céu azul lá no infinito. O azul sem nuvens segue colorindo meus pensamentos, os prédios a minha frente, apesar de mudos, vazios e sem vida, continuam imutáveis. O meu passado não está só no que o meu tempo quer me mostrar.

Ele está presente dentro do meu ‘eu’ universo. Uma espécie de caixinha de recordações que ninguém de fora consegue acessar. Ninguém! Eu, da minha rede, envolvida no balanço dela, olhando o céu, vasculhando os apartamentos, perscrutando cada canto... às vezes capturando cenas engraçadas, outras participando de brigas e confusões, sorrio matreira. Também não me escapam casais se amando em contradições de sexo despudorado, pessoas indo embora, outras chegando. Não importa. Eu sou inteiramente feliz. Na verdade, euzinha, SOU A DONA DO MEU TEMPO.

Fonte:
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segunda-feira, 24 de março de 2025

Eduardo Affonso (Conceição)

Tom Jobim era fã de Villa-Lobos, e um dia conseguiu ser apresentado ao seu ídolo.

— Villa, este é o Antônio Carlos Jobim, autor da música da peça “Orfeu da Conceição”.

— Ah, sim! – disse o maestro. E, querendo demonstrar que já tinha ouvido falar do moço, cantarolou “Conceição / eu me lembro / muito bem” — fazendo uma “pequena” confusão entre a obra de Tom e Vinícius e a canção de Dunga e Jair Amorim, imortalizada pelo Cauby Peixoto.

A gafe do maestro me faz pensar que não se fazem mais Conceições como antigamente.

Na lista dos cinquenta nomes femininos mais usados no Brasil, aparecem Agatha, Ayla, Gabrielly, Emily e Isabelly, mas não Conceição – que talvez não figure nem nos “Top Thousand”.

Nomes vêm e vão.

Conceição foi e não voltou.

Sumiu.

Ninguém sabe, ninguém viu.

Há muito uma Conceição não brinca de boneca, não usa o primeiro sutiã, não arruma o primeiro namorado.

Não parece mesmo adequado a uma menininha um nome tão aumentativo, tão encorpado.

Conceição é nome de mulher já adulta — “mulher feita”, como se dizia no tempo em que nasciam Conceições.

Porque Conceição (“aquela que concebe”) é nome de mãe.

É o nome da minha mãe.

Sempre me soou a nome de gente humilde, do tipo que batiza os filhos de acordo com o santo do dia (ela não nasceu no dia de Nossa Senhora da Conceição, mas foi nesse dia que deu à luz sua filha — o dia em que foi mais mãe).

O Orfeu negro de Tom e Vinícius poderia ter sido da Silva, dos Santos, mas foi “Orfeu da Conceição” o poeta cuja lira emudecia os pássaros e vivia no morro a sonhar com o amor eterno de Eurídice — coisa que o morro não tem.

Esse “da Conceição” o arrancava da mitologia grega e lhe punha os pés no chão, lhe conferia mais humanidade, o trazia para o Rio de Janeiro, e preparava as rimas que viriam das cordas do seu violão (numa manhã — tão bonita manhã – de Carnaval).

Talvez haja, no mais profundo Brasil – aquele onde ainda são geradas as marias das dores, do perpétuo socorro, da natividade, da agonia, da anunciação – uma ou outra pirralha adornada com esse nome.

Talvez não.

Conceição é um nome em extinção.
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EDUARDO AFFONSO, Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Texto e imagem obtidos no blog de Eduardo Affonso. 30 janeiro 2025.
https://tianeysa.wordpress.com/2025/01/30/conceicao/

domingo, 23 de março de 2025

Antonio Juraci Siqueira (Carta/canção para adormecer os homens e despertar as crianças)

Em paz com Deus e com os homens, o peito pleno de amor e as mãos ornadas de ternura, escrevo esta carta em forma de canção que faça dormir os homens e despertar as crianças, que soe como o burburinho da água na ribanceira do rio, o farfalhar do vento nas  mangueiras, o trinar dos pássaros tecendo alvoradas ou o badalar de sinos na Hora do Ângelo. 

Uma canção para despertar a criança que trazemos dentro de nós: umas, adormecidas pelo cansaço causado por uma sociedade cada vez mais embrutecida pelo imperativo categórico produzir, consumir e consumir-se; outras, amordaçadas para que suas verdades não incomodem a mentira nossa de cada dia; outras, deixadas de lado por absoluta falta de tempo ou relegadas ao esquecimento para que seus sonhos de ser não venham se antepor às exigências do ter. 

Uma carta/canção que nos abra os olhos para um mundo mágico, belo e possível, presente em essência mas ausente de fato no mundo caótico em que vivemos, que nos faça compreender que o pequeno mundo que vemos de nossas janelas, não tão belo e colorido como os vistos através das janelas virtuais, é mais real, humano e possível de interferências e mudanças dentro das possibilidades de cada um. 

Um mundo feito de seres e coisas palpáveis onde um copo d’água possa fazer a diferença, um gesto de amor salvar uma vida e o pão da palavra saciar muitas almas famintas de afeto; onde o dinheiro não seja tudo, a tolerância seja substituída pela aceitação mútua das nossas diferenças e uma palavra possa abrir portas para mil possibilidades. Enfim, um mundo onde a paz deixe de ser três letras esquecidas nas páginas dos dicionários. 

Que esta carta/canção nos faça ver o mundo através dos olhos da inocência onde um pássaro seja tão somente um poema emplumado a cantar nos galhos da manhã e não um ítem no mercado negro de animais silvestres, uma árvore deixe de ser um verde pacote com os dólares da devastação ambiental e passe a ser vista como uma bandeira desfraldada sobre a esperança, um rio seja a líquida rua do poeta e do mururé e não uma fonte de energia a inundar belos montes de vida, cultura e poesia. 

Talvez alguns vejam nesta carta apenas um monte de palavras. Mas um monte de palavras que pode mudar você, que pode mudar o mundo em sua volta. E eu amo as palavras e nelas acredito. Por isso é que fabrico, com elas, quixotescamente, meu escudo e minha lança para investir contra os moinhos da insensibilidade humana, para arrancar viseiras, derrubar os muros do preconceito, da intolerância e da opressão; para abrir estradas, construir pontes e rasgar horizontes à demanda de um mundo mais justo, igualitário e fraterno. 

Eu acredito na palavra como ferramenta divina deixada por Deus para formar, informar e transformar o homem e o mundo. A pá para revolver a lavra revelando o tesouro escondido no garimpo da alma de cada ser humano. Um tesouro que o tempo não consome e os ladrões não roubam. 

Eu acredito, por exemplo, na palavra paz, na palavra amor, na palavra amizade, na palavra igualdade, na palavra união, na palavra justiça, na palavra esperança, na palavra sonho, na palavra alegria, na palavra fraternidade, na palavra fé, na palavra perseverança, na palavra felicidade, na palavra poesia, na palavra... Palavra!

E você, em que palavra acredita?
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Antônio Juraci Almeida Siqueira, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

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sábado, 22 de março de 2025

Paulo Vinheiro (Uma Flor no Meio da Vida)

Paulo Vinheiro, nome artístico do escritor e poeta Paulo Vieira Pinheiro, é de Monteiro Lobato/SP. 
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“O que queres?” Perguntei-me!

Dia e outro, na procura dos sentidos, me perco nas palavras que brotam por todo lado com seu propósito de me confundir.

Jornais, revistas, livros... tantas letras que doem.

Já li de tudo, me arrebatam as bulas...

Machado, Alencar, Scliar, Saramago, Lobato, e tanta gente que depois de um tempo me cobra: – que dizes? Que me dizes?

Ousado, talvez com um pouco de medo, arrisquei umas pequenas linhas... pequeninas... pequenininhas.

Então escrevi.

Tive a sorte de aprender a letrar pensamentos e os letrei; então achei pouco.

Pensei: – Se posso descrever o que penso... porquê não posso escrever o que sinto?

Vi que existia uma ponte estreita, longa, perigosa e muita vez conflitiva, entre o que eu sentia e pensava.

Sofri, mas não desanimei, então me reescrevi.

Contei contos, desvelei novelas, trabalhei textos... passei a ler com mais cuidado, com mais rigor, com mais seleção.

Passei a ler como se eu tivesse escrito o texto que não escrevi. Busquei o sentimento que vale a pena (no estrito sentido da pena que escreve).

Antes disso, eu não respeitava os que escreveram tanto como mereciam.

Textos bons ou textos nem tanto como queríamos ler, servem para o que servem, para se qualificarem uns aos outros.

Quem sabe o que é bom?

Sempre gostei das coisas mais fáceis, e por isso busquei as mais difíceis, só para me contrariar... só eu sofri no caso das palavras que li.

Agora há pouco me perguntaram:  – E a flor, onde entra nisso que dizes?

Ora entendo que a flor é o produto da expressão do que se diz, do que se escreve, do que se pinta, do que se faz para a apreciação, como o trabalho, como o amor... como a expressão pura e simples da ação.

Existe no campo ou nos jardins, todo o tipo de expressão floral. Existe no jardim de nossos dias uma quantidade de obras a se admirar, umas com mais cuidado, outras com mais atenção, outras detalhadas, outras simples... cada qual com suas qualidades.

Para nós sobra entender o que fizemos ou faremos de nós.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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quinta-feira, 20 de março de 2025

A. A. de Assis (Felicidade sem camisa)

A praia não é somente a praia: é um monte de outras alegrias

Coisa bonita é o povo curtindo férias na praia. Um lugar superdemocrático, aberto a todos os padrões. Um homem de calção e sem camisa, uma mulher de maiô ou de biquíni, você não sabe se é alguém que tem mais ou menos dinheiro, se tem mais ou menos cultura, se é mais ou menos importante lá no onde mora. E mais: a maioria nem tá aí para esses grilos de elegância e moda. Todo mundo igual. Todo mundo gente. Gente feliz, que trabalha o ano inteiro e agora está ali celebrando a vida.  

Primavera-verão em Balneário Camboriú. O sol do sul. Paranaenses, catarinenses, gaúchos. Mais banhistas à beça vindos de outros estados. Mais los hermanos argentinos, uruguaios, paraguaios, bolivianos, chilenos. Uns chegados de automóvel, outros de ônibus, de moto ou de avião, outros em grupos de excursão.

Todo mundo numa boa. Logo cedinho arrumando a tralha pra espetar barraca na areia e salgar o corpo no mar. O isopor com as bebidinhas, a cesta cheirosa recheada de comes-comes. As crianças se deliciando com o churro, o sorvete, o milho verde.

No meio dos de férias, também homens e mulheres aproveitando a temporada pra ganhar um dinheirinho vendendo chapéus, roupas, cerveja, algodão doce, cocada, pipoca, ou alugando cadeiras e barracas. Um velhinho oferecendo bilhetes de loteria. Duas moças cantando o pregão: “Salada de frutas, sanduíche natural…”

Mas a praia não é somente a praia: é um monte de outras alegrias. Se o dia acorda chuvinhoso, o pessoal aproveita pra passear no comércio. Esvazia a Avenida Atlântica, enche a Avenida Brasil – um comprido shopping a céu aberto, aquela enorme fileira de lojinhas com o de tudo que a moçada gosta. De noite tem os barzinhos, os restaurantes, as baladas, tem a noite toda pra paquerar, comer, dançar.

Tem também a opção de dar umas esticadas pela vizinhança: Itajaí, Itapema, Bombinhas, Cabeçudas, Beto Carrero, Brusque, Nova Trento, Pomerode…

Gente boa, gente muito gente. Que estuda, trabalha, produz.

Gente do batente, que realmente merece esses belos dias de recreio com a família na praia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 131

Como foi que tudo começou ? 

Diria que é difícil explicar. Mas os relatos históricos de estudiosos e  pesquisadores dizem (ou sugerem) que no princípio tudo era imensidão inócua e vazia. Até o Gênesis confirma. 

E um sopro deu início àquilo chamado vida, lá na frente, transformando tudo em civilização .  Passaram séculos desde as priscas Eras .

A evolução foi tanta, imensa, grandiosa. Para todo lado.  Para todos os seres. 

Chegamos ao ano 2025 e eis que surgem num canto quase esquecido, próximo às barrancas do planeta, dois animaizinhos de quatro pata carregados de energia solar. 

Dois pequenos puros de alegria, humor à beça, traquinagens muitas.  Arrebanhados, logo tomaram conta do ambiente e da empatia da casa. 

Assim é que nos primórdios do ano surgiu o TRIO DA BAGUNCINHA - Theo, Ísis e papai, desde a manhãzinha agitando, brincando, conversando, fazendo o pequeno circo dos cachorrinhos.

As afeições misturaram tanto que quando saio para a rua vejo carinhas de tristes, silentes, de abandono.  Na volta, já no portão encontro Dom Theo e Dona Ísis com os olhos sorrindo e rabos abanando para iniciar a baguncinha do momento.

Dois tesouros dando lições de cachorrismo e civilidade.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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