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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Geraldo Pereira (Velhos Corredores da Juventude)


Velhos corredores estes, os de minha escola, os da antiga Faculdade de Medicina. Corredores de minha juventude, sacrários dourados da prata da vida, de quem como eu continua sendo um corredor de obstáculos, saltando-os a intervalos incertos de tempo. Há sempre mais um, no dia-a-dia da gente! Não os posso percorrer – os corredores – encorpado agora pelo peso da beca e os encargos da função. Adulto, amadurecido no carbureto da existência, trago o cabelo pintando e o corpo vergando; são as marcas brancas das horas difíceis e o sinal incolor, translúcido, da responsabilidade vivida. Vivida com a própria vida, mas vivida também com sofreguidão, com vidas por outros vividas. Ah, momentos de tanta tensão!

Ando um por um os corredores todos, analisando cada recanto: aqui se fiava conversa e ali, numa tarde morna de abril, um amor restou fiado em juras que foram desfeitas e promessas nunca cumpridas. Entro e saio das salas de aula, como se fora, pelo menos em espírito, aqui e agora, o adolescente quase de vinte anos de idade. Faço dessa manhã ensolarada a moldura de uma melancolia consentida. Há tempo pra tudo: tempo de amar o presente e tempo de querer bem ao passado. Não importa que vá a uma reunião – mais uma – dentre tantas de meu ofício. Dispenso hoje, somente hoje, o direito à palavra e ao aparte, como dispenso a questão de ordem e o dever do voto a cada ponto da pauta. Antes, desejo a democracia de meu interior, deixar o pensamento vagar em devaneios, preenchendo esses etéreos e bucólicos espaços, limitados, simbolicamente limitados, por paredes que aprisionam as minhas saudades. Eis o pranto do meu sentido silêncio.

A escola é a amante dos tempos de menino, imaginária, às vezes, como tantas outras coisas neste mundo de Deus, mas bela de rosto e bonita de corpo. Inesquecível, mesmo que envelheça a face e quebre o desenho das formas. O amante que se entrega, depois se desintegra, porém a amada fica no mesmo lugar, impávida, plantada com a força do concreto, assistindo a todos e a tudo em sua volta. Outros amantes chegam e do mesmo jeito, furtivos, se vão! Continuam, à distância quase sempre, cantarolando-lhe versos de amor, que são poemas da saudade. Vez ou outra, como agora, vivem a fantasiosa ilha do reencontro.

Mas, os meus professores, em grande maioria, estão na tumba, dormem o sono do imponderável. Um ou outro cruza comigo neste caminho do devaneio. Trazem as fisionomias sulcadas de tantas e tantas lutas no cotidiano da vida. Os funcionários também sofreram a estranha metamorfose da existência, envelheceram implacavelmente. Até alguns colegas se foram no éter do desconhecido! Gente nova, ainda, pra entregar ao Criador a alma nascida e criada no dia após dia do sofrimento dos outros.

Corredores repletos estes, movimentados de gente que vai e vem. São alunos que cumprem a transitoriedade acadêmica da vida universitária ou são mestres de gerações recentes, jovens, dinâmicos e apressados, no permanente mister de transmitir o conhecimento. Corredores repletos, mas vazios para mim! Não circulam mais os professores do meu tempo e não há aquela algazarra conhecida do alunato de tantos anos atrás.

Velhos corredores estes, os de minha juventude.
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Aparecido Raimundo de Souza (Reencantamento do cotidiano)


A LAPISEIRA ELISANJA, olhou para o relógio e conferiu as horas. Dezoito em ponto.  Saiu da sua mesa de trabalho com o espírito alegre. Estava radiosa e feliz. Mais um dia. Sem perceber que logo atrás dela, apenas alguns passos, alguém a seguia de cara fechada. Sem notar a presença da amiga Eloá Vitória, a Lapiseira Elisanja falou, como se conversasse consigo mesma.

Lapiseira Elisanja:
— Que maravilha! Cada pensamento meu, cada ideia, cada traço que eu crio... nossa, é a expressão mais pura da minha mente imaginosa... 

Ao contrário dela, trepada nos cascos, a Borracha Eloá Vitória, atrelada em sua sombra, se manifestou, duas pedras nas mãos. Atacou. 

Borracha Eloá Vitória: 
— Você disse pura? Por favor! A maioria dessas ideias que saem de dentro de você se fazem erradas, tortas ou pior, desajeitadas. Sem mim, você, sua tonta, seria um caos! 

Lapiseira Elisanja, sem perder a esportiva, se virou para a amiga e rebateu:
— Pelo menos eu crio algo! Você, ao contrário, só destrói. Apaga como se nunca tivesse existido! 

Borracha Eloá Vitória: 
— Eu não destruo porcaria nenhuma, sua mal-agradecida. Apenas dou a chance de você recomeçar sem erros “para te arrastar.” Só lhe concedo espaço para melhorar. 

Lapiseira Elisanja:
— E quem disse que um erro não pode ser belo? Às vezes, o improviso é a alma do criativo! Noutras, o improviso é só um desastre esperando para acontecer. Saiba que o prazer de deslizar no papel, desenhando cada pensamento que emerge da minha mente criativa é como se fosse uma dádiva. Mesmo norte, cada risco, cada curva, nasce como um sussurro de minha avidez imaginativa. Sou a ponte entre o abstrato e o concreto, ou seja, sua invejosa, me transformo no objetivo dos sonhos que logo em seguida, ganharão forma.

A borracha Eloá Vitória não deixa por menos. Alfineta:
— Sonhos que, na maioria das vezes, nascem imperfeitos, borrados, sem direção. Eu sou a guardiã da ordem, a restauradora da clareza. Sem mim, sua convencida, o mundo seria um caos de ideias inacabadas e garatujas confusas.

Lapiseira Elisanja:
— Que crueldade! Você olha para os meus traços e só enxerga defeitos? Cada imperfeição é prova de autenticidade.  É a alma da criação! Por que destruir aquilo que tem vida própria?

Borracha Eloá Vitória:
— Não é destruição, é oportunidade. Eu dou espaço para o aprimoramento, para o que é melhor. Não podemos crescer sem apagar o que está errado, sem dar um passo atrás para repensar e recomeçar.

A Lapiseira Elisanja se abre num sorriso amarelo e forçado. 

Lapiseira Elisanja: 
— E quem decide o que é errado? Às vezes, o erro é apenas um caminho diferente. Um gatafunho (garatuja) fora do planejado pode levar a uma descoberta inesperada, algo único e magnífico.

Borracha Eloá Vitória:
—Talvez. Mas eu observo os erros como manchas: elas podem ser belas, mas não deixam de ser máculas. Meu papel é suavizar essas imperfeições, dar ao artista a chance de criar algo mais limpo e mais refinado.

Lapiseira Elisanja:
—Refinado, talvez. Mas nunca tão espontâneo. Você pode apagar meus traços, mas nunca destruirá a essência do que eu trago à vida.

Essa troca de palavras entre as duas, a bem da verdade, reflete as suas personalidades ao tempo em que invoca uma profundidade maior para um conflito que nem deveria existir. 

Vindo de algum lugar perto do estojo, aparece a Régua Eduarda e ao ver as duas amigas trocando palavras ríspidas, espera a oportunidade para entrar no diálogo.

Enquanto isso, a Lapiseira Elisanja, continua soltando fogo pelas ventas. Desabafa:

Lapiseira Elisanja 
— Você pode apagar as minhas linhas, mas não denigre o talento inventivo que flui através de mim! 

Borracha Eloá Vitória, ainda meio enfezada:
— Talento inventivo, ou caos? Sem um pouco de ordem, o papel seria apenas um campo de batalha de ideias confusas.

(De repente, a Régua Eduarda enxerga uma brecha e interrompe com sua voz firme e equilibrada). 

Régua Eduarda:
— Olá queridas amigas. Vocês duas, parem com isso! Não percebem que só conseguem criar algo grandioso quando trabalham juntas?

Lapiseira Elisanja solta uma resposta ao acaso:
— E o que a sua amável pessoa entende de criação, dona Régua? Você é só –  como eu diria – uma linha reta!  

Nesse ponto da discussão, a Borracha Eloá Vitória, sem perceber, esquece as rusgas e acode em socorro da amiga:

Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, sua bobona. Todo mundo sabe que você só serve para traçar limites. 

Régua Eduarda:
— Limites, sim. Mas também direção e propósito. Eu sou quem dá forma ao caos e transforma linhas soltas em desenhos, ou melhor, em estruturas.  Sem mim, as suas desavenças não passariam de tapas e beliscões.

Lapiseira Elisanja: 
— Humm... talvez você tenha razão Régua Eduarda. Concordo que as minhas ideias precisem, vez em quando, de um pouco mais de direção... 

Borracha Eloá Vitória, esperta, dá o braço a torcer:
— Admito que apagar sem um propósito claro também não faz muito sentido.

A Régua Eduarda, em meio a essa confusão, passa a ser, do nada, uma personagem sábia, pragmática e talvez até um pouco sarcástica, entretanto, colocando as duas companheiras em seus devidos lugares. 

Lapiseira Elisanja ponderando um pouco as palavras:
— Sabe, Borracha Eloá Vitória. A Régua Eduarda não deixa de ter razão. Sem você, eu não seria, vamos dizer, precisa e meus traços vez outra ficariam sem propósitos definidos. Acho que posso “te valorizar mais.” 

A borracha Eloá Vitória se abre num sorriso espontâneo de canto a canto da boca. 

Borracha Eloá Vitória:
— E eu admito, sem sombra de dúvidas, que, sem você, não teria nada para apagar. Quem sabe consigamos ser mais importantes juntas do que imaginamos.

(De repente, o Papel Pedro Simão, até então calado e só assistindo a briga de camarote, interrompe com um tom dramático):

Papel Pedro Simão: 
Ah, que bonito! Vocês duas se entendendo, enquanto eu fico aqui sofrendo! É linha por toda parte, apagões sem fim... um dia, vou acabar rasgado nesse caos criativo!

Lapiseira Elisanja vindo em socorro do Papel Pedro Simão. 

Lapiseira Elisanja:
— Relaxa, meu amigo Papel Pedro Simão. Fica frio. Você é forte, aguenta tudo.  Não se esqueça, que é em você que nos espelhamos! 

A Borracha Eloá Vitória fortifica a tese, concordando.

Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, só não passa perto, pelo amor de Deus, da Tesoura Vandeca! Ele pode transformar você num monte de tirinhas. 

(Entra, inesperadamente a Tesoura Vandeca, cara fechada, boca afiada, acompanhada de um sorriso cortante).

Tesoura Vandeca:
— Escutei, sem querer, meu nome.  Não se preocupem! Somente quero esclarecer um ponto. Deixar claro um assunto que me incomoda, toda vez que ele vem à tona.  Serei breve. A amiga Borracha Eloá Vitória acabou de falar para o Papel Pedro Simão tomar cuidado comigo. Não tenho instintos assassinos. Além do mais, o Papel Pedro Simão é meu amigo de muitos anos. Aliás, como todos por aqui. Não tenho motivos para transforma-lo em tirinhas... e isso vale para os demais que pensam o contrário. Era o que precisava deixar esclarecido. A propósito, Papel Pedro Simão, que tal darmos uma volta por aí?

Papel Pedro Simão:
— “Demorô,” amiga Tesoura Vandeca. Vamos nos divertir um bocadinho... daqui a pouco, vem o melhor da festa...

(Com a saída da Tesoura Vandeca e do Papel Pedro Simão, os “sem modos” começaram a gritar e falar ao mesmo tempo. O Estojo se voltou para seu canto com a intenção de tomar conta de seus afazeres, levando em conta que dentro em pouco teria muito serviço à sua espera.) 

Lapiseira Elisanja:
— Sabe de uma coisa, Borracha Eloá Vitória. Apesar de tudo, eu admiro a sua determinação em mandar para o espaço alguns de meus traços. Só tem uma coisa que me deixa com pulga atrás da orelha... 

Borracha Eloá Vitória franzindo cenho: 
— O quê? Minha eficiência impecável? 

Lapiseira Elisanja mudando o rumo da prosa: 
— Não, é que... depois de tanto apagar, percebo que você está ficando – desculpe trazer isso à baila –, mas essa situação está cada dia mais visível. Você se faz mais pequena, tão minúscula e derreada que acredito, dentro em pouco, sumirá do mapa antes de mim!

(A Borracha Eloá Vitória engoliu o que iria dizer. Olhou para si mesma e só então percebeu o seu tamanho reduzido e respondeu com um toque de desespero dramático.)

Borracha Eloá Vitória: 
— Pequena?! Eu prefiro o termo... compacta! Mas é verdade, amiga Lapiseira Elisanja. Estou realmente, encurtando, decrescendo... logo serei uma coisinha anã, virarei um trocinho nanico.  

Lapiseira Elisanja tentando apaziguar um problema futuro: 
— Relaxa Borracha Eloá Vitória. Enquanto você encolhe, eu no mesmo trilho, me verei sem meu material de trabalho, o grafite. Até que isso ocorra, obviamente vou traçar e você apagará um milhão de vezes. No final, com a chegada da nossa velhice, estaremos no mesmo barco... ou melhor, no mesmo estojo.

As duas, de repente, caíram na risada enquanto o Lilico Tilibra, apelidado carinhosamente de “Estojo Guardião,” se retirou para dentro de seu casulo, se  mantendo alheio e só ouvindo. A Régua Eduarda, voltou a se manifestar e comentou sarcasticamente). 

Régua Eduarda: 
— Meninas, escutem o que vou dizer. Tudo o que estamos vendo e vivenciando aqui, não passa de um drama comum de estoque de papelaria... tenho para mim que não existe borracha igual a Eloá Vitória. Do mesmo modo, nem grafite para uma vovozinha linda na qual a Lapiseira Elisanja vem se transformando... eu também, como todos que aqui vivemos e trabalhamos, cairemos num poço sem volta do nefasto desábito. O que precisamos fazer, com urgência é nos preparamos para quando esse momento desditoso e maléfico chegar, estarmos de cabeças erguidas e em paz. 

A lapiseira Elisanja, a régua Eduarda, a borracha Eloá Vitória e até o estojo Lilico Tilibra nesse momento, vendo que a paz voltara a reinar, foi atrás da geladeira, se benzeu e rezou um Pai Nosso. Estava saltitante, já que seus chegados se confraternizavam, se abraçavam, e se uniam, irmanamente, em vista do tempo que algum dia (ou em breve, nunca se saberia ao certo), atracaria no cais do destino de cada um deles, como um barco negro para levar para o desconhecido de um futuro sem volta.  E o pior de tudo: sem aviso prévio.  

Diante desse quatro apresentado, que lição poderíamos tirar para usar no nosso dia a dia dessa história com sabor de quero mais?  A lapiseira, a Régua, a Borracha e o Estojo se uniram, e passaram a refletir, em vista do tempo que seguiria adiante, enquanto uma ficaria pequena, ou seja a Borracha e a Lapiseira, sem grafite. Quem daria uma palavra amiga, para que todos eles encarassem o porvir sem receios de se quedarem velhos e inoperantes? Imaginemos que a régua pudesse ser a voz da razão e da estabilidade, dizendo algo como: “Não se preocupem, amigos. Embora o tempo transforme a nossa aparência e função, a essência do que fomos, nunca desaparecerá. O que fizemos juntos, tipo medir, corrigir, criar, cortar, apagar, refazer, permanecerá em cada linha e traço que ajudamos a formar.”

Talvez a borracha, amiudada e gasta, seguiria cumprindo seu propósito. Apagaria para dar espaço ao novo.  Mesmo capenga, seu tamanho não definiria a sua utilidade, mas sim, o impacto que continuaria causando. “Embora depauperada, ainda — diria, lisonjeira — poderei mandar para as cucuias, um bocado de erros e dar espaço para prósperos recomeços. O que nos une e nos mantém com os nossos corações pulsando, é que continuaremos sendo úteis, cada um à seu jeito.” E a lapiseira, sem grafite, encontrará consolo ao lembrar que não importa como... de onde menos se espera haverá um jeito de recarregar e seguir criando.  

O importante, berrou num dado momento espavorido, a Régua Vitória, como se tivesse lido os pensamentos do estojo Lilico Tilibra: 
— SOMOS UMA GRANDE FAMÍLIA. E DEVEREMOS CONTINUAR ASSIM... UNIDOS... HAJA O QUE HOUVER...

Com a chegada do curto passeio feito pelo casal Papel Pedro Simão e a Tesoura Vandeca, os demais pularam apressados para dentro do refúgio Lilico Tilibra, o “Estojo Guardião” que, radioso e contente, anunciou:

— Hora do jantar. Venham saborear as guloseimas que preparei para nós. Em confraternização a esse chamado, os partícipes se uniram radiantes e famintos em volta da enorme mesa oval. 
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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sábado, 21 de junho de 2025

Renato Benvindo Frata (Um quintal, um mundo)


Quando se é criança, a dimensão das coisas como as vemos se agigantam aos nossos olhos, em relação ao nosso próprio tamanho. Tudo é grande, alto, comprido, gordo, balofo.

Minha mãe era alta, espadaúda, ligeira e silente. Pisava manso enquanto cantava com os cochichos a si própria, hinos sacros à Santa Maria. Ligava-se o rádio em casa apenas para notícias e novelas.

Ela assoprava o ferro a brasa com as músicas saídas de seu íntimo e eu a olhava sem a distrair. Admirava-a e permanecia ao redor de seus pés.

Na sala e, envolto com búricas e papéis, assistia aos movimentos de braços, e aos chiados do ferro quente sobre o pano respingado de água, que se sobrepunha à peça de roupa sendo passada.

Quando me ponho a lembrar, ainda o escuto e, se bem apurar o olfato, saberia distinguir o cheiro peculiar do tecido ao ser secado à força pelo ferro quente, até que a fumaça fosse bambeada pra aqui e pra li pelo vento da janela.

Nosso quintal de esquina era enorme e tomado por pés de chuchu, bucha, horta, galinheiro, araticum, santa bárbara frondosa e um enorme forno a lenha, onde ela assava os pães. Embaixo dele, achas de lenhas, gravetos e até ninho de galinha.

Nesse quintal eu era o Zorro. Eu era o Tarzan. Eu era o Randoph Scott, o mais rápido no gatilho, e vivia meu mundo de moleque magrelo e barrigudo, a cavalgar um cabo de vassoura com rédeas de trapo, cuja montaria tanto poderia ser o ‘Stardust’ do Randolph, ou o ‘Silver’ do Zorro. E tudo era tiros, gritos de “mãos ao alto” e relhadas sob estalos imaginados.

Os caroços de Santa Bárbara enchiam-me os bolsos a fazerem do meu estilingue o revolver o mais certeiro, e o quintal se transformava nas pradarias replicadas do Grand Canyon, das matinés dos domingos, tendo o mocinho a dominar índios e bandidos. E eu gritava.

Lá pelas tantas, minha mãe chegava e, sem muito falar, tomava-me pela mão para o banho. A passada de bucha nos encardidos doía, o mercúrio cromo nas machucaduras amenizava, para terminar com um beijo na testa roupa limpa e uma tapinha na bunda.

Não sei se cresci ou se meus olhos perderam aquela extensão que avolumava as coisas, mas minha mãe envelheceu e ficou menor, arcada, lenta e calada. 

Seus braços, antes fortes, já não aguentavam o ferro agora elétrico, pequeno, leve e nem tanto quente, e de sua boca não saíam mais os cânticos religiosos, mas sim pedidos também em forma de assoprares.

Sopros entrecortados pelo esforço de seus olhos em me reconhecendo, se comunicarem pedindo: - eu quero minha casa, a minha casa…
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Eduardo Martínez (Dona Irene e a cachaça em Poços de Caldas

 
Numa madrugada de 2012, a Dona Irene e eu estávamos saindo de São José do Rio Pardo-SP, onde fomos deixar uma linda cadelinha da raça Dogue de Bordeaux. Antes de irmos embora, perguntamos para a dona da cachorrinha se havia alguma cidade interessante perto dali para conhecermos. Ela disse que Poços de Caldas-MG era bonita e ficava a uns 60 quilômetros. A Dona Irene, que nessa época era minha namorada, olhou para mim e sorriu aquele sorriso mais lindo do mundo. Isso, para quem não sabe, é o sim da minha hoje esposa e, então, entramos no carro e voltamos para a estrada.

  Como nessa época viajávamos com um antigo mapa de papel, fomos muito atentos para não errarmos o caminho. Não sei exatamente quanto tempo levamos para chegar à cidade mineira, mas lembro do motel em que dormimos. É que havia uma espécie de jardim de inverno ao lado da cama, com uma porta de vidro quebrada e o céu como teto. Isso mesmo, apesar de haver uma cobertura no quarto, isso não acontecia com a parte do jardim de inverno. Além do mais, fazia um frio tão intenso, que, se estou escrevendo estas linhas hoje,  é porque fui salvo pelo doce calor emanado do corpo da Dona Irene.

  Fomos despertados com o sol batendo na nossa cara. Ainda tentamos cobrir o rosto com o fino lençol, até que a minha amada disse que estava com fome. Levantamos e fomos procurar alguma coisa para preencher o estômago da minha namorada, já que aquele motel não servia café da manhã. 

    Assim que entramos no carro, percebemos que o motel ficava perto do centro. Paramos em uma cafeteria, onde a Dona Irene fez seu desjejum, enquanto eu, como sempre faço pela manhã, tomei meu café preto. Sem açúcar, pois, de doce, já basta a vida. 

   Não sei se você conhece Poços de Caldas, mas vou lhe dizer assim mesmo. Das inúmeras cidades que conheço em Minas Gerais, é a mais agradável. E olha que já passei por várias outras muito legais também. 

    Logo que saímos da cafeteria, fomos dar uma volta para apreciar melhor o local, quando, de repente, um simpático senhor em uma charrete nos convidou para darmos um passeio, ao custo de não sei quanto, mas que não achei caro na época. Seja como for, o passeio estava extremamente agradável, quando, sem avisar, o condutor parou a charrete e nos convidou para conhecermos uma loja de cachaça e queijos. 

  Para falar a verdade, achei aquilo meio esquisito, pois eu queria mesmo é continuar naquele clima bucólico ao lado da minha namorada. Todavia, antes que eu pudesse continuar nessa divagação rabugenta, eis que me chega alguém com uma dose de cachaça e uns pedaços de queijo. Eu não bebo e, pela manhã, é difícil descer algo sólido para o bucho. 

    Agradeci, mas, antes que esse alguém saísse da minha frente, a Dona Irene não se fez de rogada e já foi entornando a cachaça para dentro do estômago, como se aquilo fosse água mineral da fonte mais pura. Para rebater, ela pegou um pedacinho daquele queijo tão cheiroso.

    Depois disso, fiquei compelido a comprar uma garrafa de cachaça e um queijo naquela loja, mas o homem da charrete nos puxou pelo braço e disse que tínhamos que ir. De volta ao passeio bucólico, até comecei a apreciar novamente aquele balançar gostoso ao som dos cascos do cavalo, que soube se chamar Tufão. No entanto, o condutor parou novamente justamente em frente a uma nova loja, também de cachaça e queijo. Descemos, entramos no tal comércio, alguém me ofereceu cachaça e queijo, educadamente recusei, enquanto a Dona Irene botou tudo para dentro. 

   Pois bem, para encurtar a história, que já está muito mais longa que o costumeiro, voltamos para a bendita charrete antes que pudéssemos comprar qualquer coisa. Depois paramos em não sei quantos novos estabelecimentos, eu recusei tudo o que me ofereceram, ao contrário da minha namorada, que, àquela altura, aceitaria até mesmo sopa de pedra. 

    Finalmente o passeio terminou, quando já era perto da hora do almoço. Tive que auxiliar a minha amada a descer da charrete, pois ela estava tão trôpega, que mal conseguia se lembrar de onde estávamos. Aliás, essa parte estou escrevendo aqui em casa com a Dona Irene me olhando torto e sentada no sofá aqui da sala.

    Procuramos um local para deitarmos, justamente sob a copa de uma árvore. Acabamos adormecendo por algumas horas. Fui despertado pelas cutucadas da minha amada, que, pasmem, estava nova como folha. Ela se levantou numa agilidade improvável para alguém que havia ingerido tanto álcool e, então, me fez o seguinte convite: "Quero conhecer o ET! Será que Varginha fica muito longe?”
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
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quarta-feira, 18 de junho de 2025

Coelho Neto (O Mentiroso)


Podia jurar! Riam-se dele. Mentia tanto, que ninguém dava crédito ao que dizia. Às vezes queixava-se de moléstias: e, longe de o tratarem carinhosamente, repreendiam-no, ameaçavam-no, quando não lhe dobravam os exercícios de escrita; e, pobrezinho! Muitas e muitas noites, ardendo em febre, debruçado à carteira, copiava compridas descrições, — e tudo porque mentia. Os mesmos companheiros repeliam-no quando ele aparecia contando um fato:

— Ora, sai daqui, mentiroso! Pensas, então, que somo tolos?

Uma manhã desceu ao rio em companhia de outro. Chovera abundantemente dias antes, e o rio assoberbado, transbordara.

Os dois meninos hesitaram algum tempo antes de tirar as roupas; o mais velho, porém, nadador intrépido, acoroçoou André, o mentiroso:

— Vamos, a correnteza é insignificante e não precisamos ir para o meio do rio. Vamos!

Animado, André atirou-se ao rio; a correnteza, porém, começou a arrastá-lo, de sorte que, quando ele quis tomar pé, a água cobriu-lhe a cabeça. O outro boiava cantarolando.

De repente ouviu um grito angustiado: — Ai! — Voltou-se, e, não vendo André, teve um sobressalto; logo, porém, considerando, sorriu: 

— Pois sim! Pensas que me enganas! 

E continuou a nadar tranquilamente. Mas André não aparecia: o menino ganhou a margem, lançou os olhos para os cantos, desconfiando de que o companheiro se houvesse escondido em alguma moita para assustá-lo; vendo, porém, que não aparecia, correu aterrorizado para o colégio, levando a tristíssima notícia. 

Desceram criados, e, atirando-se ao rio, procuraram o pequeno que as águas haviam arrebatado. 

E o companheiro, em pranto, repetia com sentimento:

— Eu bem ouvi o seu grito, bem ouvi, mas ele mentia tanto...

Dias depois, apareceu coberto de ervas e horrivelmente deformado o cadáver do pequeno André; e o companheiro, vendo-o, soluçou ainda: 

— Coitado! Mas foi por culpa dele. Mentia tanto!

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HENRIQUE MAXIMIANO COELHO NETO nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público.
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José Luiz Boromelo (As flores em nossa vida)


O ser humano tem por hábito conferir valores distintos a fatos que acompanham sua trajetória de vida. Esses valores são representados por comportamentos que externam os sentimentos nutridos por aqueles que de alguma maneira, exercem importância na vida das pessoas. Essa característica em realçar os vínculos afetivos é observada em diferentes ocasiões, nas quais se busca homenagear os que lhes são gratos. E uma das formas mais utilizadas para expressar os sentimentos são as flores, que estão presentes nos momentos mais importantes de nossa vida. Do nascimento à morte, elas nos acompanham e deixam suas marcas.

 Podemos encontrá-las na paixão que acompanha os casais enamorados. Na celebração que une duas pessoas com objetivos comuns a caminho do altar. Ou no dia dedicado àquelas que nos trouxeram ao mundo. É impossível imaginar o Dia das Mães sem flores de toda espécie, tamanhos, cores e aromas diferentes. Os aniversariantes também são lembrados no seu dia com vasos, ramalhetes e arranjos criativos, transformando aquela data num dia especial. Nos eventos importantes ou nos mais humildes encontros eis que lá estão elas, imponentes, soberanas e surpreendentemente belas. Não há quem não se deixe encantar pelas propriedades terapêuticas da singela companhia, no momento em que mais se necessita do conforto de um abraço ou da sabedoria de uma palavra amiga.

 As flores nos acompanham nos derradeiros momentos de nossa breve passagem por essa vida terrena. Mesmo que por motivos óbvios não possamos compartilhar com sua imensa beleza nesse dia, elas estarão lá, com toda certeza. Terão a missão de acalentar os corações destroçados pela dor da separação, de mostrar que o ciclo da vida enfim se completa; de perfumar a vida dos que ficaram, provando o quão sábia é a natureza que sempre estará à disposição do ser humano; de promover e fortalecer a união entre os casais que passam por dificuldades em sua vida conjugal; de devolver a esperança aos enfermos que vivem o calvário diário do sofrimento e da incerteza da cura; de alegrar a vida dos idosos esquecidos pelos familiares insensíveis em algum albergue qualquer; de simplesmente mostrar ao homem que Deus existe e está presente em todas as coisas desse mundo, e tudo o que vive sobre essa terra foi obra de sua poderosa mão.

 Apesar de todos os avanços tecnológicos disponíveis, jamais conseguiremos produzir sequer uma única e minúscula semente que venha a germinar, crescer e florir. Manipulamos e modificamos geneticamente diversas espécies vegetais e animais, porém nossa limitação é evidente enquanto desprovidos dos poderes da criação. Destruímos e alteramos permanentemente a biodiversidade e o clima e ainda assim nos consideramos seres inteligentes. Quiçá possamos ter a certeza de que as futuras gerações terão o privilégio de pelo menos, admirar a simplicidade e a inigualável beleza das flores. Porque elas, definitivamente, fazem parte de nossas vidas.
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JOSÉ LUIZ BOROMELO, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

Fontes:
Recanto das Letras. 16.06.2015
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5279561
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domingo, 15 de junho de 2025

A. A. de Assis (Telefone e maionese)


Entrei descontraído no escritório de um amigo, pensando somente em trocar um abraço. Encontrei-o todavia nervoso, queixando-se da maionese que comera no almoço. Pediu licença para ir “desapertar-se”, porém o telefone tocou. Interurbano. Um cliente importante, de São Paulo. Com uma das mãos segurando a barriga, meu amigo resolveu atender. Seria uma conversa rápida. Anotar algum recado e dizer tchau. Do outro lado da linha, entretanto, o fulano não sabia da situação e encompridou o papo:

– Como vai nossa esplendorosa Maringá? Essas árvores, essas praças lindas, esses fantásticos ipês… Estou com muita saudade de tudo isso. Puxa… faz tempo não passo aí…

E nada de o cara dizer o que queria. Só preâmbulo. Prolixíssimo preâmbulo. O meu amigo gemendo de cólica. E o sujeito esticando a prosa.

–  Sabe? Tem um rapaz de Maringá que está em São Paulo fazendo um curso… Ele passa frequentemente aqui no meu escritório. Tenho, modéstia à parte, uma bela biblioteca e ele vem fazer pesquisas. Um moço de grande futuro.

– Sei, aparteou a vítima da maionese. Por favor, diga o que deseja, prometo providências imediatas. Estou aqui para servi-lo.

–  Pois é, o negócio é o seguinte… ah!… Fiquei sabendo que você vai passar as férias na praia. Aprecio o seu bom gosto, mas tome cuidado com as estradas… Como?… Não vai para a praia?… Vai pescar no Mato Grosso?… Puxa, rapaz, também sou louco por pescaria.

     E levou mais uns bons minutos narrando suas proezas de pescador, enquanto o pobre já não suportava o incômodo, suando frio, o rosto pálido, o olho voltado para a porta do banheiro.

– Desculpe, amigo, mas eu tenho uma reunião daqui a pouco, já estou atrasado, depois ligo pra você e conversaremos sem pressa.

– Entendo. Mas só quero lhe perguntar mais uma coisinha: como vai o tempo aí? Tenho um compadre que tem um tio que tem umas terras aí perto e espera colher uma boa safra. Burro fui eu, que perdi a oportunidade de comprar um sítio ao lado do dele. Na época era baratinho, agora está valendo umas vinte vezes mais. E você? Já tem sua fazenda? Não perca tempo, rapaz. Terra é sempre terra…

–  Certo… certo… Então ligo mais tarde… tchau-tchau…

–  Espere… quero só que você me faça um favorzinho…

–  Está bem, vou passar o telefone para a secretária. Ela anotará o recado. Desculpe a pressa… é que tenho de fato uma reunião me esperando.

Tarde demais. A essa altura o que ele precisava fazer mesmo no banheiro era simplesmente tomar um banho…
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A. A. DE ASSIS (Antonio Augusto de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), etc.

Fontes:
Portal do Rigon. 29.05.2025
https://angelorigon.com.br/2025/05/29/telefone-e-maionese/
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Wallace Leal V. Rodrigues (A balança)


Quando menino eu vivia brigando com meus companheiros de brinquedos. E voltava para casa lamuriando e queixando-me deles. Isto ocorria, as mais das vezes, com Beto, o meu melhor amigo.

Um dia, quando corri para casa e procurei mamãe para queixar-me do Beto ela me ouviu e disse o seguinte:

- Vai buscar a sua balança e os blocos.

- Mas, o que tem isso a ver com o Beto?

- Você verá... Vamos fazer uma brincadeira.

Obedeci e trouxe a balança e os blocos. Então ela disse:

- Primeiro vamos colocar neste prato da balança um bloco para representar cada defeito do Beto. Conte-me quais são.

Fui relacionando-os e certo número de blocos foi empilhado daquele lado.

- Você não tem nada mais a dizer? 

Eu não tinha e ela propôs: – Então você vai, agora, enumerar as qualidades dele. Cada uma delas será um bloco no outro prato da balança.

Eu hesitei, porém ela me animou dizendo:

- Ele não deixa você andar em sua bicicleta? Não reparte o seu doce com você?

Concordei e passei a mencionar o que havia de bom no caráter de meu amiguinho. Ela foi colocando os blocos do outro lado. De repente eu percebi que a balança oscilava. Mas vieram outros e outros blocos em favor do Beto.

Dei uma risada e mamãe observou:

- Você gosta do Beto e ficou alegre por verificar que as suas boas qualidades ultrapassam os seus defeitos. Isso sempre acontece, conforme você mesmo vai verificar ao longo de sua vida.

E de fato. Através dos anos aquele pequeno incidente de pesagem tem exercido importante influência sobre meus julgamentos. 

Antes de criticar uma pessoa, lembro-me daquela balança e comparo seus pontos bons com os maus. E, felizmente, quase sempre há uma vantagem compensadora, o que fortalece em muito a minha confiança no gênero humano.
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Wallace Leal Valentin Rodrigues nasceu em 1924, em Divisa/ES, foi para Araraquara, SP na década de 30. Estudou Ciências Econômicas em Ribeirão Preto. Foi ator e diretor de teatro, diretor de cinema, escritor, jornalista. Realizou seu primeiro filme em 1953: o documentário Aurora de uma Cidade. Foi diretor e ensaiador do TECA (Teatro Experimental de Comédia de Araraquara). Acompanhou e colaborou com a primeira escola de ballet da cidade: Escola de Ballet Mímica de Araraquara, desde sua fundação maquiando, e apoiando nos figurinos e cenários das apresentações por longo tempo. Coordenou, compôs, criou, orientou jovens e crianças em desfiles de modas ensinando como andar, sentar, colocação de mãos e pés, comportamento e postura de corpo e porte em passarela, um trabalho de alta qualificação, ensinamento europeu. Como escritor tem livros publicados no Brasil e no Exterior. Era poeta, compunha música e além do teatro, atuava junto ao grupo de rádio teatro. Em 1958 teve a ousadia de escrever, produzir e dirigir um filme: Santo Antonio e a vaca, rodado na região, sobre o folclore regional. Para tanto criou a Arabela Filmes. Além do indiscutível talento de Wallace para as artes culturais, merece nota seu trabalho na divulgação do Espiritismo, doutrina que ele assumiu aos 16 anos e divulgou por toda a sua vida. Se destacou como Redator-Chefe do jornal O Clarim e da Revista Internacional de Espiritismo. Na literatura espírita; foram dezenas de livros, uns de sua própria autoria, outros que ele traduziu e organizou. Em 1973,: passou a integrar o quadro de colaboradores da revista Planeta. Em 1973, lançou, na sede da Federação Espírita do Estado de São Paulo, seu livro Remotos cânticos de Belém, No enredo da obra, Wallace juntou histórias e personagens e os colocou num avião que é sequestrado na véspera do Natal. A mensagem que ele passa é a de que a suave melodia do Natal faz-se sentir e abranda até mesmo situações extremamente graves, como a vivida pelos passageiros. Como autor: Remotos cânticos de Belém; Meimei; Vida e mensagem; A esquina de pedra; E, para o resto da vida; Katie King. Considerado pela crítica especializada como uma das pessoas mais cultas dos últimos anos em nosso país, aos 62 anos, Wallace teve seu estado de saúde comprometido e faleceu em 1988.

Fontes: 
Wallace Leal V. Rodrigues. E, Para o resto da Vida. Disponível no Jornal Mundo Espírita. Fevereiro de 2000.
Biografia = Federação Espírita do Paraná
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 136


Crepúsculos? Ah, os crepúsculos! Aqueles do outono. Tardinhas viram pinturas imensas, cenários de encantamentos, céus de pura inspiração. Mudam os ventos da estação, mudam os ares dos dias, mudam os responsos da vida. 

Folhas esparsas, atmosfera embalsamada de aromas. As flores. Dálias, cravinas, margaridas, gérberas, gerânios, lírios do brejo. Cores das calendas. A poesia rabiscada nas vidraças suadas das noites frias. Ali dentro o pinhão na chapa, o vinho na taça, dissabores transformados em opimos (ricos) sabores.

Quem dera que os dias dos humanos fossem sempre feitos de delícias e encantos. Que os arautos bissextos trouxessem alvíssaras de tempos melhores, manhãs, tardes, noites fartas de iluminuras, estações perenes de bom viver.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Olavo Bilac (Uma vida…)


No alto do morro, que demorava a cavaleiro da fazenda, ficava a casinha do velho preto, do velho e meigo pai João, tão velho que já não podia andar, e que já todos os seus dentes tinham caído.

A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio da verdura das folhagens abrigavam carinhosamente aquele centenário, a quem a morte parecia haver esquecido no lindo recanto da terra brasileira. Pai João, como o chamavam todos, envelhecera no trabalho. Por muitos e muitos anos a fio, os seus braços empunhavam a enxada, beneficiando a terra. Tinha visto, pouco a pouco, transformarem-se os lugares de incultos em produtivos, e conhecera toda a gente que por ali passara: já era homem feito quando os velhos de agora ainda eram meninos, correndo às soltas pelos campos; vira nascer e morrer muita gente, e vira a fazenda passar de senhores a senhores... Agora, havia muito tempo que não trabalhava: mas a gratidão dos donos da terra lhe havia reservado aquele calmo retiro, último abrigo de toda uma vida de labor e dedicação.

Logo ao clarear da madrugada, pai João saía, arrastando-se, da sua cabana, e vinha sentar-se à porta, no rústico banco de pau. Já o encontrava ali os primeiros raios de sol, que lhe vinham beijar a cabeça emaranhada em duros cabelos carapinhados, alvos como a neve. Em torno, a paisagem esplendia. A encosta da colina, atapetada de uma relva macia, descia docemente para o vale, onde assentavam as casas da fazenda. Lá estavam, longe, as casas dos colonos, os paióis, as grandes casas das máquinas, a capela pequenina e branca, e, cercando tudo, de um lado as plantações ricas, e do outro o campo vasto, em que o galo pastava, numeroso e nédio. O velho preto, magro e trêmulo, sentava-se, cruzava no colo as mãos descarnadas, e começava a acompanhar com amor a agitação de todo aquele trabalho, que já não era para o seu corpo sem forças. Dali, via ele a partida matinal para o campo, — o bando alegre dos lavradores fortes, enchendo com a vozeria das suas cantigas a amplidão do céu. Dali, ouvia ele os toques da sineta, transmitindo ordens, marcando as horas das refeições e do descanso.

Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João, comendo, ia com a voz fraca dizendo histórias ingênuas, que os pequenos escutavam com delícia. Depois, dormia, à sombra, enquanto a viração embalava docemente as árvores e as borboletas revoavam sobre as flores silvestres. Parecia o gênio tutelar da fazenda, aquele bom velho, que a vira nascer, crescer e prosperar...

Ao anoitecer, recolhia-se. Mas, não raro, por noites claras, quando a lua brilhava no céu, vinha a gente de baixo conversar com ele, e dos seus lábios ouvir a história viva daqueles sítios; e muitos colonos brancos, vindos de longes países, gostavam de receber lições e os conselhos do antigo escravo.

Foi numa noite dessas que eu conversei com ele, no alto do morro, ouvindo lá embaixo, nas casas dos colonos, a música das sanfonas e das violas.

— Você, em toda essa vida tão comprida, deve ter sofrido muito, hein, pai João? — perguntei com interesse.

Ele levantou para mim os olhos quase apagados, e teve um sorriso. Depois, começou a falar, como um pobre preto ignorante que era, na sua linguagem rude; não guardei memória de suas palavras, mas guardei o sentido do que elas queriam dizer:

— “Toda a gente sofre neste mundo, moço! Mas eu não tenho muita razão de queixa... é verdade que, nos primeiros tempos, tive de chorar bastante, com a saudade da minha terra; e depois, o cativeiro (no tempo em que havia cativos!) era uma grande maldade!... Mas, se houve senhores maus, que castigavam barbaramente os escravos, também houve senhores bons, que não gostavam de ver o sofrimento deles. Eu fui um dos primeiros homens que trabalharam aqui. Quando vim, tudo isso era mato. Aqui gastei toda minha mocidade. Logo depois, porém, fiquei livre, e fui um amigo daquele de quem havia sido um escravo. Era eu o seu homem de confiança. Só no meu trabalho é que o senhor tinha fé. Tive filhos: quando houve guerra do Paraguai, dois de meus filhos, já livres, foram brigar com a gente do Lopes; um ficou por lá, varado de balas; mas o outro voltou e veio morrer muito depois, nos meus braços, deixando-me cheio de netos... Esses netos andam por aí ganhando a sua vida, como os brancos, sustentando as suas famílias, trabalhando para si e para os seus. E eu hoje só conheço esta terra, onde me fiz homem, esta terra que eu lavrei enquanto tive forças, e que ainda hoje, para me pagar o bem que eu lhe fiz, me dá a sombra das suas árvores, e a comida que me sustenta. 

“Toda a gente sofre nesta vida, moço: mas outros sofreram mais do que eu... É por isso que eu não me queixo! Deus nosso senhor não quis que eu acabasse os meus dias na miséria, sozinho, sem ter quem me desse um pedaço de pão, e quem me fechasse os olhos na hora da morte. Que é que eu posso querer mais? Toda a gente aqui é minha amiga; toda gente sabe que o coitado do pai João nunca fez mal a ninguém. Também, todo o povo vem sempre saber como vai o velho... Ah! Eu só tenho medo da morte, porque ela me há de tirar deste cantinho que amo tanto! Não sofri muito, não, moço, porque sempre fui trabalhador, e o trabalho sempre faz a gente feliz!...”

Assim falava pai João... eu, ouvindo-o, pensava em todo o seu passado. Ali estava um homem que dera tudo à terra querida: dera-lhe o suor de seu rosto, o melhor da sua vida, toda a força do seu corpo e todo amor da sua alma, — e ainda o sangue de seus filhos... e, agora, já quase morto, ainda amava como nos primeiros dias; e a sua mão, cansada e trêmula, estendida sobre os campos, parecia abençoar, num gesto derradeiro de proteção e carinho.
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Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro — Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
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quarta-feira, 11 de junho de 2025

Laé de Souza (Regras para o reveillon)


Desgastado com a repetição das encrencas e perturbações resultantes de reunião da família para comemorar o réveillon, na minha casa de praia, resolvi estabelecer algumas normas para que, nesse ano, fosse diferente.

Entre outras coisas básicas, que nem se precisava falar para pessoas sensatas, fiz constar: 

– Não deixar que os filhos coloquem o som nas alturas; 
– Comer o suficiente, pensando que outros estão na praia e chegarão para comer; 
– Estabeleci horário para o almoço e, quem chegar mais tarde, que coma por lá; 
– Beber sem exageros e deixar a geladeira sempre abastecida; 
– Ajudar a lavar a louça, mesmo que esteja morrendo de sono; 
– Comportar-se como pessoas civilizadas e lavar os pés, livrando-se da areia, antes de entrar em casa; 
– Lavar cadeiras e guarda-sóis e deixá-los arrumadinhos na edícula; 
– Não jogar bolas dentro de casa, nem os grandes, nem os pequenininhos; 
- Avisar aos filhos que não fiquem com pirraças uns aos outros e, principalmente, com os menores, para evitar choradeiras; 
– Não jogar bola no quintal, pois da última vez quebrou uma planta da minha mulher e foi uma chateação; 
– Quem beber muito, evite conversas do passado, para não ficar um ambiente de lamúrias e choros; 
– Revezamento na churrasqueira, sem desculpas de que não sabe cuidar da carne – que fique aprendendo com quem sabe. 

E por aí foi a lista, para que tivéssemos uma festa tranquila e em paz.

Tirei algumas cópias do regulamento, com o propósito de que cada convidado recebesse uma, com o cuidado de que marido e mulher recebessem cada qual a sua. Antes da viagem, chamei minha mulher, mostrei-lhe o regulamento e pedi que ela fizesse a entrega para a sua família e eu faria a da minha. 

Bem, quase que ela cancela a viagem, achando um absurdo e que algumas coisas que ali constavam tinham direção certa. Questionou-me: - Quem é que chora depois de uma bebedeira, todo ano?

- Geralda, tu bem sabes que é a tua irmã. Mas, tu achas certo eu colocar o nome das pessoas, aqui? A carapuça vai servir para quem acha que faz o que é errado.

- E tu achas que é errado, tomar um fogo no final de ano...?

Bom, pra encurtar, ficou resolvido que seria assim e que eu entregaria o tal regulamento tanto para os meus quanto para os parentes dela. E, ainda, acrescentei que deveria ser incluído, no regulamento, que as mulheres deverão respeitar e seguir as orientações do marido, o que a fez fechar a cara. Mas, fomos embora.

Cada família que chegava, antes de descarregar o carro, eu entregava para o marido e mulher o regulamento. Um cunhado, achou um absurdo, e gritou para a mulher, que nem descarregasse o carro, por que iriam embora. Depois de um deixa disso, acabou ficando. 

Eu cutuquei a minha mulher: “É que ele sabe que quem não encosta a barriga na churrasqueira é ele. Ficou mordido porque acabou a moleza”. Eu ia acrescentar mais outras coisas que se referia a ele, mas achei melhor parar.

Não precisa nem falar que cochichavam sobre o tal regulamento, e eu ouvi um falando “palhaçada, no ano que vem, tô fora". E, eu, nem aí com os cochichos.

No começo, tudo bem. Depois que começaram a beber, e aproveitando que eu também tinha bebido, o que era cochicho, virou indireta, tipo “e aí pessoal, vamos seguir as regras, hein!”, “pega lá o regulamento, para ver se pode”, e por aí vai. O que importa é que alguns comportamentos não extrapolaram a regularidade e um ou outro foi o exagero.

Na hora de irmos embora, um porcaria de um sobrinho, que nem era da minha mulher, era meu, vem com uma história: - E aí tio, esse regulamento era só pra nós, era? – e contava nos dedos – Você bebeu um monte de cerveja e não abasteceu a geladeira; chegou da praia de fogo e entrou em casa sem tirar a areia dos pés; ficou cantando no karaokê até três horas da manhã; perdeu a chave da casa, lá na praia; E você, ainda, não levou protetor solar e usou o do meu pai. Só nós que tinha que seguir as regras, era?

Aquilo me ferveu o sangue. Só podia ser por instruções da minha cunhada, que aquele pirralho não tinha nenhum senso de observação. 

Enfurecido, falei: – Você me respeite! Eu sei muito bem que a sua mãe te deu educação – espinhei – E olha aqui, o ano que vem não tem regulamento que, espero, todos já aprenderam a se comportar como gente. 

– Rasguei o regulamento, falando um bravo: – Vamos embora, mulher!
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Laé de Souza é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco. 

Fontes:
Laé de Souza. Nos bastidores do cotidiano. SP: Ecoarte, 2018
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