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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Antonio Brás Constante (Sozinho em casa...[Liberdade ou prisão?])

Ficar sozinho em casa nem sempre é muito fácil para quem já constituiu uma família. A esposa e os filhos vão para praia e você fica inteiramente sozinho em sua morada, já que a temporada de praias é maior que suas férias. Muitos dizem que este é um momento de liberdade. Mas às vezes, os fatos dizem outra coisa.

A pior parte de se ficar sozinho é o nosso “eu” interior, que teima em querer ter conosco os tais “papos cabeça”, justamente quando sentamos na frente da televisão com nosso copo de cerveja. Você tenta convencê-lo a esperar a hora dos comerciais, mas ele conhece-o muito bem, afinal está dentro de você. E não lhe deixa em paz até pararem para conversar. Uma auto-reflexão indesejada sobre sua vida. Fazendo-o pensar que morar sozinho consigo mesmo, é uma tortura.

Além de ter que dividir o espaço com sua “consciência”, ainda tem as tarefas do lar para executar. Por exemplo: Todo dia passa várias vezes pela pia, e a encontra cada vez mais cheia de louça suja. Você faz uma carranca para aquele amontoado de copos, pratos, panelas e talheres. Na esperança de intimidá-los e persuadi-los a se lavarem sozinhos, e depois irem se alojar em suas devidas gavetas. Com seus filhos esse procedimento quase sempre funciona. Uma olhada séria é o suficiente para eles irem tomar banho e se deitar. Mas a louça não parece muito incomodada com suas rugas de preocupação e fica ali como se o assunto não fosse com ela.

Outro problema é a TV. Não consegue ficar mais do que dez segundos olhando um mesmo programa. Nestas horas sua esposa funcionava como um moderador, que após a terceira mudança de canal lhe xingava e mandava por na novela. Agora sozinho você fica resmungando para si mesmo, mas não adianta. Viaja por todos os canais umas dez vezes e desiste da televisão.

Resolve procurar seus chinelos, mas as coisas ao seu redor parecem se esconder de você. Não encontra nada. Só achou o controle remoto porque sua esposa conseguiu convencê-lo a deixa-lo sempre em um mesmo lugar. Tal ideia lhe faz pensar se isto não seria o mesmo processo de adestramento utilizado em cães, mas acha melhor esquecer essa linha de pensamento.

No caso da comida a situação é bem mais tranquila, já que inventaram as tele-entregas. Sua dieta alimentar passa a ser à base de pizza, xis e cachorro-quente. O vestuário também é escolhido de forma casual. Você vai passando pelas roupas jogadas pelo chão, e as que ficarem presas aos seus pés acabam sendo escolhidas para vestir.

E assim as noites vão passando (já que os dias são propriedade de sua empresa). Fica a perambular pela casa feito uma alma penada, procurando imaginar que espécie de liberdade é esta que lhe torna escravo da solidão. Por fim sua família volta, ou suas férias chegam, e você parte alegre e feliz ao encontro de sua prisão.

Eduardo Martínez (Tempos de menino)

Ainda me lembro de quando passava meus dias de menino no sítio do tio Joca, em Carolina, no Maranhão. Após tantos anos, eis que aqui estou defronte daquela largo e profundo rio que banhou minha infância e, para meu espanto, deparo-me com um riacho. Para onde teria ido aquela enormidade de água? 

— Mas, Cássio, é o mesmo córrego - tio Joca tenta me convencer.

Incrédulo, olho ao redor. Até as árvores não me parecem tão grandes. Nem mesmo o jequitibá logo adiante. Tudo parece querer me impor uma realidade que não é a que guardo na memória. Teimoso que sou, fecho os olhos e volto a ouvir o som da correnteza, enquanto meus pés, agora novamente descalços, correm pela sua margem.

Cato uma pedra lisa e a arremesso. Ela, quase disco voador, rente à superfície, toca a água uma, duas, três, quatro vezes, até que, lá bem no fundo daquela imensidão, se torna submarino. Ao seu redor, piabas se fazem de tubarão.

Ouço o ronco de um bugio. Viro o rosto e meus olhos de menino avistam um enorme gorila no topo da árvore logo atrás. Magnífico, magnânimo. Nem o grupo de macacos-prego adiante podem com ele. Assustados, fogem saltando de galho em galho, até se perderem na vastidão da floresta. 

— Cássio?

— O quê, tio?

— Você está bem?

— Sim.

— Já te chamei três vezes.

— Desculpe.

— Vamos, que já estou sentindo o cheiro do almoço daqui. 

Acompanho meu tio, mas meu pensamento ainda está bem distante. Que saudade que sinto do menino que fui, repleto de imaginação.

Fonte> Blog do Menino Dudu – 24.04.2024

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Newton Sampaio (Noite quente, noite quieta, da cidade inútil)

Noite quente, noite boa, caminhando no silêncio, desaparecendo num céu forrado de estrelinhas piscantes, inumeráveis, longínquas.

Noite quente gostosa, na cidade sem personalidade, de casas fechadas, de ruas penumbrentas, sem vira-latas melancólicos nem boêmios incorrigíveis.

Noite quente, noite quieta, noite gostosa. Na cidade inútil, na cidade triste, na cidade decadente...

Juquita acorda assustado, perseguido pelos mesmos sonhos ruins.

Escuta o relógio, que é medroso e bate duas vezes, e o pai roncando num sono de felicidade profunda.

Fica de barriga pra cima. Mas não descansa. Porque despeja na consciência, sem parar, as imagens da Estela. Imagens fugidias, sujas, intensamente sujas.

Vira pro lado direito. É pior. A coisa aumenta.

Aperta os olhos pra chamar o sono. Aperta bem. Mas o sono não vem. O que vem é um barulhinho esquisito, indefinido. Presta atenção. O barulhinho aumenta, se distingue. É um estralejamento, a modo de graveto se queimando.

O medo toma conto do corpo. O corpo treme inteirinho. E os dentes fazem coro.

— Minha Nossa Senhora!

Deita-se de bruços. E reza baixinho:

— Padre nosso que estais no céu...

Nem chega ao “venha a nós o vosso reino”, porque o estralejamento fica forte de repente. Bota-se de pé. Foge pra sala. E sente um cheiro. Um cheiro de queimado.

Pelas frinchas da janela da sala percebe uma claridade que vem de fora. E treme. Treme apavorado.

Adelaide é que acorda. Fala meio inconsciente.

— Jesus!

Acende a luz. O filho se joga chorando no quarto grande.

— Menino!

— Ali! É ali!

Henrique desperta, estremunhado. E se espanta logo com a barulheira. Corre à janela amarfanhando a camisola meio encardida. E o rosto se lhe ilumina com o clarão medonho.

Fica estatelado. A cabeça se desgoverna, no pasmo imenso. Sobe um calor nos olhos. “Sente” que é preciso fazer qualquer coisa. Mas não consegue “pensar” nada.

Quando toma conta de si, a casa é um só reboliço, uma gritaria desenfreada. A casa e a vizinhança. Que a vizinhança também era uma única emoção e estava toda ali reunida.

Tenta-se desesperadamente qualquer salvação. Inútil.

Encontraria material excelente o fogo. Por isso o fogo fica lambendo tudo, vitorioso, impressionante.

Arde todinho o paiol. Por sorte ele se construíra isolado, na margem da grota. Se não, nunca que teria fim o desastre.

Clareada pela chama se extinguindo, alheia ao pandemônio sem altura, a figura de Henrique se recorta, trágica, no fundo da noite morna.

Camisolão amarrotado, cabelos desfeitos, fundas rugas se acentuando na cara descarnada, o velho caminha de um lado a outro, rondando, rondando a ruína de seus fardos, recolhendo, recolhendo a cinza de seu grande sonho inútil.

O riachinho do fundo da grota reflete uns últimos clarões perdidos. Mas o riachinho do fundo da grota não é muito certo. Porque riachinho confunde a luz do paiol com a luz das estrelas piscantes, inumeráveis, longínquas. Das estrelas que se multiplicam na noite quente, na noite longa da cidade inútil, da cidade triste…

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 22/07/1936.)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Um dia, o amor)

SEM MEDO DE ERRAR, aquele se fazia um coração que batia descompassado, como se dançasse tresloucado ao som de uma música envolvente, porém, que só ele conseguia ouvir. Esse coração pertencia a Lafaiete que amava profundamente, mas cujo amor, por algum motivo desconhecido, não se fazia retribuído. Assemelhava, sem tirar nem por, a um amor unilateral, tipo essas paixões doidivanas que ardem como fogo em um dos lados e permanecem frios e gélidos no outro.

Lafaiete por conta desse vazio terrificante, vivia batendo cabeça entre as estrelas e a melancolia. Entre o sonho não vivenciado e uma realidade não palpável. Nas noites mais escuras, olhava demoradamente para o céu e imaginava que cada estrela representava uma quimera não decantada, um desejo não correspondido, um tempo incerto e não vivenciado. Cada brilho distante se esboçava como uma lembrança dolorosa; um eco daquilo que poderia ter sido; mas nunca se fez palpável.

Por conta disso, “trocentas” vezes mergulhava em pensamentos ociosos, relembrando os momentos cavernosos, em que a pessoa amada estava por perto, sem estar. Cada sorriso, cada olhar, cada toque, eram guardados como preciosidades raras em seu coração. Contudo, ao mesmo tempo, essas lembranças e regalos também se transformavam em punhais perfurando a sua alma com a certeza de que nunca seriam mais do que isso: lembranças.

O amor não correspondido, para ele, se assemelhava a uma ferida que não cicatrizava. Se fazia pesado numa dor que não se resolveria com remédios ou palavras de consolo. Tudo se agigantava numa sensação estranha e densa de estar desabrigado, de não ter um lar para o aconchego do coração. Lafaiete se perguntava: “Como poderia algo belo e intenso, causar angústia tão degradante”?

Todas as noites, depois que chegava do trabalho, se trancava em seu quarto. Sentava na escrivaninha e escrevia cartas. Compunha missivas longas que nunca seriam enviadas. Poemas que jamais seriam declamados. Redigia para exorcizar a dor, para dar voz e forma aos sentimentos que o sufocavam interiormente. Assim, meio que abrupto, nasceu um poeta dentro dele. Cada verso, uma lágrima transformada em palavra, cada linha uma saudade eternizada na tinta de sua caneta esferográfica.

Mas o tempo passou, e Lafaiete aprendeu, a trancos e barrancos, que o amor não correspondido não mostrava o fim do mundo. Ele descobriu que a amargura poderia se transformar em algo mais suportável. Que as mágoas, em uma série de versos, os seus pensamentos dariam lugar à aceitação. Afinal, o amor não é apenas sobre ser amado ou ter alguma compensação em troca. É sobre sentir, assimilar, viver, usufruir, gozar, mesmo que num determinado ponto, alguma coisa descambe para a dor causticante e importuna na sua maior forma de expressão.

Assim, entre as estrelas e a melancolia, a consternação e a repugnância, Lafaiete se deparou com um novo caminho a ser seguido. Percebeu que o amor não correspondido não o mataria, ao contrário, o transformaria num novo ser. Um corpo de concepções vivificadas. Quem sabe, talvez um dia, encontrasse alguém de verdade. Uma criatura que olhasse para o mesmo céu e visse as mesmas estrelas. Alguém de olhos deslumbrantes que igualmente tivesse um coração descompassado, dançando ao som de uma música elegantemente invisível, contudo, maviosa e fruitivamente sonora.

Quem sabe, outro lado da mesma moeda, nesse encontro de almas solitárias, oxalá o amor finalmente se tornasse recíproco, mútuo e equivalente. Até lá, enquanto a esperança não bate definitivamente em sua porta, Lafaiete continuará a grafar as suas crônicas, suas poesias e cartas não enviadas. Afinal, o amor não correspondido ou não galardoado, também tem a sua beleza, a sua amenidade, a sua magia e a sua profundidade.  

Um dia (sempre há um dia), ele, Lafaiete, se torne o protagonista único de uma história de amor marcante, chique, saliente e infinita, tipo um conto perpétuo e, que não caiba apenas entre as estrelas... também se coadune nos braços de uma jovem elegante que o ame de volta, com a mesma intensidade e deleite. E cujo amor ardente e garboso será incondicionalmente palpável até o final de seus dias.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Eliana Palma (Microcontos) – 1

Sempre se sacrificara para dar presentes, que parentes e amigos desdenhavam. Fez diferente: cantou um "Parabéns pra você" para o aniversariante e usou a grana para renovar o próprio guarda-roupa.
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Levou o filhinho ao circo. Enquanto isso, a esposa acamada ria das gracinhas, e fazia mil acrobacias com o palhaço do vizinho.
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Era ótima cozinheira. Em transe, perfurava o pernil profundamente com a enorme faca. Foi sacudida pela patroa; o porco era o patrão abusador.
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Não sabia descansar. Não podia perder qualquer oportunidade. Driblava o cansaço e a idade com novas empresas. Foi interditado pelos herdeiros, que se cansaram de esperar o tempo de gastar!
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Só redigia textos de grande violência. Um dia foi encontrado morto: as letras agressivas o asfixiaram.
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Cismava. Olhos baixos nos pés rachados, e o filho do patrão a fazer dele o alvo de intermináveis chacotas... Quando o fazendeiro aflito perguntou pela mimada cria, respondeu: 
—"Sei não," com olhar distante no turbulento rio.
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Chorava na cobertura. Via aviões passarem e queria voar. Um dia, o salto, o sorriso e o baque. Hoje voa, leve, em outra dimensão.
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Não queria engordar. Muitas fórmulas e drogas depois come, hoje, feliz, grama pela raiz!
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Sua solidão tinha a halitose por companhia. Quando o último dente se perdeu viu-se obrigado a encarar o dentista. O sorriso voltou, e com ele, amigos e amores.
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Sabia que o pitbull era temperamental, mas insistia em manter o animal. Um dia, o ataque e a desfiguração do rosto: o sacrifício do cão e um novo relacionamento, com o cirurgião plástico.
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Habituado a projetar arranha-céus, construiu castelos nas nuvens. Por falta de alicerce, todos os sonhos ruíram.
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Estava apaixonada. A futura sogra exigiu o fim do noivado: "filho meu não se casa com doméstica". Foi à luta! Fez faculdade de moda e tomou-se renomada estilista. Rica, famosa e feliz, inverteu as letras e trocou o amor por Roma!
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Era muito rica. Criava um filhote de leão apenas para ser exótica. Anos depois, o animal foi encontrado ao lado da jaula arrebentada, tendo ainda na boca um osso do qual pendia valioso solitário.
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Parabenizava-se! Olhava as mãos bem feitas: parara de roer as unhas; o cinzeiro limpo: parara de fumar; o barzinho transformado em biblioteca; parara de beber; o calo no dedo: finalmente acabara de escrever seu primeiro "best seller"!
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Era Natal, e cadê dinheiro para presentes? Cortou cartões em cartolina verde, marcou-os com beijos em batom vermelho e escreveu uma trova para cada presenteado. Foi o ano que proporcionou as maiores alegrias aos amados!
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Ano Novo chegando. Queria novidades, mudança de panorama. Encheu-se de coragem e virou a cama para a janela!
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Separou-se do noivo marginal. O que vertia não era choro por amor despedaçado, mas chorume do lixo emocional acumulado.
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Encontrou lagarta na salada. Rodou a baiana! Chega! Vegetariana nunca mais!!! 
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Depois de trinta chopes, um bom mergulho para desaguar na piscina do cunhado esnobe. A mulher, afogando-se na cama, acordou-o aos berros!
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Fonte> Maria Eliana Palma. Momentos em prosa e verso. Maringá, 2016. Entregue pela autora.

Beatrix Potter (O Conto de Dois Ratos Maus)


Era uma vez uma linda casa de bonecas; era de tijolos vermelhos com janelas brancas, cortinas de musselina de verdade, porta da frente e chaminé.

Pertenceu a duas bonecas chamadas Lucinda e Jane; pelo menos era de Lucinda, mas ela nunca pedia comida.

Jane era a cozinheira; mas ela nunca cozinhou, porque o jantar foi comprado pronto, em uma caixa cheia de aparas.

Havia duas lagostas vermelhas e um presunto, um peixe, um pudim e algumas peras e laranjas. Eles não saíam dos pratos, mas eram extremamente bonitos.

Certa manhã, Lucinda e Jane tinham saído para passear no carrinho de bebê da boneca. Não havia ninguém no berçário e estava muito quieto. De repente, houve um pequeno ruído de arranhões em um canto perto da lareira, onde havia um buraco sob o rodapé.

O Pequeno Polegar colocou a cabeça para fora por um momento e depois a colocou de novo.

O Pequeno Polegar era um rato.

Um minuto depois, Hunca Munca, sua esposa, também colocou a cabeça para fora; e quando ela viu que não havia ninguém no berçário, ela se aventurou no oleado sob a caixa de carvão.

A casa de bonecas ficava do outro lado da lareira. Pequeno Polegar e Hunca Munca atravessaram cuidadosamente o tapete da lareira. Eles empurraram a porta da frente – não era rápido.

Pequeno Polegar e Hunca Munca subiram e espiaram a sala de jantar. Então eles gritaram de alegria!

Um jantar tão adorável foi colocado sobre a mesa! Havia colheres de estanho, facas e garfos de chumbo e duas cadeirinhas – tudo tão conveniente!

Pequeno Polegar começou a trabalhar imediatamente para cortar o presunto. Era de um lindo amarelo brilhante, com listras vermelhas.

A faca amassou-se e feriu-o; ele colocou o dedo na boca.

“Não está cozido o suficiente; é difícil. Você tem que tentar, Hunca Munca.”

Hunca Munca levantou-se da cadeira e cortou o presunto com outra faca de chumbo.

“É tão duro quanto os presuntos do queijeiro”, disse Hunca Munca.

O presunto se desprendeu do prato com um solavanco e rolou para debaixo da mesa.

“Deixa pra lá”, disse o Pequeno Polegar; “me dê um pouco de peixe, Hunca Munca!”

Hunca Munca experimentou cada colher de estanho; o peixe estava colado ao prato.

Então o Pequeno Polegar perdeu a paciência. Ele colocou o presunto no meio do chão e bateu com a pinça e com a pá – bang, bang, smash, smash!

O presunto voou em pedaços, pois por baixo da tinta brilhante era feito apenas de gesso!

Então não houve limites para a raiva e decepção de Pequeno Polegar e Hunca Munca. Partiram o pudim, as lagostas, as pêras e as laranjas.

Como o peixe não saía do prato, puseram-no no fogo de papel crepom em brasa da cozinha; mas também não queimaria.

O Pequeno Polegar subiu pela chaminé da cozinha e olhou para o topo – não havia fuligem.

Enquanto Pequeno Polegar subia pela chaminé, Hunca Munca teve outra decepção. Ela encontrou algumas latas minúsculas sobre a cômoda, rotuladas – Arroz – Café – Sagú – mas quando as virou de cabeça para baixo, não havia nada dentro, exceto contas vermelhas e azuis.

Então aqueles ratos começaram a fazer todo o mal que podiam – especialmente Pequeno Polegar! Ele tirou as roupas de Jane da cômoda do quarto dela e as jogou pela janela do último andar.

Mas Hunca Munca tinha uma mente frugal. Depois de tirar metade das penas do travesseiro de Lucinda, lembrou-se de que ela mesma precisava de um colchão de penas.

Com a ajuda do Pequeno Polegar, ela carregou a almofada escada abaixo e cruzou o tapete da lareira. Foi difícil espremer o travesseiro no buraco de rato; mas eles conseguiram no final das contas.

Então Hunca Munca voltou e trouxe uma cadeira, uma estante, uma gaiola de passarinho e várias pequenas bugigangas. A estante e a gaiola recusaram-se a entrar na toca dos ratos.

Hunca Munca deixou-os atrás da caixa de carvão e foi buscar um berço.

Hunca Munca acabava de voltar com outra cadeira, quando de repente ouviu-se um barulho de conversa lá fora no pátio. Os camundongos correram de volta para a toca e as bonecas entraram no berçário.

Que visão encontrou os olhos de Jane e Lucinda!

Lucinda sentou-se sobre o fogão virado da cozinha e ficou olhando; e Jane encostou-se na cômoda da cozinha e sorriu – mas nenhuma das duas fez qualquer comentário.

A estante e a gaiola foram resgatadas debaixo da caixa de carvão – mas Hunca Munca ficou com o berço e algumas roupas de Lucinda.

Ela também tem algumas panelas e frigideiras úteis e várias outras coisas.

A garotinha a quem pertencia a casa de bonecas disse: “Vou comprar uma boneca vestida de policial!”

Mas a enfermeira disse: “Vou preparar uma ratoeira!”

Então essa é a história dos dois Ratos Maus, mas eles não eram tão travessos afinal, porque o Pequeno Polegar pagou por tudo que quebrou.

Ele encontrou uma moeda de seis pence torta sob o tapete da lareira; e na véspera de Natal, ele e Hunca Munca o enfiaram em uma das meias de Lucinda e Jane.

E todas as manhãs bem cedo – antes que alguém acordasse – Hunca Munca vinha com sua pá de lixo e sua vassoura para varrer a casa das Bonecas!

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Dois Ratos Maus. Publicado originalmente em 1904 como “The Tale of Two Bad Mice”. Disponível em Domínio Público

domingo, 21 de abril de 2024

A. A. de Assis (Abaixo a Gravata!)

Seu Neco Bombocado era fiscal da prefeitura na cidade dele. O apelido “Bombocado” vinha dos tempos em que, como bico, abrira uma lojinha de doces caseiros, depois fechada porque só dava movimento no mês da festa do padroeiro.

Solene figura aquele Seu Neco Bombocado, sempre de terno, gravata e chapéu, fiscalizando as ruas em cima de uma bicicleta. Dizia-se que não tirava a gravata nem para dormir, tão fundamental era para ele o nobre adorno.     

Imaginem, pois, a aflição do elegante servidor no dia em que um novo prefeito decidiu abolir o uso da gravata na função pública. Homem de hábitos radicalmente informais, criado em fazendas e zeloso de sua condição de líder popular, o novo burgomestre a primeira coisa que fez foi baixar decreto acabando com o chamado “traje oficial”. Nisso recebeu total apoio do seu secretário, um irreverente poeta, famoso pelas suas camisas extravagantes.

Abaixo o paletó! Abaixo o colete! Abaixo a gravata! E o decretado estripitise deveria começar pelos fiscais, que conviviam mais de perto com o povo. Governo de portas e camisas abertas, liberto das burocracias e afinado com os hábitos descontraídos da operosa população municipal. Abaixo a elegância padronizada!

Inconformado, Seu Neco Bombocado pediu audiência ao prefeito. Queria que lhe fosse permitido ser a exceção, pois que toda regra tem alguma. Ele não saberia viver sem o terno e a gravata, complementos indispensáveis de sua imagem pública e privada.

O alcaide lamentou, mas não podia abrir precedente. O secretário reforçou a firmeza do chefe: “Dura lex sed lex”. Seu Neco tivesse paciência, fizesse um sacrifício, mas aposentasse a gravata e o paletó imediatamente. Afinal, regras são regras.

O fiscal chegou a pensar em pedir demissão. Segurou o pedido na ponta da língua, mas somente porque precisava demais do emprego, despesa grande em casa, os filhos na escola, tinha que engolir o desaforo.

A que humilhações se submete um chefe de família… Imagine ele, o famoso Neco Bombocado, sair às ruas de peito aberto e braços nus.

Foi a uma loja, comprou sua primeira camisa-esporte. “Mas sem frescuras de estampas e bordadinhos, porque sou homem sério”, exigiu.

Porém no primeiro dia de fiscalização desengravatada Seu Neco adoeceu: o pescoço desabituado ao vento, e justo naquele dia um vento sul traiçoeiro…  Foi pra cama curar o resfriado, que virou bronquite, e de bronquite virou pneumonia. O prefeito soube do caso, ficou comovido, resolveu visitar o honrado servidor. Encontrou-o todo encolhido, embrulhado num pijama de flanela. Ah, sim… e de gravata.

Fonte> Portal do Rigon. 18/04/2024

sábado, 20 de abril de 2024

Francisca Júlia (O açude)


Viviam duas velhinhas em duas cabanas vizinhas, construídas num campo extenso e cobertas de um colmo tão verde que, de longe, se confundiam na cor geral da vegetação.

Ali elas passavam sua existência humilde, longe de toda a convivência importuna,, preocupando-se apenas com o cultivo da sua horta e com o trato dos seus bacorinhos.

À tarde sentavam-se juntas à soleira da porta, com o fuso na mão para distraírem-se, e conversavam horas inteiras sobre a sua vida passada, rememorando episódios antigos, velhas recordações da mocidade.

Eram felizes na sua miséria; não lhes faltavam ervas para a alimentação e orações para a purificação da alma.

Uma delas. porém, a que parecia mais moça, tinha um defeito — a preguiça. Abandonava-se durante o dia à preguiça, dormindo pelos cantos, esquecida do trabalho, de modo que muitas vezes era a sua vizinha quem lhe trazia o sustento.

Suas casas tinham sido feitas por elas mesmas numa planície rasa, muito plana, por onde os ventos passavam livremente, refrescando a atmosfera.

Do lado do poente havia uma coluna de certa elevação, regada por um arroio fresco e límpido, que nascia no alto e escorregava pelo dorso da colina em pequenas catadupas.

Do lado oposto, um rico proprietário tinha construído um grande açude, onde se acumulavam as águas de um rio próximo, cercado por uma represa de pedras. Essas águas serviam nas secas do estio para a rega das plantações.

Um dia um caminhante que atravessava a campina veio abrigar-se dos ardores do sol numa das cabanas onde as duas velhas estavam reunidas, a fiar.

E ele disse-lhes:

— Minhas velhinhas, é urgente que mudeis vossas habitações para o alto daquela colina, porque o açude está-se esboroando aos poucos, pode partir-se a represa e a água inundar este campo, matando-vos. Fugi daqui, velhinhas.

A mais velha, que era solícita e prudente, respondeu:

— Amanhã me mudarei.

A outra, que era, preguiçosa, contentou-se com sacudir os ombros, incrédula, e disse:

— Veremos.

De fato, no dia seguinte, mal a manhã tinha despontado, já a velhinha estava tratando da sua mudança, arrancando os batentes das portas, a palha do telhado, e pouco a pouco ia levantando, não sem pequeno esforço, sua nova habitação sobre a colina.

Depois de colocado tudo em seus lugares, feita a cerca grosseira que prendia as suas aves e bacorinhos, instalou-se descansadamente, livre de todo o perigo.

A outra, apesar das instâncias da primeira, deixou-se ficar embaixo, e, preguiçosa como era, ia adiando a mudança.

Uma tarde, quando o crepúsculo descia e espalhava um aspecto de tristeza religiosa sobre a verdura dos campos, a velhinha, que estava sentada na soleira da sua casa, no alto da colina, viu com espanto a represa de pedras que segurava as águas do açude romper-se com estrondo, cair, dando passagem a uma enorme massa d'água. A água caiu, desceu e veio galopando pelo campo, espumando e roncando, com uma força e ímpeto a que nada poderia resistir. Tudo que encontrava na frente ia torcendo e arrancando.

A velhinha preguiçosa deitou a correr, os cabelos soltos, gritando de desespero. Coitada!

A água alcançou-a logo, envolveu-a com a sua espuma, arrastou-a nas ondas e levou-a, morta já, até à outra extremidade do campo.

Sua companheira, que tinha ficado ao abrigo do perigo, por ser cuidadosa e prudente, elevou as mãos ao céu num resignado gesto de súplica.

Fonte> Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público  

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 30: “Mãe Menininha do Gantois"

O passeio atípico da prenda ao lado de seu novo amigo pelas ruas de Salvador prossegue. João a leva para conhecer o elevador Lacerda, e a praia do farol da Barra. Dois pontos turísticos famosos. E Isadora tem seu primeiro contato com o mar. Ela sente o coração pulsar forte e se deixa levar pela energia do mar que estava calmo. E pensa em sua mãe que morreu sem conhecer aquela maravilha.  Ao entardecer, eles retornam à casa de dona Branca.

Isadora sentia-se feliz, acolhida e agradecida por estar junto daquelas mulheres batalhadoras, sobreviventes de uma sociedade de política desigual. E se impressionou ao notar o quanto aquelas mulheres sorriam, apesar das tristezas que tinham guardadas no peito.

Sentiu-se privilegiada perante as injustiças do mundo, praticadas por pessoas insensíveis, ambiciosas e egocêntricas.

- Obrigada pelo acolhimento, dona Branca.

- Não tem do que agradecer, Isadora. É como dizia minha finada mãezinha: quem não vive para servir, não serve para viver – disse a dona da casa. Mas tá toda molhada, menina. Vá trocar essa roupa. Deixei um vestido lá no armário de seu quarto.

Enquanto Isadora se preparava para ir ao terreiro, João proseava com as meninas ou “quengas” como eram chamadas pelas madames da alta sociedade.  

“Na vida, a coisa mais verdadeira é que nem tudo o que parece ser, realmente é...

Existe gente boa, mas também há muita gente ruim. E que nunca deixará de ser, porque considera a bondade um sinal de fraqueza. Na verdade, gente má é má porque não sente atração pelas virtudes das coisas que são de Deus, as quais é preciso merecimento para possuir. Amor, compaixão, alegria, não fazem morada em casa sombria. Até podem se aproximar, mas logo partem, porque coração de gente ruim não cultiva flores, e sim erva daninha, espinhos. Gente ruim gosta é das coisas do Capeta. E tem como diversão fazer o seu semelhante sofrer.

Quem vai dizer que Isadora, fugida do marido carrasco, seria acolhida pelas chamadas “mulheres da vida"? Se alguém perguntasse por seu paradeiro não poderia imaginar...

Por certo diria a maioria:  – Numa casa de família. Rica, bem distinta e caridosa. Mas não. Ela foi parar onde ninguém ousaria prever. E isso poderia servir de lição para alguns hipócritas. E serve. Porém, quem escolhe trilhar o caminho das sombras, fecha os olhos perante a luz.

Mas a prenda dos Pampas estava gostando de absorver a luz e as lições que a vida estava lhe proporcionando naquela fuga maluca.  

E por falar em luz, uma das lâmpadas mais acesas a iluminar a aura da cidade estava dentro de um terreiro de cultos afros. E era chamada pelo codinome: “Menininha do Gantois".

João e Isadora tomaram um táxi. E ao se aproximarem do terreiro, no bairro Gantois, e ao ouvirem o ressoar dos atabaques, Isadora, feito criança curiosa, põe a cabeça pro lado de fora da janela do carro para ouvir melhor aquele som do qual Vó Gorda já havia comentado ser comum também nas regiões do Rio Grande do Sul, mas que ela, pessoalmente, não conhecia. Era um ressoar forte que fazia sua alma tremer.

Na entrada do portão havia a imagem de um homem negro, vestido de vermelho, capa preta e um tridente na mão. Era Exu, o guardião de todas as porteiras e caminhos.

Foram bem recebidos pelos cambonos* da casa, que com alegria disseram se tratar de um ritual muito especial, pois uma filha de Iansã havia sido salva de uma doença de pele muito rara. E que os amigos e familiares que estavam fazendo novena a seu favor, estavam presenteando o terreiro com uma imagem de Iansã que tinha a mesma altura de sua protegida. Mas que a festa também era para Omolu, senhor das pestes, porque sem a intervenção dele não há cura.

O cenário era mágico. Havia cânticos na língua de Queto e Iorubá, médiuns recebendo a iluminação de seus Orixás, cada um com suas respectivas vestes.  

Explicaram que o homem com o rosto coberto por palhas, era de Omolu, que a moça vestida de azul e espelho na mão, era filha de Iemanjá, que a outra moça vestida de vermelho e branco, segurando uma espada, era a filha de Iansã, que havia sido curada; que o homem com uma machadinha na mão está com Xangô. E num cantinho do salão do Templo, estava ela, Mãe Menininha, uma mulher de aura doce, vestida de amarelo, com sua Oxum. Orixá do amor, da riqueza e da família.

A energia intensa do lugar fez com que Isadora sentisse vontade de sorrir e de chorar.   

Mãe Menininha acena. E ela vai na sua direção. João ficou do lado de fora, junto de Exu. Tinha respeito, mas também muito medo dos Orixás. 

A Yalorixá, sem dizer nada, olhou nos olhos de Isadora. E jogou os búzios numa peneira de palhas.   

- Você é filha de Iansã – disse ela.

Fico feliz em ver a filha aqui, mas aqui não é seu lugar. Só você pode se roubar de sua missão. Ninguém mais tem esse poder. E não precisa temer nada e a ninguém. Volte para os braços do seu amor. E ajude as mulheres e as crianças de sua terra. Pois essas são suas tarefas neste mundo.  A moça é filha de uma santa guerreira. E nasceu para vencer as batalhas impostas no seu caminho. Vai ser feliz, mulher!

Isadora agradece. E impressionada, vai ao encontro de João. E os dois resolvem passar a noite caminhando pelas ruas de Salvador, bebendo cerveja e conversando.

- Sei que a moça não tá acostumada. Não exagera na bebida.

- Preciso comemorar. Estou me sentindo tão feliz.

- É... Tua conversa com Mãe Menininha te fez bem.

- Por que não quisestes entrar? 

- Eu não. Vai que tenha alguma desgraça inevitável no meu caminho. Prefiro não saber de nada.

- É bom saber das coisas futuras para que possamos estar preparados para quando chegarem.

- Ôxe, prefiro não saber de nada. Mas gosto de Mãe Menininha. Ela tem uma vida dedicada à fé e à caridade ao próximo.  Ela tem uma grande alma. 

Conversa vai, conversa vem, ao raiar do sol, os dois sentados na ladeira do pelourinho, Isadora toma uma decisão.

- João.

- Fale.

- Vou para o Rio Grande do Sul. 
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continua…
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* Cambono = na umbanda e em outros cultos de influência banta, ajudante do pai ou mãe de santo, ou assistente dos médiuns incorporados ou, ainda, auxiliar para várias finalidades rituais no terreiro ou centro.

Fonte: Texto enviado pela autora 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Humberto de Campos (A Surpresa)

Educada no tumulto das rodas elegantes. cujas festas mundanas frequentava desde criança, Mademoiselle. Altair havia se tornado, aos dezessete anos, uma das moças mais em evidência na sociedade do Rio de janeiro. O pai, médico ilustre, mais devotado à família da ciência do que, talvez, à ciência da família, descurava, em absoluto, as pequenas coisas do lar. E era de tal forma, nesse ponto, a sua despreocupação, o seu descaso ingênuo, mas prejudicial ao próprio conceito, que Mlle. Altair se tornou notável, em breve, na cidade, pelo exagero escandaloso dos seus vestidos.

As suas "toilettes" eram, realmente, clamorosas, e em inteiro desacordo com a inocência da sua idade. Trajando sempre as fazendas mais leves, a sua preocupação, sugerida por figurinos inadequados, consistia em deixar à mostra a perna, até o joelho, e o colo, até o estômago. Quanto ao resto do corpo, não havia quem não o adivinhasse na transparência indiscreta do crepe da China ou da seda lavável, que lhe modelavam sensualmente, num abraço voluptuoso, os seios túrgidos, a cintura flexível, as ancas ondulantes, patenteando, como num desafio à bestialidade humana, o conjunto harmonioso das formas.

Um dia, foram os círculos elegantes surpreendidos com uma notícia sensacional: o Dr. Edmundo Figueira, um dos espíritos mais equilibrados e vigorosos da nova geração de juristas brasileiros, havia pedido em casamento Mlle. Altair Sobreira, formosíssima e conhecidíssima filha do Dr. Peixoto Sobreira!

Realizado o casamento, em que a noiva se apresentou mais nua do que nunca, e despedidos os convidados, penetraram os noivos, felizes, na alcova nupcial. Envolta, de leve, na seda finíssima, ou, antes, na névoa imperceptível do vestido, a recém-casada fazia lembrar as estátuas de mármore, veladas convencionalmente para o momento da inauguração. Anfitrite, com os pés mergulhados na espuma e vestida, apenas, pela bruma fugitiva do Arquipélago, não seria, talvez, mais nua, e mais bela!

Entreolhavam-se, os dois, na alcova silenciosa, ninho de ouro e seda armado para um casal de pombos amorosos, quando o noivo se adiantou, e, sorrindo, anunciou a moça, tomando-lhe, carinhoso as mãos geladas e brancas:

- Sabes, meu amor, que eu te preparei uma novidade?

- Tu? Que é? - indagou a noiva, casando, de repente, a curiosidade à aflição.

O noivo suspendeu os travesseiros da cama, e, tirando dali uma camisa de noite, trabalhada em seda branca, e opaca, afogada até o pescoço e descendo até o tornozelo. pediu:

- É para que me faças uma surpresa, dando-me uma sensação inédita nesta noite de casamento.

E entregando-lhe a camisa:

- Eu nunca te vi... vestida!...

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

Teófilo Braga (O sonho de Esmeralda)

Oh, meu amigo, oh! Meu poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sai aos vinte anos da sua água furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossíveis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira ao meio de uma cidade opulenta, onde ninguém se conhece, onde todos se igualam e atropelam! Foi quando compreendi aquele terceto de Dante, de uma profundeza noturna, que me abismava, cada vez que o repetia na mente:

No meio do caminho desta vida
dei por mim na amplidão de selva escura,
pois que a vereda certa era perdida.

Não sabes como o ruído de uma cidade imensa, o labirinto das ruas, a estranheza e indiferença dos que passavam, me tornava solitário no meio das multidões. Tantas vozes perdidas no ar, e nenhuma para mim! Tantos braços caídos com desdém, e sem nenhum a me estreitar. Parecia-me o tumulto como um naufrágio em que a anciã do salvamento nos torna egoístas, insensíveis para as agonias dos outros.

Todas as aspirações que me fizeram deixar o retiro benigno, onde me voaram os primeiros anos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser também um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no encontro fortuito de um desconhecido. Sentia-me pequeno, incapaz de lutar, de me impor a admiração dos outros.

O que teria sido de mim nas horas monótonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se não fora a poesia! Até então ela tinha sido um folguedo, um brinquedo infantil, inocente, um vagido tímido e suave da alma, que ansiava a luz, como uma borboleta prateada antes de romper a crisálida noturna. Sem ter quem me falasse, pedi à poesia os seus antigos carinhos, um alento de esperanças, um orvalho para refrescar a aridez do deserto em que me via. Ela, a irmã dos tristes, a alma dos que sofrem, como veio terna, espontânea, compassiva para consolar-me! Cantava, como uma criança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos caprichosos que lhe voejam na fantasia. Foi a poesia também que salvou o desgraçado Jacopone, quando, abalado pelos desastres da vida, errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe, perseguido, veio bater às portas de um mosteiro, donde igualmente o repeliam. Foi ela que lhe deu a paz da cela e a serenidade da contemplação.

Oh, santa e divina poesia! Bem hajam os que choraram porque te descobriram e trouxeram à vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, porque te guardam em si, como uma vestal solícita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hão de vir para sofrerem, porque nos compreenderão sentindo-se aliviados.

Andava pela cidade sem destino, vagabundo; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e enojava-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno comércio para os que chegam incautos, inexperientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia; estava quase sem dinheiro, e com um orgulho e altivez incrível para afrontar o futuro.

Enrolado, dentro de uma gaveta, tinha um manuscrito, que escrevera para distrair-me na solidão das minhas horas. Quando me lembrei dele comecei então a dar-lhe o valor que até ali não conhecia. A necessidade, que se aproximava, a cada instante, fazia-me procurar nele todas as esperanças. Pobre manuscrito! Quem o poderá entender, quem dará dinheiro por essas páginas sem sentido, que a ninguém tocam e que nem ao menos fazem rir? Ademais, estava escrito com uma letra ininteligível, entrelinhado e sublinhado, num papel repassado de tinta amarela, que mal se percebia. Quando me vi quase sem dinheiro, à porta, inferi, voltei a enrolar o manuscrito, meti-o debaixo do braço, e saí. Passava pela porta dos editores e não me atrevia a entrar. Tinha medo que me insultassem com um riso de escárnio, por me verem tão criança e já com pretensões a autor. Guardava sempre para amanhã a extrema resolução, e tornava a trazer o livro para casa e a fechá-lo na gaveta. Não imaginas que horas de tormentos! Eu temia que me apagassem com um riso todas estas esperanças, e me convencessem com argumentos assim da minha nulidade; bem conhecia o que tinham a me dizer, previa-o, cheguei a escrever a resposta que os editores me dariam: “O seu manuscrito não tem leitores; não à um romance, nem um conto; tem algumas páginas excelentes, mas não pode dar lucro de maneira alguma.”

Era esta a resposta que eu antecipava, para não me doer tanto depois quando a recebesse. Um dia, o último, sai a tremer com o manuscrito. Oh, meu amigo, para que te hei de falar nestas coisas? Nem eu queria chegar a este ponto, quando te prometi contar a história dessa mulher, que tu conhecias melhor do que eu. Nesse dia, comecei a sentir povoar-se-me a soledade da vida, mas com outras dores, desesperanças novas.

Nos primeiros meses que passei naquela cidade, tinha lido e estudado desesperadamente; a meditação fora o refúgio do tédio, mas era como um abutre que me lacerava as entranhas.

Vi-a! Leve, delgada, divertida, olhando para todos, com uma graça encantadora de infância, com uma gentileza de senhora, confundida pelo meio da plebe, sorrindo para os que a fitavam. Foi um desses sorrisos que me levou a alma presa. Que luta obstinada e escura dentro desta pobre alma! O estudo e a paixão debatiam-se, arcavam, procuravam mutuamente suplantar-se. 

Eu tinha acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Cláudio Frollo. A Notre Dame de Victor Hugo é a rosa emurchecida, que rejuvenesce ao sol do misticismo, é a Turris ebúrnea por quem o poeta se apaixona no sublime delírio da arte. Cláudio Frollo! O desgraçado eclesiástico deixou também correr tranquila a mocidade no retiro do estudo; depois, Esmeralda enfeitiça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual delas triunfará? A fatalidade do impossível? Eu não conhecia o labirinto de ruas da cidade populosa e imensa, ia em busca dela sem saber para onde. Encontrava-a quase sempre, por uma coincidência fatal. 

De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bela do que nunca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida entre a multidão, que a abafava na sua onda; mas para mim realçava tanto como um carbúnculo que reflete em si a luz de todos os círios. Via-lhe na expressão lânguida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. 

O povo amontoara-se para ver subir aos ares um balão. Era um dia de alegria e de festa; quando a descobri estava com os olhos erguidos para o céu. Oh! Se ela sofresse, se implorasse a Deus uma consolação, não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos com a limpidez do firmamento era a curiosidade de criança. E contemplava o balão que subia, alheia ao vozerio da gentalha. Desejaria elevar-se também às alturas, e então estava pensando no devaneio desse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem pode contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente à flor das águas? Quando baixou os olhos à terra deu com os meus, que a contemplavam, sorriu. Oh! Como aquele sorriso me faria esquecer todos os pesares, me daria coragem para todas as lutas, me insuflaria alento para os mais inauditos esforços, se ela não sorrisse assim para todos.

Para todos! É este egoísmo do sentimento que gera os nossos males, exacerba a mais terrível das paixões, a mais selvagem e vil, que é só grande pela loucura. Eu tinha ciúmes de todos, porque ela sorria pródiga de encantos, tanto para os que passavam indiferentes, como para o que a contemplava com o desinteresse com que se olha para um mármore antigo ou adorando a sua morbidez de Madona, como para aqueles espíritos baixos e abjetos que a fitavam desassombrados, preocupados de um desejo faminto e estúpido de sensualidade.

Criança e indiscreta, seria a inocência que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que voa de flor em flor, ou como uma rosa que embalsama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia, e tinha medo da verdade. O amor triunfava completamente do estudo. A verdade, que procurava incansável no ardor das vigílias, agora já não me mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse tocar por mim, como um arcano divino. Quem pudesse viver sempre iludido! Oh! Verdade! Verdade! Para que vens agora, que te não busco, acordar-me tão cedo do sonho dourado?

A multidão dispersou-se ao vir da noite; eu fui seguindo para onde ela habitava. Ia perdido, a distância, sem conhecer as ruas; a pequena, distraída, como por descuido olhava para trás. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vê-la. Havia uma fatalidade que me atirava para essa mulher. 

Só, no meio de uma cidade grande, desconhecido, amava a perdição, e sentia-me arrastado, sem ter ao menos um Tiberge que me salvasse, como o amigo do infeliz Des Grieux, amante da Manon Lescaut. O futuro! Nem já podia vê-lo, com a vertigem que um olhar fascinador me causava; apagava-se esse ideal que me dera tantas vezes coragem nos transes e provações da vida. Ria-me do futuro. E que é o futuro? De que me vale prepará-lo, consumindo a vida, se me foge antes de o gozar? Viver obscuro! Embora numa trapeira, mas ter um dia, ao menos, a mais pequena realidade de tantos sonhos! Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo, e que nos mentem sempre. Viver obscuro! Que haverá melhor, quando se tem ao lado aquela que se ama e resume todos os encantos e riquezas do mundo na mais pequenina das suas falas?

Sentia-me escorregar lentamente para o precipício; a paixão dava-me uma lucidez com que explicava a loucura e a justificava diante da consciência que me acusava de instintos baixos, sem dignidade. Aparecia-me à janela todas as tardes; sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho indizível ao lembrar-me que, de entre todo aquele bulício de gente desconhecida, havia uma mulher que pensava em mim e me estava esperando. O amor tornava-me tímido; queria falar-lhe e não sabia. Pedi então à poesia que falasse por mim.

Para um amor puro, etéreo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, nada o exprime melhor no seu vago ideal do que um soneto. Estudei esta forma, a mais completa das formas líricas. Elevado como a ode, melífluo e simples como o madrigal, sentencioso como o epigrama, é a síntese de todas as formas do lirismo. Como o não desenvolveu o gênio da Itália, nas suas elevações erótico-místicas! Nas duas primeiras estrofes do soneto, o sentimento revela-se pela imagem, oculta-se sob ela como indefinido, intangível; o predomínio da imagem tem a quadra, forma livre para as representações do mundo exterior. Depois é que o sentimento se mostra no seu esplendor absorvendo em si todas as potências da alma; é o terceto que o traduz, a tríade fatídica, que se imprime misteriosamente em todos os fatos do espírito. Do acordo entre a imagem e o sentimento, provém a diversidade das formas poéticas. Se a imagem se mostra na sua complexidade finita, a poesia tem um caráter didático e descritivo; se o sentimento se sobreleva à imagem e se manifesta na sua subjetividade, eis o lirismo puro. É por isso que o soneto é a forma suprema do lirismo. Santificaram-no Dante, no retrato do amor ideal, na Vita Nuova; Petrarca, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Ângelo, esse Proteu que encarna todas as formas do belo, e Vitoria Colona, confidenciando ambos com os sonhos da arte, de um modo que ninguém macularia o seu platonismo radiante. É também nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade da sua alma sensível, e nos de Camões, que se aspira o perfume da saudade dos seus malogrados amores. Esquecia-me a dissertar sobre o soneto para evitar o ridículo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes à janela; tinha ao seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem falava, dizendo o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia ele estes segredos de amor, quando o estava embalando com o seu cantar sôfrego, tremente. De uma vez atirei para dentro da janela este soneto traduzido do espanhol de Lope de Vega. Não há expressões humanas que possam dizer mais:

Dava alimento a um passarinho um dia
Lucinda, e pela estreita portinhola
Foi-se-lhe a ave das grades da gaiola
Ao vento livre, onde a cantar vivia.

Entre rindo, a mãozinha ela estendia
Para o suster; na dor que a desconsola,
Diz (pois como a vergôntea se estiola
Sem luz, sua face a palidez tingia):

“Para onde vás? e deixas este ninho
Que de frouxel (penugem) teceu a doce amiga,
Que a brincar com o teu bico se enamora?”

Ouviu-a enternecido o passarinho,
Bate as asas para a prisão antiga,
Que tanto pode uma mulher que chora.

O que haverá na poesia antiga que exceda este primor? Quem soube idealizar assim uma lágrima? Compreenderia ela a profundidade deste sentimento? E sorria de cada vez que lhe enviava novas confidências, mas do mesmo modo que sorria para todos. Para todos! Sempre esta ideia infernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lágrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, não tinha esse mistério, quando as derramei ao ver-me nu, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como o passarinho de Lucinda. Disseram-me... nem eu sei o que me disseram. Fora a mãe, a mesma que a susteve nos joelhos quando a atirou à vida e a amamentou com o seu leite, quem a arrojou à perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ar de candura, que a cercava de uma auréola divina, vergava uma alma opressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os horrores da antropofagia, mas a vida vai continuamente alimentando-se da vida. Não sei, não posso contar-te tudo.
***

Um ano depois encontramo-nos; o pobre rapaz estava possuído novamente da paixão dos livros. Era uma ansiedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gozos da vida. Não me atrevia a falar no antigo amor; tinha medo de acordar-lhe as agonias que estariam talvez já adormecidas. De uma vez, estávamos juntos, vi passar à distância uma rapariga, um tipo rafaélico de candura; ia seguida por uma mulher velha e trôpega. Era uma antítese que fazia pensar muito. Ele olhou-a e foi acompanhando-a com a vista, com certa ansiedade; depois, como refreado pela reflexão, olhou para mim envergonhado, corou e disse, procurando esconder esta impressão repentina:

— É ela.

Não compreendi imediatamente; fui bárbaro, pedindo que me explicasse o mistério dessas palavras entrecortadas. Ele apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e decepções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tinha aspirado, da fatalidade a que tinha sucumbido. Olhou-a, ela já ia longe; depois que a viu desaparecer, disse, contemplando ainda e com a voz a apagar-se:

— Uma ruína!

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público.