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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Silmar Bohrer (Croniquinha) 143

"Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do que a seres humanos", escreveu Manuel de Barros. Talvez eu seja um deles. Porque o ser humano permeia entre o tudo e o nada, entre o máximo e o mínimo. E a quantidade deles é grande. 

Bem pensando, tantas vezes me sinto um cisco qualquer, folha seca ao sabor das coisas, um graveto inerte propenso a adubo, passarinho que não alça voo. A sensação de quase nada me incorpora o ócio improdutivo. Não gosto nem do trabalho das formigas - deve ser penoso. De olhar já canso.   

Deve ser sina, a mesma "signa" que veio do latim como "destino inevitável". O destino de pedra que rola e rola e não cria limo. O destino de palavras ao vento, o destino do eco que some na imensidão . . . 

O poeta pantaneiro constatou que "há outros componentes do cisco, porém de menos importância". Ainda bem, nossa vida de ciscos não é tão desimportante assim.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vladimir Fedorovich Odoievsky (Pobre Gnedka)

Olha, olha, meus amigos, que motorista de táxi malvado, como ele bate na égua!.. Na verdade, ela corre muito mal... Porque é que isto? Oh, pobre Gnedka, ela está mancando...

- Terrível, taxista! Que vergonha: você arruinará completamente sua égua; você a matará até a morte...

– Que necessidade, responde o motorista do táxi. - Ou para mim ou para ela morrer! Hoje é feriado.

– Isso é que um banquete, amável: você deu um passeio e não viu que a égua havia perdido a ferradura: por isso escorregou, tropeçou e chutou a perna. O que é tão inteligente que ela não pode correr? Coitadinha, quaisquer que sejam os passos, a machuca: você não pode correr para cá. E sabes que terás de pagar pelo tratamento dela, pela ferradura, e o dono também te repreenderá. Então você quer ganhar dinheiro a todo custo, visitar, como você diz; Agora é uma bênção, tem muita direção, eles pagam caro... Qual é a culpa da pobre égua? A culpa é tua, rapaz estúpido: porque não cuidaste dela, porque não a viste quando ela perdeu a ferradura?

Mas ele não nos ouve, já está longe. Lá está ele no Neva e continua maltratando a pobre égua, e a égua continua tropeçando, e quaisquer que sejam os passos, dói. Pobre égua! Que tormento é!

E as crianças também correm atrás do trenó e riem tanto da égua quanto do taxista. E ele fica ainda mais irritado e joga a raiva na égua.

Mas diz-me, faz-me um favor, como não envergonhar este senhor gordo que está sentado num trenó! Como não proibir o taxista de torturar a pobre égua! Este cavalheiro gordo se envolveu em um casaco de pele, puxou o chapéu sobre os olhos e sentou-se sentado lá como se nada tivesse acontecido.

“O que me importa”, murmura o cavalheiro gordo para si mesmo, "estou com pressa para almoçar. Deixe o taxista matar sua égua; não é minha égua, o que me importa?"

O que achas disto, meus amigos? Como se, por não ser esta égua, ele devesse olhar indiferentemente para o seu tormento?

Pobre Gnedka! Que pena que penso nela! Conheço esta égua há muito tempo. Lembro-me de como ela ainda era uma potra. Depois, costumava ser que na primavera o sol brilhava, os pássaros esfriavam, o orvalho brilhava nos gramados, o ar fresco e perfumado. Aqui Serko está arando o chão, e nossa potra está correndo ao redor: ou ela vai correr até ele, então ele vai pular para trás, beliscar a grama jovem, e novamente para sua mãe, e novamente ele vai chutar: sua vida foi alegre, então! À noite ele voltará para casa: Vanyusha e Dasha o encontrarão, pentearão sua crina curta e a limparão com canudos. Como Vanyusha e Dasha amavam sua potra! 

Aconteceu que, em vez de correrem sem fazer nada, colhiam grama jovem, colocavam-na em uma caixa e alimentavam sua potra; elas a vestiam em roupas de cama à noite, e não comiam um pedaço de pão durante o dia, para compartilhar com sua amiga. E como a potra os conhecia! Antigamente ele via Vanyusha e Dasha de longe, ia até elas o mais rápido que podia, vinha correndo, parava e olhava para elas como um cachorro. Em tal buraco nossa potra cresceu, nivelou-se e tornou-se uma égua imponente. Então o pai de Vanyusha pensou, pensou e disse fortunas: "É uma pena banir tal égua do arado; vou levá-la para a cidade e vendê-la; eles vão me dar o preço de dois cavalos por isso". 

Assim que disseram do que fizeram: trouxeram a potra para Konnaya, para São Petersburgo, e venderam-na a um motorista de táxi. E como Vanyusha e Dasha choraram, como imploraram ao motorista do táxi que cuidasse de sua potra, que não a obrigasse a carregar cargas pesadas, que não a atormentasse... Eles voltaram para casa muito tristes: faltava alguma coisa. O pai ficou feliz por ter recebido um bom dinheiro por Gnedka, mas os filhos choraram amargamente.

Mas nessas conversas caminhamos por quase todo o aterro... Olha, olha: por que as pessoas estão lotadas lá!.. Vamos embora. Oh, este é a nossa pobre Gnedka! Olha: ela caiu e não consegue mais se levantar; os transeuntes ajudam o taxista a levantá-la; eles a levantarão, ela cairá novamente. Como a perna dela está inchada! O próprio motorista do táxi agora chora amargamente. "Serve-lhe direito", dizes tu; não, não digas isto: ele já vê a sua culpa e já está bastante castigado. Como vai aparecer ao proprietário? E o que fazer agora com a égua? Você não pode deixá-la na rua; ela não pode andar sozinha; precisamos contratar outro cavalo com trenó e colocar a pobre Gnedka no trenó. Mas isso exige dinheiro, mas o taxista não tem: o cavalheiro gordo ficou bravo porque a égua caiu e não pagou nada... Pobre Gnedka! Ela não consegue se mover, enterra a cabeça na neve, respira pesadamente e move os olhos, como se exigisse ajuda. Pobre, ela nem consegue gritar porque os cavalos não gritam, por mais cruel que sofram. "Um motorista de táxi malvado! Por que atormentaste tanto a pobre Gnedka?  

Mas deixemos de censurá-lo, embora ele seja muito culpado, ou melhor, vamos dar-lhe dinheiro, deixemos que ele contrate um amigo para levar Gnedka ao apartamento, vamos acrescentar alguns conselhos: não cavalgue um cavalo manco para a frente e não exija que uma pessoa doente corra como uma pessoa saudável. Um dia destes enviaremos você para saber se nossa égua está melhor.

Em geral, meus amigos, é pecado torturar pobres animais que nos servem para benefício ou prazer. Aquele que tortura animais desnecessariamente é um homem mau. Quem tortura um cavalo ou um cão é capaz de torturar uma pessoa. E às vezes pode ser muito perigoso. Você viu como às vezes crianças más provocam cães e gatos na rua, espancam-nos, amarram paus no rabo; ouça o que aconteceu com essas crianças, quão cruelmente eles foram punidos por sua caça maligna.

Há vários anos, aqui em São Petersburgo, na praça, um cachorro pequeno e quieto, Charlot, caiu atrás do dono: assustou-se, pressionou-se contra a parede e não sabia o que fazer. Então as crianças a cercaram; bem, provocaram-no, bateram nele, jogaram pedras, arrastaram-no pelo rabo. Eles deixaram o pobre cachorro sem paciência, ele correu para eles e mordeu um pouco. O que aconteceu? O cachorro permaneceu saudável, mas as crianças?.. Sabes o que acontece a uma pessoa quando é mordida por um cão raivoso? Ele recebe uma aversão à água, um desejo de morder e morre no mais terrível tormento: é assustador pensar! Vais acreditar? Aconteceu o mesmo com as crianças mordidas: elas enlouqueceram. Sim, meus amigos, este incidente foi uma nova evidência de que quando um cão é provocado por muito tempo e fica com raiva, pode ser tão perigoso morder, como morder um cão raivoso. Não torturem nenhum animal, meus amigos, porque é pecaminoso e mostra um coração maligno, e não torturem cães, nem que seja por brincadeira, porque é ao mesmo tempo mau e perigoso.
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Vladimir Fyodorovich Odoievsky (Moscou/Rússia, 1803 – 1869) foi um filósofo, escritor, crítico musical, filantropo e pedagogo russo. Chegou a ser conhecido como o Hoffmann russo devido ao seu enorme interesse por contos fantásticos e pelo jornalismo crítico. Odoievsky publicou uma série de contos para crianças (por exemplo, A Vila da Caixinha de Surpresas), e historias fantásticas para adultos (por exemplo, Cosmorama e Salamandra). Inspirou-se no conto de Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, para escrever uma série de historias semelhantes, sobre a dissoluta vida da aristocracia da Rússia (por exemplo, A Princesa Mimi e A Princesa Zizi). A sua obra-prima foi uma coleção de ensaios e novelas intitulada As Noites Russas (1844), para a qual se inspirou na obra As Noites Áticas de Aulo Gélio. Como crítico musical, Odoievsky propagou o estilo nacional de Mikhail Glinka e seus seguidores. Escreveu muitos artigos sobre temas musicais, e um tratado sobre antigos cantos na Igreja Russa. Johann Sebastian Bach e Beethoven aparecem como personagens em algumas das suas novelas. Odoievsky promoveu a fundação da Sociedade Musical Russa, do Conservatório de Moscovo e do Conservatório de São Petersburgo. (fonte: wikipedia)

Fontes:
Odoievsky, Vladimir Fedorovich. Contos do Avô Irineu. Publicado originalmente em 1841. Disponível em Domínio Público.    
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Arthur Thomaz (Cururuquira)


Enfim, chegara o momento da tão temida pergunta:

— Mãe, pode me explicar como eu nasci assim?

O pai, tomando a frente, responde tentando mostrar altivez.

— Meu filho, o papai colocou uma sementinha na barriga da mamãe, ela germinou e você nasceu.

— Pai, eu sei que vocês fizeram sexo, mas a minha dúvida é porque nasci assim, um cururuquira?

Atarantados, os pais entreolharam-se, permanecendo calados.

— Eu quero saber o porquê não nasci um lindo pavão, um forte leão ou mesmo um esbelto cavalo. Nem pesquisando no Google e sequer na Wikipedia encontrei qualquer referência à espécie Cururuquira.

Ainda estupefato, o pai retrucou:

— Meu filho, nossa família vem de um passado glorioso, onde nossos ancestrais sobreviveram às intempéries, às sucessivas pandemias e aos ferozes predadores. Somos uma raça forte e temos que nos orgulhar disso.

Diante deste quadro, insatisfeito, ele fez as malas e despediu-se, afirmando que só voltaria quando obtivesse respostas às suas dúvidas existenciais.

Adquiriu um exemplar do livro “A origem das espécies”, de Charles Darwin, e foi lendo em sua viagem inicial até as Ilhas Galápagos.

Nada encontrou no livro e tampouco no arquipélago algo relacionado à sua genealogia. Desapontado, mas obstinado em seus objetivos, resolveu empreender uma viagem por todos os continentes em minuciosa pesquisa.

Visitou alguns países da América do Sul, findando sua busca no Brasil. Desistiu quase imediatamente, quando no aeroporto foi cercado por estranhos seres trajando roupas vermelhas e que insistiram em levá-lo a um cartório para trocar seu nome para “Cururuquire”, por causa de uma tal ideologia de gênero que queriam impor no país.

Inconformado com esse absurdo, embarcou no primeiro voo com destino à América do Norte, pensando que ele, preocupado em encontrar as origens de sua espécie, e aqueles idiotas querendo trocar seu gênero.

Desembarcou no México, onde empreendeu muitas buscas em sítios arqueológicos das antigas civilizações astecas e maias, mas nada encontrou de seu interesse.

Foi assediado por “coyotes” que prometiam transportá-lo através da fronteira até os Estados Unidos. Conseguiu escapar desse bando e já no país vizinho reiniciou sua procura.

Visitou bibliotecas de inúmeras universidades, onde encontrou farto material, mas nada interessante que o ajudasse em seu propósito.

Nessa estadia angariou alguns quilos de tanto comer fast food. Em seu próximo destino, o continente africano, deparou-se com centenas de locais para pesquisar, porém, observou que eram semelhantes ao que estudara na América do Sul, o que comprovava a teoria da separação dos continentes em priscas eras.

Nas savanas escapou do ataque de alguns animais selvagens que estranharam sua aparência e embarcou para o “antigo continente”.

Vários países com culturas diversas e algumas dificuldades com as inúmeras línguas faladas tornaram extremamente dificultosos os seus estudos. Em algumas aduanas encontrou problemas para se identificar, pois os agentes não conseguiam constatar sua espécie, entretanto, o deixavam prosseguir, talvez com “pena” dessa “insignificante e inofensiva criatura”.

Isso naturalmente não o deixava feliz, mas facilitava sua locomoção. Na Ásia, as geleiras restringiram muito seu campo de ação. Escapou de alguns policiais russos e bielorrussos que teimavam em considerá-lo um potencial espião imperialista.

Em certo país, cientistas aventaram a hipótese de dissecá-lo para estudos genéticos em um laboratório. E quando estava quase sendo sacrificado, alguns hamsters condoeram-se daquele estranho ente e indicaram-lhe a saída e o melhor momento para a fuga.

Desalentado, alquebrado e já alguns anos mais velho, resolveu voltar à terra natal. Após demorados abra- ços em seus pais, e muito choro derramado, resumiu toda sua inútil procura em poucas frases.

— Meus amados pais, desejo externar a vocês minha gratidão por ser um cururuquira. Depois de conhecer várias espécies diferentes neste mundo imenso, cheguei à conclusão que somos os “esquisitos” mais interessantes e felizes.

— Imaginem se tivéssemos nascido seres frios de alma e materialistas como muitos neste planeta?

Os cururuquiras, a partir desta descoberta, tornaram-se uma das mais fortes e perenes espécies do planeta.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Sammis Reachers (O deserto, o oásis e a tamareira)


Eu a conheci no Gragoatá, em Niterói, perto de um dos campus da UFF. Pegávamos o mesmo ônibus. Ela, menina de seus 16 anos, sempre de negro, com seus longos escorreitos cabelos negros e as indefectíveis camisas negras de bandas de rock. Branca como a serpente edênica, que era branca como um anjo de luz se você não sabia. Muda e também calada. Ia todas as tardes levar sua irmã especial (tinha síndrome de Down) num colégio para especiais.

Nos olhávamos longamente. Eu estava na primeira separação desta de quem agora estou pela segunda vez separado, e a olhava com faminta ternura. Seu mutismo. Sua rebelião pelo silêncio e pelo luto. Seu contraste negro/claro.

Um dia não suportei e com meu melhor sorriso perguntei-lhe o nome. “Quem quer saber?”, foi seu semi-coice lacônico. “Eu quero. Meu nome é Sammis”. “Porque?”. “Porque te vejo todo dia, e te admiro”. “Tamara”, disse sem nenhum sorriso. 

Conversamos sobre bandas de rock. System of a Down, que naquele tempo era novidade. Não tinha namorado. Fiquei quatro dias sem vê-la, apenas alimentando as hienas da esperança. Quis ser romântico. Preparei uma carta, explanando acerca da origem e beleza de seu nome, meu sentimento por ela, e o poema de Gullar, flecha reciclada, já usado antes e usado depois, como bumerangue de um aborígene perdido na urbe:

Cantiga para não morrer

Quando você for-se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Encontrei-a ao fim da semana, no ponto de ônibus. Cheguei já na hora em que elas embarcavam no coletivo. Eram três: elas estavam com sua mãe (era divorciada, moravam as três num apartamento em São Domingos, bairro contíguo ao Gragoatá). Num movimento furtivo, enquanto sua mãe estava na roleta garimpando na bolsa o dinheiro das passagens, cutuquei-a e entreguei-lhe a carta. Ela apanhou-a com sua mão alvíssima e expressão impassível, marmórea, e colocou no bolso. A minha carta romântica e culta.

Nas semanas seguintes, desapareceu. 

Perguntei ao cobrador, “aquela menina branquinha, com a irmã especial”, mas ele também não a vira. Vira a mãe com a menininha apenas.

Passados dois meses, reencontrei-a: ela estava dentro de um ônibus, sentada à janela, e eu parado no ponto. Cutuquei-a para que tirasse os fones e saísse de sua imersão roqueira. “Você sumiu, o que houve?” “Nada.” “E a minha carta, você gostou?” “Eu tenho namorado.” Bah, mulheres. Rostos mutantes da mesma Eva, do mesmo punhal.

Bem, eu era um pobretão de vinte e sete anos e ela era uma menina mimada filha da classe B.

Sete meses depois, abro o jornal O Fluminense que jazia já amarrotado sobre a mesa de meu patrão, e vejo sua foto. Ela tinha dezoito, não dezesseis. Sim, tinha namorado. Havia se suicidado junto a ele, no palacete do pai do mesmo, na nobre estrada Froés, em Icaraí. Deixaram um longo bilhete, que o jornal não reproduzia. Não quis me informar mais.

Talvez eu a teria salvo, Tamara. Com a minha dor maior que a sua, providenciaria sombra para seu descanso. Entraria e habitaria de literaturas, de asas, sua vida e seu silêncio. E devagar, e sempre em silêncio, iniciar-te-ia num arcano que seus mortos e tribos não podiam, não podem: a lenta explosão que é o conhecimento.
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Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes:
Mar Ocidental 23.01.2013.
https://marocidental.blogspot.com/2013/01/o-deserto-o-oasis-e-tamareira.html
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sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Laé de Souza (O desconfiado)

Ediliando nunca foi de ficar xeretando, porém, observava que, de uns tempos para cá, a mulher andava se perfumando mais, se enchendo de anéis e se vestindo na moda. Procurava desviar o pensamento mas, às vezes, não dava para dominar e era um tormento que chegava a lhe tirar o sono. Várias vezes acordou à noite com desculpa de ir ao banheiro e, na ansiedade, ia até a cozinha consumir um danone ou um pedaço de bolo e custava a pegar de novo no sono. Percebeu que ela se acostumou a sair e, por diversas vezes, controlou o horário, mas a demora era tal que dava para fazer muitas coisas erradas e não tinha como não lhe passar más ideias pela cabeça.

Quando questionada, a mulher ora lhe respondia com evasivas, ora dava respostas malcriadas, que ele matutava, no seu canto, que a coisa não era certa e que ela estava escondendo safadeza. Tanto assim que ele resolveu investigar.

Por duas vezes, fingiu ir trabalhar e espreitou o dia inteiro, sem que a mulher saísse de casa. Num sábado à tarde, ela saiu dizendo que ia dar uma volta pelo shopping e até o convidou, mas ele achou que aquele convite era de “agá” e, fingindo displicência, recusou. Seguiu-a, e ela foi mesmo ao shopping. Noutro dia, dizendo que ia com um grupo de amigas distribuir comida para os pobres, saiu rapidamente e até aonde ele a seguiu (sentiu medo de entrar na favela), ao que tudo indicava, ela estava mesmo fazendo caridade. Numa noite, disse que ia para a missa e novamente o convidou; mas ele, que nunca foi de frequentar igrejas, recusou. Contudo, em observações, constatou que a mulher realmente entrou na igreja e de lá só saiu, quando terminou a missa.

No dia seguinte, disse que ia fazer visitas de caridade, num ritual que há meses praticava, depois que começou a se reunir com o tal grupo de amigas que se propunha a ajudar os pobres. Ediliando questionou ainda que se era para fazer caridade a pobres e descamisados, por que se embelezar tanto? Isto a deixou irritada e com cara de abismada pela desconfiança. Por fim, saiu ele atrás espionando. Entrou numa casa e demorou, num tempo que dava para o coitado do Ediliando perder o juízo. Após fumar três cigarros, não se aguentado mais, dirigiu-se à casa e bateu com a força de quem estava disposto a briga e até à morte, se preciso. A mulher saiu acompanhada de uma velhinha e demonstrou espanto ao ver o marido. Passou-lhe uma descompostura e falou-lhe uns desaforos, toda cheia de razão. Ediliando, envergonhado, pediu perdão pela desconfiança e beijou a mão da velhinha que o abençoou e lhe falou que se desse por feliz e agradecesse a Deus por ter tão generosa mulher. 

Ediliando, com o coração feliz, saiu arrependido de tanta maldade que lhe passou pela cachola, enquanto lá dentro, sua mulher, num calafrio, jogou-se na cama e o neto beijou a vovozinha agradecido por ter-lhe salvo a vida e poder continuar com aquele romance que era a sua razão de viver.
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Laé de Souza é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco.
Fontes:
Laé de Souza. Coisas de Homem & Coisas de Mulher. SP: Ecoarte, 2018.
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Humberto de Campos (Altruísmo)

("Diário" de uma senhora recentemente chegada da Europa)

"Domingo, 6. Regresso, enfim, à pátria querida, e aos braços do meu marido. Após dois anos de ausência, embarquei, ontem, às 5 horas da tarde, em Lisboa, aonde cheguei anteontem, de Paris. O navio vai repleto de passageiros, principalmente de emigrantes, embarcados em Vigo e no Porto. O mar apresenta-se bem, e a viagem está sendo feita sem novidade.

Segunda-feira, 7. - Tudo continua bem a bordo. Os passageiros de 1ª classe, na sua maior parte argentinos, bebem e jogam, no "bar". No tombadilho, alguns ingleses, que se dirigem ao Rio e a Buenos-Aires, fumando displicentemente. Algumas francesas que conduzem vestidos feitos para a sociedade carioca; e três ou quatro famílias brasileiras, que se conservam nos seus camarotes.

Terça-feira, 8. - A viagem continua excelente. Em palestra com o imediato, este me informou que vão a bordo, para o Rio, Santos, Montevidéu e Buenos-Aires, 1.275 passageiros. Uma verdadeira cidade flutuante, em que não há cinco pessoas que reciprocamente se conheçam!

Quarta-feira, 9. - O mar permanece calmo, e o céu prenuncia bom tempo. À mesa do almoço, notei que o comandante olhava insistentemente para mim, distinguindo-me entre as outras senhoras. Achei esquisita a insistência, e fiz-me de desentendida. À noite, não desci para o jantar.

Quinta-feira, 10. - O comandante continuou, hoje, à mesa, a olhar-me com desusado atrevimento, a ponto de esquecer-se do talher e do whisky. É um inglesão alto, robusto, de quarenta e poucos anos presumíveis, bigode louro, tez corada e fina, olhos azuis como o oceano. Um verdadeiro tipo de marujo britânico. Entretanto, a sua insistência irrita-me. Por quem me tomará ele?

Sexta-feira, 11. - Após o jantar, o comandante Wiliam desceu da casa de comando ao tombadilho, procurando conversar comigo, em inglês. Fiz todo o possível para impedir uma declaração indelicada, não o conseguindo. Não é que o homem está mesmo apaixonado?

Sábado, 12. - Esta situação começa a incomodar-me. O comandante passou o dia quase todo a perseguir-me, insistindo em declarar-me a sua paixão desordenada. Tenho a impressão de que o homem enlouqueceu. E eu, sozinha, sem um amigo, sem um conhecido que me defenda! Como é perigoso para uma senhora viajar só!...

Domingo, 13. - O comandante enlouqueceu, positivamente. Hoje, à tarde, aproveitando um momento em que ficamos sós no salão de música, apertou-me os pulsos com violência, dizendo-me que não lhe é possível resistir mais. Diz ele que, se eu me não entregar à sua paixão louca, ele meterá o navio a pique em pleno oceano, fazendo perecer todos que nele viajam, Dai-me forças, meu Deus! Dai-me coragem!

Segunda-feira, 14. - Que dia horrível, este! Como um louco, o cabelo e o bigode revoltos, os olhos inchados pela insônia e pelo desejo, o comandante declarou-me, trêmulo sob palavra de honra, que, se eu não for à meia-noite de hoje, ao seu camarote, meia hora depois ele fará explodir o navio, em uma catástrofe de que se não salvará ninguém. Que situação a minha! Tende piedade de mim, minha Nossa Senhora da Penha! Iluminai-me, minha Virgem Maria!

Terça-feira, 15. - Salvei da morte 1.275 passageiros! Não haverá outros navios correndo perigo no mar?"
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Geraldo Pereira (A alma plena)

Este espaço de jornal em que exercito os meus pendores, às vezes literários, e no qual deixo aflorar os meus sentimentos, é muito mais que mágico. Espaço de meus encontros e de meus reencontros e espaço até de minhas reparações d’alma! Conheci, a partir daqui mesmo, diversas pessoas, leitoras todas das crônicas ensaiadas em momentos assim, do emergir das emoções, dos ganhos ou das perdas que a vida traz. E se encontrei a tantos, reencontrei a outros, velhos companheiros dos bancos de escola, dos tempos dos jesuítas e dos anos de faculdade, que me acompanham nesse mister delicioso de escrever e de ser lido. Com frequência, ouço alusões a um tema qualquer, fruto de minhas divagações do espírito ou resultante da prática nostálgica das minhas saudades. Chego a pensar que o cotidiano agrada a quem faz uma pausa na leitura das notícias do dia-a-dia e se identifica com o articulista, aprendiz sempre! Tanto faz o pretérito distante, como o presente rapidamente transformado em passado!

Certa vez, andando pela praia, nas brancas e finas areias de Pau Amarelo, tive a grata surpresa de ouvir de uma leitora o quanto lhe fizera bem um de meus artigos. A moça, sentada ao sol de verão, levantou-se e me disse de sua satisfação ao comungar das minhas ideias e talvez dos meus ideais. Precisava, como verbalizou, daquelas palavras solidárias, de uma certa reparação das falhas humanas, tão comuns, mas nem sempre compreendidas, do entendimento da fragilidade da criatura. Uma outra senhora, também, nas mesmas areias cálidas, me fez parar a caminhada e indagou: “Você escreve pra mim?”. É que as lembranças da infância e as recordações da juventude dos meus tempos coincidiam com as suas formas de reviver os anos. Sendo de meu grupo de idade, com certeza vivera episódios assemelhados ou andara por lugares parecidos, senão os mesmos de meus dias! Assim, parecia entrar no texto e participar da flexão das palavras e das frases, ajudando a formar períodos inteiros de vivências guardadas agora nos reservados recantos da memória!

Um dia desses, nas proximidades da av. Boa Viagem, ouço do carro ao lado ruidosa saudação de velho amigo – Rodolfo Coutinho –, colega do ginásio. A um só tempo falou dos assuntos de minhas últimas crônicas, dos filmes a que assistíamos juntos, burlando a vigilância descuidada nos cinemas da cidade. De Brigitte Bardot, musa encantada da juventude toda, uma antecipação da Vera Fisher de agora, forasteira e estrangeira, mas estímulo forte às fantasias daqueles tempos. Lembrou as brigas com outro colega de colégio, Marcionilo de prenome, de cujas contendas tomamos por castigo a expulsão materializada da antiga Congregação Mariana, que frequentávamos com olho grande na sinuca e nos outros jogos da sala, nada mais. E o sinal abriu, o encarnado sofreu a metamorfose do verde, impedindo o mais sublime dos atos, o de fiar conversa assim, rebuscando lembranças. Faltou muita coisa - É claro! -, das traquinagens todas, das inquietudes vocacionais primitivas, eclesiásticas por vezes, dos pecados repetidos aos ouvidos dos padres e muito mais! Um dia, recordaremos tudo isso!

Uma determinada crônica, dedicada a uma certa mãe dos meus distantes convívios, gerou uma atenciosa carta de outra senhora igualmente sofredora e da mesma forma desesperada. Dizia, em bom português, que sendo habitual leitora deste espaço, jamais imaginou tamanha sensibilidade. Não me conhecia, dizia e por isso, ideia não podia fazer! Assim, contou a sua desdita, os seus traumas e as suas frustrações. Li, com toda a atenção d’alma, reli muitas vezes e me fiz partícipe de suas dores. E se há noites em que rezo aos céus, na minha incredulidade do hoje, não dispenso essa inclusão em meus pedidos: a reflexão do espírito voltada para o leitor. Muito grato, então, aos leitores todos, aos que ligam e se expressam, aos que encontro no efêmero das ruas, aos que não me cumprimentam porque não podem e até aos que não gostam e dizem ou não dizem! Muito grato a Rodolfo Coutinho, a quem dedico a inspiração e a crônica!
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.
Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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Carina Bratt (Lágrimas orvalhadas num rosto em busca do amor)


Beijei teu sorriso, mas ficou o gosto de adeus...doçura amarga.
(Aparecido Raimundo de Souza, de "Viagem imersiva")

Porta fechada
O vento bate e volta… Segredo guardado.

Esquecimento
Flores ofertadas murcham sem um olhar… Silêncio ingrato.

Corte súbito
Braço estendido, mão que empurra e se vai… Vento na face.

Cicatriz
Ajudei com fé, mas a memória falhou… só ficou a dor.

Lembranças
Sopro salgado vem, traz memórias da infância e ondas no olhar.

Peso invisível
O silêncio espesso enche o ar como fumaça… ninguém respira.

Entrelinhas
Palavras ausentes, o olhar diz mais que tudo… Silêncio obtuso. 

Vácuo
Eco sem resposta, paredes que não devolvem som que se perdeu.

Interrompido
A flor que não abriu, o vento levou antes do sol o tempo não cumprido.

Voz calada
Riso engasgado na infância que se apagou do nada… Mudez eterna.

Súbito vazio
Passo que faltou na dança da despedida… Eco sem resposta.

Quarto fantasma 
Som do próprio passo ecoando no agora… Ninguém responde.

Noite longa
A luz do abajur cai na xícara esquecida… Só eu e o tempo.

Dentro de mim
A multidão lá fora, mas aqui tudo é tristeza... sou só euzinha comigo.

Ao acaso
Esbarro no riso, num olhar que me entende… A amizade nasce.

Esquisito
Sentamos calados, mas o tempo se abriu em laço impossível.

Entre estranhos
A chuva nos juntou, guarda-chuva compartilhado… Dois corações se uniram num só bater. 

Promessa vazia
Disse que vinha, fiquei na porta esperando, chupando o dedo.

Desejo negado
O sorvete passou, a criança atrás do vidro – dedo na boca.

Ilusão sem nexo
No sonho embalado acordei sem presente, só o gosto amargo restou.

Olhar contido
Cruzei teu olhar, mas o mundo nos separou... ficou o vazio.

Barreira
Entre nós, a muralha feita de tempo e destino… o amor não passou. 

Ainda agora não acredito
Se fosse possível, o céu caberia em nós, mas ficou só o chão.

Pulso firme
O coração chora, mesmo após tantas quedas... estou viva, sim...

Voz própria
O silêncio rompe minha voz e enfim se ergue... Sou a vida que fala.

Tempo sábio
A cicatriz se fecha, não por pressa, mas por fé… Curo o desconhecido.

Exposta
Sangra sem parar, o tempo passa ao redor… Ferida aberta.

Invisível
Não se vê no corpo, mas arde em cada gesto, a dor que não cicatrizou.

Ainda dói
Toquei sem querer e o passado respondeu… Ferida incurável.

Travessia plena
Sobre a ponte vou, entre o que fui e o que serei... O vento me empurra.
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CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Secretária particular e assessora de imprensa em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.
Fontes:
Texto enviado pela autora,
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terça-feira, 23 de setembro de 2025

Renato Benvindo Frata (Quantos Pedaços?)


Quantos pedaços do meu coração devo juntar para compor ao menos um pouco do seu amor?

Despedaçado, só me resta colher fragmentos aqui e ali, juntá-los na palma, amoldá-los com cuidado a lhes imitar a forma, deixá-los concisos, mas sei que jamais reconstituirei seu todo. 

Há farelos dele aos quais não terei acesso. Muitos, em área de tráfego que por certo, os pisares da tristeza inutilizou...

Quantos pedaços precisarei?

É a pergunta plantada em meus olhares em que tudo parece nada. 

Estão voltados ao além das coisas em que a saudade enxerga sem compreender o porquê da sentida ausência. Ela não tem cor, cheiro ou expressão... é vazia como o vazio do silêncio. 

Sofro por isso.

Ponho-me a auscultar passos que não vêm, sinais que não chegam, avisos que não me alcançam. Sensações falecem distorcidas a cada pôr de sol a despencarem abismos. 

A escuridão não permite que veja. Mas me dá sentido. 

Sentidos... O tempo passa e, com ele, a vida, o que me leva à angústia pela pressa.

Vão-se os sóis coloridos dos outonos, as flores frescas perfumadas das primaveras, os frutos doces, intumescidos dos verões para me deixar nesse extenso e interminável inverno.

Inverno interno, inverno eterno, inverno inferno.

Com a pele enrijecida, cabelos raleados, passos imprecisos, músculos flácidos, olhos pedindo lentes, espero. Numa espera fera, cratera pronta a me enterrar.

Permaneço na mesma posição de quando me debrucei à janela e pedi que não fosse, que voltasse. 

Pedi que viesse para nossos perdões recíprocos e, com eles, a completude do amor. Pedi para compormos a canção da paz. 

Mas não. 

A solidão pede que pergunte: - quantos pedaços?
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Terapia caseira para ir além do cotidiano)

HÁ UMA MÚSICA que não apenas toca meus ouvidos, mas atravessa minha pele, corta como o vento em estrada aberta. Ela não tem nome fixo, não mora em um gênero específico. Às vezes me vejo sentado na sala, diante de meu Nord Stage 5, tocando essa maravilha, outras vezes me flagro em meio a uma espécie de orquestração ancestral, como se eu fosse o maestro com a batuta nas mãos regendo notas de um paraíso bem longe da Terra. 

Ainda que eu não esteja no teclado, somente ouvindo ou dedilhando o som das suas notas, como se vindas de um ponto distante. Não importa. Nessas horas simplesmente me transporto. Quando a música começa, o mundo ao meu redor desacelera. As paredes do meu apê desaparecem, e de repente sou lançado por trilhas suaves e invisíveis. Viajo nesses momentos mágicos, por horas e horas. Me deleito por sendas que não reconheço, mas que me acolhem. 

É como se cada nota tocada ou ouvida fosse uma bússola apontando o futuro para dentro de mim e não só me direcionando, ou me revelando paisagens, todavia, conduzindo meu espírito para lugares que nunca explorei. De roldão, visitarei lembranças esquecidas, abraçarei desejos não realizados, me livrarei de medos bobos que se camuflavam de coragem. Essa música, me fará viajar sem malas e sem mapas. Me levará por desertos de silêncio e florestas de emoções imorredouras. Às vezes, me encontro em um mundo paralelo. 

Me pilho num vilarejo onde o tempo parou, e então fico ouvindo vozes que falam em línguas que não conheço, mas por algum motivo entendo. Noutras, estou flutuando sobre cidades futuristas, como se estivesse plainado ao redor de prédios altos, onde cada batida me impulsiona em direção ao além mavioso de um céu desconhecido. Ela, a música, me ensina que o incógnito adventício e duvidoso, logo em seguida me mostrará que por onde eu transitar não será um lugar de perigo, porém de novas descobertas. 

Em seguida, me fará ver também que há uma beleza rara e incomum naquilo que não compreendo de imediato. Me fará crer que viajar em suas ondas sonoras não será apenas mudar de lugar, outrossim de perspectiva. E quando a derradeira nota ecoar, prevalecerá um arroubo sempiterno ameno e deleitável, e eu não serei mais o mesmo de antes. Trarei de volta, para o meu mundinho retido dentro do meu apartamento, um porvir esplendoroso. 

Regredirei diferente, é claro. Regressarei extasiado, contemplativo, arrebatado, embebido dos pés à cabeça com algo novo formado dentro de todo meu “eu”, ou seja, me exaltarei empanturrado, inundado a alma toda com ideias corpulentas, ingurgitadas numa sensação, e no ar que respiro uma paz jamais sentida. Essa música que ouço e se espalha, não me dará somente respostas. Ela me proporcionará algo mais e me mostrará caminhos sedentos de amanhã. 

Essa música eu diria sem medo de errar, acabou com a minha quase demência, com meu início de Alzheimer. Não sei o nome dessa música. Apenas me foi dado conhecer e entender que é composta de uma melodia que completou a minha vida. Me sinto, por conta, vivo. Igualmente me abraso livre, me incendeio. É a música terapia da minha vida. A indagação que agora deixo para você, meu caro amigo, é uma só: qual é à música da sua vida? Qual a melodia que lhe transportará para lugares além do chão onde atualmente está pisando? 

Sugiro que você pare e tente capturá-la. Se atenha a uma canção suave e serena, que seja envolvente, que provoque a sua alma, que contemple o seu espírito e, sobretudo, que lhe faça sentir seguro. Como a mim, você verá se dissolver o nevoeiro que o está afligindo. Acredite, essa música existe em cada um de nós e pasme, ela não só devolve a paz, alimenta a alegria de viver...e nos guia para um campo neutro onde nos sentimos realizados. 

Essa música lhe devolverá, ao mesmo tempo, no que melhor existe dentro do oco que fere a sua vida cotidiana. Faça, pois, como eu. Crie um ritual. Apague o mundo. Se recolha em sua cama, coloque os fones no ouvido e se deixe levar pelo som do amor. Ele lhe conduzirá. No dia seguinte, você não acordará apenas desperto. Você se maravilhará vivo. Lembre sempre do que direi antes de terminar: quando a mente começar a falhar, você se deparará, do nada com uma forma de dizer: “Ainda estou aqui.” 

E estará mesmo. Inteiro, saltitante, repaginado. Não é preciso muito para viajar longe. Nem passaporte, nem estrada, nem dinheiro. Basta um par de fones de ouvido e a coragem de se entregar ao som da música certa. Não qualquer som, não o barulho do que está ao seu redor, não o batuque frenético que o empurrará para fora, mas aquela centelha sutil que o desconectará do habitual. Tente capturar a música certa, aquela que não gritará nem agredirá seus tímpanos. 

A música certa, meu caro amigo é a que sussurrará. Ela é feita de instantes suaves, de acordes que parecem respirar. Poderá vir de um órgão solitário tocando como se conversasse com o infinito. Poderá ser de um piano, de uma sanfona, de uma guitarra, ou de um violino que deslizará acordes como água sobre pedra. O importante é que ela não lhe tire o foco, apenas o distraia e se revele a você por inteira. Você não precisará entender de música. Só carecerá de a sentir. À noite, quando tudo se acalmar, repito para que não esqueça: tome um banho, desligue as notificações, apague as luzes.  

Tente se desconectar e se ater ao som limpo, puro, como se ele fosse feito para você. E então, acontecerá. Algo mavioso, inesperado. A sua mente desacelerará. O coração mudará de ritmo. Baterá mais leve. Os pensamentos antes embaralhados, começarão a se alinhar como estrelas cadentes num céu magnânimo. Você não dormirá. Você se reconectará com você mesmo. Quando o dia seguinte nascer, você não acordará apenas descansado. Seu todo pulará para a vida, saltará de alma nova.  Você, meu amigo, se verá inteiramente R E N O V A D O.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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domingo, 21 de setembro de 2025

Abbie Phillips Walker (A pequena boneca da China)

Na vitrine de uma loja estava uma pequena boneca de porcelana. Ela estava na loja há tanto tempo que não se lembrava de ter morado em outro lugar.

Há muito, muito tempo, haviam outras bonecas de porcelana, mas uma a uma, uma garotinha as levou embora e ela ficou sozinha. A Boneca da China tinha cabelos pintados de preto e olhos grandes e arregalados, e seus lábios e bochechas estavam muito vermelhos. Seu corpo estava cheio de serragem e suas mãos e braços eram de porcelana até o cotovelo, assim como seus pés e pernas até os joelhos.

Aos poucos, bonecas de cera chegaram à loja; elas tinham cabelos de verdade, todas cacheadas, e olhos que abriam e fechavam, e a pobre Boneca da China foi colocada de volta na vitrine, e depois de um tempo ela foi colocada em uma caixa na prateleira e retirada apenas uma vez por ano — no Natal — quando era espanada e colocada na vitrine novamente. Ela se sentia muito sozinha com tantas bonecas de cera estilosas e, como já havia perdido a esperança de ser escolhida por alguma garotinha, ficou feliz quando a velhinha que cuidava da loja a colocou de volta na caixa na prateleira.

Finalmente chegou um tempo em que as crianças não iam mais à loja, mas iam à cidade grande comprar seus brinquedos, e a Boneca da China e o pequeno velho lojista envelheceram juntos.

A Boneca da China ficava na vitrine o tempo todo, com fita adesiva, linha e outras coisas úteis, mas era a única coisa que as crianças podiam querer.

Um dia, no verão, uma vendedora parou em frente à loja e um grupo de jovens entrou. Eles compraram várias coisas e encheram a velha loja com suas risadas. 

De repente, a menina mais bonita enfiou a mão na vitrine e tirou a Boneca da China. 

"Oh, sua bonequinha querida e pitoresca!" disse ela. "Minha avó tem uma igual a esta, meninas, e eu pedi a ela muitas vezes para me dar para fazer um alfineteiro francês, mas ela não me deixa ficar com ela."

Oh, como o coração da Boneca da China batia! Seria verdade que ela finalmente ia partir? 

Sim, a moça bonita a comprou e a levou embora.

No dia seguinte, ela vestiu a Boneca da China com o mais lindo vestido de seda, como ela sonhara anos atrás, com uma sobressaia e mangas de tricô. Depois, fez para ela o mais querido gorro de pelúcia, enfeitado com pequenas rosas. Também lhe fez um par de botas de pelica.

Quando a boneca estava toda vestida, a linda menina colocou uma fita em seu braço, e em cada ponta havia uma pequena caixa de fita. Então, ela colocou a boneca em sua penteadeira e usou as caixinhas como alfinetes. 

E lá, a Boneca da China viveu uma vida muito feliz, que ensina que todas as coisas acontecem para aqueles que esperam.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.
Fontes> 
Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). The Sandman's Hour: Stories for Bedtime. Publicado em 1916. Disponível em Domínio Público.
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Tia Célia (A lagarta infeliz)

Num jardim muito agradável e florido vivia uma lagarta que se sentia sempre muito infeliz. Na verdade, ali ela tinha tudo o que precisava.

Passeava pelas plantas e se alimentava de folhas bem verdinhas e macias, e se abrigava entre os ramos das árvores.

A lagarta era muito boa, prestativa e gostava muito de ajudar os outros, mas quem?

Todos a temiam e fugiam dela exclamando:

- Que bicho feio!

Os garotos caçoavam dela e maltratavam a pobrezinha, que corria a esconder-se entre as folhas. Por isso, ela vivia muito triste. Possuía um coração terno e amoroso e queria muito ter amigos, mas não conseguia aproximar-se de ninguém.

Os próprios bichos a olhavam com desdém, dizendo:

- Vejam que roupa mais feia!

E a pobre lagarta ficava cada vez mais triste e sozinha, até que, cansada de tanto ser maltratada ela não saiu mais de casa.

Não podendo aproximar-se de ninguém, ainda assim querendo doar algo de si mesma, ela fez a única coisa que sabia fazer: teceu lindos fios para que alguém pudesse aproveitar confeccionando belas roupas. Como tinha muito tempo à sua disposição, ela trabalhou bastante.

Enrolou-se toda no casulo e ficou quietinha... quietinha...

Estava com tanto sono! Sentia-se tão cansada...

E a lagarta dormiu... dormiu...dormiu...

Quando acordou, sentiu-se diferente, mais leve, mais bem disposta.

Teve vontade de passear e saiu de casa.

Notou que todos os que estavam por perto a fitavam com surpresa e admiração.

- O que está acontecendo? – pensou. Olhou-se e ficou deslumbrada.

Oh! Maravilha! Era um lindo dia e, sob os raios do sol morno da manhã, ela percebeu que se transformara em uma linda borboleta de asas coloridas e cintilantes.

Sem poder conter a emoção do momento, satisfeita da vida e muito, muito feliz, ela bateu as asas brilhantes e, depois de beijar as perfumadas flores do jardim, voou para o infinito.
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Célia Xavier de Camargo (Tia Célia) é natural de Gália/SP, espírita, escritora com 23 livros publicados. É formada em Direito, sendo atualmente professora aposentada. Casada com 4 filhos. Reside em Rolândia – PR. Residiu por muitos anos na cidade de Marília (SP), onde participou ativamente do movimento espírita. Em 1980 iniciou-se na psicografia, publicando 15 livros de diversos autores espirituais, disponíveis nas livrarias espíritas. Tendo atuado por muitos anos na área infanto-juvenil de educação espírita, desde o ano de 1985, é responsável por uma página inteiramente dedicada à criança no mensário O Imortal, de Cambé/PR. Palestrante por todo o Brasil divulgando o Espiritismo. O livro “Um anjo em nossas vidas”, faz parte do Clube do Livro do Instituto Chico Xavier.

Fontes:
Jornal O Imortal. Cambé/PR: 2001.
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