A LAPISEIRA ELISANJA, olhou para o relógio e conferiu as horas. Dezoito em ponto. Saiu da sua mesa de trabalho com o espírito alegre. Estava radiosa e feliz. Mais um dia. Sem perceber que logo atrás dela, apenas alguns passos, alguém a seguia de cara fechada. Sem notar a presença da amiga Eloá Vitória, a Lapiseira Elisanja falou, como se conversasse consigo mesma.
Lapiseira Elisanja:
— Que maravilha! Cada pensamento meu, cada ideia, cada traço que eu crio... nossa, é a expressão mais pura da minha mente imaginosa...
Ao contrário dela, trepada nos cascos, a Borracha Eloá Vitória, atrelada em sua sombra, se manifestou, duas pedras nas mãos. Atacou.
Borracha Eloá Vitória:
— Você disse pura? Por favor! A maioria dessas ideias que saem de dentro de você se fazem erradas, tortas ou pior, desajeitadas. Sem mim, você, sua tonta, seria um caos!
Lapiseira Elisanja, sem perder a esportiva, se virou para a amiga e rebateu:
— Pelo menos eu crio algo! Você, ao contrário, só destrói. Apaga como se nunca tivesse existido!
Borracha Eloá Vitória:
— Eu não destruo porcaria nenhuma, sua mal-agradecida. Apenas dou a chance de você recomeçar sem erros “para te arrastar.” Só lhe concedo espaço para melhorar.
Lapiseira Elisanja:
— E quem disse que um erro não pode ser belo? Às vezes, o improviso é a alma do criativo! Noutras, o improviso é só um desastre esperando para acontecer. Saiba que o prazer de deslizar no papel, desenhando cada pensamento que emerge da minha mente criativa é como se fosse uma dádiva. Mesmo norte, cada risco, cada curva, nasce como um sussurro de minha avidez imaginativa. Sou a ponte entre o abstrato e o concreto, ou seja, sua invejosa, me transformo no objetivo dos sonhos que logo em seguida, ganharão forma.
A borracha Eloá Vitória não deixa por menos. Alfineta:
— Sonhos que, na maioria das vezes, nascem imperfeitos, borrados, sem direção. Eu sou a guardiã da ordem, a restauradora da clareza. Sem mim, sua convencida, o mundo seria um caos de ideias inacabadas e garatujas confusas.
Lapiseira Elisanja:
— Que crueldade! Você olha para os meus traços e só enxerga defeitos? Cada imperfeição é prova de autenticidade. É a alma da criação! Por que destruir aquilo que tem vida própria?
Borracha Eloá Vitória:
— Não é destruição, é oportunidade. Eu dou espaço para o aprimoramento, para o que é melhor. Não podemos crescer sem apagar o que está errado, sem dar um passo atrás para repensar e recomeçar.
A Lapiseira Elisanja se abre num sorriso amarelo e forçado.
Lapiseira Elisanja:
— E quem decide o que é errado? Às vezes, o erro é apenas um caminho diferente. Um gatafunho (garatuja) fora do planejado pode levar a uma descoberta inesperada, algo único e magnífico.
Borracha Eloá Vitória:
—Talvez. Mas eu observo os erros como manchas: elas podem ser belas, mas não deixam de ser máculas. Meu papel é suavizar essas imperfeições, dar ao artista a chance de criar algo mais limpo e mais refinado.
Lapiseira Elisanja:
—Refinado, talvez. Mas nunca tão espontâneo. Você pode apagar meus traços, mas nunca destruirá a essência do que eu trago à vida.
Essa troca de palavras entre as duas, a bem da verdade, reflete as suas personalidades ao tempo em que invoca uma profundidade maior para um conflito que nem deveria existir.
Vindo de algum lugar perto do estojo, aparece a Régua Eduarda e ao ver as duas amigas trocando palavras ríspidas, espera a oportunidade para entrar no diálogo.
Enquanto isso, a Lapiseira Elisanja, continua soltando fogo pelas ventas. Desabafa:
Lapiseira Elisanja
— Você pode apagar as minhas linhas, mas não denigre o talento inventivo que flui através de mim!
Borracha Eloá Vitória, ainda meio enfezada:
— Talento inventivo, ou caos? Sem um pouco de ordem, o papel seria apenas um campo de batalha de ideias confusas.
(De repente, a Régua Eduarda enxerga uma brecha e interrompe com sua voz firme e equilibrada).
Régua Eduarda:
— Olá queridas amigas. Vocês duas, parem com isso! Não percebem que só conseguem criar algo grandioso quando trabalham juntas?
Lapiseira Elisanja solta uma resposta ao acaso:
— E o que a sua amável pessoa entende de criação, dona Régua? Você é só – como eu diria – uma linha reta!
Nesse ponto da discussão, a Borracha Eloá Vitória, sem perceber, esquece as rusgas e acode em socorro da amiga:
Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, sua bobona. Todo mundo sabe que você só serve para traçar limites.
Régua Eduarda:
— Limites, sim. Mas também direção e propósito. Eu sou quem dá forma ao caos e transforma linhas soltas em desenhos, ou melhor, em estruturas. Sem mim, as suas desavenças não passariam de tapas e beliscões.
Lapiseira Elisanja:
— Humm... talvez você tenha razão Régua Eduarda. Concordo que as minhas ideias precisem, vez em quando, de um pouco mais de direção...
Borracha Eloá Vitória, esperta, dá o braço a torcer:
— Admito que apagar sem um propósito claro também não faz muito sentido.
A Régua Eduarda, em meio a essa confusão, passa a ser, do nada, uma personagem sábia, pragmática e talvez até um pouco sarcástica, entretanto, colocando as duas companheiras em seus devidos lugares.
Lapiseira Elisanja ponderando um pouco as palavras:
— Sabe, Borracha Eloá Vitória. A Régua Eduarda não deixa de ter razão. Sem você, eu não seria, vamos dizer, precisa e meus traços vez outra ficariam sem propósitos definidos. Acho que posso “te valorizar mais.”
A borracha Eloá Vitória se abre num sorriso espontâneo de canto a canto da boca.
Borracha Eloá Vitória:
— E eu admito, sem sombra de dúvidas, que, sem você, não teria nada para apagar. Quem sabe consigamos ser mais importantes juntas do que imaginamos.
(De repente, o Papel Pedro Simão, até então calado e só assistindo a briga de camarote, interrompe com um tom dramático):
Papel Pedro Simão:
Ah, que bonito! Vocês duas se entendendo, enquanto eu fico aqui sofrendo! É linha por toda parte, apagões sem fim... um dia, vou acabar rasgado nesse caos criativo!
Lapiseira Elisanja vindo em socorro do Papel Pedro Simão.
Lapiseira Elisanja:
— Relaxa, meu amigo Papel Pedro Simão. Fica frio. Você é forte, aguenta tudo. Não se esqueça, que é em você que nos espelhamos!
A Borracha Eloá Vitória fortifica a tese, concordando.
Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, só não passa perto, pelo amor de Deus, da Tesoura Vandeca! Ele pode transformar você num monte de tirinhas.
(Entra, inesperadamente a Tesoura Vandeca, cara fechada, boca afiada, acompanhada de um sorriso cortante).
Tesoura Vandeca:
— Escutei, sem querer, meu nome. Não se preocupem! Somente quero esclarecer um ponto. Deixar claro um assunto que me incomoda, toda vez que ele vem à tona. Serei breve. A amiga Borracha Eloá Vitória acabou de falar para o Papel Pedro Simão tomar cuidado comigo. Não tenho instintos assassinos. Além do mais, o Papel Pedro Simão é meu amigo de muitos anos. Aliás, como todos por aqui. Não tenho motivos para transforma-lo em tirinhas... e isso vale para os demais que pensam o contrário. Era o que precisava deixar esclarecido. A propósito, Papel Pedro Simão, que tal darmos uma volta por aí?
Papel Pedro Simão:
— “Demorô,” amiga Tesoura Vandeca. Vamos nos divertir um bocadinho... daqui a pouco, vem o melhor da festa...
(Com a saída da Tesoura Vandeca e do Papel Pedro Simão, os “sem modos” começaram a gritar e falar ao mesmo tempo. O Estojo se voltou para seu canto com a intenção de tomar conta de seus afazeres, levando em conta que dentro em pouco teria muito serviço à sua espera.)
Lapiseira Elisanja:
— Sabe de uma coisa, Borracha Eloá Vitória. Apesar de tudo, eu admiro a sua determinação em mandar para o espaço alguns de meus traços. Só tem uma coisa que me deixa com pulga atrás da orelha...
Borracha Eloá Vitória franzindo cenho:
— O quê? Minha eficiência impecável?
Lapiseira Elisanja mudando o rumo da prosa:
— Não, é que... depois de tanto apagar, percebo que você está ficando – desculpe trazer isso à baila –, mas essa situação está cada dia mais visível. Você se faz mais pequena, tão minúscula e derreada que acredito, dentro em pouco, sumirá do mapa antes de mim!
(A Borracha Eloá Vitória engoliu o que iria dizer. Olhou para si mesma e só então percebeu o seu tamanho reduzido e respondeu com um toque de desespero dramático.)
Borracha Eloá Vitória:
— Pequena?! Eu prefiro o termo... compacta! Mas é verdade, amiga Lapiseira Elisanja. Estou realmente, encurtando, decrescendo... logo serei uma coisinha anã, virarei um trocinho nanico.
Lapiseira Elisanja tentando apaziguar um problema futuro:
— Relaxa Borracha Eloá Vitória. Enquanto você encolhe, eu no mesmo trilho, me verei sem meu material de trabalho, o grafite. Até que isso ocorra, obviamente vou traçar e você apagará um milhão de vezes. No final, com a chegada da nossa velhice, estaremos no mesmo barco... ou melhor, no mesmo estojo.
As duas, de repente, caíram na risada enquanto o Lilico Tilibra, apelidado carinhosamente de “Estojo Guardião,” se retirou para dentro de seu casulo, se mantendo alheio e só ouvindo. A Régua Eduarda, voltou a se manifestar e comentou sarcasticamente).
Régua Eduarda:
— Meninas, escutem o que vou dizer. Tudo o que estamos vendo e vivenciando aqui, não passa de um drama comum de estoque de papelaria... tenho para mim que não existe borracha igual a Eloá Vitória. Do mesmo modo, nem grafite para uma vovozinha linda na qual a Lapiseira Elisanja vem se transformando... eu também, como todos que aqui vivemos e trabalhamos, cairemos num poço sem volta do nefasto desábito. O que precisamos fazer, com urgência é nos preparamos para quando esse momento desditoso e maléfico chegar, estarmos de cabeças erguidas e em paz.
A lapiseira Elisanja, a régua Eduarda, a borracha Eloá Vitória e até o estojo Lilico Tilibra nesse momento, vendo que a paz voltara a reinar, foi atrás da geladeira, se benzeu e rezou um Pai Nosso. Estava saltitante, já que seus chegados se confraternizavam, se abraçavam, e se uniam, irmanamente, em vista do tempo que algum dia (ou em breve, nunca se saberia ao certo), atracaria no cais do destino de cada um deles, como um barco negro para levar para o desconhecido de um futuro sem volta. E o pior de tudo: sem aviso prévio.
Diante desse quatro apresentado, que lição poderíamos tirar para usar no nosso dia a dia dessa história com sabor de quero mais? A lapiseira, a Régua, a Borracha e o Estojo se uniram, e passaram a refletir, em vista do tempo que seguiria adiante, enquanto uma ficaria pequena, ou seja a Borracha e a Lapiseira, sem grafite. Quem daria uma palavra amiga, para que todos eles encarassem o porvir sem receios de se quedarem velhos e inoperantes? Imaginemos que a régua pudesse ser a voz da razão e da estabilidade, dizendo algo como: “Não se preocupem, amigos. Embora o tempo transforme a nossa aparência e função, a essência do que fomos, nunca desaparecerá. O que fizemos juntos, tipo medir, corrigir, criar, cortar, apagar, refazer, permanecerá em cada linha e traço que ajudamos a formar.”
Talvez a borracha, amiudada e gasta, seguiria cumprindo seu propósito. Apagaria para dar espaço ao novo. Mesmo capenga, seu tamanho não definiria a sua utilidade, mas sim, o impacto que continuaria causando. “Embora depauperada, ainda — diria, lisonjeira — poderei mandar para as cucuias, um bocado de erros e dar espaço para prósperos recomeços. O que nos une e nos mantém com os nossos corações pulsando, é que continuaremos sendo úteis, cada um à seu jeito.” E a lapiseira, sem grafite, encontrará consolo ao lembrar que não importa como... de onde menos se espera haverá um jeito de recarregar e seguir criando.
O importante, berrou num dado momento espavorido, a Régua Vitória, como se tivesse lido os pensamentos do estojo Lilico Tilibra:
— SOMOS UMA GRANDE FAMÍLIA. E DEVEREMOS CONTINUAR ASSIM... UNIDOS... HAJA O QUE HOUVER...
Com a chegada do curto passeio feito pelo casal Papel Pedro Simão e a Tesoura Vandeca, os demais pularam apressados para dentro do refúgio Lilico Tilibra, o “Estojo Guardião” que, radioso e contente, anunciou:
— Hora do jantar. Venham saborear as guloseimas que preparei para nós. Em confraternização a esse chamado, os partícipes se uniram radiantes e famintos em volta da enorme mesa oval.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras. Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas. Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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